RESUMO
Objetivou-se compreender o significado da atenção às mulheres vítimas de Violência Doméstica sob a ótica dos profissionais da Atenção Primária à Saúde. Realizou-se um estudo descritivo, qualitativo, com a abordagem da fenomenologia social de Alfred Schütz. Participaram da pesquisa 22 profissionais de municípios da 10a Regional de Saúde do Paraná. A coleta das informações foi realizada entre abril e setembro de 2020, por telefone, por meio de entrevista fenomenológica, utilizando-se o aplicativo RecorderR, e foram analisadas segundo o método fenomenológico. Construíram-se as seguintes categorias: a Violência Doméstica como algo muito comum e complexo; baixa demanda pela assistência diante do grande número de casos; e falta de conhecimento profissional para prestar o atendimento. O estudo contribui para a compreensão da atenção às vítimas no contexto da pesquisa, dos desafios para a integralidade e para a reflexão e elaboração de políticas de saúde voltadas ao tema.
PALAVRAS-CHAVE
Violência; Violência Doméstica; Atenção Primária à Saúde
ABSTRACT
The objective was to understand the meaning of care for women victims of Domestic Violence from the perspective of Primary Health Care professionals. A descriptive, qualitative study was carried out, with the social phenomenology approach of Alfred Schütz. Twenty-two professionals from municipalities of the 10th Health Regional of Paraná participated in the research. Information was obtained between April and September 2020, by telephone, through a phenomenological interview, using the RecorderR application, and was analyzed according to the phenomenological method. The following categories were created: Domestic Violence as something very common and complex; low demand for care given the substantial number of cases and lack of professional knowledge to provide care. The study contributes to the understanding of care provided for victims in the research`s context, the challenges for the integrality and for the reflection and elaboration of health policies focused on the theme.
KEYWORDS
Violence; Domestic Violence; Primary Health Care
Introdução
A Violência Doméstica (VD), abordada neste estudo, caracteriza-se como aquela que é infligida contra as mulheres11 Miura PO, Silva ACS, Pedrosa MMMP, et al. Violência doméstica ou violência intrafamiliar: análise dos termos. Psicol. Soc. 2018 [acesso em 2022 set 30]; (30):e179670. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30179670.
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v3... . Sobre a violência contra a mulher, a Lei nº 11.340/2006 traz em seu artigo 5º que
[...] configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial22 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006.(22 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006.).
No mundo, uma em cada três mulheres sofreu violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida. 42% das mulheres vítimas de violência por parte do parceiro relatam lesões como consequência da violência; 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual na vida por parte de seu parceiro; e 20% das mulheres relatam terem sido vítimas de violência sexual na infância33 World Health Organization. Violence against women. 2022 mar 9. [acesso em 2022 set 30]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... .
O Brasil ocupava, no ano de 2015, num grupo de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a pouco recomendável 5ª posição no número de homicídios de mulheres no mundo. E as taxas eram 48 vezes maiores que as do Reino Unido; 24 vezes maiores que as da Irlanda ou Dinamarca; e 16 vezes superiores às do Japão ou da Escócia. Além disso, a maioria das vítimas era mulher negra, entre 18 e 30 anos, e o crime acontecia em ambiente doméstico44 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. [acesso em 2022 out 10]. Disponível em: www.mapadaviolencia.org.br.
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Quanto ao tipo de violência, a física era, em 2015, a mais frequente, presente em 48,7% dos atendimentos; e, nas fases jovem e adulta, ela chega a representar perto de 60%. Seguida da violência psicológica, com 23%, e da sexual, com 11,9% dos atendimentos, especialmente entre crianças com até 11 anos de idade e adolescentes (24,3%)44 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. [acesso em 2022 out 10]. Disponível em: www.mapadaviolencia.org.br.
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Em 2019, segundo Cerqueira55 Cerqueira D. Atlas da Violência 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021., o número de homicídios no Brasil correspondeu a uma taxa de 21,7 mortes por 100 mil habitantes, inferior ao encontrado para todos os anos desde 1995, porém, o dado deve ser visto com cautela em função da deterioração na qualidade dos registros oficiais. O mesmo ocorreu com o registro do número de mulheres assassinadas naquele ano. Entretanto, fatores como a mudança do regime demográfico rumo ao envelhecimento da população e a diminuição do número de jovens; a implementação de ações e programas qualificados de segurança pública em alguns estados e municípios brasileiros; e o Estatuto do Desarmamento contribuíram para a diminuição dos homicídios. E quanto a etnia, faixa etária e local do crime, em 2019, observou-se a mesma tendência do estudo realizado em 2015.
Importante salientar que a VD tem diferentes interpretações de acordo com as crenças, os valores e as tradições da população, o que se estende para os profissionais de saúde. E as discussões sobre o tema fundamentam-se em questões de gênero, baseadas somente no sexo biológico. Essa diferenciação resulta nas relações de poder, de força e de dominação, que podem culminar nas diversas formas de violência contra a mulher. Tais relações, desiguais e assimétricas, expressam-se nas normas e condutas esperadas para homens e mulheres, fazendo que certos comportamentos violentos sejam naturalizados pelo senso comum66 Bueno S, Lima RS, coordenadores. Projeto Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021.,77 Allen-Leap M, Hooker L, Wild K, et al. Seeking Help From Primary Health-Care Providers in High-Income Countries: A Scoping Review of the Experiences of Migrant and Refugee Survivors of Domestic Violence. Trauma Violence Abuse. 2022 [acesso em 2023 fev 5]; (13). Disponível em: https://doi.org/10.1177/15248380221137664.
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Estudos epidemiológicos demonstram que a violência contra a mulher, geralmente, é praticada pelo próprio parceiro íntimo, no ambiente doméstico, o que silencia a maioria dos casos. No entanto, as notificações de VD são alarmantes e cresceram sobremaneira durante o pico da pandemia da Covid-19, quando as mulheres foram obrigadas a conviver com seus agressores em virtude da situação sanitária e, até mesmo, das condições financeiras decorrentes do período emergencial. Em 2019, dos 3.739 homicídios de mulheres no Brasil, 1.314 (35%) foram categorizados como feminicídios, sendo que 88,8% deles foram praticados por companheiros ou ex-companheiros88 Vieira PR, Garcia LP, Maciel ELN. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Rev bras Epidemiol. 2020 [acesso em 2022 set 19]; (23):e200033. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720200033.
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Nesse sentido, é importante considerar que o enfrentamento à violência contra a mulher contempla acolhimento das denúncias, aumento das equipes nas linhas diretas de prevenção e resposta à violência, ampla divulgação dos serviços disponíveis, capacitação dos trabalhadores da saúde para identificar situações de risco e a expansão e o fortalecimento das redes de apoio, incluindo a garantia do funcionamento e ampliação do número de vagas nos abrigos para mulheres sobreviventes. Inclui, ainda, reforçar a importância das redes informais e virtuais de suporte social e o uso de estratégias como a busca de ajuda usando palavras-código para informar a violência99 Kottasová I, Di Donato V. Women are using code words at pharmacies to escape domestic violence during lockdown. CNN. 2020 abr 6. [acesso em 2022 set 30]. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/04/02/europe/domestic-violence-coronavirus-lockdown-intl/index.html.
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Globalmente, durante a pandemia da Covid-19, concomitantemente ao agravamento da violência contra a mulher, aconteceu a diminuição do acesso a serviços de apoio às vítimas, particularmente, nos setores de assistência social, saúde, segurança pública e justiça. Isso explica a redução da procura devido ao medo de contágio pelo Sars-Cov-288 Vieira PR, Garcia LP, Maciel ELN. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Rev bras Epidemiol. 2020 [acesso em 2022 set 19]; (23):e200033. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720200033.
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Tem-se como premissa que o cuidado à vítima de VD deve ser oferecido na rede de serviços de saúde, bem como na rede intersetorial, que engloba todos os componentes envolvidos na atenção àqueles que necessitem de assistência em decorrência de ato violento. Incluem-se nessa rede a Atenção Primária à Saúde (APS) e seus diferentes dispositivos de cuidado, como as unidades básicas de saúde, as unidades de saúde da família, os consultórios de rua, as equipes de apoio da atenção residencial de caráter transitório e os centros de convivência, colocando-se, assim, como componente da Rede de Atenção Psicossocial (Raps)1010 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017.,1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2017..
E, sendo uma questão de saúde pública, a ocorrência de VD deve ser tratada pelos profissionais de saúde a partir de um cuidado relacional e sensível, que extrapole os limites do físico, livre de preconceitos, juízo de valor e estereótipos de gênero66 Bueno S, Lima RS, coordenadores. Projeto Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021.,1212 Acosta DF, Gomes VLO, Oliveira DC, et al. Social representations of nurses concerning domestic violence against women: study with a structural approach. Rev. Gaúcha de Enferm. 2018 [acesso em 2023 jan 14]; (39):61308. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.61308.
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A VD se caracteriza como um aspecto de cuidado também em saúde mental, e a APS é a porta de entrada do sistema de saúde e o primeiro componente da Raps a ser buscado pela vítima. Além disso, constitui-se em serviço que atua longitudinalmente com a família e a comunidade territorial e realiza a articulação com a assistência curativa e a prevenção e promoção da saúde, assistindo as mulheres que a buscam com ou sem queixas de adoecimento1313 D’ Oliveira AFPL, Pereira S, Schraiber, et al. Obstáculos y facilitadores para el cuidado de mujeres en situación de violencia doméstica en la atención primaria de la salud: una revisión sistemática. Interface (Botucatu). 2020 [acesso em 2022 set 19]; (24):e190164. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.190164.
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Diante do exposto, é relevante que os profissionais da APS compreendam o que é a VD e quais são os seus impactos para a vida e a saúde da vítima, assim como de que maneira ela deve ser assistida a fim de garantir sua segurança e seus direitos.
Assim, o presente estudo teve como objetivo compreender o significado da atenção às mulheres vítimas de VD na APS sob a ótica dos profissionais da APS.
Metodologia
Estudo descritivo, qualitativo, com abordagem da fenomenologia social de Alfred Schütz. Participaram da pesquisa 22 profissionais que atendem mulheres vítimas de VD, da 10ª Regional de Saúde do Paraná, os quais foram indicados pelos gestores dos municípios como sendo os atores principais que atendem essa clientela, e aceitaram participar da pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram incluídos gestores, coordenadores da atenção básica e enfermeiros que atuavam diretamente no atendimento às vítimas de VD dos referidos municípios. Foram excluídos da pesquisa os que estavam em férias, com atestado ou de licença, bem como aqueles que, após três tentativas de contato, não foram localizados.
A coleta das informações foi realizada entre os meses de abril e setembro de 2020, por telefone, pois, em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi definida pela OMS como pandemia33 World Health Organization. Violence against women. 2022 mar 9. [acesso em 2022 set 30]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... . O TCLE foi lido durante a entrevista, realizada por chamada telefônica, e enviado ao profissional para que o devolvesse assinado.
Foi utilizada entrevista fenomenológica, com a seguinte questão norteadora: ‘Fale-me o que você entende sobre a atenção à VD no contexto da sua atuação’. Foram seguidos os passos do protocolo Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ). As entrevistas foram gravadas pelo aplicativo RecorderR e transcritas na íntegra. Para garantir o anonimato, os profissionais foram identificados pela letra P, seguida de um algarismo arábico, conforme a ordem de realização, a saber: P1, P2, P3... P22.
As informações foram analisadas de acordo com o método fenomenológico para a construção das categorias concretas a fim de desvelar o significado que os profissionais de saúde dão à atenção à VD. Para tanto, foi realizada a leitura sequencial, detalhada e exaustiva dos depoimentos dos profissionais, buscando identificar as unidades de significado; leituras das unidades de significado, agrupando-as por convergência, para formar as categorias concretas do vivido desses profissionais. Esse movimento compreensivo analítico é baseado no referencial teórico-metodológico de Alfred Schutz1414 Schran LS, Machinesk GG, Rizzotto ML, et al. The multidisciplinary team’s perception on the structure of mental health services: phenomenological study. Rev. Gaúcha Enferm. 2019 [acesso em 2022 nov 19]; 40:e20180151. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180151.
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.2... ,1515 Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012..
O estudo foi aprovado pelo parecer 3.675.695 CAAE 23474819.0.0000.0107 e parecer 3.803.045 CAAE 23474819.0.3002.5225.
Resultados e discussão
Dos entrevistados, todos atuam no setor público, a idade variou de 26 a 60 anos, 21 são do sexo feminino e um do sexo masculino. Desses, 10 são enfermeiros, sete psicólogos e cinco assistentes sociais. Sendo que 18 deles possuem pós-graduação lato sensu; e 12 têm de um a cinco anos de atuação, três de cinco a 10 anos e oito de 11 a 15 anos.
A predominância do gênero feminino entre os profissionais de saúde revela a inserção da mulher no mercado de trabalho, a partir dos movimentos feministas, e em ocupações executivas de nível superior. E a divisão sexual do trabalho, que define, entre outros aspectos, a atividade laboral como sendo característica de homem ou de mulher. E as profissões da saúde têm sua força de trabalho constituída majoritariamente pelo gênero feminino1616 Boniol M, McIsaac M, Xu L, et al. Gender equity in the health workforce: analysis of 104 countries. Geneva: World Health Organization; 2019.
17 Scheffer M, coordenador. Demografia Médica no Brasil. 2023. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2023.-1818 Vieira J, Anido I, Calife K. Mulheres profissionais da saúde e as repercussões da pandemia da Covid-19: é mais difícil para elas? Saúde debate. 2022 [acesso em 2023 ago 17]; 46(132):47-62. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213203.
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A partir da análise, foram construídas as seguintes categorias sobre o significado da atenção à VD para profissionais da APS: a VD como algo muito comum e complexo; baixa demanda pela assistência diante do grande número de casos; e falta de conhecimento profissional para prestar o atendimento.
Na categoria ‘a VD como algo muito comum e complexo’, os profissionais de saúde percebem que ela se caracteriza de diversas formas, principalmente psicológica; as vítimas ainda procuram pouco os relatos que se tem dos casos; e as denúncias estão aumentando porque, possivelmente, a mulher está perdendo o medo de se expor.
[...] está aumentando a violência doméstica, de várias formas, como a psicológica [...] não sei se havia menos denúncia ou se menos casos, mas a gente tinha uma demanda muito menor. P6.
[...] envolve, principalmente, mulheres que nem têm a noção que vivenciam um tipo de violência, por isso que ela se torna tão ampla e tão complexa até o trabalho em relação a ela. P20.
[...] hoje tem aumentado muito. [...] a mulher perdeu o medo em denunciar [...] um número maior da violação dos direitos de violência contra a mulher. P22.
A violência é um fenômeno social, complexo e multifatorial que afeta pessoas, famílias e comunidades. E se constitui como um problema de saúde pública33 World Health Organization. Violence against women. 2022 mar 9. [acesso em 2022 set 30]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... ,1919 Melo BDL, Lima CC, Moraes CL, et al., organizadores. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19: violência doméstica e familiar na covid-19. Brasília, DF: Fiocruz; 2020.. Não se caracteriza como um fato novo. Nova é a preocupação com a superação dessa violência como condição necessária para a construção de nossa humanidade. E a judicialização do problema, que pode ser mobilizada para proteger as vítimas e/ou punir os agressores44 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. [acesso em 2022 out 10]. Disponível em: www.mapadaviolencia.org.br.
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Estudo realizado com mulheres iranianas maiores de 15 anos demonstrou que a prevalência de violência tem crescido desde 2015, sendo que o aumento da doméstica é maior que da social2020 Kamali K, Maleki A, Yazdi SAB, et al. The prevalence of violence and its association with mental health among the Iranian population in one year after the outbreak of COVID-19 disease. BMC Psychiatry. 2023 [acesso em 2023 fev 20]; 23(1):33. Disponível em: https://bmcpsychiatry.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12888-022-04444-7.
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Na pandemia de Covid-19, os indicadores de países como China, Espanha e Brasil evidenciam que os casos de violência já existentes se agravaram, e, ao mesmo tempo, emergiram novos casos. Na China, os números da VD triplicaram; na França, houve um aumento de 30% das denúncias; e, no Brasil, estima-se que as denúncias tenham aumentado em até 50%. A Itália, assim como os demais países, também indicou que as denúncias de VD estão em ascensão. E, nos Estados Unidos, pesquisa demonstra que as chamadas para atendimento à VD aumentaram no período de distanciamento social, quando a recomendação era ficar em casa. Além disso, o período pandêmico impossibilitou o acesso de muitas mulheres aos serviços intersetoriais para o atendimento88 Vieira PR, Garcia LP, Maciel ELN. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Rev bras Epidemiol. 2020 [acesso em 2022 set 19]; (23):e200033. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720200033.
https://doi.org/10.1590/1980-54972020003... ,1919 Melo BDL, Lima CC, Moraes CL, et al., organizadores. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19: violência doméstica e familiar na covid-19. Brasília, DF: Fiocruz; 2020.,2121 Babalola T, Couch T, Donahoe M, et al. Domestic violence calls for police service in five US cities during the COVID-19 pandemic of 2020. BMC Public Health. 2022 [acesso em 2023 jan 27]; 22(1):2455. Disponível em: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-022-14901-3.
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Os profissionais participantes da pesquisa identificam o conceito de VD. Entendem que, além dos aspectos físicos e mentais da violência, existem a violência verbal e a econômica. Porém, sentem-se inseguros para abordar o assunto da VD contra as mulheres, de modo que precisam ser capacitados para desenvolver habilidades interpessoais para realizar esse tipo de abordagem.
Nesse sentido, a atuação na APS necessita saber o que a equipe fará para acolher as mulheres vítimas de VD e quais serão os dispositivos da rede de serviços de saúde e intersetoriais necessários para tanto. Persistem obstáculos, como a redução das necessidades de saúde às patologias e questões estruturais da organização dos serviços, relacionadas ao tempo, protocolos, falta de segurança, de fluxos claros, de treinamento, de trabalho em equipe e de reconhecimento da rede intersetorial, que, ao serem contornados, possibilitarão a atenção integral à mulher vítima de violência1313 D’ Oliveira AFPL, Pereira S, Schraiber, et al. Obstáculos y facilitadores para el cuidado de mujeres en situación de violencia doméstica en la atención primaria de la salud: una revisión sistemática. Interface (Botucatu). 2020 [acesso em 2022 set 19]; (24):e190164. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.190164.
https://doi.org/10.1590/interface.190164... ,2222 Odorcik B, Ferraz BP, Bastos LC, et al. Violence against women: perception and professional approach in primary health care during the Covid-19 pandemic. Rev. Enferm. UFSM. 2021; 11(e74):1-19..
Em estudo realizado no interior do Piauí, as informações dos profissionais de saúde vão de encontro aos achados desta pesquisa. Naquela realidade, os profissionais seguem um fluxo de atendimento a partir da identificação do caso de violência pelo agente comunitário de saúde, assistência à vítima pela equipe da unidade de saúde e do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (Nasf), e realiza-se o projeto terapêutico singular; ou as mulheres podem acessar diretamente os profissionais do Nasf por livre demanda2323 Carneiro CT, Bezerra MAR, Rocha RC, et al. Fluxos de atendimento às mulheres em situação de violência na atenção primária à saúde. Rev. Ciênc. Plur. 2022 [acesso em 2023 jan 19]; 8(3):e26089. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/rcp/article/view/26089/16191.
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Essa compreensão se dá por meio do estoque de conhecimento à mão, das relações diretas e indiretas que se desenvolvem no mundo intersubjetivo. O estoque de conhecimento à mão se refere ao conhecimento adquirido por meio das experiências e vivências do indivíduo. As relações diretas podem se estabelecer face a face, quando os indivíduos se encontram de forma íntima e cotidiana. Já as relações indiretas acontecem com sujeitos do mundo da vida, que têm um tipo determinado, um ser contemporâneo que está distante no que se refere ao relacionamento1515 Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.,2424 Schütz A. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1979.,2525 Schütz A. 1899-1959. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis-RJ: Vozes; 2018..
Essas relações acontecem como ações com condutas que têm um determinado fim e são impulsionadas por intenções do ator que as realiza. E a significação dessas ações é exteriorizada pelo ator e pode ser compreendida pelo investigador social a partir dos motivos ‘para’ e ‘por que’, no âmbito da fenomenologia social1515 Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.,2424 Schütz A. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1979..
Na categoria ‘baixa demanda pela assistência diante do grande número de casos’, os profissionais referem que isso acontece devido à subnotificação dos eventos violentos. A porta de entrada geralmente são as delegacias, e os casos não são repassados para os serviços de saúde. E poucas mulheres procuram as unidades de saúde ou dão continuidade aos atendimentos para os quais são referidas por insegurança, medo de se expor.
[...] com o que condiz com a nossa realidade, os números ainda são muito baixos o que chega até a gente [...] se é notificado, se é acompanhado, infelizmente, é muito baixo ainda. P1.
[...] os casos não chegam muito até a gente. [...] não tem um fluxo específico de atendimento às vítimas [...] às vezes, sabemos e fazemos busca ativa, ou alguma vítima vem até a gente. P13.
A maior parte das mulheres não registra queixa, em especial, as com melhor condição econômica, por constrangimento e humilhação, ou por medo da reação de parceiros, de serem discriminadas, desacreditadas ou responsabilizadas por familiares, amigos, vizinhos e autoridades. Também é comum que o agressor ameace a mulher, caso revele o ocorrido. Além disso, os profissionais de saúde, muitas vezes, carecem de capacitação para reconhecer o problema que está gerando conflito para a vítima e seus dependentes, e age de forma inapropriada ao abordá-la2626 Pinto LSS, Oliveira IMP, Pito ESS, et al. Women’s protection public policies: evaluation of health care for victims of sexual violence. Ciênc. saúde coletiva. 2017 [acesso em 2022 out 20]; 22(5):1501-8. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017225.33272016.
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27 Oliveira FTL, Gomes SCS, sousa vs, et al. O trabalho do enfermeiro frente a violência doméstica contra as mulheres. Rebis. 2022; 4(4):63-72.
28 Papas L, Hollingdrake O, Currie JJ. Social determinant factors and access to health care for women experiencing domestic and family violence. Qualitative synthesis Adv Nurs. 2023 [acesso em 2023 jan 25]; (79):1633-49. Disponível em: https://doi.org/10.1111/jan.15565.
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29 Pokharel B, Yelland J, Taft A, et al. A Systematic Review of Culturally Competent Family Violence Responses to Women in Primary Care. Trauma Violence Abuse. 2023 [acesso em 2023 10 fev]; 24(2):928-945. Disponível em: https://doi.org/10.1177/15248380211046968.
https://doi.org/10.1177/1524838021104696... -3030 Rodrigues EAS, Tavares R, Melo VH, et al. Violence and primary health care: perceptions and experiences of professionals and users. Saúde debate. 2018 [acesso em 2023 10 fev]; 42(esp4):55-66. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042018s404.
https://doi.org/10.1590/0103-11042018s40... .
Em estudo de revisão integrativa, desvelou-se que os profissionais de saúde têm dificuldade de identificar e atuar nos casos de VD, pelo medo e constrangimento das vítimas, que, por isso, escondem o sofrimento3131 Santos do Vale H, Rodrigues da Rocha M, Nunes da Conceição H. Nursing Care for Women in a Situation of Violence in Primary Health Care. Rev Cubana Enfermer. 2022 [acesso em 2023 jan 27]; 38(1):e4067. Disponível em: http://scielo.sld.cu/pdf/enf/v38n1/1561-2961-enf-38-01-e4067.pdf.
http://scielo.sld.cu/pdf/enf/v38n1/1561-... . Outro aspecto que pode contribuir para a baixa demanda por atendimento é o fato de que as mulheres, muitas vezes, desenvolvem resiliência frente às agressões, elucidando a subordinação da mulher ao homem, aceitando de modo passivo as desigualdades de direitos e escolhas, e da violência intrafamiliar, perpetuando, assim, a violência contra a mulher3232 Valenzuela VVV, Vitorino LM, Valenzuela, et al. Intimate partner violence and resilience in women from the western Brazilian Amazon. Acta paul. enferm. 2022 [acesso em 2023 jan 26]; (35):eAPE0199345. Disponível em: http://www.revenf.bvs.br/pdf/ape/v35/1982-0194-ape-35-eAPE0199345.pdf.
http://www.revenf.bvs.br/pdf/ape/v35/198... .
Essa compreensão do número de casos de VD versus demanda das vítimas por assistência se caracteriza pela ausência da intersubjetividade. Os homens se compreendem e são compreendidos por outrem a partir de ações humanas caracterizadas pela reciprocidade de perspectivas, origem e distribuição social do conhecimento do eu, num mundo intersubjetivo. Esse que é compartilhado com os semelhantes, vivenciado e interpretado pelo eu e pelos outros, tornando-se de todos nós. E pelos motivos ‘por que’, que se definem pelas experiências prévias do sujeito1515 Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.,2424 Schütz A. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1979.,2525 Schütz A. 1899-1959. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis-RJ: Vozes; 2018.,3333 Schütz A. El problema de la realidad social. Escritos I. Buenos Aires: Amorrortu; 2003..
E na categoria ‘falta de conhecimento profissional para prestar o atendimento’, os profissionais entendem que têm dificuldade de trabalhar com o tema, lidar com os casos e realizar encaminhamentos. Isso porque também percebem uma rede de atendimento fragilizada.
[...] sinto falta de conhecimento mesmo, alguma rede, alguma assistente diferente para elas. Eu acho que falta isso. P14.
[...] mesmo que a gente realize os atendimentos necessários, ainda é bem falho, a gente não fortalece, não trabalha em rede com a vítima de violência doméstica [...]. P21.
[...] o máximo que você manda fazer é o BO e atendimento psicológico [...]. P12.
Muitas vezes, por desconhecimento ou desinformação das vítimas e/ou de operadores dos setores de segurança e saúde, as vítimas são erroneamente encaminhadas, sem que se coletem em tempo hábil os vestígios da violência. E, embora as vítimas venham acompanhadas de serviços intersetoriais, há casos de vítimas desamparadas ou acompanhadas apenas de familiares, que procuram por conta própria o serviço e necessitam do auxílio da assistência social até mesmo para voltar para casa2626 Pinto LSS, Oliveira IMP, Pito ESS, et al. Women’s protection public policies: evaluation of health care for victims of sexual violence. Ciênc. saúde coletiva. 2017 [acesso em 2022 out 20]; 22(5):1501-8. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017225.33272016.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017225... ,3434 Fiolet R, Cameron J, Hegarty K, et al. Indigenous people’s experiences and expectations of health care professionals when accessing care for family violence: a qualitative evidence synthesis. Trauma Violence Abuse. 2022 [acesso em 2023 jan 15]; 23(2):567-80. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1524838020961879.
https://doi.org/10.1177/1524838020961879... .
Há a necessidade de constante identificação da rede de atenção, que pode sofrer frequentes alterações, exigindo dos profissionais o conhecimento da rede de proteção contra a violência, que deve incluir os serviços intersetoriais da saúde, da segurança, jurídicos, entre outros. E, ainda, os profissionais podem ter formação inadequada, apresentar conflitos morais e éticos que culminam na culpabilização e responsabilização das vítimas, o que leva a uma invisibilidade da situação e, consequentemente, à ausência de notificação no sistema de vigilância em saúde. Isso decorre da escassez de regulamentos que firmem procedimentos técnicos para esse fim e pela ausência de mecanismos legais de proteção aos profissionais encarregados de notificar. Assim, é necessária a educação permanente em saúde2222 Odorcik B, Ferraz BP, Bastos LC, et al. Violence against women: perception and professional approach in primary health care during the Covid-19 pandemic. Rev. Enferm. UFSM. 2021; 11(e74):1-19.,2727 Oliveira FTL, Gomes SCS, sousa vs, et al. O trabalho do enfermeiro frente a violência doméstica contra as mulheres. Rebis. 2022; 4(4):63-72.,3535 Baloch S, Hameed M, Hegarty K. health care providers views on identifying and responding to south asian women experiencing family violence: a qualitative meta synthesis. Trauma Violence Abuse. 2023 [acesso em 2022 dez 18]; 24(2):794-808. Disponível em: https://doi.org/10.1177/15248380211043829.
https://doi.org/10.1177/1524838021104382... ,3636 Ambikile JS, Leshabari S, Ohnishi M. Curricular limitations and recommendations for training health care providers to respond to intimate partner violence: an integrative literature review. Trauma Violence Abuse. 2022 [acesso em 2022 nov 20]; 23(4):1262-9. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1524838021995951.
https://doi.org/10.1177/1524838021995951... .
No entanto, em pesquisas com informações que divergem desta, foi possível entender que os profissionais podem utilizar de estratégias como acolhimento e empatia, estabelecimento de vínculo de confiança, diálogo e intencionalidade, ouvir para atender os casos de VD e sofrimento2929 Pokharel B, Yelland J, Taft A, et al. A Systematic Review of Culturally Competent Family Violence Responses to Women in Primary Care. Trauma Violence Abuse. 2023 [acesso em 2023 10 fev]; 24(2):928-945. Disponível em: https://doi.org/10.1177/15248380211046968.
https://doi.org/10.1177/1524838021104696... ,3737 Winfield A, Hilton NZ, Poon J, et al. Coping strategies in women and children living with domestic violence: staying alive. J Fam Violence. 2023 [acesso em 2023 fev 5]; 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10896-022-00488-1.
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https://doi.org/10.1016/j.soin.2022.05.0... .
Nesse sentido, um estudo de Scoping Review trouxe que as mulheres perceberam no atendimento a escuta ativa, criação de vínculo e articulação dos serviços. Assim como falta de acolhimento; sentimento de insegurança, medo e humilhação. Sendo que as primeiras estratégias contribuíram para elaborar propostas de mudanças, reflexão por parte das mulheres, confiança e busca, para saída do ciclo da violência. Já a falta daquelas favoreceu o afastamento dos serviços e a permanência junto ao agressor3636 Ambikile JS, Leshabari S, Ohnishi M. Curricular limitations and recommendations for training health care providers to respond to intimate partner violence: an integrative literature review. Trauma Violence Abuse. 2022 [acesso em 2022 nov 20]; 23(4):1262-9. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1524838021995951.
https://doi.org/10.1177/1524838021995951... ,3939 Souza MAR, Peres AM, Fumincelli, et al. Women perception in situations of violence in formal support: coping review. Esc. Anna Nery. 2021 [acesso em 2023 jan 27]; 25(2):e20200087. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0087.
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-... .
Os profissionais deste estudo entendem que o estoque de conhecimento à mão é insuficiente para que possam oferecer assistência adequada às vítimas de VD. O estoque de conhecimento é a sedimentação de experiências anteriores que caracterizam a situação biográfica determinada do indivíduo, que se constitui pela história de vida construída em um meio físico e sociocultural. Essa situação inclui possibilidades de atividades teóricas e práticas futuras, o propósito à mão2121 Babalola T, Couch T, Donahoe M, et al. Domestic violence calls for police service in five US cities during the COVID-19 pandemic of 2020. BMC Public Health. 2022 [acesso em 2023 jan 27]; 22(1):2455. Disponível em: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-022-14901-3.
https://bmcpublichealth.biomedcentral.co... ,2929 Pokharel B, Yelland J, Taft A, et al. A Systematic Review of Culturally Competent Family Violence Responses to Women in Primary Care. Trauma Violence Abuse. 2023 [acesso em 2023 10 fev]; 24(2):928-945. Disponível em: https://doi.org/10.1177/15248380211046968.
https://doi.org/10.1177/1524838021104696... .
Ainda, compreendem que há motivos que explicam a assistência inadequada, como a rede fragilizada para o cuidado. Esses se caracterizam como motivos ‘por que’, os quais podem ser inferidos pelo pesquisador quando esse reconstrói a atitude do ator em sua ação2121 Babalola T, Couch T, Donahoe M, et al. Domestic violence calls for police service in five US cities during the COVID-19 pandemic of 2020. BMC Public Health. 2022 [acesso em 2023 jan 27]; 22(1):2455. Disponível em: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-022-14901-3.
https://bmcpublichealth.biomedcentral.co... ,2222 Odorcik B, Ferraz BP, Bastos LC, et al. Violence against women: perception and professional approach in primary health care during the Covid-19 pandemic. Rev. Enferm. UFSM. 2021; 11(e74):1-19..
E relatam sobre as expectativas que mudanças no atendimento podem trazer para o cuidado à mulher vítima de VD, ou seja, os motivos ‘para que’ designam uma categoria subjetiva, pois demonstram uma ação para o futuro. Eles pertencem apenas ao ator e podem ser acessados pelo observador, quando este questiona o ator sobre o ato1515 Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.,2222 Odorcik B, Ferraz BP, Bastos LC, et al. Violence against women: perception and professional approach in primary health care during the Covid-19 pandemic. Rev. Enferm. UFSM. 2021; 11(e74):1-19..
Considerações finais
O estudo alcançou seu objetivo ao compreender o significado da assistência oferecida às mulheres vítimas de VD sob a ótica dos profissionais de saúde da APS, desvelando que a VD se apresenta como algo muito comum e complexo; os serviços identificam baixa demanda pela assistência diante do grande número de casos; e os profissionais relatam falta de conhecimento sobre o atendimento às vítimas.
Os resultados de estudos citados no texto vêm ao encontro do referido pelos participantes da presente pesquisa ao revelarem o entendimento dos profissionais sobre a VD e a falta de estrutura dos serviços de saúde e intersetoriais para a assistência. Assim como o despreparo e a ausência de capacitação dos profissionais envolvidos nesse cuidado com relação à rede de atendimento, aos fluxos e à abordagem das vítimas. E concordam com os pressupostos da fenomenologia social de Alfred Schütz ao identificarem o mundo intersubjetivo, a intersubjetividade, as relações diretas e indiretas, o estoque de conhecimento à mão e os motivos ‘para’ e ‘por que’ nos relatos dos profissionais de saúde sobre o atendimento.
O estudo apresenta limitações com relação ao desenho, tendo em vista que as entrevistas foram realizadas via chamada telefônica gravada. No entanto, contribui para a compreensão do atendimento às mulheres vítimas de VD na APS e dos desafios para atenção integral; para a reflexão e elaboração de políticas de saúde voltadas à violência contra a mulher, colocando-se como introdução a outras análises sobre a referida temática, que se constitui em problema de saúde pública.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Nov 2023 - Data do Fascículo
Oct-Dec 2023
Histórico
- Recebido
12 Jun 2023 - Aceito
24 Ago 2023