Estudo observacional dos casos de violência contra mulher notificados em um hospital fluminense em 2020

Case study observational of violence against women reported in a Rio de Janeiro hospital in 2020

Élida Campos Carlos Alexandre Rodrigues Pereira Sobre os autores

RESUMO

Este estudo analisou o perfil das mulheres em situação de violência atendidas no serviço de acolhimento de um hospital na região metropolitana I do Rio de Janeiro, bem como a presença de alguns determinantes sociais que podem se relacionar à ocorrência da violência e atuar sobre as condições de acesso a estes serviços. Foram analisados os dados das notificações de violência, considerando a violência sexual e outras violências, em 2020. Casos de HIV e sífilis compuseram os grupos de comparação. Realizou-se o mapeamento e o levantamento dos perfis de mulheres. O total de residentes fora da área metropolitana I foi maior entre casos de violência sexual do que entre outras violências, HIV e sífilis. Dentre as mulheres brancas, estas foram mais frequentes entre casos de violência sexual e as negras entre as atendidas por outras violências. Os casos de violência sexual relataram maior escolaridade e frequência de emprego. A maioria das mulheres em todos os grupos analisados eram negras, enquanto a maioria das que acessaram o aborto legal eram brancas. O estudo sugere que fatores sociais e econômicos afetam o acesso ao serviço de atendimento às mulheres em situação de violência, sendo necessária uma reorganização deste para garantir o pleno acesso das mulheres.

PALAVRAS-CHAVES
Violência; Aborto legal; Acesso aos serviços de saúde; Determinantes Sociais da Saúde

ABSTRACT

This study analyzed the profile of women in situations of violence who accessed care service of a hospital in the metropolitan region I of Rio de Janeiro, as well as the presence of some social determinants that may be related to the occurrence of violence and act on the conditions of access to these services. Data of the violence notification form were analyzed, considering cases of sexual violence and other violence, in 2020. Cases of HIV and syphilis were used as comparison groups. The mapping and survey of the profiles of women were carried out. The total number of residents outside first metropolitan area was higher among cases of sexual violence than among other violence, HIV, and syphilis. White women were more frequent among cases of sexual violence and black women among those cared for other violence. Cases of sexual violence had higher education and reported being employed more often. Most women in all groups were black, while most of those who accessed legal abortion were white. The study suggests that social and economic factors affect access to the care service for women in situations of violence, requiring its reorganization to guarantee women’s full access to health care.

KEYWORDS
Violence; Abortion, legal; Health services accessibility; Social determinants of health

Introdução

A violência contra mulher é atravessada por vários fatores sociais que impossibilitam a abordagem reducionista de causa-efeito, contudo, a iniquidade de gênero se apresenta como elemento fortemente relacionado, tendo o feminicídio como desfecho mais grave11 Okabayashi NYT, Tassara IG, Casaca MCG, et al. Violência contra a mulher e feminicídio no Brasil – impacto do isolamento social pela COVID-19. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):4511-31.. De acordo com as Nações Unidas, entende-se como violência contra mulher

Qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada22 Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa - Violência contra as mulheres. 2017. [acesso em 2021 fev 19]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-contra-as-mulheres&Itemid=820#:~:text=As%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas%20definem%20a,em%20vida%20p%C3%BAblica%20ou%20privada%22.
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Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 35% das mulheres já estiveram em situação de violência22 Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa - Violência contra as mulheres. 2017. [acesso em 2021 fev 19]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-contra-as-mulheres&Itemid=820#:~:text=As%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas%20definem%20a,em%20vida%20p%C3%BAblica%20ou%20privada%22.
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. Um estudo multicêntrico, que avaliou a prevalência de violência contra mulher praticada pelo parceiro em 10 países, reportou que até 34% das mulheres brasileiras relataram violência física, 14% violência sexual e 37% ambas as formas de violência33 Organização Mundial da Saúde. WHO multi-country study on women’s health and domestic violence against women: summary report. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9241593512.
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. Apesar de ser uma violação de direitos humanos básicos, apenas a partir dos anos 1970 a temática começou a tomar visibilidade por meio das lutas dos movimentos feministas44 Pinafi T. Violência contra a mulher: políticas públicas e medidas protetivas na contemporaneidade. Histórica-Rev Arq Público Est. São Paulo. 2007; 21(3):17-26.. No Brasil, em 1981, por pressão de organizações de mulheres, surge no Rio de Janeiro (RJ) o SOS Mulher, programa que tem como objetivo fornecer atendimento às mulheres em situação de violência44 Pinafi T. Violência contra a mulher: políticas públicas e medidas protetivas na contemporaneidade. Histórica-Rev Arq Público Est. São Paulo. 2007; 21(3):17-26. e que se encontra vigente até os dias atuais. Atualmente, conforme a Portaria nº 217, de 1 de março de 2023, a violência doméstica e sexual são agravos de notificação compulsória, sendo esta última de caráter imediato55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 217, de 1 de março de 2023. Altera o Anexo 1 do Anexo V à Portaria de Consolidação GM/MS nº 4, de 28 de setembro de 2017, para substituir o agravo “Acidente de trabalho: grave, fatal e em crianças e adolescentes” por “Acidente de Trabalho” na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos em de saúde pública, nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Diário Oficial da União. 1 Mar 2023..

A visão do conceito de saúde a partir de uma perspectiva não biologicista, nos permite entender que a violência não atinge os corpos das mulheres de forma aleatória. Por isso, é importante considerar esse agravo a partir dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS)66 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. e suas interseccionalidades de cor, classe, identidade de gênero, orientação sexual, entre outras, uma vez que os indivíduos que se identificam como mulher não constituem um grupo homogêneo77 Barbosa JPM, Lima RCD, Martins G B, et al. Interseccionalidade e Outros Olhares Sobre a Violência Contra Mulheres em Tempos de Pandemia pela COVID-19. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/328/version/335.
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. A violência contra as mulheres e o acesso destas aos serviços de saúde é atravessado pelos diversos determinantes individuais, comportamentais, relacionais, de condições de vida e trabalho, bem como fatores culturais, socioeconômicos e ambientais66 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.. Os DSS atuam de forma a construir vulnerabilidades a partir de condições sociais de existência distintas, nas quais os indivíduos experienciam estados de saúde e doenças profundamente desiguais66 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.. Por exemplo, o Atlas de Violência de 2021, destaca que os casos de homicídio são mais frequentes entre as mulheres negras quando comparadas às mulheres brancas (taxa de homicídio em mulheres no Brasil, em 2019: brancas = 2,5/100 mil habitantes; negras= 4,2/100 mil habitantes)88 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência: um retrato da violência no Brasil. 2021. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/.
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, o que evidencia a necessidade de um olhar mais atento e específico no que diz respeito às estratégias de combate à violência contra a mulher nas suas mais diversas especificidades.

Com o advento do novo coronavírus (Sars-CoV-2), no final de 2019, que levou a OMS a declarar a pandemia da doença do coronavírus 2019 (Covid-19) em março de 2020 e a consequente adoção do distanciamento físico como medida de controle da transmissão do vírus99 Aquino EML, Silveira IH, Pescarini JM, et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(supl1):2423-46., mudanças significativas ocorreram na vida de muitas pessoas, como, por exemplo, a necessidade de as famílias passarem mais tempo restritas ao espaço da casa, o que agravou o cenário de violência do País, evidenciado pelo aumento do número de denúncias de violência contra mulher e casos de feminicídio11 Okabayashi NYT, Tassara IG, Casaca MCG, et al. Violência contra a mulher e feminicídio no Brasil – impacto do isolamento social pela COVID-19. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):4511-31..

Todas essas questões sociais e sanitárias afetam diretamente a situação de saúde e doença e o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde66 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008., negando a uma parcela da população o direito constitucional à saúde1010 Oliveira RG, Cunha AP, Gadelha AGS, et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública. 2020; 36(9):e00150120.. Diante disso, este estudo teve como objetivo analisar de forma descritiva o perfil dos casos que acessaram os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, avaliando de forma exploratória os DSS enquanto potenciais fatores relacionados à ocorrência de violência e às condições de acesso a este serviço, em uma unidade de saúde pública voltada ao atendimento materno-infantil e que também é referência para atendimento de mulheres em situação de violência, em 2020.

Material e métodos

O presente estudo observacional do tipo seccional foi conduzido utilizando dados secundários de acesso restrito, cedidos por um hospital maternidade localizado em São João de Meriti, na região metropolitana I do estado do RJ (figura 1).

Figura 1
Região metropolitana I do estado do Rio de Janeiro, Brasil

Esta unidade de saúde é referência para gestantes de alto risco na região metropolitana I do RJ, possuindo também atendimento de emergência de livre demanda. Nesta unidade funciona, desde 2010, o serviço de referência para o atendimento de mulheres em situação de violência. Esta pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, recebendo parecer favorável sob C.A.A.E. nº 44033321.0.0000.5240 (parecer nº 4.619.660, aprovado em março de 2022).

Coleta de dados

Foram incluídos na pesquisa todos os casos de violência contra a mulher atendidos na unidade de saúde no ano de 2020 e notificados pelo Núcleo Hospitalar de Epidemiologia à Secretaria Municipal de Saúde, conforme a portaria vigente55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 217, de 1 de março de 2023. Altera o Anexo 1 do Anexo V à Portaria de Consolidação GM/MS nº 4, de 28 de setembro de 2017, para substituir o agravo “Acidente de trabalho: grave, fatal e em crianças e adolescentes” por “Acidente de Trabalho” na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos em de saúde pública, nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Diário Oficial da União. 1 Mar 2023..

A partir dos dados coletados nas fichas de notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) das mulheres em situação de violência em 2020, foi construído um banco de dados com as informações dos casos, além da informação acerca da realização de aborto legal decorrente de violência sexual. As variáveis coletadas foram: local de residência, idade, cor da pele, perfil socioeconômico (ocupação e escolaridade), situação conjugal, orientação sexual, identidade de gênero, presença de transtorno/ deficiência, forma de violência, ano de ocorrência, frequência de ocorrência, quantidade de agressores envolvidos, vínculo com agressor, sexo e idade do agressor, consumo de álcool pelo agressor, violência relacionada ao trabalho e realização do aborto previsto em lei (gestação indesejada decorrente de violência sexual). Para caracterização da forma de violência, os casos foram divididos em dois grupos: i) violência sexual e ii) outras violências, que inclui violência física, patrimonial, psicológica, autoprovocada e gestação em menor de 14 anos.

A unidade também forneceu dados sobre os casos de mulheres cujas crianças foram expostas ao HIV e mulheres cujas crianças foram notificadas para sífilis congênita. Estes dados compuseram os dois grupos de comparação, um referente a um agravo de notificação compulsória com menor subnotificação na unidade (exposição vertical ao HIV) e outro de maior prevalência de atendimentos na unidade (sífilis congênita). Para esses dois grupos, foram coletadas informações sobre as variáveis: local de residência, idade e perfil socioeconômico (ocupação e escolaridade; exceto para os casos de sífilis congênita, para os quais tais informações não estavam disponíveis na unidade).

Análise de dados

Foi realizada uma análise exploratória e descritiva do perfil sociodemográfico das mulheres em situação de violência no ano de 2020 na unidade de saúde, bem como das características dessas ocorrências. Foi calculada a média de atendimentos de violência na unidade.

Para verificar as diferenças sociodemográficas, foi realizada comparação dos dados demográficos e socioeconômicos das mulheres em situação de violência entre si, por formas de violência e entre esses grupos de mulheres e os dois grupos de comparação. Também foram comparados os casos de violência sexual resultantes em gestação que tiveram acesso ao aborto legal e os que não realizaram o procedimento. Para tanto, foram utilizados os testes T; Fisher ou Qui-quadrado, ou Mann Whitney, conforme o tipo de variável analisada, utilizando o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) – versão 19. Foi considerado estatisticamente significativo um valor de p menor ou igual a 0,05.

O mapeamento e análise da distribuição espacial dos casos de violência foi realizado por forma de violência e local de residência, utilizando o programa de acesso livre Quantum GIS versão 3.18.1-Zürich. As análises foram realizadas por ponto (localização dos casos de violência) e por área (quando a informação estava agregada por município de residência), utilizando os shapefiles disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Geociências 2018. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://downloads.ibge.gov.br/downloads_geociencias.htm.
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.

Ademais, foi realizado o levantamento dos perfis de mulheres em situação de violência sexual, outras formas de violência e mulheres cujas crianças foram expostas ao HIV. Foi considerado como perfil o resultado da combinação das respostas de cada variável analisada (idade, cor da pele, escolaridade, município de residência e ocupação). Todas as variáveis foram transformadas em variáveis binárias – idade: até 29 anos / 30 anos ou mais; cor de pele: branca / preta ou parda (negra); escolaridade: até ensino médio completo / ensino superior; local de residência: dentro da região metropolitana I / fora da região metropolitana I; ocupação: fora do mercado de trabalho / inserida no mercado de trabalho. Dessa forma, foi possível agrupar as mulheres que compartilhavam o mesmo perfil, considerando, ao mesmo tempo, as respostas de todas essas variáveis.

Os resultados apresentados consideram a frequência absoluta de mulheres que compartilham um dos perfis mais prevalentes em cada grupo considerado. Esse levantamento de perfil também foi feito para mulheres em situação de violência sexual que resultou em gestação, considerando, em separado, as que realizaram o aborto legal e seguro e as que não realizaram o procedimento. A apresentação de todos os perfis encontrados em cada grupo de mulheres está disponível no material suplementar (S1). Como estratégia de verificação matemática dos perfis identificados, foi realizada análise de conglomerado hierárquico, cujos resultados estão disponíveis no material suplementar (S2). Para esta análise, foi utilizado o método conglomerado de ligação entre grupos e a distância euclidiana quadrática para dados binários como medida, com o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) – versão 19.

Resultados

No ano de 2020 foram atendidos, em média, 10 casos de violência por mês na unidade, independentemente da forma de violência praticada contra a mulher. Foram analisados 578 registros, sendo 434 mulheres cujas crianças foram notificadas para sífilis congênita, 39 mulheres cujas crianças foram expostas verticalmente ao HIV, 51 casos de violência sexual e 54 casos de outras formas de violência. Embora a base territorial do hospital estudado seja a região metropolitana I do RJ, observamos mulheres de outras localidades do estado, e de fora do estado do RJ, atendidas neste serviço (figura 2).

Figura 2
Distribuição espacial dos casos de violência atendidos e notificados em uma maternidade pública referência para atendimento de vítimas de violência, Rio de Janeiro – Brasil, em 2020

Mulheres residentes em áreas fora da região metropolitana I foram mais frequentes entre aquelas em situação de violência do que entre os dois grupos de comparação (tabela 1). Especificamente dentre os casos de violência, as mulheres de fora da metropolitana I atendidas no hospital foram mais frequentes entre os casos de violência sexual do que entre casos de outras formas de violência.

Tabela 1
Análise descritiva, por tipo de agravo, das características demográficas e socioeconômicas das mulheres atendidas e notificados em um hospital maternidade, estado do Rio de Janeiro – Brasil, em 2020

Destacamos que entre as mulheres em situação de violência sexual residentes na metropolitana I, a violência ocorreu dentro deste território. Igualmente, os casos de violência sexual entre as residentes de outras localidades ocorreram fora da metropolitana I. Todavia, entre as outras formas de violência ocorridos fora da metropolitana I (n=2), um caso se refere a uma mulher residente no estado de São Paulo e que esteve em situação de violência no município de São João de Meriti (RJ). Ademais, entre as residentes na metropolitana I que foram expostas a outras formas de violência, foi identificado um caso residente na cidade de Duque de Caxias (RJ) com a ocorrência da violência em outro estado (Maranhão).

Sobre educação formal, foi observado que mulheres em situação de violência sexual atendidas na unidade apresentaram maior nível de escolaridade do que aquelas expostas a outras formas de violências e os casos de HIV. Além disso, a maioria das mulheres inseridas no estudo estava fora do mercado de trabalho; porém, a frequência de mulheres empregadas foi maior entre as mulheres em situação de violência sexual, comparada aos casos de HIV (tabela 1).

Sobre as demais características, considerando a situação conjugal entre os grupos analisados, observamos uma maior prevalência de mulheres solteiras dentre os casos de violência sexual e de mulheres casadas ou em união consensual entre as aquelas expostas a outras formas de violência (tabela 2).

Tabela 2
Análise descritiva das características dos casos de violência atendidos e notificados em um hospital maternidade, estado do Rio de Janeiro – Brasil, em 2020

Para esse último grupo, também observamos uma maior frequência da ocorrência da agressão de forma repetida. As informações quanto à orientação sexual da mulher só estavam disponíveis para 60 casos. Destas, apenas 10% se declararam homossexual ou bissexual, tendo mais da metade delas relatado violência sexual (n=5). Sobre a identidade de gênero, apenas 85 casos dispunham dessa informação, sendo 100% destes preenchidos como ‘não se aplica’ (dados não apresentados em tabela).

Quanto à mulher em situação de violência ser uma pessoa com transtorno/deficiência, quatro das 79 mulheres para as quais se tinha essa informação eram pessoas com transtorno/ deficiência (deficiência intelectual= 1; transtorno mental= 2; transtorno de comportamento= 1). Destas quatro mulheres, três (75%) viveram situações de violência sexual.

A maior parte dos casos de violência (90%) foi praticada por apenas um agressor. Todos os casos de outras formas de violências foram praticados por alguém conhecido da mulher, enquanto para violência sexual o agressor era conhecido da mulher em 67,3% dos casos. Os vínculos mais frequentes entre agressor e a mulher nos casos de exposição a outras formas de violência foram: cônjuge (35%), seguido do namorado (29%) e ex-cônjuge (12%) (dados não apresentados em tabela). Já entre os casos de violência sexual, os principais vínculos da mulher com o agressor foram: amigo (35%), namorado (8%) e cônjuge (6%).

A maioria dos casos de violência foram praticados por homens (94%), de 20 a 59 anos (83%). Apenas seis casos de violência foram praticados por mulheres, dos quais três foram tentativa de suicídio. Nenhum caso de violência sexual foi praticado por mulheres. Apenas 61 casos tinham disponível a informação quanto ao consumo de álcool pelo agressor, dos quais 56% não fizeram uso do psicotrópico. Dentre os 105 casos de violência analisados, um foi relacionado ao trabalho, sendo este caso de violência sexual praticado contra uma profissional do sexo.

Foram identificados 17 perfis entre as mulheres em situação de violência sexual (S1 e S2). O perfil mais frequente (nove dos 44 casos com respostas válidas em todas as variáveis consideradas, correspondendo a 20,5% dos casos) foi de mulheres de até 29 anos de idade, negras, que estavam fora do mercado de trabalho, tinham até o ensino médio completo e que residiam na região metropolitana I. Entre mulheres expostas a outras formas de violência, foram identificados 10 perfis, sendo o mais frequente composto por mulheres de até 29 anos de idade, negras, com até o ensino médio completo, fora do mercado de trabalho e residentes na metropolitana I (21 dos 47 casos, 44,7% do total). Já entre as mulheres cujas crianças foram expostas ao HIV, foram identificados oito perfis, sendo o mais frequente também o perfil composto por mulheres de até 29 anos de idade, negras, com até o ensino médio completo, fora do mercado de trabalho e residentes na metropolitana I (20 dos 37 casos, 54,1% do total).

Por fim, entre as 34 mulheres em situação de violência sexual que resultou em gestação, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre as características analisadas comparando as que realizaram aborto legal e as que não realizaram esse procedimento (tabela 3).

Tabela 3
Análise descritiva das características demográficas e socioeconômicas das mulheres em situação de violência sexual, gestantes atendidas e notificadas, em hospital maternidade, segundo a realização de aborto legal, estado do Rio de Janeiro – Brasil, 2020

Contudo, no levantamento de perfis realizado entre aquelas que acessaram o aborto legal e seguro, foram identificados 15 perfis de mulheres, sendo o mais frequente (três dos 19 casos, 15,8% do total) o de mulheres de até 29 anos, brancas, com até o ensino médio completo, residentes na região metropolitana I e fora do mercado de trabalho.

Considerando as mulheres que não realizaram o aborto legal (n=11), foram identificados sete perfis. O perfil mais frequente (três casos, 27,3% do total) foi composto por mulheres de até 29 anos, negras, com até o ensino médio completo, fora do mercado de trabalho e residentes na metropolitana I. Entre as 11 mulheres gestantes que não realizaram o aborto legal, sete casos não retornaram para a consulta de acompanhamento, um evoluiu com aborto retido, um teve parecer não favorável ao aborto pela equipe multidisciplinar e dois optaram por levar a gestação adiante. No que refere às duas mulheres que optaram por levar a gestação adiante, em um caso a violência foi praticada pelo companheiro e no outro pelo primo, tendo a gestação desta última evoluído com morte fetal.

Discussão

No presente estudo, os resultados evidenciaram um perfil socioeconômico e demográfico diferenciado entre os casos atendidos no serviço de acolhimento às mulheres em situação de violência comparado àquelas atendidas por outras causas no serviço de atenção materno-infantil, especialmente nos casos de violência sexual, com maior frequência de mulheres de regiões de fora da metropolitana I, maior escolaridade e inseridas no mercado de trabalho.

A maior frequência de mulheres em situação de violência sexual residentes em outras localidades, que não a base territorial da unidade de saúde, sugere que a rede de acolhimento de outros locais não seja suficiente1212 Jacobs MG, Boing AC. O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019? Cad. Saúde Pública. 2021; 37(12):e00085321.. Outra possível explicação é que as iniciativas parceiras de divulgação do serviço de acolhimento tenham formado uma rede mais ampla que torna a unidade referência para mulheres de outras regiões, o que não acontece no caso do atendimento regular da unidade para gestação e cuidado neonatal.

Na comparação entre grupos observamos que, entre os casos de violência sexual, há mais mulheres com maior escolaridade do que nos grupos de comparação (outras violências e HIV). Contudo, quando essa variação intragrupos foi analisada, tanto entre as mulheres em situação de violência sexual quanto entre aquelas expostas a outras formas de violência e mulheres cujas crianças foram expostas ao HIV, há maior presença de perfis compostos por jovens, negras e com baixa escolaridade. Tais resultados eram esperados, visto que a estrutura etária, a cor da pele e o grau de escolaridade identificados nesses perfis mais frequentes são condizentes com o perfil sociodemográfico dos municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis e São João de Meriti, que fazem parte da região metropolitana I1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades@. 2010. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/.
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e os quais compõe a principal parcela da população atendida pela unidade de saúde analisada.

Os resultados observados reforçam a importância da realização de análises relacionais para identificar as características dos fenômenos que afetam a saúde da mulher. Isso exige, por parte de quem analisa, a sensibilidade analítica evocada por Akotirene1414 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019. e reivindicada, especialmente, pelo movimento de mulheres negras; sensibilidade esta que compõe o próprio conceito de interseccionalidade1414 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019.. Esse conceito nos fornece base teórica-metodológica para a compreensão da inseparabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e patriarcado heterocisnormativo1414 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019.. Ao identificar e caracterizar essa estrutura, ficam explícitos os DDS1515 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007; 17(1):77-93. que operam sobre os modos de vida, criando iniquidades e contextos diferenciados de vulnerabilidade1616 Barbosa MD, Borges PCC. Trabalho Sexual, Estupro e Sistema de Justiça Criminal: uma análise crítica a partir do feminismo de terceiro mundo. Rev Eletr. Curso Direito UFSM. 2017; 12(2):387. e de agência. Assim, deve haver confluência entre as narrativas de interseccionalidade e de determinação social para que se possa entender as múltiplas realidades e condições de vida e de agência das mulheres e acolher, nas suas similaridades e especificidades, as diferentes situações de violência por elas vividas.

Corroborando os achados de um estudo realizado com mulheres em situação de violência sexual atendidas em uma maternidade de referência na cidade do RJ1414 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019., os resultados observados na presente pesquisa mostram maior prevalência de mulheres solteiras entre os casos de violência sexual. Todavia, no que se refere à relação da mulher em situação de violência com o agressor, Penna e colaboradores1717 Penna LHG, Antunes TCS, Santos TPS, et al. Caracterização da violência sexual vivida por mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Rev Enferm Atual Derme. 2017; 81(19). identificaram maior prevalência de violência sexual praticada pelo agressor desconhecido da mulher, enquanto no presente estudo 67,3% dos casos de violência sexual foram causados por alguém identificável pela mulher, sendo 34,7% destas violências praticadas por amigo/ conhecido e 14% pelo parceiro. Essa diferença observada pode estar, em parte, relacionada à mudança na dinâmica social imposta pela pandemia da Covid-19 no ano de 2020, período em que muitas mulheres ficaram mais restritas ao espaço da casa1616 Barbosa MD, Borges PCC. Trabalho Sexual, Estupro e Sistema de Justiça Criminal: uma análise crítica a partir do feminismo de terceiro mundo. Rev Eletr. Curso Direito UFSM. 2017; 12(2):387..

Ainda no referido estudo1717 Penna LHG, Antunes TCS, Santos TPS, et al. Caracterização da violência sexual vivida por mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Rev Enferm Atual Derme. 2017; 81(19)., foi identificado entre as mulheres expostas a outras formas de violência uma maior prevalência de mulheres casadas e uma maior frequência de casos praticados pelo parceiro íntimo (namorado ou marido/companheiro= 64%)1717 Penna LHG, Antunes TCS, Santos TPS, et al. Caracterização da violência sexual vivida por mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Rev Enferm Atual Derme. 2017; 81(19).. Tais resultados foram semelhantes aos encontrados no presente estudo, onde verificamos que as outras formas de violências foram praticadas por alguém conhecido da mulher (cônjuge= 35%; namorado= 29%; ex-cônjuge= 12%; outros vínculos= 24%).

Observar mais mulheres casadas no grupo exposto a outras formas de violência, enquanto entre os casos de violência sexual se verificou mais mulheres solteiras, pode sugerir algumas dificuldades vividas pelas mulheres em situação de violência sexual praticada por parceiro íntimo em notificar o caso, desde a incriminação dos mesmos1717 Penna LHG, Antunes TCS, Santos TPS, et al. Caracterização da violência sexual vivida por mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Rev Enferm Atual Derme. 2017; 81(19)., até a complexidade em nomear o ato de violência sexual em uma relação afetivo-sexual1818 Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad. Saúde Pública. 2005; (21):417-25.. Isso se justificaria pela possível ação de pressupostos do amor romântico, valores socioculturais patriarcais da sociedade brasileira que demarcam a submissão da mulher e que as obrigam a estar disponíveis sexualmente para o companheiro, fatores que dificultam o entendimento de que o ato sexual sem vontade da mulher, ou o ato sexual não consentido, é uma violência sexual1414 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019.. Ademais, o fato de a maior parte dos casos de violência terem sido praticados por homens vai ao encontro de uma cultura na qual o processo de construção e socialização da identidade masculina hegemônica está ligado à violência1919 Souza ER. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2005; 10(1):59-70..

Sobre a orientação sexual, é sabido que mulheres homossexuais ou bissexuais vivem situações de violência sexual como punição (estupro corretivo) por seu comportamento social ou sexual em desacordo com a cis-heteronormatividade compulsória2020 Costa LSD. A Prática Delitiva do Estupro Corretivo e a Heteronormatividade Compulsória: Um Estudo Acerca da Correlação Entre Crime e Patriarcado. Rev Direito E Sex. 2021; 2(1):50-65.. Todavia, embora cinco dos seis casos de violência contra as mulheres que se declararam homossexuais ou bissexuais tenham sido sexual, os dados do presente estudo não são suficientes para identificar essa característica nestes casos de violência sexual.

Quanto à identidade de gênero, destacamos que todos os 85 casos com essa informação disponível foram preenchidos com ‘não se aplica’. O instrutivo de preenchimento da ficha de notificação orienta o preenchimento desta variável como ‘não se aplica’ “quando a identidade de gênero corresponder ao sexo biológico”2121 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
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(44). Considerando que a categoria ‘não se aplica’ é geralmente utilizada quando o fenômeno em análise não é pertinente a determinado respondente, o texto do instrutivo pode demarcar um entendimento de que identidade de gênero não é aplicável a pessoa cisgênera, contribuindo para reproduzir a ideia de normalidade da cisgeneridade. Assim, é importante adequar essa variável para reconhecer a cisgeneridade como categoria de gênero identificável e válida para a notificação.

Destacamos a quantidade de dados ausentes para as variáveis sobre orientação sexual, identidade de gênero, deficiência/transtorno e consumo de álcool pelo(a) agressor(a). Isso pode estar relacionado à falta destas informações em outras fichas e formulários, não sendo costume registrá-las. Nesta direção, destacamos que apenas em 2014 as informações sobre gênero e orientação sexual foram incluídas na ficha de notificação de violência, fruto dos esforços dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada e reflexo da Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT, publicada em 20132222 Baldigen AA, Garcia TC, Silva MM, et al. Mulheres lésbicas e violência: Análise das notificações de violência no Estado do Rio Grande do Sul. Rev Bras Estud Homocultura. 2021; 3(11):46-61.. Além disso, os dados faltantes podem sugerir que estas questões ainda são sensíveis para muitos profissionais de saúde, o que dificulta a sua abordagem durante o acolhimento. Sobre este ponto, ressaltamos duas questões que contribuem para essa dificuldade: a percepção de que se trata de uma questão particular que não se relaciona com a saúde coletiva e as concepções de cunho moral e religioso2323 Polidoro M, Cunda BV, Oliveira DC. Vigilância da violência no Rio Grande do Sul: panorama da qualidade e da quantidade das informações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) de 2014 a 2018. Saúde Redes. 2020; 6(2):195-206..

Para a variável sobre deficiência/transtorno, apenas 79 dos 105 casos tiveram a informação registrada. Das quatro mulheres com deficiência/ transtorno, três casos foram violência sexual, o que leva a reflexão sobre o contexto da situação de violência sexual entre mulheres que vivem com alguma deficiência. Para Passos, Telles e Oliveira2424 Passos RL, Telles FSP, Oliveira MHB. Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência. Saúde debate. 2019; 43(esp4):154-64., a “deficiência potencializa a invisibilidade social das mulheres”. Ainda segundo esses autores, mulheres que vivem com deficiência, considerada uma experiência de opressão e imposição social, têm menos condições de acesso à proteção contra a violência sexual e, frequentemente, são menos capazes de se defender dos agressores que, não raro, são pessoas próximas2424 Passos RL, Telles FSP, Oliveira MHB. Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência. Saúde debate. 2019; 43(esp4):154-64.. Além disso, há aspectos que atuam como determinantes da invisibilidade sociojurídica que recaem sobre as mulheres que vivem com deficiência e que estão em situação de violência sexual, como por exemplo, a tendência de não credibilizar a denúncia2424 Passos RL, Telles FSP, Oliveira MHB. Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência. Saúde debate. 2019; 43(esp4):154-64..

Quanto ao consumo de álcool pelo agressor, ressaltamos que esse é um problema de saúde pública fortemente associado à morbimortalidade por causas externas, incluin do as violências2525 Organização Mundial da Saúde. Informe sobre la situación del alcohol y la salud en la Región de las Américas 2020. [Sem local]: Pan American Health Organization; 2021. [acesso em 2022 maio 26]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/53579.
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. No entanto, é importante destacar a cultura de violência contra mulher como um processo que tem como principal motivador o patriarcalismo e a cultura que nasce dele2626 Monteiro PG. A guerra dos homens e a vida das mulheres. As interfaces entre planejamento urbano, violência contra a mulher e segurança pública no Rio de Janeiro, Brasil. Rev Bras Estud Urbanos E Reg. 2021 [acesso em 2022 nov 8]; (23)1-28. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/6633.
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. Neste sentido, é importante nunca justificar a violência contra mulher pelo uso abusivo de álcool, reduzindo a responsabilidade objetiva do agressor, pois os efeitos do álcool dependem de fatores que são normas de comportamento socialmente construídas, como a cultura de violência de gênero2525 Organização Mundial da Saúde. Informe sobre la situación del alcohol y la salud en la Región de las Américas 2020. [Sem local]: Pan American Health Organization; 2021. [acesso em 2022 maio 26]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/53579.
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,2727 Organização Pan-Americana da Saúde. Álcool e violência. Washington, D.C.: Organização Pan-americana da Saúde; 2021. [acesso em 2022 nov 8]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/55183/OPASNMHMH210035_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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.

Apenas um dos casos de violência foi relacionado ao trabalho, sendo um caso de estupro praticado contra uma profissional do sexo. O sexo construído a partir do sistema patriarcal, onde o controle sobre a mulher se dá, entre outras coisas, pelo controle da sua sexualidade, fundamenta o estigma ainda existente sobre a prostituição1616 Barbosa MD, Borges PCC. Trabalho Sexual, Estupro e Sistema de Justiça Criminal: uma análise crítica a partir do feminismo de terceiro mundo. Rev Eletr. Curso Direito UFSM. 2017; 12(2):387.. Esta perspectiva moralista que criminaliza a prostituição também normaliza as violências praticadas contra as profissionais do sexo, colocando-as em lugar de maior vulnerabilidade1616 Barbosa MD, Borges PCC. Trabalho Sexual, Estupro e Sistema de Justiça Criminal: uma análise crítica a partir do feminismo de terceiro mundo. Rev Eletr. Curso Direito UFSM. 2017; 12(2):387., com maior chance de serem expostas a violência, tanto no ambiente doméstico como no local de trabalho2828 Lima FSS, Merchán-Hamann E, Urdaneta M, et al. Fatores associados à violência contra mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(2).. Siqueira2929 Siqueira I. “É mais seguro ser puta do que esposa no Brasil”. @Pheeno TV. YouTube, 2020 ago 20. [acesso em 2022 nov 6]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f7c4_emzjBA.
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destaca que a violência praticada contra as profissionais do sexo é, antes de tudo, uma violência de gênero e uma violência contra LGBTQIAPNB+ que se reflete em todas as estruturas sociais, inclusive de trabalho, seja na prostituição ou em qualquer outra forma de trabalho.

No que se refere ao acesso ao aborto legal pelas mulheres em situação de violência sexual que resultaram em uma gestação, embora não tenhamos observado diferença estatisticamente significativa entre as mulheres que acessaram o procedimento comparado as que não o acessaram, foram mais frequentes perfis constituídos por mulheres brancas e com ensino superior entre as que realizaram o aborto, do que entre as que não o fizeram, ou mesmo comparado aos perfis dos grupos anteriormente analisados.

Ainda que a palavra da mulher seja suficiente para atestar a violência sexual, na prática, os serviços de saúde adotam uma rotina pericial para averiguação da veracidade do relato da mulher para permitir o acesso ao aborto legal e seguro3030 Diniz D, Dios VC, Mastrella M, et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét. 2014; 22(2):291-8.. Deste modo, muitas vezes, as características da mulher, como a liberdade sexual, são lidas pelos profissionais de saúde de modo a se dar menor credibilidade ao seu relato3030 Diniz D, Dios VC, Mastrella M, et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét. 2014; 22(2):291-8., dificultando, por meio do machismo, racismo e do classismo, o acesso ao aborto pelas mulheres em situação de vulnerabilidade, seja de forma direta, pela negativa da equipe multiprofissional ao não relacionar a gestação à violência relatada pela mulher, ou indireta, ao desincentivar a busca do serviço de saúde pelas mulheres cujos direitos lhes são sistematicamente negados.

O presente estudo possui algumas limitações, dentre elas, não incluir as mulheres atendidas na unidade de saúde sem agravo de notificação compulsória, para representação da referida população hospitalar. Assim, foi possível apenas eleger alguns grupos de comparação, embora não representativos da população hospitalar de base. Outra limitação é a ausência das informações de idade, cor da pele, escolaridade e ocupação para as pacientes cujos filhos foram notificados para sífilis congênita. Considerando que os dados analisados no estudo se restringem aos casos atendidos no hospital avaliado, entendemos que não podemos afirmar que os casos que não chegaram à referida unidade não foram atendidos e notificados por outros estabelecimentos de saúde. Por outro lado, é sabido que os casos de violência contra mulher são extremamente subnotificados1717 Penna LHG, Antunes TCS, Santos TPS, et al. Caracterização da violência sexual vivida por mulheres atendidas em unidade hospitalar de referência. Rev Enferm Atual Derme. 2017; 81(19)., especialmente no cenário da pandemia da Covid-1911 Okabayashi NYT, Tassara IG, Casaca MCG, et al. Violência contra a mulher e feminicídio no Brasil – impacto do isolamento social pela COVID-19. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):4511-31.. Deste modo, é provável que, devido às medidas de isolamento, inúmeros casos de mulheres em situação de violência no ano de 2020 tenham deixado de buscar a unidade de saúde11 Okabayashi NYT, Tassara IG, Casaca MCG, et al. Violência contra a mulher e feminicídio no Brasil – impacto do isolamento social pela COVID-19. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):4511-31., bem como tenham ocorrido casos de violência atendidos na unidade sem a devida realização da notificação pela equipe profissional.

Diante das dificuldades históricas de acesso aos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, especialmente por populações vulneráveis, agravadas pela emergência da Covid-19, este trabalho contribui para melhor compreensão do perfil dos casos de violência que acessaram o serviço na região metropolitana do RJ no primeiro ano da pandemia, período ainda pouco explorado, apontando para a influência dos fatores socioeconômicos e territoriais neste acesso. Ademais, esse estudo mostrou a necessidade de revisão da ficha do Sinan de violência acerca das informações de identidade de gênero contribuindo, juntamente com publicações anteriores, para o aperfeiçoamento das informações para melhor compreensão da situação de saúde da população e consequente construção de políticas públicas efetivas.

Conclusões

Os resultados do estudo sinalizam um perfil socioeconômico e demográfico diferenciado entre os casos atendidos pelo serviço de acolhimento de mulheres em situação de violência e aqueles atendidos para cuidados materno e neonatal, com exceção da cor da pele (sem diferença estatisticamente significativa). Contudo, verificamos que, em números absolutos, a maior parte das mulheres atendidas em todos os grupos analisados eram negras, ao passo que a maior parte das mulheres que acessaram o aborto legal eram brancas.

Esse cenário provoca a reflexão sobre os DSS que condicionam o acesso da população aos serviços de saúde e de acolhimento de mulheres em situação de violência. Nesse sentido, esse estudo destaca a importância de repensar as políticas de apoio à mulher em situação de violência numa perspectiva interseccional, atenta às condições territoriais, de raça/etnia e cor de pele, gênero, sexo, trabalho, corporeidade e identidade, classe e renda para que, de fato, se alcance de forma equânime as mulheres na sua complexidade social, demográfica e cultural, diminuindo os efeitos das opressões que se articulam de forma a contribuir para a manutenção e reprodução do machismo, do sexismo e da misoginia.

Uma vez que o setor de saúde assume para si a responsabilidade pela vigilância e acolhimento de casos de violência, é preciso que ele se organize atento não só aos casos de violência em si, que são apenas os efeitos de uma estrutura social. Por isso, se torna importante que tais serviços abordem os DSS que atravessam os casos de violência e que se organizem em uma lógica diferenciada das estruturas sociais onde esses elementos se manifestam e se reproduzem. Espera-se, com este trabalho, acrescentar esforços para este debate.

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Aceito
    03 Maio 2023
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