RESUMO
O artigo objetivou apresentar informações relevantes e originais sobre as estratégias de inovação utilizadas por Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO) para redução das vulnerabilidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e capacitação produtiva e tecnológica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Como métodos, foram utilizadas a revisão da literatura e a análise de dados primários oriundos de entrevistas realizadas em dois dos maiores LFO do País. Foram identificados e analisados os seus esforços e resultados em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) assim como a incorporação de tecnologias de medicamentos e vacinas, com destaque para as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP). Conclui-se que, apesar de as atividades de P&D ainda precisarem avançar, benefícios foram trazidos pelos acordos de transferência de tecnologia, especialmente pelas PDP. No entanto, a capacidade industrial e tecnológica dos Institutos ainda é limitada e carente de investimentos, dificultando a acumulação e a difusão tecnológica. Dessa forma, melhorias são necessárias para que as estratégias de inovação para o SUS apresentem resultados mais efetivos e possam ser revertidos para o bem-estar da sociedade.
PALAVRAS-CHAVES
Política nacional de ciência, tecnologia e inovação; Acesso à tecnologia em saúde; Ceis; Parcerias público-privadas
Introdução
A estratégia de parcerias entre o Estado e a iniciativa privada tem se mostrado um importante instrumento para o desenvolvimento de diversos setores econômicos e sociais. Por meio de diferentes tipos de acordos, novas tecnologias são desenvolvidas e novos conhecimentos são compartilhados, beneficiando o sistema de inovação e produtivo local. Na saúde, as transferências de conhecimento entre a esfera científica e produtiva são particularmente relevantes, pois viabilizam o desenvolvimento de produtos e serviços para o enfrentamento de problemas do quadro fitossanitário brasileiro e fortalecem as articulações entre essas áreas, constituindo um mecanismo importante para a dinamização de diversas atividades que se integram ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis)11 Britto J, Vargas MA, Gadelha CGA, et al. Competências científico- tecnológicas e cooperação universidade-empresa na saúde. Rev. Saúde Pública. 2012 [acesso em 2022 jan 2]; (46):41-50. Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0034-89102012000700007.
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Inovar, no entanto, é um dos maiores desafios no Brasil, tendo em vista que, assim como os demais países da América Latina e do Caribe, o País tem como característica baixos investimentos em inovação, uso incipiente de sistemas de Propriedade Intelectual e desconexão entre os setores público e privado na priorização de atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e da inovação22 Dutta S, Lanvin B, Wunsch-Vincent S. The Global Innovation Index 2020: Who Will Finance Innovation? 2020. 13. ed. Ithaca; Fontainebleau; Genebra: Johnson College of Business; The Business School for the World INSEAD; World Intellectual Property Organization. [acesso em 2022 jan 2]. Disponível em: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/26/5d/265d9b4d-6bcf-4213-b714-5d7cd7671508/gii_2020_port.pdf.
https://static.portaldaindustria.com.br/... . Essas vulnerabilidades afetam especialmente as indústrias farmacêuticas e de vacinas, que, por conta de diversos desafios, em especial, os trazidos pela Quarta Revolução Tecnológica e pela pandemia da Covid-19, têm buscado crescer em inovação, sendo esse um requisito fundamental para manutenção da competitividade e sustentabilidade em longo prazo das firmas33 Croitoru A. A review to a book that is 100 years old: Schumpeter JA. The Theory of Economic Development: An Inquiry into Profits, Capital, Credits, Interest, and the Business Cycle 1934. J. Comparat. Research in Anthrop. Sociol. 2012 [acesso em 2022 jan 5]; 3(2):137-148. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/272398717_Schumpeter_JA_1934_2008_The_Theory_of_Economic_Development_An_Inquiry_into_Profits_Capital_Credit_Interest_and_the_Business_Cycle_New_Brunswick_USA_and_London_UK_Transaction_Publishers.
https://www.researchgate.net/publication... ,44 Fernandes DRA, Gadelha CAG, Maldonado JMSV. Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de COVID-19. Cad. Saúde Pública. 2021 [acesso em 2022 jan 5]; 37(4):e00254720. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00254720.
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Visando superar essas vulnerabilidades e promover o desenvolvimento socioeconômico do País, o governo brasileiro compôs, nas últimas duas décadas, um sistema relativamente amplo de incentivo à inovação e ao fortalecimento da base produtiva da saúde, tendo como destaque a Lei da Inovação (Lei nº 10.973/2004), a Política de Desenvolvimento Produtivo em 2008 e o novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) (Lei nº 13.243/2016), regulamentado em 2018 pelo Decreto nº 9.283. Diante de um sistema de saúde integral e universal, o Sistema Único de Saúde (SUS), essas estratégias, mesmo que de forma insuficiente para promoção da autonomia tecnológica, favoreceram melhorias no acesso social a produtos e serviços e têm fortalecido o parque industrial farmacêutico, em particular, dos laboratórios farmacêuticos públicos, também chamados de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO)44 Fernandes DRA, Gadelha CAG, Maldonado JMSV. Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de COVID-19. Cad. Saúde Pública. 2021 [acesso em 2022 jan 5]; 37(4):e00254720. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00254720.
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Nesse contexto, tem se observado a evolução do modelo de inovação aberta diante do aumento de redes e parcerias estratégicas voltadas para a inovação e produção. O ambiente aberto, caracterizado pela interação entre diferentes atores (instituições de pesquisas, universidades, governo e indústria) para aquisição e transferência de conhecimentos e tecnologias, tem sido fundamental para impulsionar o desenvolvimento de países distantes da fronteira tecnológica como o Brasil55 Chesbrough HW. Open innovation: The new imperative for creating and profiting from technology. Boston: Harvard Business School Press; 2003.. No SUS, essa interação tem se efetivado principalmente por meio dos acordos para Transferência de Tecnologia (TT), sobretudo, das Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP)66 Ferreira CLD, Ghesti GF, Braga PRS. Desafios para o processo de transferência de tecnologia na Universidade de Brasília. Cadernos De Prospecção. 2017 [acesso em 2022 jan 5]; 10(3):341. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/nit/article/view/22148.
https://periodicos.ufba.br/index.php/nit... ,77 Prata WM. O papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na inovação: um estudo sobre transferência de tecnologia no Brasil. [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2018. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BB9KAX/1/tese_v75_rfinal.pdf.
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/18... , que têm se constituído em um importante instrumento para as políticas industriais, de inovação e de saúde pública no País.
Dada a constatação de que todos os países que se desenvolveram e passaram a competir em melhores condições com os mais avançados associaram uma indústria forte com uma base endógena de conhecimento, de aprendizado e de inovação88 Gadelha CAG. Desenvolvimento, complexo industrial da saúde e política industrial. Rev Saúde Pública. 2006 [acesso em 2022 jan 5]; 40(esp):11-23. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000400003.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200600... , este estudo procurou analisar os esforços em inovação que vêm sendo adotados no âmbito do Ceis, identificando modelos, mecanismos, interesses e desafios para realização de transferências tecnológicas entre instituições públicas e privadas.
Buscou-se trazer informações relevantes à área acadêmica e contribuir, por meio do fornecimento de evidências e sugestões, para a construção ou o aprimoramento de políticas e normas de incentivo ao fortalecimento da capacidade produtiva e aprendizado tecnológico nacional, importantes meios para superação do subdesenvolvimento e da vulnerabilidade do Brasil99 Furtado C. O subdesenvolvimento revisitado. Econ. Soc. 1992 [acesso em 2022 jan 5]; 1(1):5-19. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643307/10831.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in... ,1010 Gadelha CAG, Costa LS, Maldonado JMSV. O complexo econômico-industrial da saúde e a dimensão social e econômica do desenvolvimento. Rev. Saúde Pública. 2012 [acesso em 2022 jan 5]; 46(1):21-28. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102012005000065.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201200... . Estudos encontrados na literatura apontam que existe ainda uma lacuna no conhecimento de como as empresas fornecedoras e receptoras selecionam os mecanismos de transferência, bem como sobre as estratégias para aquisição de conhecimento e seus impactos para os resultados de inovação1111 Diniz DM, Mendonça FM, Oliveira FB, et al. Mecanismos de transferência de conhecimento interorganizacional: um estudo na maior instituição brasileira de pesquisa agropecuária. Cad. EBAPE.BR. 2020 [acesso em 2022 jan 5]; 18(esp):713-728. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1679-395175538.
https://doi.org/10.1590/1679-395175538... ,1212 Bertoni RB. O Papel da Transferência de Tecnologia no Sistema Nacional de Inovação Brasileiro: uma perspectiva estruturalista e evolucionária. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/teses/2020/TESE_RebecaBBL_Biblioteca.pdf.
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/tes... ,1313 Salvini JTS, Galina SVR. Análise configuracional das proximidades em alianças de inovação. RAE-Rev Adm Empresas. 2022 [acesso em 2022 set 5]; 62(3):1-18. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-759020220306.
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O artigo foi baseado em um estudo de caso realizado em dois dos maiores laboratórios farmacêuticos públicos do País, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) e o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), ambos pertencentes à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). De acordo com as últimas informações disponibilizadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE), datadas de março de 20231414 Brasil. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). 2023. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp.
https://www.gov.br/saude/pt-br/composica... , os Institutos estudados possuem o maior número de PDP vigentes, representando aproximadamente 38% do total das parcerias de medicamentos e vacinas do Ministério da Saúde (MS)1515 Fernandes DRA, Gadelha CAG, Maldonado JMSV. O papel dos produtores públicos de medicamentos e ações estratégicas na pandemia da Covid-19. Saúde debate. 2022 [acesso em 2022 set 5]; 46(132):13-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/01031104202213201.
https://doi.org/10.1590/0103110420221320... . Desse modo, podem contribuir de forma significativa para compreensão das estratégias de inovação que vêm sendo utilizadas com vistas à redução da dependência tecnológica externa do SUS e fortalecimento do Ceis.
Material e métodos
Trata-se de uma pesquisa qualiquantitativa de natureza descritiva e exploratória. Como métodos, foram utilizadas a revisão da literatura e a análise de dados primários oriundos de entrevistas realizadas em dois relevantes laboratórios farmacêuticos públicos no período de fevereiro e março de 2022.
O estudo foi dividido em duas etapas. A primeira consistiu na revisão bibliográfica e documental relacionada com o cenário que envolve a TT na área da saúde no Brasil. Baseou-se em consulta a repositórios institucionais, às bases de dados científicos SciELO, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e ao Portal de Periódicos da Capes utilizando as palavras-chave “Transferência de Tecnologia” AND Inovação OR acordos e “Parcerias para Desenvolvimento Produtivo” OR PDP, tendo como assunto principal políticas sociais ou saúde pública. Foram selecionados os periódicos de maior alinhamento ao objetivo do estudo. Foram ainda consultados documentos institucionais de acesso público em sites oficiais, tais como da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), MS, Portal da Indústria e dos LFO estudados, assim como consultas a normas técnicas, decretos, portarias, leis e políticas.
Na segunda etapa, foi realizada a pesquisa de campo. Por meio de um roteiro de entrevistas semiestruturadas, foram realizadas 12 entrevistas em profundidade com os principais atores envolvidos nos processos de transferência tecnologia dos institutos estudados. A entrevista teve como finalidade identificar características dos LFO em relação aos processos de inovação e aos acordos de TT, buscando retratar a realidade atual e conhecer expectativas presentes e futuras.
O roteiro foi dividido em cinco blocos, conforme descrito a seguir (quadro 1):
O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), Instituto Nacional de Infectologia (INI) e Instituto Oswaldo Cruz (IOC), conforme pareceres consubstanciados 5.187.701, 5.202.986 e 5.209.543.
Resultados e discussão
Transferência de tecnologia – conceito e desafios no Brasil
Existem diversos conceitos disponíveis na literatura para tecnologia. Na concepção de Dosi1616 Dosi G. The Nature of the Innovation Process. In: Dosi G, Freeman C, Nelson R, et al., editores. Technical Change and Economic Theory. London: Pinter; 1988. p. 221-238., a tecnologia engloba conhecimentos práticos e teóricos e tem como objetivo a sobrevivência no mercado competitivo, por meio da procura de novas combinações-processos e/ou produtos. Esse conjunto de conhecimentos envolve desde procedimentos, métodos, ‘experiências e know-how até mecanismos e equipamentos, arranjos institucionais, entre outros’.
Já o conceito de TT pode ser entendido como a transmissão de conhecimentos – frutos das pesquisas e desenvolvimento da tecnologia – para a atividade empresarial por intermédio de parcerias entre universidades, laboratórios públicos e empresas, em um modelo de inovação aberta77 Prata WM. O papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na inovação: um estudo sobre transferência de tecnologia no Brasil. [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2018. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BB9KAX/1/tese_v75_rfinal.pdf.
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/18... . A Transferência Internacional de Tecnologia (TIT) ocorre, nesse sentido, quando o conhecimento técnico existente em um país é comunicado para outro, seja livremente, seja mediante transação comercial1212 Bertoni RB. O Papel da Transferência de Tecnologia no Sistema Nacional de Inovação Brasileiro: uma perspectiva estruturalista e evolucionária. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/teses/2020/TESE_RebecaBBL_Biblioteca.pdf.
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/tes... . Entre outros pontos, a TIT traduz-se em uma oportunidade para viabilizar o acesso à tecnologia de ponta aos países em desenvolvimento sem que eles precisem investir altas somas de recursos para sua geração.
Existem mecanismos de TT, desde as mais originárias, realizadas por meio das pesquisas de novidades de universidades para o setor privado, até transferências incentivadas para suprir deficiências tecnológicas de países em desenvolvimento, como, por exemplo, acordos entre empresas privadas e públicas, os quais possibilitam o desenvolvimento continuado para futuras inovações1717 Prata WM, Silvestre RG, Godman B, et al. A critical look at innovation profile and its relationship with pharmaceutical industry. Inter. J. Scient. Research and Manag. 2017 [acesso em 2022 set 5]; 5(7):5934-5948. Disponível em: https://doi.org/10.18535/ijsrm/v5i7.20.
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Como a tecnologia é historicamente concentrada nos países mais desenvolvidos, não sendo livremente e randomicamente distribuída pelo mundo, grande parte é comercializada com base em Direitos de Propriedade Industrial (DPI), os quais, segundo diversos autores, oferecem forte proteção à tecnologia estrangeira em detrimento da tecnologia local, fazendo aumentar o custo daquela1818 Stiglitz JE. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura; 2002. 327 p..
O conceito de TT no Brasil começou a ganhar força nas décadas de 1960 e 1970, no contexto de implementação do modelo de desenvolvimento por substituição de importações. Nesse período, o Banco Central do Brasil começou a analisar, com base na Lei do Capital Estrangeiro (Lei nº 4.131/1962), os pedidos de pagamento de royalties e assistência técnica em moeda estrangeira. Por essa lei, foi estabelecida, pela primeira vez, a obrigatoriedade do registro dos contratos de TT no Brasil e foram definidos limites às remessas de royalties, estipulando-se ainda que os contratos de TT deveriam ser registrados na Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc). A intervenção governamental sobre a importação de tecnologia, entretanto, abarcava basicamente as questões fiscais e cambiais decorrentes desse comércio, não sendo a TT ainda considerada como instrumento relevante de política industrial e tecnológica1212 Bertoni RB. O Papel da Transferência de Tecnologia no Sistema Nacional de Inovação Brasileiro: uma perspectiva estruturalista e evolucionária. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/teses/2020/TESE_RebecaBBL_Biblioteca.pdf.
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/tes... ,1919 Barbieri JC, Delazaro W. Nova regulamentação da transferência de tecnologia no Brasil. Rev adm empres. 1993 [acesso em 2022 set 5]; 33(3):6-19. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-75901993000300002.
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No início dos anos 1970, com a criação do Inpi, que passou a regular e exercer atribuições específicas na área da TT, essa intervenção se intensificou, tendo maior estímulo à P&D local e à assimilação e adaptação da tecnologia estrangeira contratada. Todavia, com a abertura econômica ocorrida no início dos anos 1990, as atividades regulatórias e de fiscalização do Inpi foram gradualmente sendo enfraquecidas, em sintonia com a lógica de minimização da ação estatal1212 Bertoni RB. O Papel da Transferência de Tecnologia no Sistema Nacional de Inovação Brasileiro: uma perspectiva estruturalista e evolucionária. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/teses/2020/TESE_RebecaBBL_Biblioteca.pdf.
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/tes... ,1919 Barbieri JC, Delazaro W. Nova regulamentação da transferência de tecnologia no Brasil. Rev adm empres. 1993 [acesso em 2022 set 5]; 33(3):6-19. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-75901993000300002.
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Ao processo de enfraquecimento das políticas regulatórias relativas à TT, soma-se o processo de desindustrialização que o Brasil tem enfrentado desde os anos 1980, o que gerou a desarticulação de vários sistemas produtivos e inovativos2020 Cassiolato JE, Szapiro MHS. Os dilemas da política industrial e de inovação: os problemas da Região Sudeste são os do Brasil. In: Leal CFC, Linhares L, Lemos C, et al., organizadores. Um olhar territorial para o desenvolvimento: Sudeste. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; 2015. p. 284-317. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: http://bibliotecadigital.economia.gov.br/handle/123456789/526598.
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Diante desse cenário, evidências apontam que o processo de TIT, como ocorreu no País nas últimas décadas, não colaborou de maneira significativa para consolidar um processo de industrialização que impulsionasse o aprendizado tecnológico por parte das empresas locais nem fomentasse o amadurecimento do Sistema Nacional de Inovação (SNI)2121 Chiarini T, Silva ALG. Os principais canais de transferência internacional de tecnologia em diferentes paradigmas tecnológicos: implicações para a superação do subdesenvolvimento. Econ soc. 2017 [acesso em 2022 set 5]; 26(3):691-719. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3533.2017v26n3art6.
https://doi.org/10.1590/1982-3533.2017v2... . Como uma das causas, identifica-se o reduzido grau de internacionalização das empresas brasileiras, que não foram capacitadas a absorver tecnologia externa e adaptá-las para o contexto local, acarretando volume crescente de pagamentos de royalties por tecnologia estrangeira, constatado tanto pelo déficit no Balanço de Propriedade Intelectual (BPI) quanto pelo déficit apresentado pelo Balanço de Pagamentos Tecnológico (BPTec)1212 Bertoni RB. O Papel da Transferência de Tecnologia no Sistema Nacional de Inovação Brasileiro: uma perspectiva estruturalista e evolucionária. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PGE/teses/2020/TESE_RebecaBBL_Biblioteca.pdf.
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Conforme diversos autores, o crescimento e o desenvolvimento econômico possuem relação direta à incorporação da CT&I em seus processos produtivos, além da constituição de um SNI bem estruturado e efetivo, o que depende tanto do desempenho de empresas e organizações de ensino e pesquisa como da interação entre elas e com vários outros atores, por meio de diversos tipos de cooperações2020 Cassiolato JE, Szapiro MHS. Os dilemas da política industrial e de inovação: os problemas da Região Sudeste são os do Brasil. In: Leal CFC, Linhares L, Lemos C, et al., organizadores. Um olhar territorial para o desenvolvimento: Sudeste. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; 2015. p. 284-317. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: http://bibliotecadigital.economia.gov.br/handle/123456789/526598.
http://bibliotecadigital.economia.gov.br... ,2222 Nelson R, Winter S. Uma Teoria Evolucionária da Mudança Econômica. Campinas: Editora Unicamp; 2005.,2323 Freeman C, Soete L. A economia da inovação Industrial. São Paulo: Editora Unicamp; 2008.. Nesse ambiente, a TT entre universidade, governo e setor produtivo é apontada como um caminho alternativo e complementar para que o País alcance um patamar tecnológico superior, sendo considerada uma das melhores formas de indução de parcerias66 Ferreira CLD, Ghesti GF, Braga PRS. Desafios para o processo de transferência de tecnologia na Universidade de Brasília. Cadernos De Prospecção. 2017 [acesso em 2022 jan 5]; 10(3):341. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/nit/article/view/22148.
https://periodicos.ufba.br/index.php/nit... .
No Brasil, apesar da retomada, nas últimas duas décadas, de uma agenda de políticas industriais e de CT&I voltadas ao estímulo do setor científico e produtivo, tendo o Ceis como um dos seus focos prioritários, o País tem enfrentado crescentes restrições em termos de financiamento da infraestrutura científica e tecnológica2424 Vargas M, Bueno I, Alves N, et al. CT&I em saúde: porta de entrada para Revolução 4.0 e caminho para o acesso universal. In: Gadelha CAG, Cassiolato J, Gimenez D. Saúde é desenvolvimento: o complexo econômico-industrial da saúde como opção estratégica nacional. Rio de Janeiro: Fiocruz; CEE; 2022. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/sites/default/files/CEE%20Fiocruz%20-%20Saude%20e%20desenvolvimento.pdf.
https://cee.fiocruz.br/sites/default/fil... . De acordo com estudo realizado por De Negri2525 De Negri F. Políticas Públicas para Ciência e Tecnologia no Brasil: cenário e evolução recente. Nota Técnica 92. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2021. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10879/2/NT_92_Diset_Politicas_Publicas_Para_Ciencia.pdf.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea... , os investimentos federais em Ciência e Tecnologia (C&T) declinaram cerca de 37% no período entre 2013 e 2020, havendo uma redução na taxa de inovação de 36% para 33,6% no período 2015-2017 quando comparada com o período anterior (2012-2014), o que demonstra o desafio enfrentado nacionalmente para o desenvolvimento contínuo da ciência e da inovação em áreas estratégicas como a da saúde.
Transferência de tecnologia na área da saúde no Brasil
Na área da saúde brasileira, a transferência de conhecimento e de tecnologia tem se dado, principalmente, mediante Acordos de Cooperação Tecnológica (ACT) ou das PDP77 Prata WM. O papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na inovação: um estudo sobre transferência de tecnologia no Brasil. [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2018. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BB9KAX/1/tese_v75_rfinal.pdf.
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/18... . Essas parcerias podem fortalecer capacitações inovativas no setor produtivo devido ao acúmulo de capacitações com nível de excelência em áreas científicas em saúde no Brasil, desde que as ações sejam articuladas para o desenvolvimento de novos produtos e processos11 Britto J, Vargas MA, Gadelha CGA, et al. Competências científico- tecnológicas e cooperação universidade-empresa na saúde. Rev. Saúde Pública. 2012 [acesso em 2022 jan 2]; (46):41-50. Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0034-89102012000700007.
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O programa das PDP, principal instrumento para inovação utilizado pelo MS, teve início em 2009, preconizando acordos de TT e conhecimentos desenvolvidos no setor privado para o público, ou seja, para um LFO. O desenho das PDP engloba não somente a fabricação do produto acabado, mas também inclui a internalização da produção do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), objetivando a autossuficiência em insumos estratégicos para o Brasil2626 Sundfeld CA, Souza RP. Parcerias para o desenvolvimento produtivo em medicamentos e a Lei de Licitações. Rev Direito Adm. 2013; 264(0):91-133.. O modelo tem, portanto, como protagonista, um LFO, que pode ou não se associar a outros laboratórios públicos ou empresas privadas para a produção de determinada etapa da manufatura de um fármaco.
Pesquisas recentes demonstram os benefícios trazidos por essas parcerias, tendo como destaques, entre outros, a comprovada economicidade na compra de medicamentos, a ampliação do quantitativo de medicamentos ofertado à população1515 Fernandes DRA, Gadelha CAG, Maldonado JMSV. O papel dos produtores públicos de medicamentos e ações estratégicas na pandemia da Covid-19. Saúde debate. 2022 [acesso em 2022 set 5]; 46(132):13-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/01031104202213201.
https://doi.org/10.1590/0103110420221320... ,2727 Albareda A, Torres RL. Avaliação da economicidade e da vantajosidade nas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(3):e00070320. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00070320.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007032... e o aprendizado tecnológico alcançado pelos laboratórios farmacêuticos e farmoquímicos nacionais, com a internalização de diversos produtos e medicamentos, sintéticos e biológicos. Esses resultados podem ser traduzidos em números, visto que, conforme as informações disponibilizadas pelo MS em março de 2023, 68 acordos de PDP encontravam-se vigentes, envolvendo a transferência da tecnologia e produção de 50 medicamentos, 4 vacinas e 3 produtos de saúde, o que demonstra a grande participação das PDP para o aumento da infraestrutura e capacidade tecnológica do Ceis1414 Brasil. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). 2023. [acesso em 2022 set 5]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp.
https://www.gov.br/saude/pt-br/composica... .
Em 2017, por meio da Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde (PNITS), instituída pelo Decreto nº 9.245, o governo federal estabeleceu dois novos instrumentos estratégicos, além das PDP, para promoção da capacitação tecnológica da administração pública e das entidades privadas na área da saúde: as Encomendas Tecnológicas na Área da Saúde (Etecs), para serem utilizadas no desenvolvimento de soluções que ainda não existem no mercado, como um novo medicamento ou uma nova forma de tratamento, ou situações de maior risco tecnológico para oferecer terapias que não possuem mais produção nacional; e as Medidas de Compensação na Área da Saúde (Mecs), para regulamentar compras de grandes volumes que possuem pouca concorrência.
O estabelecimento dessas duas novas categorias de TT visou à cobertura de lacunas existentes na legislação anterior. As PDP, desde sua criação, voltaram-se ao desenvolvimento de medicamentos específicos, já existentes, porém, com tecnologia ainda não dominada nacionalmente. Os novos instrumentos, tanto as Etecs como as Mecs, permitem a ampliação do escopo das parcerias2828 Bezerra AC, Arcuri R. Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde traz segurança jurídica, mas tem lacunas. Rev Facto. 2018 [acesso em 2022 set 5]; (57). Disponível em: https://www.abifina.org.br/revista_facto_materia.php?id=724.
https://www.abifina.org.br/revista_facto... . No quadro 2, seguem informações detalhadas sobre os instrumentos estratégicos, indicando diferenças entre eles.
Independentemente do modelo, o importante é que os interesses do País ou da instituição contratante estejam contemplados no instrumento, devendo ser os responsáveis pela seleção da tecnologia que será objeto de transferência e pela escolha do modelo operacional da transferência.
Resultados das entrevistas
Participaram da pesquisa cinco atores-chave de Bio-Manguinhos e sete de Farmanguinhos. A experiência dos entrevistados foi em média de dez anos, e as funções informadas abrangeram áreas estratégicas dos acordos de TT, ligadas a: prospecção, negociação, assessoramento, seleção e gerenciamento dos projetos. O perfil identificado no bloco 1 demonstra o grande envolvimento dos respondentes com os acordos e o amplo conhecimento sobre os desafios e as estratégias em inovação para o SUS, trazendo confiabilidade às informações e evidências coletadas.
O bloco 2 procurou identificar os esforços em inovação, mais especificamente em relação à P&D, Propriedade Intelectual e acordos de TT. Verificou-se que estes realizam atividades internas e externas de P&D em universidades e empresas privadas e que possuem Núcleo Interno de Inovação (NIT), o que de antemão já demonstra o alinhamento com a Lei da Inovação (Lei nº 10.973/2004) e com a Política de Inovação da Fiocruz, instituição científica à qual pertencem. As iniciativas também expressam o empenho desses LFO para a criação de um ambiente pró-inovação visando ao fortalecimento do desenvolvimento endógeno e das cooperações para TT.
Em relação às patentes, Bio-Manguinhos informou ter 38 patentes concedidas e 2 depósitos de patentes. Farmanguinhos, 7 patentes concedidas e 7 requeridas. Entre os produtos com patentes concedidas, encontram-se:
Bio-Manguinhos – vacina conjugada Meningite C, constructos de DNA contra flavivírus, anticorpo anti-MRSA, vacina de DNA contra dengue, vírus calibrador artificial (kit NAT) e antígenos antileishmânia;
Farmanguinhos – composição bioinseticida, processo para a Obtenção de Esteroides Seco Derivados do Ergostano, derivados bifeniloxi-alquil-aminas, compostos α-cetoacílicos de isoniazida, composição farmacêutica, uso da mefloquina em dose fixa, compostos derivados de fenilaminopirimidina, compostos derivados de isatina.
Como iniciativas inovadoras, foi informado o desenvolvimento de alguns produtos originais (inovações disruptivas). Bio-Manguinhos citou a vacina meningocócica C conjugada, a vacina dupla viral (sarampo e rubéola) e kits para diagnóstico, entre eles, o kit molecular Sars-CoV-2 para Covid-19. Farmanguinhos informou ter desenvolvido o Larvicida Biológico Dengue tech.
Apesar do empenho demonstrado na geração de P&D, seus resultados de inovação refletem que ainda há um caminho a percorrer até se tornarem referência em C&T. Uma das explicações para isso remete às suas origens, visto que não tiveram a criação associada ao desenvolvimento de inovações, e sim à produção de medicamentos de uso tópico, soros antipeçonhentos e vacinas para combate a epidemias, acarretando a baixa participação no Sistema Nacional de Inovação da Saúde (SNIS) quando comparado a universidades, instituições de pesquisa e ao mercado privado3232 Bastos VD. Laboratórios farmacêuticos oficiais e doenças negligenciadas: perspectivas de política pública. Rev BNDES. 2006 [acesso em 2022 set 5]; 13(25):269-298. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/11694.
https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handl... ,3333 Rezende KS. As parcerias para o desenvolvimento produtivo e estímulo à inovação em instituições farmacêuticas públicas e privadas. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2013. 176 p..
Quanto aos tipos de acordos de cooperação utilizados pelas instituições, as informações repassadas encontram-se resumidas no quadro 3. Foram consideradas as PDP em andamento e os acordos assinados em 2021, não se incluindo os que se encontravam em fase de negociação.
Além desses, foram citados por Bio-Manguinhos: dois Acordos de Convênio de receita, um Acordo de Parceria Internacional, três Acordos de Cooperação sem transferência de recurso, um Acordo de codesenvolvimento, um Acordo de transferência de know-how e quatro Acordos de Parceria com base na Lei de Inovação. Por Farmanguinhos: um Acordo de parceria internacional em CT&I.
Como esperado, muitos acordos foram citados, corroborando a estratégia de inovação aberta que vem sendo seguida pela indústria farmacêutica, pública e privada. Destaque pode ser dado às PDP, que se encontram em diferentes fases de evolução, e ao grande número de acordos de Confidencialidade. Esses acordos, também conhecidos como NDA (em inglês, ‘Non Disclosure Agreement’), são celebrados, em geral, anteriormente ao momento de fechamento do projeto ou parceria, ainda na etapa de entendimentos entre as partes interessadas. O objetivo é que se proteja, desde as primeiras trocas de intenções, as informações compartilhadas entre os parceiros, para, posteriormente, definirem o melhor instrumento, conforme o avanço das negociações.
Ao perguntar o que leva outras empresas a buscarem a formação de parcerias com os LFO, foram selecionados pelos entrevistados, em ordem de relevância: acesso à demanda do SUS, conhecimento técnico, tradição em produção de medicamentos ou vacinas, tradição em P&D, boas práticas de fabricação e boa Imagem/reputação (atrelada à da Fiocruz). Por outro lado, como pontos que afastam o interesse dos parceiros privados, foram os fatores mais selecionados: investimento insuficiente em infraestrutura, falta de agilidade nas respostas às demandas, ausência de uma cultura empreendedora e recursos humanos insuficientes.
O acesso à demanda do SUS, ponto forte mais citado, tem alta relação com o próprio vínculo dos LFO com o MS, o que, supostamente, facilita a negociação, e com o programa das PDP, que oferece ao detentor da tecnologia exclusividade na compra do produto pelo período que durar a TT, de forma a estimular o interesse das empresas no mercado. Esse modelo de aquisição pode ser negociado pelo LFO com o MS para outros tipos de acordos, desde que o produto seja considerado essencial ou estratégico para o SUS e tenha a aquisição centralizada.
Quanto ao insuficiente investimento em infraestrutura para inovação, fator considerado mais frágil pelos entrevistados, verifica-se conformidade com a própria característica dos países em desenvolvimento. Os problemas sociais desses países, tais como a falta de acesso a uma educação de qualidade, à assistência médica e a diversos serviços públicos básicos, levam seus governos a considerarem a ciência, a tecnologia e a inovação como questões secundárias22 Dutta S, Lanvin B, Wunsch-Vincent S. The Global Innovation Index 2020: Who Will Finance Innovation? 2020. 13. ed. Ithaca; Fontainebleau; Genebra: Johnson College of Business; The Business School for the World INSEAD; World Intellectual Property Organization. [acesso em 2022 jan 2]. Disponível em: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/26/5d/265d9b4d-6bcf-4213-b714-5d7cd7671508/gii_2020_port.pdf.
https://static.portaldaindustria.com.br/... .
O bloco 3 teve como objetivo investigar o impacto das PDP para os LFO. Os entrevistados responderam que essas parcerias, por trazerem novos produtos e projetos, ampliaram o faturamento, o quadro de recursos humanos e o volume de produção. Segundo informado por gestores de Farmanguinhos, pode-se considerar um aumento de volume e faturamento superior a 200%.
Quando questionados se o portifólio das PDP tem permitido ou irá permitir ao LFO atuar em novos nichos produtivos, a resposta foi positiva. Tanto Bio-Manguinhos como Farmanguinhos informaram que, por meio das PDP, foi possível atuar em novas classes terapêuticas, o que possibilitou a incorporação de áreas produtivas, como a de medicamentos biológicos para doenças crônicas, raras e câncer (Bio) e de medicamentos imunossupressores e antiparkinsonianos (Far) e que possuem projetos, para construção de áreas para novas indicações terapêuticas.
Afirmaram ainda que a aquisição de conhecimento de tecnologias novas para os LFO tem propiciado estudos para geração de novos produtos e ampliado sua capacidade tecnológica. Um exemplo recente, citado por um entrevistado de Bio-Manguinhos, foi a produção da vacina da Covid-19, fruto de uma encomenda tecnológica com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. O fato de Bio-Manguinhos já ter conhecimento acumulado em biofármacos, além de uma infraestrutura com tecnologia de ponta, frutos dos investimentos das PDP, permitiu que a TT fosse concluída rapidamente e que o produto fosse integralmente fabricado no Brasil.
O bloco 4 enfocou os mecanismos de prospecção e contratação de parcerias. Como mecanismos utilizados para a prospecção, foram selecionados pelos entrevistados: consulta às bases de Propriedade Intelectual, consulta a plataformas internacionais de fornecedores, visita a feiras tecnológicas e avaliação de portfólios de empresas. Para a seleção, foram indicadas as chamadas públicas e o contato direto com a empresa detentora da tecnologia, sendo esse o modelo predominante, haja vista os produtos serem, em sua maioria, protegidos por patentes ou produzidos por fornecedor único.
Quanto à seleção do parceiro, cabe aqui um adendo. Esse é um tema bastante controverso, e o fato de ser hipótese de dispensa de licitação, conforme elencado no art. 24, inciso XXXII da Lei nº 8.666/1993, não afasta a necessidade de procedimentos prévios objetivos e transparentes pelos gestores públicos. Para regularizar essa situação e trazer mais transparência às contratações, o Tribunal de Contas da União (TCU), por intermédio do Acórdão nº 1.730/2017, determinou que os laboratórios públicos realizem processo seletivo ou de pré-qualificação quando da escolha da entidade privada, utilizando como modelo as chamadas públicas. Esse modelo deve, portanto, ser utilizado nos seguintes casos: seleção de parceiros para desenvolvimento conjunto de um produto, fabricante não exclusivo do produto pretendido, produtos sem patente ou com patente expirada.
Diante disso, tirando os casos de inexigibilidade de licitação, a chamada pública é o modelo que deve ser adotado, o qual já vem sendo usado por alguns LFO, como por Farmanguinhos. A chamada pública, aos olhos da publicidade, legalidade e moralidade, representa uma evolução, visto que traz padronização às contratações pelos LFO e atendimento aos princípios constitucionais.
Já no que se refere à tecnologia a ser transferida, identificou-se maior interesse em parcerias que tragam tecnologias novas para o País e para pesquisas colaborativas, já fruto do estímulo trazido pelo novo Marco Legal da Inovação. Apesar do interesse relatado, as encomendas tecnológicas, voltadas para produtos não existentes no mercado, ainda são pouco utilizadas, tendo no momento somente uma em execução, realizada por Bio-Manguinhos como já citado.
Sobre o perfil dos parceiros, os LFO informaram ter maior interesse na interação, em ordem de preferência, com empresas privadas, outros laboratórios públicos e universidades, nacionais e internacionais. Não foram apontadas como prioridade parcerias com organizações não governamentais e startups. Em relação a essa questão, chama a atenção o baixo interesse na contratação de startups pelo fato de serem organizações projetadas para criação de novos produtos ou serviços em condições de extrema incerteza3434 Ries E. The lean startup: how today’s entrepreneurs use continuous innovation to create radically successful businesses. New York: Crown Business; 2011.,3535 Falcão RP, Machado MM, Cruz EP, et al. Trajetórias emergentes de startups brasileiras-canadenses à luz do modelo de uppsala, empreendedorismo de imigrantes e da effectuation. READ Rev Eletron Adm. 2021 [acesso em 2022 set 5]; 27(3):835-869. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-2311.335.109038.
https://doi.org/10.1590/1413-2311.335.10... , podendo contribuir, dessa forma, para identificação e solução de lacunas do mercado, bem como para aproximação dos pesquisadores à cultura do empreendedorismo, necessária para que mais produtos saiam das bancadas e sejam disponibilizados no mercado público.
Em relação aos produtos prioritários para formação de parcerias, foram os três mais indicados, em ordem de número de citações: produto negligenciado ou com potencial risco de desabastecimento, com alto valor de aquisição para o SUS e que tenha alinhamento com suas plantas tecnológicas. Quanto aos medicamentos para doenças negligenciadas, apesar da prioridade indicada, o que tem se observado na prática é que poucos acordos vêm sendo realizados para a produção e TT dessa classe de medicamento, salvo poucas exceções3636 Silva GO, Elias FTS. Estudo de casos múltiplos das parcerias para o desenvolvimento produtivo: doenças negligenciadas versus doenças crônicas não transmissíveis. Rev. Tempus: Actas de Saúde Colet. 2018 [acesso em 2022 set 5]; 11(4):147-169. Disponível em: https://www.tempus.unb.br/index.php/tempus/article/view/2330.
https://www.tempus.unb.br/index.php/temp... . Isso se deve, conforme alguns entrevistados, à falta de uma política de Estado que priorize esses medicamentos de baixo custo, viabilizando estratégias para o suprimento dos IFA e tornando a produção pública economicamente viável.
O bloco 5 teve como objetivo identificar desafios, coletar sugestões e opiniões sobre o modelo das PDP e sobre a legislação que envolve os acordos de TT, visando ao seu aperfeiçoamento.
Como desafios internos e externos para realização dos acordos de TT, estes foram identificados pelos entrevistados em ordem de número de citações (quadro 4).
Sobre as PDP, algumas melhorias foram apontadas pelos entrevistados, sendo as que tiveram maior destaque: I) Orientação por plataforma (reduziria a concorrência entre os próprios LFO); II) Avaliação e acompanhamento do investimento necessário para conclusão da TT durante o período do acordo (não aconteceu); III) Análise de mercado para o cálculo dos custos e dos riscos envolvidos na parceria; e IV) Lei específica para PDP, por conta do modelo diferenciado desses acordos (aquisição vinculada à TT). Dessa forma, as contratações não teriam que ficar se adequando à Lei nº 8.666/1993, facilitando a avaliação dos órgãos de controle.
No que concerne à expectativa sobre o futuro das PDP, a resposta unânime é que falta vontade política para avançar. Algo que deve ser repensado pelo MS e pelos órgãos de controle, conforme entrevistados, é a visão do menor preço, que não considera o caráter estratégico das PDP nem sua diferença em médio e longo prazo para o País perante uma aquisição comum, a qual não gera conhecimento, tampouco empregos para o Brasil. A política das PDP, por sua vez, foi citada como de grande relevância para o desenvolvimento da cadeia produtiva do medicamento e para redução do déficit da balança comercial, além de apresentar vantajosidade econômica perante outros tipos de acordos, segundo alguns entrevistados.
Entretanto, o cenário de indefinição atual, já que não houve anúncio de uma nova lista de produtos estratégicos desde a mudança de governo, em 2017, aliado à falta de clareza em alguns tópicos do Marco Legal das PDP (Portaria nº 2.531/2014) e aos novos incentivos da Lei de Inovação (Lei nº 13.243/2016), tem levado os LFO a buscarem novos tipos de acordos.
Em relação ao marco regulatório das PDP, regulado pela Portaria de Consolidação nº 5/2017 (Anexo XCV), os entrevistados entendem ser necessário aperfeiçoamentos, conforme as sugestões apresentadas no quadro 5.
Já no que diz respeito às oportunidades trazidas pelo novo Marco legal de CT&I (Lei nº 13.243/2016) e suas atualizações, foi considerado que trarão modernização, sendo necessário que os órgãos de controle se alinhem ao novo modelo, que pode não estar em convergência com a legislação das aquisições públicas. Os entrevistados informaram ainda estar estudando todas as possibilidades que a lei traz, tendo equipes se dedicando a isso. Entretanto, já indicaram contribuições positivas trazidas pela lei, sendo: o estímulo da cooperação e interação entre os LFO e o setor privado, possibilidade de prestação de serviços técnicos especializados a terceiros em atividades voltadas para pesquisa e inovação; a constituição dos NIT com personalidade jurídica própria, contratação de pesquisa no exterior, oportunidade de desenvolvimento em conjunto, possibilidade de tratar a inovação separada da produção, compartilhamento de laboratórios e infraestrutura com terceiros, mediante contrapartida financeira ou não.
Conclusões
Conforme verificado no artigo, a interação entre governo-empresas-universidades, por meio das parcerias, tem sido fundamental para ampliação do processo de aprendizado da indústria farmacêutica pública, apesar de não ser um caminho fácil a ser trilhado. Muitas são as barreiras nessa relação, entre elas, a diferença dos propósitos dos atores, a burocracia na formalização de contratos e a instabilidade política, jurídica e comercial.
Pelos resultados do estudo, contudo, foi possível conhecer mecanismos e estratégias de inovação utilizadas por instituições farmacêuticas públicas para a redução das vulnerabilidades do SUS, assim como benefícios trazidos pelos acordos para TT, especialmente pelas PDP, que são instrumentos concretos e inovadores do uso do poder de compra do Estado para a transformação no sistema produtivo da saúde. As respostas dos entrevistados, pessoas envolvidas no dia a dia das PDP, vão ao encontro dessa afirmação. Apesar dos desafios relatados, consideram que houve crescimento na capacitação de seus profissionais e ampliação de suas infraestruturas fabris, o que vem contribuindo para a diversificação dos portfólios e para geração de empregos, fatores essenciais para a ampliação do acesso à saúde e desenvolvimento do País. Conquanto os benefícios relatados, as evidências do estudo demonstram que as atividades de P&D precisam avançar e que a capacidade industrial e tecnológica dos LFO ainda é limitada e carente de investimentos, o que dificulta suas estratégias em acumulação e difusão tecnológica.
Desse modo, mudanças de ordem governamental e institucional vislumbram-se prementes, a fim de que as estratégias de inovação para o SUS apresentem resultados mais efetivos e possam ser revertidos para o bem-estar da sociedade, podendo-se citar: mudança de cultura por parte do MS, que deve atuar não somente no monitoramento e cobrança de resultados, mas também como agente orientador e facilitador das atividades dos LFO em instituições como o Inpi, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e os Órgãos de controle; alterações no Marco Legal das PDP, conforme as sugestões apresentadas, visando ao aprimoramento; ampliação dos investimentos em infraestrutura de P&D por parte do MS e busca de novas fontes de recursos, investimentos e parcerias por parte dos LFO; ampliação do conhecimento e do uso das oportunidades trazidas pelo Marco Legal da Inovação por parte dos LFO; maior uso dos demais instrumentos estratégicos estabelecidos pela PNITS, além das PDP (encomenda tecnológica e Mecs), visando a acordos não apenas para TT já dominadas, mas, sobretudo, para projetos de desenvolvimento local de tecnologias originais ou aquisições mais benéficas ao País; reestabelecimento das PDP, com a divulgação de uma nova lista de produtos estratégicos, na qual prevaleça o equilíbrio entre a questão sanitária e econômica; implementação de um política voltada aos medicamentos negligenciados, visando à viabilidade da produção e do desenvolvimento de pesquisas nacionais para esse tipo de medicamento; maior interação da indústria com a área de serviços assistenciais, haja vista ser essa relação um importante balizador para indicar caminhos e prioridades do SUS para investimento, entre outras.
Por fim, compreende-se que o artigo trouxe respostas a algumas lacunas de conhecimento, dando visibilidade à temática e agregando contribuições importantes para os projetos voltados à inovação em medicamentos e vacinas para o SUS. Os resultados demonstram ainda a essencialidade da manutenção de políticas e programas estratégicos que privilegiem a saúde, a ciência, a tecnologia e inovação, diante da vulnerabilidade do País e das necessidades sanitárias da população brasileira.
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
- Suporte financeiro: este artigo contou com apoio financeiro do projeto Fiocruz/Fiotec ‘Desafios para o Sistema Único de Saúde no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0’ e do Projeto CNPq ‘Ciência, Tecnologia e Inovação em saúde para a sustentabilidade do SUS’
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Set 2023 - Data do Fascículo
Jul-Sep 2023
Histórico
- Recebido
06 Nov 2022 - Aceito
03 Maio 2023