Trabalho sexual no Brasil: uma abordagem do protagonismo das prostitutas na luta pelo reconhecimento do direito ao exercício da profissão

Jane Felipe Beltrão Andrea Ferreira Bispo Sobre os autores

RESUMO

O presente ensaio teve como objeto de estudo a luta das prostitutas brasileiras pelo reconhecimento do trabalho sexual como profissão. Utilizando revisão bibliográfica, apresenta a formação do Movimento das Prostitutas no Brasil e suas reivindicações, busca definir o que é trabalho sexual e, ao final, discorre sobre o percurso dessas reivindicações no Poder Legislativo. Conclui-se que os entraves ao reconhecimento da profissão pelo Estado brasileiro estão relacionados com o estigma que marca as trabalhadoras do sexo.

PALAVRAS-CHAVES
Trabalho sexual; Direito ao trabalho; Respeito

Introdução

O objetivo deste ensaio é apresentar o protagonismo das prostitutas brasileiras na luta pelo reconhecimento do trabalho sexual como profissão.

Ao consultarmos o passado, verificamos que a marginalização das trabalhadoras sexuais não é um capítulo à parte na forja social que instituiu as concepções de gênero e relegou às mulheres um lugar subalterno em sua estrutura jurídica-política-institucional.

Friedrich Engels11 Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1984. explica que quando a propriedade privada se resumia aos bens pessoais, a tradição jurídica do Ocidente era que, no caso da morte do pai, os bens dele passassem para as/os irmã/os, sobrinhas/os ou primas/os maternas/os, porque as filhas e os filhos de um homem não pertenciam ao gene dele, mas ao da mãe.

Quando foi possível acumular riquezas, a transmissão do espólio adquiriu um novo sentido, pois agora se tratava de um homem privar os seus descendentes de bens valiosos e entregá-los a outro gene.

Para solucionar isso, os homens alteraram, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Para tanto,

Bastou decidir simplesmente que, de futuro, os descendentes de um membro masculino permaneceriam na gens, mas os descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando à gens de seu pai. Assim, foram abolidos a filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos pela filiação masculina e o direito hereditário paterno11 Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1984.(68).

O costume de dar às filhas o nome da família paterna seria, para Engels11 Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1984., outra forma de romper a tradição sem sair dela, disso resultando uma profunda mudança na economia e na cultura.

As regras sobre a transmissão da herança, porém, não tiveram implicações meramente econômicas. Simone de Beauvoir22 Beauvoir S. O Segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2009. propõe que o sentido ontológico da propriedade é que o sujeito integra os bens à sua identidade, tornando-a um valor que subsiste para além da morte.

Assim, se é necessário que esse bem continue nas mãos de indivíduos em quem esse sujeito se reconheça, se é desse modo que ele se perpetua e condiciona sua existência para além da materialidade do mundo, a substituição da filiação uterina pela agnação criou, em favor dos homens, uma forma de controlar a procriação: as mulheres engravidavam, mas dependia dos homens reconhecer a filiação e transferir a herança.

A transmissão da herança como etapa da procriação reduziu as mulheres à condição de objeto:

Pelo casamento, a mulher não é mais emprestada por um clã a outro; ela é radicalmente tirada do grupo em que nasceu e anexada ao do esposo; ele compra-a como compra uma res ou um escravo e impõe-lhe as divindades domésticas; e os filhos que ela engendra pertencem à família do esposo. Se ela fosse herdeira, transmitiria as riquezas da família paterna à do marido: excluem-na cuidadosamente da sucessão. Mas, inversamente, pelo fato de nada possuir, a mulher não é elevada à dignidade de pessoa; ela própria faz parte do patrimônio do homem, primeiramente do pai e em seguida do marido22 Beauvoir S. O Segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2009.(123).

Desse objeto adquirido por meio do casamento, era exigida, sobretudo, a castidade, pois as relações sexuais extraconjugais colocavam em risco a transmissão da herança. Daí o imperativo de controlar a sexualidade feminina e o que Elizabeth Badinter33 Badinter E. Um é o outro. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. 127 p.(127) define como uma obsessão do adultério que “torna a esposa suspeita: uma adversária” que levava os homens a viverem o estado conjugal como “um combate que requeria uma vigilância absoluta”. O marido temia não conseguir, sozinho, apagar os ardores da esposa e “tinha medo dos golpes baixos, da traição”.

Não é por outra razão que o sistema de normas, regras, leis e valores sobre permissões e proibições de práticas sexuais foi definido explicitamente pela moral masculina e que o modelo ideal de mulher aliava um corpo que suportasse o ato sexual com a passividade dos objetos a um espírito cordato e abnegado, abjurador da carne e do prazer.

Não é preciso dizer que as trabalhadoras do sexo compreenderam que, “entre as que se vendem pela prostituição e as que se vendem pelo casamento, a única diferença consiste no preço e na duração do contrato”22 Beauvoir S. O Segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2009.(737) e que seu traço distintivo fundamental é que tomavam decisões sobre o próprio corpo e sexualidade sem a tutela masculina.

Incapaz de subjugá-las e descartá-las, restou empreender uma propaganda sórdida contra as trabalhadoras do sexo, campanha essa, para Rachel Soihet44 Soihet R. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1989., dividida entre os que as considerava como escória disseminadora de doenças e os que viam alguma relevância na profissão, afinal, todo serviço voltado a satisfazer um homem tem sua importância.

É emergente, portanto, a necessidade de que o debate seja colocado em seus devidos termos. O reconhecimento e a regulamentação da prostituição devem ter como enfoque as trabalhadoras do sexo, seus direitos trabalhistas, previdenciários, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”55 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.(137).

O presente ensaio utiliza a revisão bibliográfica para tratar dessa questão e está estruturado em três partes. Na primeira, apresenta-se a formação do Movimento das Prostitutas no Brasil e suas reivindicações. Na segunda, busca-se definir o que é trabalho sexual. Na terceira, discutem-se os atuais debates sobre o reconhecimento do trabalho sexual como profissão.

Movimento das prostitutas

Gabriela Leite66 Leite G. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. E-book Kindle. conta que, em 1984, vivia e trabalhava na Vila Mimosa, no Rio de Janeiro, e foi convidada para participar de um encontro da Pastoral da Mulher Marginalizada em Salvador, ‘um eufemismo para prostituta’, já que a pastoral defendia “o fim da prostituição e acreditava que a prostituta é uma vítima da sociedade machista”66 Leite G. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. E-book Kindle.(141).

Leite66 Leite G. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. E-book Kindle. fala que foi muito maltratada no encontro, pois não assumia o discurso de vitimização das prostitutas conforme desejado pela pastoral. Assim, ela e Maria de Lourdes Araújo Barreto, trabalhadora do sexo no estado do Pará, começaram a pensar em um movimento autônomo de prostitutas, sem a guarda da Igreja.

Foi a partir dessa ideia que ambas realizaram o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, em julho de 1987, no Rio de Janeiro, coordenado por Gabriela Leite, com o objetivo principal de construir uma rede de contatos e intercâmbios entre as prostitutas que permitisse a elas proporem ações conjuntas e reivindicações dos direitos civis77 Moraes AF. Mulheres da vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis: Vozes; 1996..

Leite narra que o evento contou com a presença da imprensa nacional e internacional e com a participação de mais de duas mil pessoas, entre elas, Rose Marie Muraro, Lúcia Arruda, Lucélia Santos, Elza Soares e Martinho da Villa. Segundo ela

A sociedade nos viu organizadas em nome da nossa profissão. Nós nos vimos assim pela primeira vez [...] Foi um evento maduro e bem feito. Eu acho que aquele era o momento certo. Estava no inconsciente coletivo, a sociedade precisava dar um grande passo em relação à puta. Nós fomos abrindo caminho, saímos do escuro para praticamente um estrelato66 Leite G. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. E-book Kindle.(149).

Aparecida Fonseca Moraes77 Moraes AF. Mulheres da vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis: Vozes; 1996. também se refere ao evento como uma oportunidade para que as mulheres se afirmassem como trabalhadoras que exerciam uma profissão legítima, possibilitando que se formasse um consenso sobre a necessidade de lutarem pelo reconhecimento da profissão.

Durante o encontro, foi criada a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), com o objetivo de auxiliar na organização de associações locais, promover e apoiar eventos e encontros da categoria e formular políticas públicas em parceria com órgãos governamentais, além de lutar pelo reconhecimento legal da profissão77 Moraes AF. Mulheres da vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis: Vozes; 1996..

Em sua carta de princípios, a Rede afirmou que o trabalho sexual se insere no campo dos direitos sexuais e defendeu a regulamentação do trabalho da prostituta, além de repudiar a discriminação, o preconceito e o estigma dirigidos a elas88 Observatório da Prostituição. O que é prostituição. Rio de Janeiro: LeMetro/IFCS-UFRJ; [data desconhecida]. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/o--que-e-prostituicao-3/.
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Por isso, condenou a vitimização das prostitutas, o controle sanitário, a criação e a existência de zonas delimitadas e confinadas, a criminalização dos clientes, a associação da prostituição à criminalidade, o tráfico de seres humanos e o abolicionismo88 Observatório da Prostituição. O que é prostituição. Rio de Janeiro: LeMetro/IFCS-UFRJ; [data desconhecida]. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/o--que-e-prostituicao-3/.
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A partir do Primeiro Encontro, foram fundadas associações em vários estados do Brasil, com destaque para o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac), sob a coordenação de Lourdes Barreto.

A atuação coordenada das prostitutas possibilitou que, em 22 de outubro de 2002, o trabalho sexual fosse incluído na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego, na categoria profissionais do sexo (Código 5198). Na lista de participantes da descrição da ocupação, constam os nomes de Gabriela Leite e Lourdes Barreto, como especialistas, e de associações de prostitutas da Bahia, do Rio de Janeiro, do Pará e do Rio Grande do Sul. Sobre a profissão, o CBO diz o seguinte

Descrição sumária

Buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidades da profissão.

Formação e experiência

Para o exercício profissional requer-se que os trabalhadores participem de oficinas sobre sexo seguro, o acesso à profissão é restrito aos maiores de dezoito anos; a escolaridade média está na faixa de quarta a sétima séries do ensino fundamental.

Condições gerais de exercício

Trabalham por conta própria, em locais diversos e horários irregulares. No exercício de algumas das atividades podem estar expostos à intempéries e a discriminação social. Há ainda riscos de contágios de dst, e maus-tratos, violência de rua e morte99 Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações. Brasília, DF; 2002. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf.
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Embora a inclusão dos profissionais do sexo na CBO seja uma vitória, o trabalho sexual não foi regulamentado e, portanto, não assegura nenhum direito trabalhista, previdenciário e outros que visem à melhoria da condição social das trabalhadoras do sexo.

O que é trabalho sexual

O importante não é como a sociedade concebe a prostituição, mas como as prostitutas, no pleno gozo de sua autonomia individual, entendem-se e afirmam-se como sujeitos históricos.

Para as profissionais do sexo, a prostituição não é a venda do corpo, ou aluguel, se assim se preferir, mas uma prestação de um serviço que “envolve práticas, relações, desejos e valores constitutivos de um amplo universo marcado por trocas econômico-sexuais”88 Observatório da Prostituição. O que é prostituição. Rio de Janeiro: LeMetro/IFCS-UFRJ; [data desconhecida]. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/o--que-e-prostituicao-3/.
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que são constituídos em processos em que há

[...] uma série de engajamentos entre diferentes atores, em situações e contextos sociais, culturais e econômicos diversos, e não a partir de critérios escamoteadores de fundamentações morais que, por princípio, excluem desse campo o que nele pode haver de positivo, de escolha, de afeto, de lúdico, de político88 Observatório da Prostituição. O que é prostituição. Rio de Janeiro: LeMetro/IFCS-UFRJ; [data desconhecida]. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://observatoriodaprostituicao.wordpress.com/o--que-e-prostituicao-3/.
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Não por acaso, um dos pontos centrais da carta de princípios da RBP é a afirmação de que a prostituta presta serviços sexuais e que a profissão somente pode ser exercida por pessoas com mais de 18 anos e civilmente capazes, pois não existe ‘prostituição infantil’, e sim exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.

Essa compreensão, aliás, está presente na fala de Lourdes Barreto à Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico de Pessoas no Brasil ocorrida em 2013 na Câmara dos Deputados

Eu sou uma mulher que, nos meus 71 anos, tenho uma disposição imensa de dizer para a sociedade que esse projeto é justo, é real. Com esse projeto, você vai ter como combater a exploração sexual de crianças e adolescentes. Você não vai poder ter uma criança em situação de exploração, porque criança não é prostituta, está numa situação de exploração1010 Brasil. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico de Pessoas no Brasil. Audiência Pública realizada em 13 ago. 2013. Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2013. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/54a-legislatura/cpi-trafico-de-pessoas-no-brasil/documentos/notas-taquigraficas/nt130813-tpb.
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A compreensão de que a prostituição é uma profissão, assim, é uma prestimosa contribuição para a compreensão não apenas dos direitos sexuais, da autonomia e cidadania das mulheres, mas para a preservação do melhor interesse da criança e do adolescente e para o respeito à condição de personalidade em formação que goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata o Estatuto da Criança e do Adolescente1111 Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Jul 1990. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
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, inclusive oportunidades e facilidades para que possam ter um desenvolvimento (físico, mental, moral, espiritual e social), em condições de liberdade e de dignidade.

Além disso, ao expressar a contradição do termo ‘prostituição infantil’, evidencia não apenas a condição da criança ou adolescente como sujeitos de direitos, mas também que, para além da vulnerabilidade decorrente da situação socioeconômica, a exploração sexual criminosa se sustenta pela naturalização do machismo, da violência e da discriminação a que todas as mulheres estão submetidas.

Atuais debates sobre a regulamentação do trabalho sexual no Poder Legislativo brasileiro

De modo geral, há três possibilidades de tratamento político do trabalho sexual: o proibicionismo, o abolicionismo e o regulamentarismo.

O proibicionismo considera a prostituição uma atividade criminosa e pune todos os envolvidos, inclusive as trabalhadoras sexuais.

O proibicionismo trata a prostituição como uma chaga social ao tentar repreender todas as pessoas ligadas ao meretrício, não diferenciando as que apenas exercem daqueles que a exploram. Sendo assim, para esse sistema, até os clientes e as prostitutas devem ser punidos. Felizmente, essa é uma corrente minoritária, até pelo seu grau de abstração, dada a dificuldade de se determinar quem seriam as profissionais do sexo1212 Pinheiro MLP, Jucá RLC. A regulamentação da prostituição e a efetividade dos direitos fundamentais das profissionais do sexo. Rev. Opinião Jurídica. 2009 [acesso em 2022 mar 5]; 7(1):249-264. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/1861.
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(252).

A Tailândia e o Irã são países proibicionistas, o primeiro prevê a aplicação de multa às trabalhadoras sexuais e aos clientes. O Irã presume a aplicação de pena de 75 chicotadas aos clientes, além da expulsão de suas comunidades por três meses. Às mulheres, além da mesma quantidade de chicotadas, é também aplicada a pena de prisão1313 Afonso MLA, Scopinho RA. Prostituição: uma história de invisibilidade, criminalização e exclusão. In: Anais do 10º Seminário Internacional Fazendo Gênero; 2013; Florianópolis. Florianópolis: Instituto de Estudos de Gênero; 2013. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1372969868_ARQUIVO_versaofinalparafazendogenero.pdf.
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O abolicionismo, ao contrário, considera a prostituta como vítima, por isso criminaliza apenas as pessoas que contribuem de alguma forma para o exercício da profissão. Esse é o caso do Brasil, que não criminaliza o trabalho sexual ou o/a cliente, mas aqueles e aquelas que colaboram de alguma forma para a atividade1414 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 31 Dez 1940. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
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A opção pelo abolicionismo foi alvo de intensos debates, em que, de um lado, os proibicionistas – influenciados por obras como ‘A mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal’, de Cesare Lombroso1515 Lombroso C. A Mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal. Trad. Antonio Fontoura. ‎ New Jersey: Independently Published; 2019. – situavam a prostituição no campo da sexualidade pervertida e da criminalidade e reclamavam punições tanto para a prostituta quanto para aqueles que, de algum modo, colaboravam para a atividade e, de outro, os abolicionistas, que consideravam, com Tomás de Aquino1616 Aquino T. Suma teológica II. Trad. Alexandre Correia. Campinas: Ecclesiae; 2016., que a prostituição é um mal necessário e que as prostitutas eram vítimas.

Sobre esse último ponto, Soraya Simões1717 Simões SS. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói: EdUFF; 2010.(43) defende que a ideia da prostituta como vítima se baseava nas teses do médico francês positivista Parent-Duchâtelet, segundo o qual, a “mulher se deixa levar mais facilmente pelas paixões e tem como principal característica a passividade, tornando-se presa fácil nas mãos daqueles que queiram explorá-la”.

Os abolicionistas descreviam as relações sexuais que ocorriam nos cabarés como práticas sórdidas e abomináveis e explicavam que isso se dava por imposição, e para o lucro de cafetinas e rufiões.

Na disputa entre proibicionistas e abolicionistas, no campo do Direito Penal brasileiro, venceram os segundos, primeiro com a aprovação da Lei Mello Franco1818 Brasil. Lei nº 2.992, de 25 de setembro de 1915. Modifica os arts. 266, 277 e 278 do Código Penal. Diário Oficial da União. 28 Set 1915. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-2992-25-setembro-1915-774536-publicacaooriginal-138024-pl.html.
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, que incluiu no Código Penal da República1919 Brasil. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Diário Oficial da União. 11 Out 1890. [acesso em 2022 mar 5]. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049.
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o crime de manter ou explorar casas de tolerância ou destinadas a encontros clandestinos para fins sexuais, e, na sequência, com a inclusão, no Código Penal subsequente, dos crimes de mediação para servir a lascívia de outrem, favorecimento à prostituição, casa de prostituição e rufianismo.

Entretanto, a concepção proibicionista não foi varrida do mundo jurídico, pois, no campo do direito administrativo, reverteu-se em uma série de regulamentações associadas à política higienista da época.

Na perspectiva higienista, a prostituta era considerada uma ameaça à construção da família higienizada. Ela era vista como responsável pela degradação física e moral dos homens e, por extensão, pela destruição das crianças e da família. Além disso, pervertiam, com o exemplo desregrado de suas vidas, a moral da mulher-mãe com os homens, o advento das doenças venéreas (no caso, a sífilis, para a qual não havia medicação curativa considerada eficaz) trouxe a necessidade de implementação de uma intervenção preventiva em relação à prostituição. Esse fato fomentou a discussão entre neo-regulamentaristas e abolicionistas que norteou a política sanitária de combate à prostituição implementada na época no Brasil. Uma das consequências dessa política foi a regulamentação confinatória ou isolacionista, que tolerava o meretrício apenas no âmbito fechado do bordel, aliada à repressão à prostituição de rua. Embora se soubesse da existência de outras modalidades de prostituição, principalmente as mais refinadas, considerava-se que essas envolviam um número pequeno de mulheres e, portanto, não necessitavam de intervenção1212 Pinheiro MLP, Jucá RLC. A regulamentação da prostituição e a efetividade dos direitos fundamentais das profissionais do sexo. Rev. Opinião Jurídica. 2009 [acesso em 2022 mar 5]; 7(1):249-264. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/1861.
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(251).

Segundo Margareth Rago2020 Rago M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil: 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1985., essas medidas sanitárias redundaram na obrigatoriedade de que as casas de ‘tolerância’ e os bordéis fossem registrados na polícia, vigiados pela administração e pelas autoridades sanitárias, tornando-se o mais próximo possível de um ambiente doméstico burguês. Além disso, os regulamentos sanitários não incidiam sobre as mulheres que exerciam a prostituição em ambientes refinados, criando, assim, prostitutas de primeira, segunda e terceira ordens, ratificando as teses positivistas sobre a mulher normal e a prostituta.

Atualmente, pode-se dizer que os movimentos de prostitutas brasileiras – a RBP, a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (Cuts) e a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (Anps) – defendem um regulamentarismo que reconheça os seus direitos humanos. Assim, defendem a descriminalização das atividades relacionadas com a prostituição e a subsequente regulamentação, a fim de que as trabalhadoras e os trabalhadores do sexo possam gozar dos direitos conferidos a todas(os), trabalhadoras e trabalhadores, como a segurança no trabalho e na previdência social.

Até o momento, foram apresentados dois projetos de lei com o objetivo de atender essa pauta. Em 19 de fevereiro de 2003, o então deputado federal Fernando Gabeira apresentou o Projeto de Lei (PL) nº 98/20032121 Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 98, de 19 de fevereiro de 2003. Dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal. Autor Fernando Gabeira (PT/RJ). Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2003. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=104691.
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, que dispunha sobre a exigibilidade do pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual por quem efetivamente os tivesse prestado ou que tivesse permanecido disponível para os prestar e revogava os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal. A reação contrária ao projeto veio na forma do PL nº 2.169/20032222 Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2.169, de 2 de outubro de 2003. Acrescenta art. ao Decre-to-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - para dispor sobre o crime de contratação de serviços sexuais, e dá outras providências. Autor Elimar Máximo Damasceno (PRONA/SP). Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2003. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=136127.
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, de autoria do deputado Elimar Máximo Damasceno, propondo a criminalização do/a cliente e de quem prestar serviço de natureza sexual remunerado. Ambos os projetos foram arquivados ao fim da legislatura, pois não haviam sido submetidos à deliberação da Câmara e não continham parecer favorável de todas as Comissões.

Em 12 de julho 2012, o deputado federal Jean Wyllys apresentou o PL nº 4.2112323 Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.211, de 12 de julho de 2012. Regulamenta a atividade dos profissionais do sexo. Autor Jean Wyllys (PSOL/RJ). Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2012. [acesso em 2022 mar 6]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899.
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, batizado como PL Gabriela Leite, em homenagem à prostituta e ativista falecida em 2013. O projeto Gabriela Leite define que profissional do sexo é toda pessoa maior de 18 anos de idade e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração. Além disso, torna juridicamente exigível o pagamento pela prestação desses serviços e veda a prática de exploração sexual, que define como apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro, o não pagamento pelo serviço sexual contratado e forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência.

Quanto à modalidade do trabalho, o PL prevê que a/o profissional do sexo pode prestar serviços autônoma ou coletivamente, em cooperativas. Também permite a casa de prostituição, desde que nela não se exerça qualquer tipo de exploração sexual.

Quanto aos dispositivos criminalizadores, o PL altera os arts. 228, 229, 230 e 231 do Código Penal em vigor, para criminalizar a exploração sexual, além de criar o art. 231-A com o mesmo objetivo. Além disso, prevê que a aposentadoria dos/as trabalhadores sexuais se dará aos 25 anos de trabalhos prestados.

Em 13 de junho de 2013, foi apresentado parecer do relator da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, deputado Pastor Eurico (PSB-PE), pela rejeição, do projeto. Entretanto, o arquivamento ocorreu ao fim da legislatura, em 31 de janeiro 2019, sem que tenham sido realizadas outras análises.

Atualmente, não há PL dispondo sobre a regulamentação da profissão em trâmite no Senado ou na Câmara dos Deputados.

Conclusões

A inexistência de regulamentação da prostituição está relacionada com o estigma que marca as trabalhadoras do sexo. Essa estigmatização, longe de ser arbitrária, escora-se em valores que interditam determinadas práticas sociais, econômicas e afetivas para impor um modelo social em que as mulheres são subalternizadas e hierarquizadas.

Esse propósito é percebido tanto na crença de que as trabalhadoras do sexo não têm plena capacidade para decidir sobre o exercício da profissão quanto nos discursos que reclamam uma mudança individual de paradigmas e planos de vida, desconsiderando a subjetividade das envolvidas.

Por fim, a recusa em descriminalizar as atividades-meio relacionadas com a prostituição para conferir um mínimo de proteção jurídica à profissão é uma forma de impedir que uma pessoa disponha do próprio corpo como bem entender.

As referências individuais sobre o que é dignidade, portanto, são as únicas que podem operar como critério de valoração de uma atividade que diz respeito unicamente aos envolvidos. Nesse ponto de vista, pessoas adultas não devem ser punidas, por meios legais ou morais, diretos ou indiretos, por adotarem comportamentos que somente interessam a elas próprias.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1984.
  • 2
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2023
  • Aceito
    29 Nov 2023
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