RESUMO
Discute-se o Fundo de Saúde do município de São Paulo, destacando a apropriação dos seus recursos pelo setor privado, especialmente pelas Organizações Sociais (OS). Para tanto, a primeira parte apresenta os fundamentos mais gerais do Fundo Público. A segunda parte analisa a trajetória histórica do Fundo Municipal de Saúde e a utilização de seus recursos, em grande medida, para o financiamento da atenção básica, via Programa de Saúde da Família, executado pelas OS. A terceira apresenta as características das OS, analisando a evolução da apropriação dos recursos do Fundo de Saúde entre 2011 e 2021. Percebe-se que os recursos do Fundo de Saúde passam a ser cada vez mais apropriados por essas entidades de caráter privado, apresentando uma tendência de crescimento, alcançando um patamar de 89,2% do total dos recursos em 2021. Desse modo, constata-se o movimento de mercantilização implícita, marcado pela lógica de ampliação dos mecanismos de mercado no Sistema Único de Saúde municipal.
PALAVRAS-CHAVES
Sistema Único de Saúde; Política de saúde; Fundo de Saúde; Parcerias Público-Privadas; Orçamentos
ABSTRACT
The Health Fund of the municipality of São Paulo has been discussed, highlighting the appropriation of its resources by the private sector, especially by Social Organizations (OS). To this end, the first part presents the more general foundations of the Public Fund. The second part analyzes the historical trajectory of the Municipal Health Fund and the use of its resources, to a large extent, to finance primary care, via the Family Health Program executed by the OS. The third part presents the characteristics of the OS, analyzing the evolution of the appropriation of resources of the Health Fund between 2011 and 2021. It can be seen that the Health Fund resources are increasingly appropriated by these private entities, with a growing trend, reaching a level of 89.2% of total resources in 2021. Thus, the movement of implicit mercantilization is verified, marked by the logic of expansion of market mechanisms in the municipal Unified Health System.
KEYWORDS:
Unified Health System; Health policy; Health Fund; Public-Private Sector Partnerships; Budgets
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS), embora o consideremos como a política pública e social de maior envergadura e cobertura à população brasileira, vem se implantando no contexto contraditório do modo de produção capitalista, de contínuas contrarreformas e submetido cada vez mais à lógica privada no interior dos serviços públicos. O distanciamento do projeto da Reforma Sanitária Brasileira se expressa de forma contundente pelo reconhecimento do direito de exploração da assistência à saúde como negócio lucrativo pela iniciativa privada, referendado pelo artigo 199 da Constituição Federal.
Desde os anos 2000, no município de São Paulo, grande parte dos serviços da política de saúde pública passa a ser executada pelas Organizações Sociais (OS), havendo uma crescente apropriação do fundo público por essas entidades privadas. A partir de então, observa-se a emergência de um espaço estratégico de mercado na saúde para a nova racionalidade do mundo do capital, a neoliberal, relacionada com a própria fase do capitalismo em crise11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo; 2016.. Verifica-se a presença de novas formas de atuação do Estado, por meio da introdução de mecanismos de mercado.
Ademais, cabe frisar que o fundo público no município de São Paulo vem sendo extraído por uma lógica de utilização de instituições que não são públicas em seu sentido estrito. Urge ressaltar, sobretudo, que o fundo público vem sendo apropriado pelos processos de ‘mercantilização’, por meio das OS, em que grande parte do orçamento do SUS municipal é destinada a essas modalidades de gestão privada, ampliando sua presença no financiamento ‘interno’, ou seja, na distribuição de recursos.
Utiliza-se a expressão ‘mercantilização’ a partir de Ferreira22 Ferreira MJ. Tendências e contratendências de mercantilização: as reformas dos sistemas de saúde alemão, francês e britânico. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2016. 297 p., ao se referir à lógica de ampliação dos mecanismos de mercado nos sistemas públicos de saúde, considerando que a expressão privatização tem um sentido bastante específico, isto é, representa transferência de propriedade do setor público para o setor privado, o que não é o caso da atuação das OS. Nesse sentido, de acordo com a autora22 Ferreira MJ. Tendências e contratendências de mercantilização: as reformas dos sistemas de saúde alemão, francês e britânico. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2016. 297 p., a expressão ‘mercantilização’ acomoda um sentido mais amplo, qual seja, o aumento da lógica privada dentro dos sistemas públicos de saúde22 Ferreira MJ. Tendências e contratendências de mercantilização: as reformas dos sistemas de saúde alemão, francês e britânico. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2016. 297 p.(143–5).
Particularmente, recorre-se ao termo ‘mercantilização implícita’ das ofertas de serviços de saúde associado à incorporação de princípios advindos do setor privado no sistema público, como um financiamento para a atenção à saúde orientado por estabelecimento de metas de produção, estabelecidas nos contratos de gestão do setor público com as OS22 Ferreira MJ. Tendências e contratendências de mercantilização: as reformas dos sistemas de saúde alemão, francês e britânico. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2016. 297 p.(144). Elucida-se que não se trata de uma mercantilização ‘explícita’, porque nessa há um efetivo aumento da presença direta do setor privado, como, por exemplo, na forma de desembolso direto e pagamento de mecanismos de copagamento ou pela contração de seguros de saúde privados33 André C, Batifoulier P, Jansen-Ferreira MR. Une nouvelle grille d’analyse des processus de privatisation en europe. In: Abecassis P, Coutinet N, editores. Economie sociale: crises et renouveaux. Louvain la Neuve: Presses Universitaires de Louvain; 2015. p. 95-110.,44 André C, Batifoulier P, Jansen-Ferreira MR. Health care privatization processes in Europe: Theoretical justifications and empirical classification. Inter. Social Securit. Review. 2016; 69(1):3-23..
Nesse contexto, o objetivo deste texto é analisar o Fundo de Saúde do município de São Paulo, destacando a apropriação dos seus recursos pelo setor privado, especialmente pelas OS. Para tanto, o texto está estruturado em três partes. A primeira apresenta os fundamentos mais gerais do Fundo Público. A segunda parte analisa a trajetória histórica do Fundo Municipal de Saúde (Fumdes) e a utilização de seus recursos, em grande medida, para o financiamento da atenção básica, via Programa de Saúde da Família (PSF), executado pelas OS. A terceira parte apresenta as características das OS, analisando a evolução da apropriação dos recursos do Fundo de Saúde entre 2011 e 2021.
Material e métodos
Trata-se de análise crítica documental e de natureza quantitativa sobre recursos orçamentários e financeiros, objetivando compreender a apropriação do Fundo de Saúde e a participação da esfera privada na rede de saúde do município de São Paulo. As informações que compuseram a análise realizada foram coletadas junto às informações públicas da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS/SP), obtidas por meio de seu sítio eletrônico (https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/), analisando os Relatórios Anuais de Gestão (RAG), bem como os Relatórios quadrimestrais das Prestações de Contas (informações orçamentárias-financeiras).
A análise documental compreende o período de 2011 a 2021, na qual se aferem duas naturezas de participação da esfera privada na rede de saúde do município: a) por meio de ‘Contratos de Gestão’ com as habilitadas Organizações Sociais da Saúde (OSS), em que estão disponíveis o acesso aos contratos e termos aditivos para execução da política de Saúde nas Redes Assistenciais de Supervisão Técnica de Saúde, divididas em 23 áreas geográficas; b) por ‘Convênios’ e ‘Termos de Fomento’ com OS, sem documentos públicos que circunscrevam em totalidade tais parcerias público-privadas, apresentando descontinuidade, ou seja, altera-se ano a ano.
Os repasses financeiros do Fundo de Saúde do município para as OS e OSS foram levantados por meio das informações dos Relatórios de Prestação de Contas, a fim de se apreender o percentual repassado com relação ao total das despesas com ações e serviços públicos de saúde. Foram utilizados como referencial os valores empenhados (valor que o município reservou em seu orçamento para o repasse após firmar a prestação do serviço), pois há prestações de contas que não apresentam os valores liquidados de repasses para as OS e OSS (após execução dos serviços e considerado valor pago).
Diante dessas considerações, para a análise crítica documental, esta investigação apoiou-se no método do materialismo dialético de Marx acerca da interpretação da realidade, a fim de apreender a totalidade e a complexidade do objeto, compreendendo suas relações sociais e determinações sócio-históricas. Desse modo, a análise percorreu o objeto dentro de um contexto de transformações ocasionadas pelas crises do capital e de estratégias para a recuperação da taxa de lucro, e de um Estado como dispositivo imprescindível para organização e reprodução da dominação e exploração de classe. Pois,
[...] o objetivo da pesquisa marxiana é, expressamente, conhecer ‘as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa’ [...] ‘exprimem [...] formas de modo de ser, determinações de existência, frequentemente aspectos isolados de [uma] sociedade determinada’ – ou seja: elas são objetivas, reais (pertencem à ordem do ser – são categorias ontológicas); mediante procedimentos intelectivos basicamente, mediante a abstração), o pesquisador as reproduz teoricamente55 Netto JP. Ditadura e Serviço Social. São Paulo: Cortez; 2011.(46).
As categorias que emergem a partir do método materialista dialético, em nossa análise, são utilizadas na seção 1 do artigo e referem-se, principalmente, a: ‘fundo público’, ‘reprodução ampliada do capital’, ‘crise estrutural’ do capital, ‘tendência declinante da taxa de lucro’, ‘capitalismo dependente’, ‘padrão de acumulação’ e ‘circuito ampliado do valor’.
Para apreender essas determinações, a pesquisa de natureza qualitativa buscou aportes de análise da produção teórica do serviço social, economia política e da saúde coletiva, permeada por uma visão de totalidade, analisando a saúde no conjunto das determinações sociais que conformaram a trajetória da política de saúde. São escassas informações sistematizadas e pesquisas que tragam elementos de contestação ao argumento de redução dos gastos públicos com a adoção do modelo de parceria público-privada de gestão no município de São Paulo, o que demonstra relevância para estudos que problematizem esses conteúdos.
Breves considerações sobre os fundamentos do Fundo Público
O fundo público é uma categoria central para a compreensão do modus operandi da fase contemporânea do capitalismo, em sua processualidade de reprodução ampliada. Num contexto de crise estrutural e endêmica, é evidente a centralidade do fundo público pari passu ao amortecimento dos efeitos deletérios e imediatos da crise, rotando contrariamente à tendência declinante da taxa de lucro, numa configuração de blocos de hegemonia política frente à instabilidade econômica e política permanente na disputa acirrada por sua formação e destinação66 Behring ER. Fundo Público: um debate estratégico e necessário. In: Anais do XV Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social; 2016 dez 9, São Paulo. São Paulo: USP Ribeirão Preto; 2016. p. 1-12..
Ao se adensar o debate sobre a categoria fundo público, a partir da crítica marxista da economia política, Behring66 Behring ER. Fundo Público: um debate estratégico e necessário. In: Anais do XV Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social; 2016 dez 9, São Paulo. São Paulo: USP Ribeirão Preto; 2016. p. 1-12. chama a atenção para sua relação com o valor e o processo de acumulação de capital. Behring66 Behring ER. Fundo Público: um debate estratégico e necessário. In: Anais do XV Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social; 2016 dez 9, São Paulo. São Paulo: USP Ribeirão Preto; 2016. p. 1-12.(2) argumenta que:
Veremos que em meio às polêmicas, todas no campo da teoria crítica, é possível vislumbrar ao menos um grande consenso: a centralidade cada vez maior do fundo público como expressão da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. Nesse contexto, o Estado passa a ser disputado de forma muito mais intensa para que assegure as condições gerais de produção e administre a crise, para além de suas funções repressivas e integradoras (ou de legitimação), cuja importância permanece decisiva. Nessa condição de destruição de forças produtivas comandada pela lógica do valor, da qual faz parte a punção do fundo público para o processo de acumulação, as restrições à democracia e aos direitos tendem a crescer, em compasso com os processos de expropriação e pauperização absoluta e relativa de grandes contingentes da classe trabalhadora.
Em seu surgimento, o fundo público exerceu função ativa nas políticas macroeconômicas na construção do Estado Social, num contexto de pós-Segunda Guerra Mundial, sendo essencial na esfera da acumulação primitiva e na conformação das políticas sociais, o que lhe confere papel relevante para a manutenção do capitalismo e do contrato social. A funcionalidade das políticas sociais reside na expansão do mercado de consumo, o que viabilizou o compromisso de pleno emprego e proteção social nos países de capitalismo central, entre 1945 e 1975, comparecendo como financiador da reprodução da força de trabalho e de políticas anticíclicas nos períodos de retração econômica77 Salvador E. Fundo público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez; 2010..
Na particularidade brasileira, de capitalismo dependente, o fundo público obteve outros contornos e, de modo mais restrito e em outro tempo histórico, conquistou avanços aquém dos já limitados que ocorreram na experiência social-democrata dos países europeus. A construção tardia de uma sociedade fundada no trabalho assalariado e um processo de industrialização insuficiente para assegurar a utilização plena da força de trabalho, reproduzindo ocupações precárias, delineiam característica própria das economias latino-americanas.
Nesse bojo, a conquista de uma Seguridade Social, somente a partir da Constituição Federal de 1988, ampliando os direitos sociais, como saúde, previdência e assistência social, apesar de obter um orçamento constituído por contribuições sociais exclusivas, defronta-se com inúmeras investidas para o seu desmonte – contrarreformas do Estado – advindas do projeto neoliberal. A Seguridade Social torna-se um dos alvos principais de apropriação e destinação de seus recursos ao superávit primário, em detrimento da sua utilização nessas políticas sociais, a fim de valorar e acumular capital vinculado à dívida pública77 Salvador E. Fundo público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez; 2010..
Esse padrão de acumulação do capitalismo contemporâneo, particularmente no caso brasileiro, de uma inter-relação entre orçamento fiscal e orçamento da Seguridade Social que conforma o fundo público, denota a arena de luta pelo orçamento público. A Lei Orçamentária Anual (LOA), de 2019, a qual contém os recursos do orçamento do Estado aprovados pelo Congresso Nacional, expressa os valores em disputa no fundo público brasileiro: R$ 3.262,2 trilhões, dos quais, quase 30% foram destinados ao refinanciamento, com pagamento de juros e amortização da dívida pública federal, totalizando R$ 758,6 bilhões.
Deste modo, Salvador77 Salvador E. Fundo público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez; 2010.(29) explicita:
A estruturação do fundo público no Brasil confgura um Estado Social que não reduz a desigualdade social porque se assenta nas seguintes características: i) fnanciamento regressivo (quem sustenta são os trabalhadores e os mais pobres), que não faz redistribuição de renda; ii) políticas sociais com padrão restritivo e básico, não universalizando direitos; e iii) distribuição desigual dos recursos no âmbito da seguridade social e, ainda, transferência de recursos para o orçamento fscal.
Segundo Mendes88 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014; (23):1183-1197.(1185),
O padrão de dominação, acumulação e distribuição capitalista brasileiro ao longo do século XX difere completamente daquele dos países capitalistas centrais, realizando-se por meio de trajetória histórica de concentração de renda.
Com uma maior intervenção econômica do Estado na reprodução do capital em detrimento de investimento na reprodução da força de trabalho. Contudo, a criação do fundo público materializado no Orçamento da Seguridade Social (OSS) passa a representar uma capacidade de alteração desse padrão de financiamento para proteção social, fundado na reprodução da força de trabalho, articulado com as políticas sociais como aspectos estruturais do capitalismo88 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014; (23):1183-1197..
Behring e Boschetti99 Behring ER, Boschetti I. Política Social: fundamentos e história. 6. ed. São Paulo: Cortez; 2009. reconhecem a importância do fundo público como mecanismo de financiamento para a reprodução do capitalismo, à medida que participa direta e indiretamente do ciclo de produção e reprodução do valor, mesmo que ele não gere
[...] diretamente mais-valia, porém, tencionado pela contradição entre socialização da produção e apropriação privada do produto, atua apropriando-se de parcela de mais-valia, sustentando num processo dialético a reprodução da força de trabalho e do capital, socializando custos de produção e agilizando os processos de realização da mais-valia, base da taxa de lucros que se concretiza com a conclusão do ciclo de rotação do capital99 Behring ER, Boschetti I. Política Social: fundamentos e história. 6. ed. São Paulo: Cortez; 2009.(176).
Corroborando a tese das autoras supracitadas, Salvador77 Salvador E. Fundo público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez; 2010. compreende o fundo público como participante direto da reprodução geral do capital por meio de subsídios, negociações de títulos e garantias de condições de financiamento de investimentos capitalistas, ou seja, como elemento significativo na reprodução da força de trabalho, original fonte de criação de valor na sociedade capitalista.
É possível consensuar que o fundo público como base de sustentação material das políticas sociais em “circuito ampliado do valor em múltiplas dimensões, tendo em vista contrarrestar a queda da taxa de lucros e fazer rotar o capital”1010 Behring ER. Rotação do capital e crise: fundamentos para compreender o fundo público e a política social. In: Salvador E, Behring ER, Boschetti I, et al. Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez; 2012.(178), é objeto de disputa permanente pelas classes, incidindo no processo de produção e reprodução social, ainda que numa correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora, prevalecendo os interesses do capital.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o fundo público da saúde, seja no nível federal, por meio do Orçamento da Seguridade Social, seja o fundo de saúde na maior cidade brasileira, São Paulo, transcorreu, ao longo da existência do SUS, sob um longo processo de conflitos e embates no que tange ao financiamento, não fugindo à regra de valoração do capital em detrimento das demandas da classe trabalhadora. Particularmente, no município de São Paulo, essa situação é perceptível quando se observa que grande parte dos recursos do SUS municipal vem sendo destinada às modalidades de gestão privada, como as OS, o que será discutido a seguir.
O Fundo de Saúde no município de São Paulo numa perspectiva histórica de apropriação pelo setor privado – as OS
No município de São Paulo, o Fumdes, vinculado à SMS/SP, foi criado pela Lei nº 10.830/1990, durante a gestão da prefeita Luíza Erundina, do Partido dos Trabalhadores (PT) (1989-1992), sendo, posteriormente, modificado pela Lei nº 13.563/2003, na gestão da prefeita Marta Suplicy, também do PT (2001-2004), quando se implanta o SUS tardiamente nesse município1111 Sousa MF, Mendes A, organizadores. Tempos radicais da saúde em São Paulo: a construção do SUS na maior cidade brasileira. São Paulo: Hucitec; 2003.. Conforme o artigo 2 dessa Lei, a instituição do Fumdes, baseado na Lei nº 8.142/1990, do SUS, busca criar condições financeiras e de gerenciamento de recursos destinados ao desenvolvimento de ações e serviços de saúde, executados e coordenados pela SMS/SP para atuar de forma autônoma na implantação, consolidação e manutenção do SUS, de acordo com os seus princípios e diretrizes. Neste sentido, torna-se, então, fundamental assegurar a descentralização do orçamento da Secretaria com relação ao conjunto do governo municipal, garantindo recursos específicos para implantar um sistema de saúde com base no acesso universal, na integralidade da assistência e tendo como característica-chave o caráter público do SUS local.
Sob intenso processo de descentralização, a prefeita Erundina instituiu a divisão do município em 10 Regiões de Saúde e, inicialmente, 5 Distritos de Saúde, construindo progressivamente os demais distritos. Ao final da gestão, havia 32 distritos, dos quais, a maioria era unidade orçamentária, o que resultou em
Um enorme esforço de capacitação do pessoal das equipes distritais e teve resultados evidentes quanto à tão necessária agilidade para comprar serviços e material para manutenção de equipamentos e prédios, aquisição de medicamentos e material de consumo, etc.1212 Junqueira V. Saúde na cidade de São Paulo (1989 a 2000). São Paulo: Instituto Pólis; PUC-SP; 2002.(33).
Tais passos foram cruciais rumo à descentralização, atrelados à criação do Fumdes, o que assegurou a autonomia da SMS/SP para executar as ações e os serviços de saúde diante do governo municipal como um todo.
Entre os dois governos petistas no município de São Paulo, a saúde pública sofre um desmantelamento de suas ações com os governos de Paulo Maluf, do Partido Popular (PP) (1993 a 1996), e de Celso Pitta, também do PP (1997 a 2000). O Fundo de Saúde passa a ser, prioritariamente, destinado aos interesses do setor privado da saúde. Isso porque se implanta no governo Maluf o Plano de Atendimento à Saúde (PAS), em que o município passa a ser dividido em módulos assistenciais gerenciados por cooperativas privadas, aprovadas em Câmara Municipal pela Lei nº 11.866, de 13 de setembro de 1995, e que teve continuidade na gestão Pitta.
Alves Sobrinho1313 Alves Sobrinho EJ. São Paulo de volta ao Brasil e à Constituição. In: Sousa MF, Mendes A, organizadores. Tempos radicais da saúde em São Paulo: a construção do SUS na maior cidade brasileira. São Paulo: Hucitec; 2003. é enfático ao descrever esse período que antecede a introdução do SUS na maior cidade brasileira:
Em São Paulo, capital econômica do país e exemplo extremo de nossas disparidades sociais foi particularmente difícil a chegada do SUS. Os primeiros passos dados pela prefeita Luiza Erundina (1989-1992) foram bruscamente interrompidos por duas gestões extremamente reacionárias que tentaram uma experiência de privatização selvagem que destruiu a rede municipal de saúde (uma poderosa rede com mais de 40.000 trabalhadores de saúde) e que acabou se tornando um caso de polícia pelos seus desmandos e irregularidades administrativas e fnanceiras1313 Alves Sobrinho EJ. São Paulo de volta ao Brasil e à Constituição. In: Sousa MF, Mendes A, organizadores. Tempos radicais da saúde em São Paulo: a construção do SUS na maior cidade brasileira. São Paulo: Hucitec; 2003.(26).
Em 2001, quando Marta Suplicy assume a prefeitura de São Paulo, busca retomar a gestão integral dos equipamentos públicos de saúde, encerrando com o PAS e dando início à implantação tardia do SUS no município em relação aos demais municípios do País. O Fumdes funcionava, mas de maneira irregular com relação às determinações das legislações municipal, estadual e federal. Nesse contexto, deu-se prioridade à alteração da legislação do Fumdes, com o objetivo de assegurar que todos os recursos financeiros, sejam do Ministério da Saúde, da Secretaria Estadual ou do governo municipal, fossem destinados à SMS/SP, a fim de fortalecerem a implantação do SUS municipal, com a devida autonomia dessa Secretaria para a execução de todas as ações e serviços públicos no município1414 Mendes A. A busca da cumplicidade entre o planejamento e o processo orçamentário na saúde paulistana. In: Sousa MF, Mendes A, organizadores. Tempos radicais da saúde em São Paulo: a construção do SUS na maior cidade brasileira. São Paulo: Hucitec; 2003..
De acordo com o novo plano de saúde do município, na gestão da então prefeita, priorizou-se a introdução do PSF, como pilar essencial do projeto de implantação do SUS, garantindo a atenção básica da saúde como ordenadora do sistema local. A materialização dessa ação ocorreu com a atuação das Organizações Sociais, por meio do estabelecimento de contratos de gestão. À época, o PSF correspondia ao segundo maior item de despesa do Fumdes após a área hospitalar, contando com as fontes de recursos federal e, especialmente, municipal1414 Mendes A. A busca da cumplicidade entre o planejamento e o processo orçamentário na saúde paulistana. In: Sousa MF, Mendes A, organizadores. Tempos radicais da saúde em São Paulo: a construção do SUS na maior cidade brasileira. São Paulo: Hucitec; 2003..
Na realidade, para o funcionamento do PSF, foi realizada a contratação de 12 instituições privadas de caráter não lucrativo, intituladas como ‘entidades parceiras’ pela gestão Marta Suplicy. A caracterização dessas entidades é variada, sendo mantenedoras e fundações de apoio dos principais hospitais universitários públicos e filantrópicos da cidade, compostas por congregações católicas, fundações privadas de apoio, uma sociedade de ex-alunos, um centro de estudos, uma universidade privada e duas Organizações Não Governamentais (ONGs) com trabalhos em comunidades populares. São elas: 1) Associação Congregação Santa Catarina; 2) Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein; 3) Associação Saúde da Família; 4) Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (Cejam); 5) Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); 6) Instituto Adventista de Ensino da Unasp; 7) Associação Comunitária Monte Azul; 8) Casa de Saúde Santa Marcelina; 9) Fundação Zerbini; 10) Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM); 11) Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; e 12) Organização Santamarense de Educação e Cultura (Unisa/Osec)1515 Tambelini EF. A participação das organizações parceiras na atenção básica em saúde no município de São Paulo. Mestrado. São Paulo: Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; 2008..
A meta do plano de saúde para o PSF, ao final do governo, em 2004, era instalar na rede municipal cerca de 1.749 equipes e 10.496 agentes comunitários de saúde. Em março de 2003, estavam criadas 531 equipes de Saúde da Família e 170 equipes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Somavam-se 4.256 agentes, constituindo-se, à época, o maior programa do País1616 Silva ZP. A Política Municipal de Saúde (2001-2003). São Paulo: Instituto Pólis; PUC-SP; 2004..
Cabe observar que a implantação do PSF pela SMS/SP em 2001 foi aprovada pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS) por um voto de diferença, expressando um conjunto de dúvidas e questionamentos que se encontrava em debate no período. Os argumentos críticos baseavam-se em três ordens de questões, não excludentes entre si, como assinala Palma1717 Palma J. Lutas sociais e construção do SUS. São Paulo: Hucitec; 2015.(135–6):
Uma primeira dizia respeito à ausência e controle público sobre as ações e os serviços desenvolvidos pelas ‘entidades parceiras’, dado seu caráter privado, ainda que flantrópico, e dada a diversidade de interesses em jogo. Uma segunda questão, mais ampla, relacionava-se ao risco de redução dos princípios da universalidade e integralidade do SUS a um projeto destinado aos mais pobres, fortalecendo políticas focalistas, defendidas, principalmente, pelo Banco Mundial. Por fm, uma terceira crítica associada à face ‘controlista’ do PSF que, ampliando sua jurisprudência sobre a vida social das famílias e opinando sobre seus hábitos e comportamentos, poderia constituir espaço para disciplina e controle dos indivíduos e de seus corpos, de medicalização de confitos e tensões, extrapolando o campo da saúde, e servindo, como mostram muitos estudos da medicina social, como instrumento de reprodução da própria estrutura de classes da sociedade.
Diante do exposto, pode-se apreender que o desenvolvimento do SUS na cidade de São Paulo se dá, desde seu nascedouro, por práticas incrementalistas da lógica privada sob a gestão pública, em especial, na atenção básica. Desse modo, o Fundo de Saúde passa a estar, em grande medida, a serviço dos interesses mais afeitos ao fortalecimento do setor privado. O mais curioso é que essa prática se torna presente no município de São Paulo desde então, até a atualidade.
Durante a gestão Marta Suplicy, houve o maior incremento no programa. No final do primeiro ano, 2001, havia 185 equipes operando. No final de sua gestão, esse número passou para 600. As gestões seguintes do PSDB seguiram expandindo o PSF, ainda que em ritmo menos intenso, mas utilizando-se do mesmo tipo de contratação de OS. A gestão Serra/Kassab (2005-2008) encerra-se com 840 equipes de PSF, e a gestão Kassab (2010 a 2012) atinge 1098 equipes, ainda aquém do estabelecido pela meta do governo Marta.
Em que pese o investimento da gestão Serra/Kassab na ampliação do PSF, sua real prioridade foi a Assistência Médica Ambulatorial (AMA), centrada nos atendimentos de urgência e emergência. Essa escolha decorreu de uma promessa eleitoral tanto de descongestionar e racionalizar a rede de serviços quanto de aproximar o SUS a um modelo de atenção praticado, prioritariamente, pelo setor privado, fortalecendo os contratos de serviços com as OS. Essa situação foi intensificada na gestão Kassab à medida que foram instituídas as Parcerias Público-Privadas (PPP). Como consequência desse processo, o Fundo de Saúde foi ainda mais comprometido com recursos destinados ao setor privado.
No início da gestão Haddad (2013-2016), havia um discurso de se romper com a participação do setor privado na utilização do Fundo de Saúde. No entanto, ao longo de sua gestão, esse discurso foi sendo abandonado, e o que se observou foi a permanência da mesma lógica de manutenção desses contratos de gestão com as OS1818 Frazão F. “Haddad nega ser contra as OS da saúde”. O Estado de S. Paulo, 19 out 2012. [acesso em 2020 ago 8]. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/haddad-nega-ser-contra-organizacoes-so-ciais-na-saude/.
https://www.estadao.com.br/politica/hadd... .
A Gestão Dória e Covas (2017-2020) optou por radicalizar esse projeto a partir de uma reestruturação que extinguiu equipamentos, fechando Unidades Básicas de Saúde (UBS) e AMAs sob a justificativa de ampliação do atendimento por equipe do PSF, via fortalecimento das OS. A ampliação das equipes de Estratégia Saúde da Família no município ocorreu sob uma submissão da população às condições de desassistência e encolhimento do alcance da atenção básica. Com um número reduzido de UBS (543), em relação ao período anterior, a atenção básica seguiu no âmbito dessa lógica de aumento da participação das OS, alcançando nos anos recentes cerca de 1300 equipes de Estratégia Saúde da Família e 123 equipes de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf )1919 São Paulo. Prefeitura, Secretaria de Saúde. Portal Transparência. Relatórios de Prestação de Contas. [acesso em 2022 jun 22]. Disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/prestacao_de_contas/?p=6163.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/... . Dessa forma, verifica-se que os recursos do Fundo de Saúde foram sendo cada vez mais comprometidos com os interesses das modalidades privatizantes de gestão, nucleadas pelas OS. Essa temática será fruto de análise da próxima seção.
Características recentes das Organizações Sociais em São Paulo e a mercantilização implícita do Fundo de Saúde
As OS são normatizadas pela Lei Federal nº 9.637/1998, tendo como regime jurídico o direito privado sem fins lucrativos, não respeitando a Lei nº 8.666/1993 para compras e contratos, possuindo isenção de tributos, além de contratar toda força de trabalho através do regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Na cidade de São Paulo, as OS foram regulamentadas por meio da Lei Municipal nº 14.132, de 24 de janeiro de 2006, durante a gestão do prefeito José Serra (2005-2006). Todavia, como foi mencionado na seção 2 deste texto, a participação da esfera privada na rede de saúde do município é anterior, possibilitada, principalmente, por meio de convênios, desde o PAS, introduzido pela gestão Maluf (1993 a 1996). Contudo, a partir da gestão Marta Suplicy, muito diferente de uma participação direta de cooperativas privadas na saúde paulistana, como na gestão anterior, inicia-se um processo de atuação das OS na atenção básica da saúde, por meio do PSF, como já mencionado na seção anterior.
Segundo as informações oficiais do sítio eletrônico da SMS/SP, verifica-se, atualmente, 10 (dez) OSS que possuem ‘Contratos de Gestão’ firmados com essa Secretaria1919 São Paulo. Prefeitura, Secretaria de Saúde. Portal Transparência. Relatórios de Prestação de Contas. [acesso em 2022 jun 22]. Disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/prestacao_de_contas/?p=6163.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/... . Elas estão localizadas nas divididas 23 áreas geográficas e qualificadas para atuação nos serviços de saúde na forma da Lei Municipal nº 14.132, de 24/01/2006, e do Decreto Municipal nº 52.858, de 20/12/2011. Por essa modalidade de ‘Contratos de Gestão’, de acordo com o informado pela SMS/SP, as OSS são avaliadas trimestralmente por uma Comissão Técnica de Avaliação, formada por membros da Coordenadoria de Parcerias e Contratação de Serviços de Saúde, das Coordenadorias Regionais de Saúde, da Supervisão Técnica de Saúde e da OSS, nas quais são discutidos os cumprimentos das metas contratuais, as justificativas para o não cumprimento de metas e os descontos cabíveis. Contudo, essas informações não são acessíveis aos usuários.
As citadas 10 (dez) OSS com ‘Contratos de Gestão’ em vigor seguem discriminadas no quadro 1.
Analisando os RAG e os Relatórios de Prestação de Contas2020 Correia MVC, Santos VM. Privatização da saúde via novos modelos de gestão: organizações sociais em questão. In: Bravo MIS, Andreazzi MFS, Menezes JSB, et al., organizadoras. A mercantilização da saúde em debate: as organizações sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ; 2015., verificam-se outras OS em parceria com a SMS/SP, em que são repassados recursos do Fumdes por meio das modalidades ‘Convênio’ e ‘Termo de Fomento’, mas não há informações completas quanto ao seu estabelecimento. Ademais, algumas das próprias qualificadas OSS com ‘Contratos de Gestão’ em vigor possuem ‘Convênios’ e ‘Termos de Fomento’ concomitantes. Como exemplo, cita-se a SPDM, que recebeu no ano de 2021 o maior valor de recursos liquidados entre as OS, totalizando 2,7 bilhões, por meio de Contratos de Gestão, Convênio e Termo de Fomento2020 Correia MVC, Santos VM. Privatização da saúde via novos modelos de gestão: organizações sociais em questão. In: Bravo MIS, Andreazzi MFS, Menezes JSB, et al., organizadoras. A mercantilização da saúde em debate: as organizações sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ; 2015..
Num recorte temporal desde 2011, pode-se notar um crescimento significativo na transferência da execução dos serviços de saúde para o modelo de gestão via Contrato de Gestão por OSS, Convênios ou Termo de Fomento2020 Correia MVC, Santos VM. Privatização da saúde via novos modelos de gestão: organizações sociais em questão. In: Bravo MIS, Andreazzi MFS, Menezes JSB, et al., organizadoras. A mercantilização da saúde em debate: as organizações sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ; 2015.. Em 2017, das 453 unidades básicas do município, apenas 94 eram geridas por administração pública. Em 2018, passaram a ser 84 UBS, e, em 2019, somente 70 UBS ainda eram administradas diretamente pelo poder público, demonstrando a dependência das OS no oferecimento dos serviços da atenção básica no município2020 Correia MVC, Santos VM. Privatização da saúde via novos modelos de gestão: organizações sociais em questão. In: Bravo MIS, Andreazzi MFS, Menezes JSB, et al., organizadoras. A mercantilização da saúde em debate: as organizações sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ; 2015..
Nesse contexto, é possível perceber que os recursos do Fundo de Saúde passam a ser cada vez mais apropriados por essas entidades de caráter privado, explicitando o movimento de mercantilização implícita, marcado pela lógica de ampliação dos mecanismos de mercado no SUS municipal. Nota-se, de forma significativa, o aumento das transferências de recursos do Fundo de Saúde para as OS e OSS entre 2011 e 2021 (quadro 2). Dessa maneira, intensifica-se o modo pelo qual esses recursos sejam orientados pelo cumprimento de metas quantitativas de produção de serviços, conforme estabelecidas nos contratos de gestão, distanciados da lógica de uma melhoria da saúde para o conjunto da população.
Recursos destinados pelo Fundo de Saúde para as Organizações Sociais e Organizações Sociais da Saúde do montante empenhado para ações e serviços de saúde no município de São Paulo, 2011 a 2021
Conforme o gráfico 1, entre 2011 e 2021, ratifica-se crescimento percentual de recursos destinados pelo Fundo de Saúde para as OS e OSS do montante empenhado para ações e serviços de saúde, que passaram de 20,1% a 89,2%, representando 1,7 e 10,6 bilhões, respectivamente.
Evolução percentual dos recursos empenhados do Fundo de Saúde do município de São Paulo destinados para os Contratos de Gestão, Convênios e Termos de Fomento, 2011 a 2021
Ademais, se analisarmos a participação relativa das transferências para as OS e OSS em relação ao total dos recursos empenhados do Fundo de Saúde, observa-se que a tendência de crescimento se mantém ao longo do período compreendido entre 2011 e 2021. Em termos percentuais, os valores repassados, em relação ao total dos recursos empenhados do Fundo de Saúde, alcançam um patamar considerável em 2016, sendo 50,2%, mantendo-se nessa tendência elevada nos anos de 2017 (56,4%), 2018 (57,8%), 2019 (60,7%), 2020 (61,6%), atingindo 89,2% em 2021.
Em funcionamento na saúde do munícipio há mais de duas décadas, as OS se configuram e se estruturam em arranjos ainda bastante obscuros no âmbito da gestão e prestação de contas desses serviços, tanto no que tange à economia quanto à qualidade da assistência à saúde. O argumento de redução dos gastos públicos não é palpável, ao passo que os indicativos de resultados ainda são frágeis. Sendo assim, pesquisas que balizem a complexidade da questão em tela apresentam-se cada vez mais necessárias, principalmente pelos limites impostos de averiguação de indicadores a partir das informações que estão disponíveis ao público, limites esses defrontados pelo presente estudo.
Para Correia e Santos2121 São Paulo. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Diretoria de contas do governador. Estudo comparativo entre gerenciamento da administração direta e das organizações sociais da saúde. [acesso em 2019 nov 19]. Disponível em https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/2011-10-03-Comparacao_de_hos-pitais_estaduais_paulistas-estudo_compara.pdf.
https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default... , a gestão de saúde pública por OS, adotada pelo estado de São Paulo e que tem sido seguida como modelo para outros estados e municípios brasileiros, demonstra efeitos negativos na qualidade dos serviços quando gerenciados por OS, sendo alvo de estudos do Tribunal de Contas do Estado (TCE) paulista, que comparou os modelos de gestão por OS e administração direta no estado de São Paulo2121 São Paulo. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Diretoria de contas do governador. Estudo comparativo entre gerenciamento da administração direta e das organizações sociais da saúde. [acesso em 2019 nov 19]. Disponível em https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/2011-10-03-Comparacao_de_hos-pitais_estaduais_paulistas-estudo_compara.pdf.
https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default... . Constatou-se, via estudo do TCE/ SP, que o modelo de gestão por OS representa maior custo da execução da política de saúde, desigualdade de salários, que são praticados acima da média para cargos de alto escalão e abaixo da média para os demais cargos, em disparidade com a administração direta. Além de atestar maior taxa de mortalidade geral em hospitais com esse modelo de gestão por OS2121 São Paulo. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Diretoria de contas do governador. Estudo comparativo entre gerenciamento da administração direta e das organizações sociais da saúde. [acesso em 2019 nov 19]. Disponível em https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/2011-10-03-Comparacao_de_hos-pitais_estaduais_paulistas-estudo_compara.pdf.
https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default... (35). Observa-se, portanto, que o instrumento de Contrato de Gestão e seus respectivos planos de ação e de resultados no município de São Paulo têm se revelado insuficientes para maior mensuração da execução dos serviços orçados pelo Fundo de Saúde. Por sua vez, os Convênios utilizados, quando da sua prestação de contas, não apresentam quaisquer informações a respeito da execução dos serviços, revelando-se um instrumento jurídico distante dos princípios éticos da administração pública2121 São Paulo. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Diretoria de contas do governador. Estudo comparativo entre gerenciamento da administração direta e das organizações sociais da saúde. [acesso em 2019 nov 19]. Disponível em https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/2011-10-03-Comparacao_de_hos-pitais_estaduais_paulistas-estudo_compara.pdf.
https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default... .
Considerações finais
O modelo de gestão via OS da política de saúde no município de São Paulo vem adquirindo principalidade na administração dos serviços de saúde, em contraposição à gestão pública direta. Constatou-se que as entidades privadas na execução dos serviços de saúde do município têm sido a marca histórica, antecedendo, inclusive, a implantação do SUS nessa cidade, caracterizando uma prática estrutural e cada vez mais presente nas gestões municipais.
Nessa perspectiva, cabe reiterar que o fundo público, criado para fornecer sustentação material das políticas sociais em consonância com o processo de valorização do capital, tem se demonstrado presente no município de São Paulo. Percebe-se sua intensa disputa, com muita força, pelos interesses do capital, ou seja, pelas OS.
Ademais, constatou-se que o Fundo de Saúde do município de São Paulo foi se distanciando dos objetivos de sua criação, quando dispostos na Lei nº 13.563/2003, instituída pela prefeita Marta Suplicy, do PT. Isso porque, ao ser crescentemente apropriado pelas modalidades privatizantes de gestão na saúde, como as OS, desde então, ainda que tenha garantido a descentralização do orçamento da Secretaria com relação governo municipal como um todo, seus recursos não foram priorizados para serem destinados ao caráter público do SUS local, conforme determinado em lei municipal, apoiado na Lei federal nº 8.142/90. A administração direta como forma de gestão para o desenvolvimento das ações e dos serviços de saúde foi sendo abandonada pelo município, e os recursos do Fundo de Saúde foram fortalecendo o caráter privado dessas ações e serviços, principalmente no âmbito da atenção básica.
É digno de nota que esse distanciamento do caráter público do SUS municipal é perceptível quando se analisam os ‘Contratos de Gestão’ das OSS, e que as informações de interesse público são escassas. Ainda mais agravante é a falta de informações a respeito dos ‘Convênios’ e ‘Termos de Fomento’ estabelecidos pela SMS/SP para se proceder à avaliação dos resultados da política de saúde, restringindo-se a dados dos recursos executados.
Sendo assim, este estudo reconhece que o fundo público de saúde em São Paulo vem sendo configurado como um processo de ‘mercantilização implícita’ por meio das OS, tendo parte significativa do orçamento do SUS municipal orientada às modalidades de gestão privada, o que torna a distribuição de recursos públicos voltada para o fortalecimento dos interesses privados.
Pretende-se, ainda, alertar e corroborar com este trabalho, que, no caso de São Paulo, se está caminhando na rota de privilegiar o setor privado na saúde, cenário que se pretendia superar ao ser concebida a Reforma Sanitária Brasileira. A conjuntura atual da maior cidade brasileira cede cada vez mais à apropriação mercantil de recursos monetários acumulados pela classe trabalhadora, na contramão de um projeto de sociedade que assegure a manutenção de um sistema público e universal de saúde.
- Suporte fnanceiro: não houve
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
30 Jun 2023 - Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
- Recebido
30 Ago 2022 - Aceito
10 Mar 2023