Política dos (des)afetos identitários: interface psicanalítica da democracia liberal e políticas públicas

Politics of identity (dis)affections: psychoanalytic-phenomenological interface of liberal democracy and public policies

Jefferson da Silva Ida Kublikowski Sobre os autores

RESUMO

Este texto tem como objetivo refletir, teoricamente, sobre (des)afetos identitários nas democracias liberais, com seus reflexos na efetivação de políticas públicas, enquanto demandas humanas e sociais. A partir da perspectiva psicanalítica, sob o viés da filosofia fenomenológica de Paul Ricoeur, analisa como as sociedades modernas, movidas pela política do desamparo, ainda se mostram dependentes de um núcleo teológico-político, dentro de uma visão patriarcal-religiosa de mando à semelhança de uma autoridade onipotente. Diante disso, assinala a importância de (re)pensar a desconstrução desse modelo, trazendo a figura do sujeito capaz de falar, agir, narrar e se responsabilizar, como base para a consolidação do sujeito de direito, por considerar os possíveis impactos deletérios nas políticas públicas e suas legítimas demandas sociais, lastreadas no humanismo jurídico e nos direitos humanos. Essas políticas, pelo viés de uma psicologia crítica, ficam sob sérios riscos de desmonte dessas suas bases estruturantes, quando uma personalidade autoritária, narcísica e superegoica, movida por seus caprichos ideológicos, com a qual indivíduos alienados se identificam, ocupa o poder e se julga senhor de tudo aquilo que é bom ou mau para um povo, determinando o que será objeto de proteção de seu poder e o que não merece dele nenhuma atenção.

PALAVRAS-CHAVE
Identidade; Autoavaliação (psicologia); Democracia; Política pública

ABSTRACT

This text aims to reflect, theoretically, on identity (dis)affections in liberal democracies, with its reflections on the implementation of public policies, as human and social demands. From the psychoanalytic perspective, under the bias of Paul Ricoeur’s phenomenological philosophy, it analyzes how modern societies, driven by the politics of helplessness, are still dependent on a theological-political core, within a patriarchalreligious view of command in the likeness of an omnipotent authority. Therefore, it points out the importance of (re)thinking about the deconstruction of that model, bringing the figure of the subject capable of speaking, acting, narrating, and taking responsibility as a basis for the consolidation of the subject of right, considering the possible deleterious impacts on public policies and their legitimate social demands, based on legal humanism and human rights. These policies, by the bias of a critical psychology, are under serious risks of dismantling these structuring bases, when an authoritarian, narcisic, and superegoic personality, moved by their ideological whims, with which alienated individuals identify themselves, occupies power and considers themselves master of all that is good or bad for a people, determining what shall be protected by their power and what deserves no attention from it.

KEYWORDS
Identity; Self-assessment; Democracy; Public policy

Introdução

Os tempos em curso têm apresentado riscos iminentes à democracia real, efetiva, arejada por manifestações e criações que brotem de uma ativa e participativa soberania popular. Nesse sentido, torna-se relevante a reflexão sociopolítica que retome as relações afetivas como constituintes fundamentais das sociedades modernas. Por isso, o artigo tem como objetivo refletir sobre (des)afetos identitários nas democracias liberais, e suas repercussões na efetivação de políticas públicas, enquanto demandas humanas e sociais. A perspectiva psicanalítica, sob o viés da filosofia fenomenológica de Paul Ricoeur, permite analisar, teoricamente, como as sociedades modernas, movidas pela política do desamparo, ainda se mostram dependentes de um núcleo teológico-político.

A democracia liberal não está imunizada contra as pulsões de uma quantidade amorfa de indivíduos transformados em identidade coletiva, que se coloca como força afetiva de identificação com um líder, capaz de surgir e ocupar o espaço público que deveria ser próprio dos ideais compartilhados pelas individualidades de cada ‘eu’. Baseando-se em pesquisa bibliográfica, pretende-se discutir com estas linhas a política dos (des)afetos identitários, nos tempos hodiernos, a qual ainda comporta, ao que parece, uma interface psicanalítico-fenomenológica e a efetivação de políticas públicas exigidas por uma sociedade orientada pela democracia liberal.

Para tanto, de início, analisa-se como as sociedades modernas, movidas pela política do desamparo, ainda se mostram dependentes de uma perspectiva religiosa de um pai primevo. Em seguida, discute-se o processo de revigoramento do poder personalizado na democracia afetada, considerando a questão do ciclo vicioso da realização dos desejos nas relações identitárias. Na última etapa, são então consideradas as políticas públicas e suas demandas sociais, na visão do humanismo jurídico e dos direitos humanos, e os riscos de seu desmonte em uma sociedade cujos destinos são conduzidos por lideranças narcísicas, superegoicas e messiânicas, que se julgam aptas a definir, por seus próprios caprichos, tudo aquilo que é bom ou mau para a vida coletiva. Na conclusão, busca-se repassar as principais ideias desenvolvidas ao longo do texto, alinhavando-se os seus núcleos teóricos fundamentais.

A política moderna afetada: a leitura psicanalítica do desamparo

Não parece exagero dizer que a sociedade moderna tem vivenciado culturas de violência e morte, um mergulho na chamada era do vazio. Era de uma sociedade da cegueira, na qual valores básicos para a convivência humana, como empatia e respeito pelo outro, não são mais enxergados, cedendo lugar para individualismos egocêntricos que se acumulam, compondo um enredo de não sentido da existência. Nessa sociedade, espalham-se as chamadas violências modernas, manifestadas por meio dos mais diversos impulsos agressivos, multiplicando-se em processos de esgarçamento e dissolução das relações humanas e sociais, até mesmo daquelas mais harmoniosas11 Lipovetsky G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Edições 70; 2013..

Ao que parece, bem e mal são de novo o problema, haja vista que o homem (re)descobre a sua dupla natureza, “dupla para si mesmo: vontade do lícito, violência do ilícito, uma como a outra presentes nele tanto quanto fora dele”22 Weil E. Philosophie morale. Paris: J. Vrin; 1961.(23). O homem tem a consciência do mal, porque também possui a do bem, o que é similar, uma vez que “não existe o insensato senão do ponto de vista do sentido”22 Weil E. Philosophie morale. Paris: J. Vrin; 1961.(20). Em outros termos, o homem age por aquilo que ele tem de mau, porque a realidade na qual ele quer se realizar é má, ao mesmo tempo que busca o bem, de maneira que o bem é indissoluvelmente ligado ao mal, a um mal que não pode ser desenraizado, só pode ser transformado22 Weil E. Philosophie morale. Paris: J. Vrin; 1961..

Nessa linha de raciocínio, o mal banal coloca o indivíduo desvinculado de raízes profundas. Quem sabe o mal enraizado até possa ser cortado, ou seja, impedido de se propagar. Para seu alastramento, porém, bastam indivíduos não inclinados ao exercício do pensar reflexivo e crítico, que transitam pelo cotidiano de sociedades em que tudo é massificado, inclusive, o próprio mal banalizado, o qual se manifesta nas muitas e múltiplas formas de violência nas relações humanas e sociais, massivamente espetacularizadas na vida cotidiana, sejam elas verticais, como, por exemplo, as institucionais em relação aos indivíduos, ou mesmo horizontais, tais como aquelas protagonizadas entre os próprios indivíduos.

O fato é que se deve implementar uma luta prática contra o mal, mas ela não significa deixar de lado o sofrimento; pelo contrário, sabe-se que todas as violências existentes de um para com o outro não deixam de refazer a unidade entre o mal moral e o sofrimento. Assim, toda ação ética ou política, que busca diminuir a incidência de violência exercida pelos homens, minimiza o nível de sofrimento no mundo33 Ricoeur P. O Mal: Um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus; 1988..

De qualquer maneira, o medo não se converteu no único afeto que reclama atenção, podendo ser também apontada a sensação de desamparo. O desamparo não é algo contra o qual se luta, mas algo que se pretende afirmar na medida em que, ao menos na ótica freudiana, pode-se fazer com ele as mais distintas coisas, como transformá-lo em temor, em angústia ou em outra espécie de paixão social. Em geral, afirma-se que a antropologia freudiana seria caracterizada por uma visão individualista-egoística tal como a hobbesiana, a ponto de aceitar uma figuração belicista das relações sociais. Haveria alguma forma de partilha entre Freud44 Freud S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. (Série: Obras completas). e Hobbes55 Hobbes T. Leviatã ou matéria, forma de uma república eclesiástica e civil. São Paulo: Martins Fontes; 2019. no tocante à esfera de reflexões sobre a natureza humana, o que se pode notar com a seguinte assertiva:

O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contar sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo homini lúpus44 Freud S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. (Série: Obras completas).(77).

A metáfora hobbesiana, empregada por Sigmund Freud, mostraria como o vínculo social somente poderia se constituir a partir da restrição a essa crueldade inata, a essa agressividade pulsional que parece inscrita no sujeito. Desse modo, uma hostilidade primária entre os homens seria o fator permanente de ameaça à integração social. Tal crueldade não parece ser completamente maleável de acordo com as transformações sociais e a busca de construções identitárias. Entretanto, a constituição identitária, em especial, apresenta-se indissociável de uma regulação narcísica da coesão social. Isso explica por que Sigmund Freud insistia em lembrar que depois que

O apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a intolerância externa do cristianismo ante os que permanecem de fora tornou-se uma consequência inevitável44 Freud S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. (Série: Obras completas).(81).

Não é difícil compreender como tal exteriorização da agressividade somente pode ser feita quando se apela para o medo como afeto político nuclear.

Ainda que, até esse ponto, as reflexões freudianas se aproximem das hobbesianas, não se pode esquecer de uma diferença básica entre ambas, uma vez que o pensamento de Sigmund Freud não traz a necessidade do poder soberano, tal como aparece em Thomas Hobbes, enquanto uma espécie de contraviolência estatal legítima para impor limites à violência desagregadora dos indivíduos. Por sua vez, se Sigmund Freud está atento ao mal-estar na civilização, é por saber que a crueldade entre indivíduos tende a ser repetida pela crueldade da referida contraviolência soberana. No entanto, o enfoque freudiano é compreender como os afetos são produzidos e mobilizados para bloquear o que se costuma chamar de expectativas emancipatórias. Por um lado, a vida psíquica, com suas modalidades de conflitos, sofrimentos e desejos, é uma produção de modos de relações afetivas; por outro, a própria noção de afeto é inseparável de uma dinâmica de imbricação que descreve a alteração gerada por algo que parece vir do exterior e que nem sempre é constituído como objeto da consciência representacional.

Desse modo, ela é a base para a compreensão tanto das formas de instauração sensível da vida psíquica quanto da natureza social dessa mesma instauração. Esse fato mostra como o social, desde as origens, está presente no ‘eu’. Ser afetado é instaurar a vida psíquica por meio da forma mais elementar de sociabilidade, quer dizer, a sociabilidade que passa pela aisthesis, no sentido de uma ‘estética dos afetos’ e que, em sua dimensão mais importante, constrói vínculos inconscientes.

Em sua dimensão fundamental, sociedades constituem-se por intermédio de relações afetivas. Elas erguem vínculos mediante o modo como os corpos são afetados, objetos são sentidos e desejos são impulsionados. Essa capacidade instauradora de afecção tem consequências políticas maiores, uma vez que tanto a superação dos conflitos psíquicos quanto a possibilidade de experiências políticas de emancipação pedem a consolidação de um impulso em direção à capacidade de ser afetado de outra forma. A sujeição é afetivamente construída e perpetuada, produzindo um círculo vicioso de passagem de uma ‘estética dos afetos’ (aisthesis) por outra. Isso permite dizer que a política é, em sua dimensão social, um modo de produção de relações afetivas.

Entretanto, para compreender as modalidades da relação social dos afetos, Sigmund Freud privilegia as relações verticais próprias dos vínculos relativos às figuras de autoridade. São basicamente esses tipos de afeto que instauram a vida psíquica por meio de processos de identificação. Nesse sentido, a psicanálise conhece “a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa”66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas).(47).

Trata-se de algo merecedor de atenção especial para quem via nesse modo peculiar de relação, denominada identificação, o fundamento da vida social. Na concepção freudiana, a relação com a autoridade, a liderança, é o verdadeiro ponto obscuro da relação política contemporânea77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018..

Existe uma demanda contínua de expressão do poder em liderança, uma lógica da incorporação que vem da natureza constitutiva do poder na determinação das identidades coletivas. É aqui que se observa a inclinação freudiana em não dissociar a figura do dirigente político da analogia teológico-política ou político-patriarcal. Freud66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas). acredita que a modernidade ainda é profundamente dependente dessa configuração fantasmática que se apresenta como defesa contra a afirmação do desamparo enquanto afeto social.

A princípio, tal proposição parece completamente sem sentido; afinal, a modernidade compreende a si mesma como um momento de ruptura com todo fundamento patriarcal-religioso dos vínculos sociais. Deve haver uma articulação básica entre a racionalização dos vínculos sociopolíticos e a crítica a esses fundamentos religiosos do poder como algo característico da própria consciência da modernidade, entendida como momento que o homem se encontra às voltas com a questão da sua autocertificação, sobretudo, em função de nada lhe aparecer como substancialmente fundamentado em um epicentro de poder, capaz de unificar as várias esferas sociais de valores88 Habermas J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes; 2000.. Nesse sentido, a modernidade não poderia mais procurar em outras épocas, ou melhor, em explicações mítico-religiosas de mundo, os critérios para a racionalização da vida individual e coletiva e para a produção do sentido socialmente partilhado.

No entanto, a perspectiva freudiana segue em direção oposta a esse diagnóstico. Para Sigmund Freud, essa modernidade não tem esse desencanto total almejado pela racionalidade; ao contrário, continua a secularização relacionada com uma certa visão religiosa de mundo. Nesse sentido, tem-se a seguinte observação:

Ao menos segundo Freud, a visão religiosa de mundo teria por característica fundamental desativar a insegurança absoluta de tal violência através da constituição de figuras de autoridade marcadas por promessas de providência que seguem um modelo infantil próprio àquele que vigora na relação entre a criança e seus pais77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.(58).

A afirmação freudiana sobre o motivo de anseio pelo pai é bastante elucidativa quando é dito que o anseio equivale à necessidade de proteção contra os efeitos da impotência humana:

A defesa contra o desamparo infantil empresta à reação ao desamparo que o adulto tem de reconhecer – que é justamente a formação da religião – seus traços característicos99 Freud S. O futuro de uma ilusão. São Paulo: Companhia das Letras; 2014. (Série: Obras completas).(258).

Essa visão religiosa seria, pois, uma forma de funcionamento do poder que se sustenta na generalização social de modos de demandas atreladas à “representação fantasmática da autoridade paterna”77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.(58). Promessa de amparo que, para manter sua força mobilizadora, a todo instante, precisa rememorar os riscos produzidos por um desamparo iminente, agrilhoando os sujeitos no círculo vicioso da proteção paterna e do inimigo à espreita. Está claro que o fundamento do interesse freudiano por essa visão religiosa concentra-se nas modalidades de investimento afetivo em suas figuras de autoridade. Sigmund Freud quer compreender o porquê desse poder de aspecto pastoral permanecer no presente como referência para a constituição da autoridade política mesmo havendo condições reais para sua superação. A hipótese freudiana a respeito desse pertencimento a uma era teológico-política configura-se como a força do poder pastoral, em sua capacidade de retomar um processo de construção de individualidades, ainda hegemônico, que se inicia no interior do núcleo familiar. Não é por outro motivo que assim se diz:

É a repetição entre ordens distintas de socialização, a família e as instituições sociais, que dá ao poder pastoral sua resiliência. Tal continuidade faz do poder pastoral uma forma privilegiada de reforço de modos de produção de individualidades, fortalecendo o processo que inaugurou a vida psíquica através da internalização do que aparecia inicialmente como coação externa. Processo de aquiescência à norma através da internalização da autoridade e da violência que Freud descreve graças a sua teoria do supereu77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.(60).

Esse ‘supereu’ freudiano aparece como o representante da política no interior da teoria do inconsciente e o representante do psiquismo inconsciente no interior da teoria política. De maneira bem-acabada, Sigmund Freud apresenta a configuração da gênese de fantasias inconscientes ligadas a objetos perdidos e sua importância para compreender os impasses do vínculo social. É preciso indagar qual perspectiva de avaliação da estrutura de vínculos sociais o lança à procura de bases para a compreensão da modernidade em teorias como o totemismo. Deve-se compreender o mito do assassinato do pai primevo como a maneira de dizer que, em relações sociais atuais, os sujeitos agem como quem carrega o peso do desejo de assassinato de um pai que nada mais é do que a encarnação de representações fantasmáticas de autoridade soberana1010 Freud S. Totem e tabu. São Paulo: Companhia das Letras; 2012. (Série: Obras completas)..

O pai primevo freudiano não é apenas uma representação de coerção e crueldade, mas também de amor e identificação. Essa identificação é, na visão freudiana, marcada por ambivalências desde o início do processo identitário66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas).. A identificação com o pai primevo envolve a crença na possibilidade de ocupar o mesmo lugar em algum momento.

A fantasia do pai primevo não foi extirpada, uma vez que ele permanece na vida psíquica dos sujeitos, sob a forma de um sentimento comum de culpa, como fundamento de coesão social, que também aponta para o desejo de que esse lugar seja ocupado. Trata-se de uma espécie de nostalgia do pai que é guindada à condição de objeto perdido. Esse ‘pai primevo’ não se encontra mais lá, mas ele ainda faz sua latência ser sentida e não deixa de estar de prontidão para retornar, sempre sob alguma forma sublimada.

A sociedade ‘despaternalizada’ deverá, dessa forma, converter-se gradualmente em uma sociedade organizada de forma patriarcal, porquanto o lugar vazio do poder é, ao mesmo tempo, um lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceção que se coloca em posição soberana. Há uma constante reconfiguração do pai primevo, e ele tem seu lugar de excepcionalidade na coletividade. Essa pulsação entre lugar vazio e complemento fantasmático é uma das mais importantes contribuições freudianas à teoria política moderna. Ela pode servir atualmente para insistir “no ponto cego que acomete algumas de nossas mais bem estruturadas teorias da democracia”77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.(66). Na linha da perspectiva freudiana, pode-se dizer que as democracias liberais sustentam o lugar vazio somente por meio de um suplemento fantasmático. O que leva uma quantidade amorfa de indivíduos para o universo da identidade coletiva é a força afetiva de identificação a um líder capaz de se colocar no espaço próprio aos ideais do ‘eu’ que serão individualmente partilhados, segundo a noção de que “o indivíduo abandona seu ideal do eu (Ichideal) e o troca pelo ideal de massa, encarnado pelo líder (Führer)”66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas).(144). Se essa troca continua se apresentando como realizável, mesmo nas sociedades modernas, é porque há algo nesse ideal assumido pelo líder que atualiza vínculos a objetos perdidos que ainda ecoam na vida psíquica dos sujeitos. Uma vez feita essa leitura freudiana da identificação, na sequência, pode-se começar a discutir, a partir da compreensão ricoeuriana, o processo do reconhecimento em uma antropologia do ‘quem’?

Parece que, para o bom êxito do desenvolvimento humano, há sempre a necessidade de alguma identificação com alguém, um outro.

O revigoramento do poder personalizado na democracia afetada: a questão da realização dos desejos nas relações indenitárias

Aqui é relevante retomar Freud e o conceito de Ideal do ego. No seu desenvolvimento, o ego age em função de satisfazer sua libido e, por isso, realiza investimentos libidinais, não atuando em função do mundo exterior. Age em vista de suas próprias satisfações, e aí se encontra o seu perfil narcísico. Dirige a satisfação de sua libido para si mesmo e para os mimos e afetos da mãe; entretanto, com o desenvolvimento do ego, as pulsões da libido sofrem recalque quando entram em conflito com as ideias morais e culturais que o ego assume para si mesmo. O recalque vem do autorrespeito do ego, ou melhor, vem do Ideal que o indivíduo introjetou. É por meio desse ideal que um indivíduo identifica o seu ego atual e reprime suas pulsões44 Freud S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. (Série: Obras completas).. É aí que o ego reprime o amor a si mesmo deslocando-o para o Ideal do seu ego atual. Nesse sentido, “o narcisismo aparece descolado para esse novo eu ideal”44 Freud S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. (Série: Obras completas).(40). Para ele, o indivíduo não quer deixar a perfeição narcísica da infância, porém, como não pode se manter afastado das pressões sociais e culturais, readquire sua primeira experiência de uma forma ‘nova’, como o Ideal do ego. Uma das expressões do Ideal do ego é a sublimação, equivalente a dizer que o instinto se lança a outra meta distante da satisfação sexual, mas que diz do objeto perdido na infância. Desse modo, é possível afirmar que, tanto para Paul Ricoeur quanto para Sigmund Freud, destaca-se o papel da alteridade na constituição do sujeito.

Nesse sentido, a psicologia individual e a psicologia social se constituem de forma recursiva, haja vista que sempre existem na mente individual um modelo, um objeto, um auxiliar e um oponente. Sejam quais forem os indivíduos, o fato de se transformarem em grupo coloca-os na posse de uma mente coletiva, fazendo com que sintam, pensem e ajam de modo diferente de como se estivessem isolados. Esse é o processo de constituição das massas na perspectiva freudiana. Ele chama essa constituição de massas artificiais próprias de grupos fortemente organizados, tais como o Exército, a Igreja ou mesmo organizações políticas próprias ao Estado nas modernas democracias liberais. Aqui Sigmund Freud traz a ideia de formação de identidades coletivas. Esse pensamento freudiano pode ser associado à formação das identidades coletivas, no seio das democracias liberais, às organizações políticas de poder77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.. Nesse sentido, há “uma quantidade de indivíduos que puseram um objeto no lugar de seus ideais do Eu e, em consequência, identificam-se uns com os outros em seu Eu”66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas).(76). Um indivíduo abandona seu ideal impulsivo e projeta no outro (no coletivo) a possibilidade de satisfação dos seus próprios ideais. É isso que se pode encontrar nos seguintes dizeres sobre essa forma de alienação das individualidades:

O que transforma uma quantidade amorfa de indivíduos em identidade coletiva é a força afetiva de identificação e um líder capaz de se colocar no espaço próprio aos ideais de eu que serão individualmente partilhados, segundo a noção de que o indivíduo abandona seu ideal do eu77 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018.(72).

Como se pode notar, na ótica saflatiana, conforme anteriormente assinalado, as sociedades modernas e suas democracias liberais, envolvidas em um processo regressivo, acabam realizando um retorno às figuras superegoicas de autoridade advindas daquela figura paterna primeva, vale dizer, do pai com o qual o ‘eu’ se identifica. Os indivíduos acabam se identificando com um líder e projetam nele seus ideais.

Aqui é possível pensar em regresso e, ao mesmo tempo, no germe de um regime fascista, em que a população deposita suas esperanças em uma única pessoa. Já não se percebe a advertência das perigosas faces da política fascista, tal como se nota nos seguintes dizeres:

Para o Ur-Fascismo, os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e o ‘povo’ é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime a ‘vontade comum’. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder se apresenta como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral1111 Eco U. O fascismo eterno. 3. ed. Rio de Janeiro: Record; 2019.(56).

O pensamento ingênuo acredita que uma pessoa, dentro de certa ideia de messianismo, é capaz de satisfazer o desejo coletivo. É preciso, pois, não perder de vista que há, sim, traços de patologia social na ideologia das sociedades de democracia liberal, porquanto o potencial antidemocrático já existe na grande massa de indivíduos, na medida em que nela há sempre a possibilidade de explorar as latências fantasmáticas da democracia.

Ao chegar a esse ponto de desenvolvimento das ideias, parece plausível dizer que o conceito central para compreender como a psicanálise pensa a política e suas possibilidades de transformação é mesmo a identificação. Desde a ‘Psicologia das massas e análise do eu’, de Freud66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas)., a psicanálise procura pensar os vínculos sociais de identificação. Trata-se de uma maneira de dizer que as relações podem ser produtoras de sujeitos e representar nada mais do que ‘fazer como ele’, assumir uma forma exterior que constitui o sujeito, que o conforma, podendo definir seu existir.

Embora a identidade do eu seja uma organização dinâmica, pode estruturar-se de forma defensiva e inflexível. Por isso, tal identidade será sempre produzida e afirmada por meio da agressividade, da violência reiterada contra todo outro, contra toda alteridade. Isso explica por que outra de suas características básicas seja o narcisismo. “Narciso, depois de tanto tempo querer se possuir, toma consciência que deseja a si mesmo e se abrasa ao ver sua própria imagem”1212 Silva J. Entre Ricoeur e Freud: você é quem pensa ser? A desapropriação e a reapropriação da consciência. Curitiba: CRV; 2018.(37). O narcisismo é a resposta patológica da fragilidade do ‘eu’. Uma estrutura narcísica é, ao mesmo tempo, violenta e frágil. Ela traz a consciência tácita de sua decomposição diante de relações dialéticas com a alteridade. O ‘eu’ busca constituir o mundo à sua imagem e semelhança. Para isso, ele se serve da projeção, mecanismo constituinte da paranoia e de suas estruturas de delírios e alucinações. Por outro lado, nesses casos, a relação a si é fruto das introjeções também negadas. Por isso, fala-se do conhecimento paranoico próprio ao ‘eu’ do indivíduo moderno, uma vez que essas estruturas delirantes de projeções e introjeções negadas são um traço constituinte de paranoia. Isso arruína toda pretensão do ‘eu’ a ser fundamento do sujeito do conhecimento. Melhor então falar de desconhecimento do ‘eu’, pois tal estrutura projetiva é, sobretudo, um sistema defensivo – como se fosse o caso de constituir o mundo e o outro à sua imagem e semelhança, para impedir toda a dinâmica efetiva de transformação do si, a fim de não reconhecer sua natureza profundamente relacional, com todo o descentramento e dependência que isso acarreta. O que chama atenção nessa descrição do ‘eu’ é como ele se assemelha ao que se entende por personalidade autoritária.

Diferentemente dessa identificação e possível construção de um eu autoritário, o filósofo Paul Ricoeur, em seu livro ‘O si mesmo como outro’, afirma que a identidade pessoal não é construída somente pelo fundo arcaico dos desejos, mas também pelo processo de mediações e pela manutenção do si que se dá ao longo do tempo1313 Ricoeur P. O si mesmo como Outro. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2014.. Sob o título de ‘Rumo a uma hermenêutica do si mesmo’, Ricoeur reflete sobre o ser do si, em uma investigação cuja unidade temática refere-se à ação humana. Ao introduzir o problema do ‘si’, por meio da questão ‘quem?’, revela a polissemia do termo atuar, em função da variedade e contingência das perguntas que podem ser colocadas, pois se pode perguntar por: quem faz, quem fala, quem narra, quem é responsável, associando-as ao ‘que’ e ao ‘por que’. Por outro lado, a abordagem por intermédio da análise e da reflexão impõe um modo indireto e fragmentário de acesso ao si, cuja totalidade não se deixa apreender, resultando em uma totalidade quebrada, que exige a atestação, pela incerteza e suspeita que acabam por rondar esse processo, na fragmentação que se segue à pergunta ‘quem?’.

A pessoa constrói sua identidade com valores, normas, ideias, modelos, heróis, nos quais ela mesma se reconhece com a contribuição do outro1313 Ricoeur P. O si mesmo como Outro. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2014.. Além de se identificar com os valores, ela se torna fiel, leal às identificações, transformando a permanência do caráter em manutenção de si mesma. Pode-se dizer que o caráter de uma pessoa, mesmo aparentemente sedimentado, é passível de sofrer mudanças ao longo da história, pois tal pessoa vai se identificando com vários heróis1414 Bois C. Moi, si versatile : le problème de l’identité personnelle chez Paul Ricoeur et László Tengelyi. [tese]. Québec: Université Laval; 2020. 146 p.. Nesse sentido, essa permanência não significa a manutenção do mesmo, mas, em um círculo produtivo e criador em diálogo com o diferente, com o outro e com a cultura, permite a constituição de um si mesmo por meio das mudanças de uma vida1313 Ricoeur P. O si mesmo como Outro. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2014..

Este escrito enfatiza o princípio dialógico, que une dois princípios antagônicos, mas indissociáveis na compreensão da realidade, forma de abordar o homem no mundo tipicamente ricoeuriana. Trata-se de uma dialética na qual a síntese não significa uma fusão de antagonismos, mas um horizonte que, em sua abertura, pressupõe uma síntese sempre adiada1515 Kublikowski I. A identidade narrativa: o sujeito produzido/produtor de si. Psicol. Rev. 2004; 13(1):11-30.. Essa arte da conversação, ao se verificar no conflito das convicções, permite o diálogo entre interpretações concorrentes, o que faculta articular psicanálise e fenomenologia, com vistas a compreender a política dos (des)afetos identitários.

Políticas públicas e suas demandas sociais: a perspectiva do humanismo jurídico e dos direitos humanos

Quando se fala em humanismo jurídico e direitos humanos, logo vem à mente um dos mais importantes documentos dessa natureza, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. A proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi deflagrada após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, as quais evidenciaram a fragilidade e a precariedade de deixar a previsão e a aplicação dos direitos humanos ao arbítrio de cada Estado. Era imprescindível a elaboração de um documento com pretensões universais, capaz de estabelecer um mínimo de proteção a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, origem, cor, idade, sexo, religião, nacionalidade, entre outras, em qualquer lugar do mundo. O documento representa a conscientização da humanidade sobre seus valores fundamentais, a síntese do seu passado e uma inspiração para seu futuro, evidenciando que o fenômeno da universalização dos direitos humanos está apenas começando1616 Bobbio N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier; 2004..

A retomada da tradição humanística do direito constitui um fenômeno recente, ainda objeto de análise por estudiosos que tentam explicar as razões da revalorização do direito pela via dos direitos humanos. A partir da própria Declaração Universal dos Direitos, já não faltam diversos comentários quanto à sua inutilidade, como se pode notar na seguinte anotação: “Convidado em 1948 à celebração do texto das Nações Unidas, o filósofo Croce, famoso liberal, nada encontrou para dizer a não ser que era inepto”1717 Villey M. O direito e os direitos humanos. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016.(5). Desde então, não desapareceram algumas ideias para desqualificar a noção de direitos do homem, especialmente, pela anulação dos elementos essenciais que compõem o quadro teórico do humanismo jurídico: a valorização do homem, o homem como sujeito e o universalismo. A desconstrução dos direitos do homem opera-se por intermédio de teorias que preconizam, basicamente, um anti-humanismo acentuado, em que a morte do homem aparece como consequência inevitável de um modelo civilizatório fracassado e pela descrença na constituição de um sujeito capaz.

Entretanto, esforços intelectuais para seu revigoramento continuam ecoando, pois é possível encontrar até mesmo textos muito diretos sobre a sua importância crucial, tal como se nota a seguir:

Não esqueçamos que os direitos humanos são ‘operatórios’; que são úteis aos advogados de excelentes causas; protegem dos abusos do governo e da arbitrariedade do direito positivo1717 Villey M. O direito e os direitos humanos. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016.(8).

Seguindo essa linha de raciocínio, pretende-se demonstrar, por intermédio das reflexões ricoeurianas, que o humanismo jurídico moderno encontra na formulação do conceito de sujeito capaz um substrato muito importante. De fato, o pensamento ricoeuriano conduz à consideração do perigo que advém do não reconhecimento mútuo, que percorre todo o espectro da desconsideração ao desrespeito, do desprezo à negação mesma da humanidade alheia.

Na linha ricoeuriana, mais do que as relações ‘eu-tu’, é necessária uma relação triádica que envolva o ‘nós’, entendido como terceiros sem rosto aos quais as pessoas se ligam por meio das instituições1818 Lauxen RR. Éthique Narrative: le dialogue de Ricoeur avec Peter Kemp. Pens. Rev. Filosofia. 2021 [acesso em 2023 mar 1]; 26(12):21-33. Disponível em: https://ojs.ufpi.br/index.php/pensando/article/view/12654/7762.
https://ojs.ufpi.br/index.php/pensando/a...
. Trata-se de um ponto bastante relevante quando se pretende compreender a passagem da noção de sujeito capaz para a de real sujeito de direito. No fundo, somente a relação com o ‘nós’, o terceiro, encontrado no plano de fundo da relação com o ‘tu’, é apta a dar base para a mediação exigida para a configuração plena do real sujeito de direito. Desse modo, são estabelecidas relações triádicas, desenvolvidas em quatro níveis, quando se busca a consolidação do real sujeito de direito. No primeiro nível, tem-se o destaque para o sujeito falante. Assim, a ênfase é colocada na capacidade de o locutor se designar como enunciador singular de seus muitos e múltiplos pronunciamentos. Tanto o ‘eu’ como o ‘outro’ (tu/terceiros) podem também se designarem como ‘eu’ em suas locuções. Nesse sentido, a expressão ‘assim como eu’, de algum modo, já anuncia o reconhecimento do outro como um igual em termos de direitos e deveres66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas)..

No segundo nível, a relação triádica eu/tu/ terceiro é caracterizada no plano do poder da ação. Busca-se identificar quem é o autor dessa ou daquela ação. O poder de alguém se designar como autor de seus próprios atos aos outros está inserido, de fato, no contexto das muitas interações possíveis, em que o outro pode figurar como antagonista, mas também como coadjuvante, quer dizer, na oscilação de relações conflituosas e compositivas66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas)..

No terceiro nível, o foco da relação triádica mais expandida, envolvendo todos os concernidos, traz para o centro das reflexões o aspecto da ética, com sua implicação jurídica. Nesse sentido, o caráter intersubjetivo da responsabilidade é muito clarividente. A noção de promessa pode ser utilizada para essa compreensão. Com o ato de prometer, o outro está implicado de muitos modos, vale dizer, como testemunha, como beneficiário, enfim, como aquele que espera o cumprimento da palavra empenhada. O promitente será chamado à responsabilidade. Agora, ele se torna responsável mesmo. É nessa estrutura de cumprimento da palavra e pela responsabilidade advinda da palavra dada que se encontra o elo social instituído pelos pactos dos mais diversos tipos66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas)..

No quarto e último nível, instala-se o político. Ele aparece como o meio privilegiado para a realização das potencialidades humanas. Trata-se de um espaço público da visibilidade que exprime, principalmente, a condição de pluralismo resultante da extensão das relações humanas a todos aqueles que, também na qualidade de terceiros, ficam mais além das relações entre o ‘eu’ e o ‘tu’. No entanto, essa condição de pluralidade caracteriza o querer-conviver de uma comunidade histórica como povo, nação. Esse mesmo querer-viver não se reduz às relações interpessoais. Para o autor, a instância política confere uma estrutura distinta de todos os sistemas configurados, anteriormente, como ordens de reconhecimento. Trata-se de um verdadeiro poder a força comum resultante desse querer-conviver, força essa existente somente durante o tempo em que ele é efetivo, e não mais quando experimenta toda sorte de desmantelamento, porque os elos que o sustentam se desfazem66 Freud S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das letras; 2011. (Série: Obras completas)..

Nos três primeiros níveis, o valor que sustenta as relações, basicamente, é o reconhecimento, enquanto no quarto nível, o valor que lhe dá ancoragem é, especialmente, a justiça. Entendidos esses níveis das relações interpessoais e institucionais, então, é possível penetrar na compreensão sobre o sujeito de direito, havendo duas respostas para ele. Uma delas segue na direção de afirmar o sujeito de direito como o mesmo sujeito digno de respeito. A outra conduz para que seja concebido como o sujeito de capacidades virtuosas quando faltam as mediações interpessoais e institucionais. Nota-se que a ética ricoeuriana não se limita às relações interpessoais, pois se estende à vida das instituições e seus desdobramentos nos costumes comuns de uma comunidade histórica, na qual está presente o sujeito de direito1919 Gorgoni G. Une juste reconnaissance. La place du juridique dans l’articulation de la “petite éthique”. Études Ricoeuriennes/ Ricoeur Studies. 2020 [acesso em 2023 mar 6] 11(11):143-159. Disponível em: https://ricoeur.pitt.edu/ojs/index.php/ricoeur/article/view/489.
https://ricoeur.pitt.edu/ojs/index.php/r...
.

Ricoeur está preocupado com a efetiva realização humana. O homem pertence a um corpo político, e esse pertencimento não pode ser conduzido com precariedade. Quem vivencia a mediação institucional, no caso, a política, somente pode querer que todos os homens também desfrutem dela. Esse direito é evidenciando na proposição de políticas públicas.

No Brasil, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) possui três versões já bem delineadas institucionalmente: a primeira, de 1996; a segunda, de 2002; e a mais recente, de 2009. Em cada plano, é dada uma atenção específica a determinados direitos, mas sempre com um objetivo em comum: aprimorar a proteção dos direitos humanos fundamentais. Os direitos em foco sob a perspectiva do PNDH 1 eram referentes aos direitos civis, englobando desde o direito à liberdade e à propriedade até a questão da violência policial. Ao contrário do programa anterior, a edição do PNDH 2 deu ênfase aos chamados direitos sociais, sem negligenciar, contudo, os direitos civis. Nesse sentido, pode surgir o questionamento do que seriam tais direitos sociais, sendo certo que eles dizem respeito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância, aos idosos, à assistência aos desamparados, entre outros. Em suma, são direitos ligados a uma ideia de promoção de oportunidades igualitárias, visando à redução dos abismos sociais existentes na sociedade brasileira. Já o PNDH-3, 13 anos depois da primeira eleição direta do primeiro presidente após a ditadura militar (1989), preferiu evidenciar temas sociais de grupos vulneráveis, como os direitos dos afrodescendentes, dos povos indígenas, de orientação sexual, consagrando o multiculturalismo e a interação democrática entre Estado e Sociedade Civil.

O tema das políticas públicas vem adquirindo importância no campo do direito. Não de qualquer direito, mas dos direitos humanos, enquanto direitos fundamentais, indispensáveis à existência com o mínimo de dignidade. Tal fato se deve ao progressivo reconhecimento de que a efetividade desses direitos demanda a consecução de políticas públicas. As políticas públicas, por sua vez, orientam-se por esses direitos fundamentais, cabendo a elas conferir-lhes a máxima efetividade. Elas podem ser entendidas como conjuntos de programas, ações e decisões tomadas pelos governos (federais, estaduais e/ou municipais) com a participação, direta ou indireta, de entes públicos ou privados, que visam assegurar determinado direito de cidadania a vários grupos da sociedade ou para determinado segmento social, cultural, étnico ou econômico. Assim, correspondem a direitos assegurados no texto constitucional.

As políticas públicas são classificadas, em geral, em quatro tipos, todas relacionadas com a prestação de serviços e bens a sujeitos de direito de determinada sociedade, a saber: políticas públicas distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas. As políticas públicas podem ser caracterizadas por alguns elementos primordiais, quais sejam:

Um conjunto de medidas concretas; decisões ou formas de alocação de recursos; ela esteja inserida em um ‘quadro geral de ação’; tenha um público-alvo (ou vários públicos); apresente definição obrigatória de metas ou objetivos a serem atingidos, definidos em função de normas e de valores2020 Thoenig JC. L’analyse des politiques publiques. In: Grawitz M, Léca J. Traité de science politique: Les politiques publiques. Paris: PUF; 1985.(7).

O processo das políticas públicas envolve várias fases, quais sejam: agenda, elaboração, formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação. Entretanto, essa efetivação das políticas públicas fica sob sérias ameaças, podendo sofrer restrições e até desmontes de toda ordem, a partir de posições ideológicas e até de deliberações métricas econômico-financeiras, justificando redução de gastos para assegurar uma suposta gestão pública austera, quando se acredita que só uma liderança mítica-messiânica, com a qual indivíduos alienado se identificam, com seus caprichos superegoicos, dentro de uma sociedade democrática liberal, tem o poder de saber o que é bom e o que é mau para um povo, determinado aquilo que será objeto de tutela e o que não merece nenhuma atenção.

Nesse sentido, há um risco real de desmonte de políticas públicas que reconhecem as pessoas como sujeitos de direito, restando benefícios somente para indivíduos ou grupos que se identificam com o líder e dele merecem benefícios. Esse caminho se opõe frontalmente ao pensamento ricoeuriano para quem as instituições deveriam estabelecer uma distribuição justa a toda pessoa como sujeito de direito2121 Ricoeur P. O Justo: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2008..

Newton Bignotto, a partir da análise de Sigmund Freud, em sua obra ‘Psicologia das massas e a análise do eu’, considera que o bolsonarismo é a confluência de uma ideia com um líder que conseguiu representar proposições, mais ou menos veladas, de extremismos políticos já presentes no contexto brasileiro2222 Bignotto N. Bolsonaro e o bolsonarismo entre o populismo. In: Starling HM, Lago M, Bignoto N. Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das letras; 2022.. Rupturas estão acontecendo e, às vezes, não são percebidas nem mesmo pelos mais argutos. Na questão freudiana, um dos pontos é a pulsão de morte. Ela diz respeito tanto ao indivíduo quanto às sociedades de massa. Os brasileiros estiveram pouco atentos para a transformação do Brasil da primeira metade do século XX para o Brasil de hoje, configurado como uma plena sociedade de massa. Esse tipo de sociedade responde a questões políticas de maneira diferente das sociedades tradicionais. O bolsonarismo vem como uma quebra dos padrões reais de uma comunidade, nele emergindo uma massa que sai à cata de um líder. A identificação com o líder não se opera pela via de interesses racionalmente elaborados, mas sim, em grande parte, por meio de efusiva adesão afetivo-emocional. Isso faz com que a massa até mesmo se torne refratária à própria realidade em relação aos mais diversos aspectos do convívio coletivo, entre eles, as questões da pulsão de vida e de morte.

O bolsonarismo, no plano afetivo-emocional, foi capaz de capturar certas demandas por indiferença a outras. O povo é uno e precisa se manter unido, mas essa união precisa ser bem entendida, vale ressaltar, desde que sejam excluídos todos os outros pertencentes às camadas sociais mais vulnerabilizadas. Assim, pode-se dizer que os mais vulnerabilizados não precisam ser amparados por políticas públicas. É a política do desamparo que se instala no poder incorporado por uma liderança messiânica, superegoica e narcísica que, sob o manto da ação política exercida com pura autenticidade, inclusive, na sua forma linguística de comunicação, destila ressentimento e rejeição a indivíduos e/ou grupos que com ela não se identificam.

Considerações finais

Sociedades constituem-se de relações de afeto, erguendo vínculos por intermédio do modo como os corpos são afetados, objetos são sentidos e desejos são impulsionados. Há uma gramática psicológico-política que organiza a vida social, a estrutura das formas de existência individual e coletiva.

As sociedades contemporâneas, enquanto democracias liberais, quando envolvidas em um processo regressivo, acabam realizando um retorno às figuras superegoicas de autoridade, advindas de uma entidade paterna primeva com a qual há uma identificação coletiva. Os indivíduos se identificam com um líder e projetam nele seus ideais. Esse pai primevo funciona como uma espécie de representação mítica do lugar de exceção próprio de tal soberania. Se essa troca continua se apresentando como realizável, mesmo nas sociedades contemporâneas, é porque há algo nesse ideal encarnado pelo líder que atualiza vínculos a objetos perdidos que ainda ecoam na vida psíquica dos sujeitos e da massa.

Entretanto, é possível pensar o diálogo, a intersubjetividade e o reconhecimento em termos convergentes, de tal modo que a psicanálise seja uma espécie de dialética enquanto uma arte de conferir. O significado original do termo dialética não é outro senão a arte da discussão. É aí que a dialética da identidade e da diferença se desenvolverá no campo linguístico do reconhecimento intersubjetivo, o que requer se comunicar por meio da linguagem, de aceitar o diálogo, até porque linguagem diz as coisas, mas ela diz também o ‘eu’ que fala e estabelece a comunicação entre os diversos ‘eus’, constituindo-se o instrumento universal de reconhecimento mútuo.

Enfim, o pensamento freudiano contribui para entender o processo identitário da massa com a liderança superegoica, a qual se julga capaz de definir o que é bom e o que é mau para indivíduos e grupos, excluindo o sujeito de direito, enquanto qualquer pessoa digna de respeito e de proteção institucional pelas políticas públicas. Já a fenomenologia ricoeuriana ajuda a refletir sobre os riscos dessa identificação com a liderança superegoica, propondo que a dignidade da pessoa humana seja a base antropológica para o sujeito de direito, o que o coloca em posição contrária àquele processo de identificação da massa com o líder político. Estas duas linhas de pensamento, freudiana e ricoeuriana, podem aproximar-se e oferecerem as condições de possibilidades de fazer uma leitura psicossocial das democracias liberais modernas e de suas questões ético-políticas, nas quais se inserem as políticas públicas.

  • Suporte financeiro: não houve

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2022
  • Aceito
    10 Mar 2023
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