Assistência à saúde bucal na população LGBTQIA+

Michele de Oliveira Soares Vania Reis Girianelli Sobre os autores

RESUMO

Objetivou-se analisar a assistência à saúde bucal da população LGBTQIA+ sob a perspectiva do usuário, considerando a ausência de informação sobre a saúde bucal nessa população e as recentes mudanças na Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), que fragilizaram avanços nessa área e possibilitaram retrocessos. Realizou-se estudo transversal descritivo, utilizando questionário semiestruturado autoaplicado on-line. Responderam ao questionário 359 pessoas, sendo elegíveis 329 (91,9%). Dessas, 38% eram gays, 23,4%, lésbicas, e 13,4%, transgêneros(as). A maioria tinha entre 18 e 39 anos (73,3%) e era negro(a) (51,4%). A prevalência de assistência foi alta nos cinco anos anteriores à pesquisa (92,9%), bem como nos últimos seis meses (44,7%); sendo mais baixa na população transgênera (88,7% e 18,2% respectivamente). Apenas 18,8% dessa população foi atendida na rede pública, sendo maior entre transgêneros(as) (45,5%) e negros(as) (25,4%). A autopercepção da saúde bucal para a maioria foi boa ou muito boa (53,2%); mas ruim ou muito ruim (45,5%) para os(as) transgêneros(as). A maioria informou preferir ser atendida por profissional LGBTQIA+ (69%). A população transgênera e negra foi a mais vulnerável à assistência, sinalizando que raça, gênero e sexualidade influenciam diretamente no acesso ao cuidado em saúde, portanto, o enfoque interseccional é imprescindível para organização do serviço.

PALAVRAS-CHAVES
Direitos humanos; Minorias sexuais e de gênero; Saúde bucal; Enquadramento interseccional

Introdução

Historicamente, o cuidado em saúde, bem como o acesso à medicina praticada no período colonial no Brasil, era exclusividade da burguesia e do clero. Pessoas marginalizadas e escravizadas, diante da necessidade de sobrevivência e de resistência às condições desumanas e precárias a que eram submetidas, recorriam ao cuidado em saúde por meio das mãos de curandeiras, parteiras, sangradores e barbeiros11 Pimenta TS. Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cad. Cedes. 2003; 23-59..

Os barbeiros faziam barba, mas muitos também sangravam, aplicavam ventosas e realizavam pequenas cirurgias, entre elas, extrações dentárias. Essa era uma atividade de baixo prestígio social, geralmente praticada por pessoas marginalizadas, por exemplo, negros escravizados ou alforriados22 Pereira W. Uma História da Odontologia no Brasil. Perspec. 2012; (47):147-173..

No século XX, a odontologia passou por diversos avanços, inicialmente um modelo de saúde higienista, com práticas odontológicas iatrogênicas, mutiladoras e centradas na doença. Isso gerou discussão sobre a necessidade de alinhar um novo modelo de prática odontológica às propostas do movimento da Reforma Sanitária33 Foratori Junior GA. Brasil Sorridente – reconhecendo a história para reforçar a constante luta pela equidade em Odontologia. Res., Soc. Dev. 2021; 10(10):e75101018745..

O processo de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios doutrinários e organizacionais – como a universalidade, equidade, integralidade, descentralização, regionalização, hierarquização e participação social44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes da política nacional de saúde bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. – demandaram uma reorganização e reestruturação das ações e serviços de saúde bucal55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Saúde Bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2008. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Cadernos de Atenção Básica; 17).. Tal processo possibilitou o rompimento com práticas obsoletas e técnicas pouco resolutivas que não correspondiam às necessidades da sociedade.

Em 2004, o Ministério da Saúde publicou as diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), Brasil Sorridente, com objetivo de organizar a atenção à saúde bucal no SUS44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes da política nacional de saúde bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004.. Essa política propiciou um novo processo de trabalho mediante a produção do cuidado em todos os níveis da atenção.

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais foi instituída, em 2011, com objetivo de promover a saúde integral dessa população66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União. 2 Dez 2011.,77 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília DF: Ministério da Saúde, 2013.. Também busca eliminar a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuir para a redução das desigualdades e a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo embora o acesso ao serviço de saúde pública da população LGBTQIA+ esteja assegurado na Constituição Federal88 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. e reiterado com o princípio da universalidade do SUS99 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990.. A sigla LGBTQIA+ é a mais utilizada atualmente, e é uma abreviatura de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Queer, Intersexuais ou Intersexos, Assexuais e outras mais possibilidades de existências. Assim como as pessoas, a terminologia LGBT está em evolução visando à inclusão, mas siglas diferentes podem ser utilizadas de acordo com o contexto ou o posicionamento de quem as usa.

Vive-se em uma sociedade com o padrão cis-heteronormativo e binário – feminino e masculino –, em que homens e mulheres são definidos de acordo com os órgãos sexuais. Essa construção, no entanto, não é biológica, ela é social1010 Jesus JG. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília, DF: Autor, 2012. 24 p.. Nesse sentido, é fundamental utilizar conceitos e termos inclusivos: “Escrever ou falar conforme um vocabulário reconhecido pelas pessoas representadas é essencial para valorizar a cidadania”1010 Jesus JG. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília, DF: Autor, 2012. 24 p., 1111 Conselho Nacional de Saúde. I Conferência Nacional de Saúde Bucal: Relatório Final. Brasília, DF: 10 out 1986., 1212 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Atenção Primária e as Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: Conass, 2015., 1313 Brasil. Ministério da Saúde, Secretária de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Saúde da Família, Coordenação Geral de Saúde Bucal. SB Brasil 2020 – Pesquisa Nacional de Saúde Bucal – Projeto Técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2021..

A importância do acesso e da garantia da saúde bucal brasileira vem sendo pensada e construída há mais de 30 anos, desde a primeira Conferência Nacional de Saúde Bucal (CNSB) em 19861111 Conselho Nacional de Saúde. I Conferência Nacional de Saúde Bucal: Relatório Final. Brasília, DF: 10 out 1986., após a Conferência Nacional de Saúde.

Nesse contexto, a PNSB tem enfoque no cuidado universal, mas de forma generalizada, com a organização em linhas de cuidado: ciclos de vida e grupo etário44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes da política nacional de saúde bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004.. Ademais, não fica explícita nas publicações que constroem a Rede de Atenção à Saúde Bucal (Rasb) a transversalidade – princípio da Política Nacional de Humanização1212 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Atenção Primária e as Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: Conass, 2015. – com as políticas e programas para populações específicas.

A Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (2021/2022) visa avaliar o perfil epidemiológico em saúde bucal da população brasileira, mas impossibilita identificar pessoas LGBTQIA+, pois não contempla a identidade de gênero e a orientação sexual1313 Brasil. Ministério da Saúde, Secretária de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Saúde da Família, Coordenação Geral de Saúde Bucal. SB Brasil 2020 – Pesquisa Nacional de Saúde Bucal – Projeto Técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2021..

Mudanças no cenário político nacional, no entanto, comprometeram conquistas de anos de luta. Perdas progressivas com o desmonte do SUS, o neoliberalismo e o fascismo fortalecidos por intermédio de fake news e outras artimanhas colocaram em risco a democracia e os direitos alcançados. O desmonte do SUS por meio do desfinanciamento inviabiliza a implementação de políticas públicas, em particular, para as populações mais vulneráveis como a população LGBTQIA+1414 Stevanim LF. Previne Brasil: mudança sem debate. Radis. 2019; (207):19-22..

O estudo buscou identificar as dificuldades sinalizadas por pessoas LGBTQIA+ quanto ao acesso ao serviço público de saúde bucal, assim como dar visibilidade às singularidades desses usuários a fim de qualificar a Rasb. Dessa forma, o objetivo do estudo foi analisar a assistência à saúde bucal da população LGBTQIA+ sob a perspectiva do usuário. Este estudo foi inspirado pela ausência de informação sobre a saúde bucal da população LGBTQIA+ e pelo desmonte da PNSB.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa epidemiológica observacional do tipo transversal descritivo para conhecer a utilização e a dificuldade de assistência à saúde bucal da população LGBTQIA+. No estudo transversal, a unidade de análise é o indivíduo, oriundo de uma população e de um período bem definidos, visando dar um recorte no fluxo histórico do evento de interesse, de forma a descrever suas características. A coleta de dados é realizada em um único momento, para todas as variáveis de interesse, previamente estabelecidas1515 Almeida Filho N, Barreto ML, organizadores. Epidemiologia e Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2014..

Foram elegíveis para o estudo: as pessoas LGBTQIA+ que responderam ao questionário semiestruturado autoaplicado on-line, utilizando o Google Forms. Os(as) participantes foram acessados(as) por grupo de WhatsApp, por meio de carta-convite, utilizando a técnica de bola de neve, sendo os contatos iniciais os(as) alunos(as) do curso de mestrado da primeira autora. Além disso, foi divulgado o link para acesso à pesquisa nos movimentos sociais.

O questionário abordou as caraterísticas socioeconômicas e demográficas: orientação sexual (lésbica, gay, bissexual, assexual, heterossexual e outros), identidade de gênero (cisgênero e transgênero), raça/cor (branca, negra, amarela ou indígena), escolaridade (até ensino fundamental completo, ensino médio incompleto ou completo, ensino superior incompleto ou mais elevado), ocupação (desempregado, servidor público ou em ocupação de nível médio, técnico e superior), idade (18 a 39 anos, 40 anos e mais), município, estado e região de residência dos(as) participantes do estudo; bem como discriminação, autoavaliação (boa ou muito boa, regular, ruim ou muito ruim) e utilização de assistência à saúde bucal nos últimos cinco anos, e as dificuldades vivenciadas.

Calcularam-se a prevalência de utilização da assistência à saúde bucal na população estudada e o respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%), bem como o percentual de cada categoria das demais variáveis. O teste qui-quadrado de Pearson foi calculado para avaliar a existência de diferença estatisticamente significativa (p ≤ 0,05) entre os estratos, com correção de Yates quando necessário. Os dados foram exportados para o programa Excel® e analisados no programa estatístico R versão 3.4.3.

A pesquisa (CAAE: 54050321.8.0000.5240) foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, número 5.196.679, emitida em 10 de janeiro de 2022.

Resultados

Acessaram o questionário 359 pessoas, porém, 1 não aceitou participar, e 29 não foram elegíveis. Dos 329 (91,9%) elegíveis para o estudo, 125 (38%) eram gays; 77 (23,4%), lésbicas; e 44 (13,4%), transgêneros(as) (tabela 1). Entre os(as) transgêneros(as), a maioria era heterossexual (36,4%) ou bissexual (34,1%). Homem transexual correspondeu a 52,3% dos participantes transgêneros.

Tabela 1
Características da população participante do estudo segundo identidade de gênero e orientação sexual. Brasil, 2022

Os(as) participantes tinham predominantemente entre 18 e 39 anos (73,3%); eram negros(as) (51,4%); com ensino superior incompleto ou mais elevado (69,6%); residentes da região Sudeste (79,6%), principalmente do estado do Rio de Janeiro (62,9%); e servidores(as) públicos(as) ou em ocupação de nível médio, técnico e superior (43,8%) (tabela 2). A população transgênera foi proporcionalmente maior do que a cisgênera quanto a raça/cor negra (65,9%; p = 0,028); ensino médio ou inferior (68,2%; p < 0,001); residente na região Norte (25%; p < 0,001), particularmente do estado do Amazonas (20,5%); e desempregado(a) (15,9%; p < 0,001). Já entre as lésbicas, havia proporcionalmente mais residentes da região Nordeste (19,5%; p < 0,001), especialmente do estado da Bahia (18,2%), e as demais populações eram mais jovens (77,4%; p = 0,004).

Tabela 2
Características sociodemográficas da população participante do estudo segundo identidade de gênero e orientação sexual. Brasil, 2022

A prevalência de assistência à saúde bucal nos cinco anos anteriores à pesquisa foi alta (92,9%; IC95%: 89,7% – 95,3%), sendo proporcionalmente menor para a população trans-gênera (88,7%; IC95%: 76% – 95,1%) do que a cisgênera (93,7%; IC95%: 90,2% – 96%). A maior parte dos(as) participantes tiveram assistência à saúde bucal nos últimos seis meses (44,7%; IC95%: 39,4% – 50,1%) (tabela 3). Não houve diferença estatisticamente significativa na prevalência de utilização entre lésbicas e as demais orientações sexuais (p = 0,184) nem quanto à raça/cor da pele (p = 0,993). Com relação à população transgênera, entretanto, a última vez que foi ao dentista ocorreu majoritariamente há 2 anos ou mais (40,9%; p < 0,001).

Tabela 3
Prevalência de utilização de assistência à saúde bucal dos participantes do estudo segundo identidade de gênero, orientação sexual e raça/ cor da pele. Brasil, 2022

A assistência à saúde bucal ocorreu principalmente na rede particular (50,5%), mas entre transgêneros(as), a assistência foi proporcionalmente maior no setor público do que entre cisgêneros(as) (45,5%; p < 0,001) (tabela 4). A maioria não informou o motivo da consulta (27,1%), contudo, o principal motivo foi a assistência preventiva, como revisão, rotina, prevenção ou limpeza (26,6%). A minoria informou ter tido dificuldade de assistência (24,9%), mas foi proporcionalmente maior entre a população transgênera (54,5%; p < 0,001), que também sofreu mais discriminação (13,6%; p < 0,001), especialmente por LGBTfobia. A dificuldade de acesso à assistência foi particularmente devido à morosidade ou à impossibilidade de agendamento (40,2%) e financeira (22%).

Tabela 4
Características da assistência à saúde bucal dos participantes do estudo segundo identidade de gênero, orientação sexual e raça/cor da pele. Brasil, 2022

A perda dentária também foi proporcionalmente maior entre os(as) transgêneros(as) (61,4%; p = 0,040). A principal causa informada pelos(as) participantes foi cárie, doença periodontal ou abcesso (29,8%), seguida de má higiene oral, falta de cuidado ou interrupção do tratamento (19,9%). Entre os(as) que tiveram perda dentária (151), 72,8% foram menos de cinco elementos dentários (72,8%).

No que tange à autoavaliação da saúde bucal (tabela 5), a população cisgênera informou ser boa ou muito boa (57,5%), enquanto a população transgênera, ruim ou muito ruim (45,5%; p < 0,001). A maioria dos(as) participantes informou preferir ser atendidos(as) por profissional LGBTQIA+ (69%).

Tabela 5
Autoavaliação da saúde bucal dos participantes do estudo segundo identidade de gênero, orientação sexual e raça/cor da pele. Brasil, 2022

Discussão

A prevalência de utilização da assistência à saúde bucal da população LGBTQIA+, entre os(as) participantes do estudo, foi alta nos últimos cinco anos (92,9%), em particular, nos seis meses anteriores à pesquisa (44,7%). A prevalência entre brancos(as) e negros(as) foi similar, mas a população transgênera, que representou apenas 13,4% dos(as) participantes, apresentou uma prevalência mais baixa (88,7%), principalmente nos últimos seis meses (18,2%). Os(as) participantes transgêneros(as) também apresentaram proporcionalmente menor escolaridade, residiam na região Norte e estavam desempregados(as) em relação aos(às) demais (p < 0,001). No inquérito nacional realizado em 2013, mais de 40% dos(as) entrevistados(as) relataram ter consultado dentista no último ano1616 Souza JL, Henriques A, Silva ZP, et al. Posição socioe-conômica e autoavaliação da saúde bucal no Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(6):e00099518.,1717 Bastos TF, Medina LPB, Sousa NFDS, et al. Income inequalities in oral health and access to dental services in the Brazilian population: National Health Survey. 2013. Rev. Bras. Epidemiol. 2019; 22(supl2):E190015. SUPL.2.,1818 Bordin D, Fadel CB, Santos CB, et al. Caracterização da condição percebida de saúde bucal na população adulta brasileira. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3647-3656.. A consulta regular ao dentista foi informada por 63,7% com maior variação em relação à escolaridade, sendo 36,6% entre os(as) sem instrução e 85,5% com mais de 11 anos de estudo; mas ser negro(a), residir na região Norte ou Nordeste e pertencer a menor classe social também apresentaram maior chance de nunca ter ido ao dentista ou realizar acompanhamento irregular1919 Galvão MHR, Souza ACO, Morais HGF, et al. Desigualdades no perfil de utilização de serviços odontológicos no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(6):2437-2448..

Apenas 18,8% dos(as) participantes do estudo foram atendidos(as) na rede pública, mas foi proporcionalmente maior entre os(as) transgêneros(as) (45,5%). Inquérito realizado em 2013, entretanto, identificou que 11% dos(as) entrevistados(as) haviam sido atendidos(as) no SUS1818 Bordin D, Fadel CB, Santos CB, et al. Caracterização da condição percebida de saúde bucal na população adulta brasileira. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3647-3656..

A dificuldade de assistência também tem sido maior entre os(as) transgênero(as) (54,5%) do que os(as) demais (20,4%); bem como ter sofrido discriminação – 13,6% e 1,8% respectivamente. As pessoas transgêneras têm mais dificuldade no acesso aos serviços, por isso evitam procurar cuidados em saúde por medo de discriminação2020 Calazans C, Kalichman A, Santos MR, et al. Necessidades de saúde: demografia, panorama epidemiológico e barreiras de acesso. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A, organizadores. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado interdisciplinar. Santana de Parnaíba [SP]: Manole; 2021. p. 82-91.. A maioria dos(as) participantes informou preferir ser atendidos(as) por profissional LGBTQIA+ (69%), principalmente entre os(as) transgêneros(as) (79,5%) e os(as) negros(as) (74%); mas as diferenças entre as proporções não foram estatisticamente significativas (p ≥ 0,115), provavelmente pelo pequeno tamanho de amostra na categoria que não tem preferência.

Cabe ainda enfatizar que pessoas transgêneras passam por diversas dificuldades em meio à sociedade em que estão inseridas, visto que sua travestilidade e transexualidade estão expostas em seu corpo. Louro2121 Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica; 2018. aponta para a construção social de uma matriz binária e heterossexual que conforma padrões sexuais e de gênero. Nesse contexto, a insegurança inerente às normas de gênero mostra que essas pessoas são menosprezadas e estão à margem da sociedade, em que não existe garantia de direitos e sua própria humanidade é negada. Isso ecoa em diversos âmbitos, inclusive da saúde2222 Butler J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cad. Pagu. 2003; (21):219-260..

Já os(as) cisgêneros(as) possuem mais facilidade em não revelar sua orientação sexual aos profissionais de saúde, e, portanto, menos vulneráveis à discriminação pela suposição de serem heterossexuais, a exemplo das lésbicas2020 Calazans C, Kalichman A, Santos MR, et al. Necessidades de saúde: demografia, panorama epidemiológico e barreiras de acesso. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A, organizadores. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado interdisciplinar. Santana de Parnaíba [SP]: Manole; 2021. p. 82-91.,2323 Gomes R, Murta D, Facchini R, et al. Gênero, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1997-2006..

Nesse sentido, a população LGBTQIA+ evita frequentar serviços de saúde, adia ou abandona tratamentos clínicos e de prevenção em decorrência de experiências negativas2424 Russell S, More F. Addressing health disparities via coordination of care and interprofessional education: lesbian, gay, bisexual, and transgender health and oral health care. Dent. Clin. North Am. 2016; 60(4):891-906.. Em estudo de revisão integrativa2525 Varotto BLR, Massuda M, Nápole RCD, et al. População LGBTQIA+: o acesso ao tratamento odontológico e o preparo do cirurgião dentista-uma revisão integrativa. Rev. Abeno. 2022; 22(2):1542-1542., concluiu-se que a população LGBTQIA+ possui menor acesso aos serviços de saúde bucal e que há uma falta de preparo formal dos(as) alunos(as) de graduação para o atendimento. Ademais, discriminações recorrentes no âmbito institucional predispõem essa população ao risco de doenças e transtornos, como depressão, ansiedade, má alimentação, perda de peso e, em especial, descuido com a higiene – fatores que, somados, afetam múltiplas facetas e repercutem na saúde bucal.

Estudo realizado em Ontário, no Canadá, identificou que 43,9% da população transgênera não obteve sucesso no atendimento da saúde, apresentando um percentual três vezes menor do que as pessoas cisgêneras e heterossexuais, bem como tiveram uma pior avaliação dos serviços de saúde2626 Giblon R, Bauer GR. Health care availability, quality, and unmet need: A comparison of transgender and cisgender residents of Ontario, Canada. BMC Health Serv Res. 2017; 17(1):283.. Estudo realizado nos Estados Unidos da América também identificou que a população transgênera tende a apresentar mais medo e ansiedade em relação ao tratamento odontológico, o que se correlaciona com a alta prevalência de discriminação e o mal atendimento vivenciado2727 Heima M, Heaton LJ, Ng HH, et al. Dental fear among transgender individuals - a cross sectional survey. Spec. Care Dent. 2017; 37(5):212-22..

Tal situação fica evidente com o alto percentual dos(as) participantes que já tiveram perda dentária (45,9%), principalmente entre os(as) transgêneros(as) (61,4%) e os(as) negros(as) (55,6%). Estudos internacionais, entretanto, sinalizam que as doenças periodontais e o aumento de cáries não possuem diferenças quando comparados com a população heterossexual, ou seja, o que difere é a autopercepção inerente à saúde bucal2525 Varotto BLR, Massuda M, Nápole RCD, et al. População LGBTQIA+: o acesso ao tratamento odontológico e o preparo do cirurgião dentista-uma revisão integrativa. Rev. Abeno. 2022; 22(2):1542-1542..

A autopercepção da saúde bucal, para a maioria dos(as) participantes do estudo, foi boa ou muito boa (53,2%), bem como para cisgêneros(as) (57,5%), lésbicas (61,0%) e negros(as) (43,7%); entretanto, para os(as) transgêneros(as), foi ruim ou muito ruim (45,5%). Estudo realizado com base no inquérito de 2013 identificou que a prevalência de autopercepção positiva da saúde bucal foi de 67,4% e que a autopercepção negativa era mais elevada na população com renda menor que um salário mínimo, analfabetos(as) e trabalhos precários ou elementares1616 Souza JL, Henriques A, Silva ZP, et al. Posição socioe-conômica e autoavaliação da saúde bucal no Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(6):e00099518.. Já Bordin e colaboradores1818 Bordin D, Fadel CB, Santos CB, et al. Caracterização da condição percebida de saúde bucal na população adulta brasileira. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3647-3656. constataram que a autopercepção negativa da saúde bucal está principalmente relacionada com dificuldade de se alimentar, avaliação negativa da última consulta odontológica, autopercepção negativa da saúde geral e não adoção de medidas odontológicas preventivas, como fio dental e revisão de rotina.

Estudo sobre hábitos de vida saudáveis, como autocuidado, não fumar, beber moderadamente, praticar atividade física, entre outros, constatou, entretanto, que mulheres lésbicas e bissexuais aceitam menos tais hábitos quando comparadas a mulheres cisgêneras heterossexuais. Já homens transgêneros apresentaram maior chance do que mulheres transgêneras e pessoas cisgêneras heterossexuais. Não houve diferença na proporção de tais hábitos entre homens cisgênero heterossexuais, gays e bissexuais2828 Padilha WAR, Crenitte MRF, Lopes Junior A. Prevenção e cuidados das doenças crônicas. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A, organizadores. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado interdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole; 2021. p. 346-356..

Uma limitação do estudo é que os(as) participantes da pesquisa apresentaram alta escolaridade e se concentraram nos grandes centros urbanos, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, população que tende a ter mais acesso à informação e a serviços e renda, não representando a realidade da maioria da população LGBTQIA+. É importante destacar, contudo, que, mesmo nesse grupo, a população trans-gênera e/ou negra teve os piores resultados.

Em contrapartida, o estudo contribui para o tema por incluir de forma inédita a saúde bucal da população LGBTQIA+, contemplando identidade de gênero e orientação sexual, enquanto a pesquisa nacional não incluiu nem mesmo a perspectiva binária – feminino e masculino1313 Brasil. Ministério da Saúde, Secretária de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Saúde da Família, Coordenação Geral de Saúde Bucal. SB Brasil 2020 – Pesquisa Nacional de Saúde Bucal – Projeto Técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2021.. Adicionalmente, o estudo também incluiu a população de lésbicas, dando maior visibilidade a essa população tão negligenciada e invisibilizada nos estudos e pesquisas em saúde, buscando atender à reinvindicação da identidade lésbica na reorganização de políticas públicas de saúde2929 Jesus JG, organizador. Transfeminismo: teorias & práticas. Rio de Janeiro: Editora Metanoia; 2015. 206 p..

Há uma quantidade insuficiente de produção científica sobre a temática de saúde bucal LGBTQIA+, cuja maioria é de produção internacional. Assim, a carência de estudos em outros países e a ausência de pesquisas nacionais reforçam e evidenciam a invisibilidade na formação profissional e nas pesquisas em saúde2525 Varotto BLR, Massuda M, Nápole RCD, et al. População LGBTQIA+: o acesso ao tratamento odontológico e o preparo do cirurgião dentista-uma revisão integrativa. Rev. Abeno. 2022; 22(2):1542-1542.,3030 Bezerra MVR, Moreno CA, Prado NMBL, et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate. 2019: 43(esp8):305-323.,3131 Eliason MJ, Dibble SL, Robertson PA. Lesbian, gay, bisexual, and transgender (LGBT) physicians’ experiences in the workplace. J. Homosex. 2011; 58(10):1355-1371..

Discriminações e obstáculos para o acesso aos serviços de saúde são recorrentes. A sociedade patriarcal e heteronormativa estigmatiza, discrimina e exclui a população LGBTQIA+ em decorrência de uma cultura que se dedica essencialmente à heterossexualidade; e, por esse motivo, as desigualdades em saúde vêm crescendo de forma significativa3232 Guimarães RCP, Cavadinha ET, Mendonça AVM, et al. Assistência a população LGBT em uma capital brasileira: o que dizem os Agentes Comunitários de Saúde? Tempus. 2017; 11(1):121-139..

A população LGBTQIA+ enfrenta barreiras em seu cotidiano quando o assunto é saúde. Há uma dificuldade em encontrar profissionais da área que entendam as reais necessidades dessa população, que a tratam com discriminação, atrasam ou até mesmo renunciam ao atendimento dela, deixando de resguardar a essas pessoas o direito à saúde3333 Ferreira AP, Nichele CST, Jesus JG, et al. Evidências científicas sobre o acesso aos serviços de saúde pela população LGBTQI+: Revisão de escopo. Res., Soc. Dev. 2022; 11(10):e229111032519..

A procura dessa população pelos serviços de saúde se imbricam em uma perspectiva de negação, violência, negligência e invisibilidade, sendo uma questão estrutural associada à falta de políticas públicas. O não reconhecimento e a falta de atenção se fundamentam prospectivamente no patriarcalismo, no sexismo e no machismo, além do preconceito que afeta todas as relações sociais, ou seja, ocupam todos os espaços, incluindo instituições educacionais e da saúde3232 Guimarães RCP, Cavadinha ET, Mendonça AVM, et al. Assistência a população LGBT em uma capital brasileira: o que dizem os Agentes Comunitários de Saúde? Tempus. 2017; 11(1):121-139.,3434 Ferreira BO, Pedrosa JIS, Nascimento EF. Diversidade de Gênero e Acesso ao Sistema Único de Saúde. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2017; 31(1):1-10..

É imprescindível que os profissionais sejam capacitados sobre a temática, o que viabiliza uma visão menos estigmatizada e mais próxima das reais necessidades. A educação permanente em saúde, assim, torna-se o principal recurso a ser utilizado para reconhecimento, planejamento e execução de ações voltadas à população LGBTQIA+3535 Souza OSL. Desafios no acolhimento à população LGBT nos serviços do Sistema Único de Saúde do município de Caicó, RN: um estudo sobre a atuação dos profissionais da atenção primária. [monografia]. Caicó: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2021. 36 p..

Logo, é urgente desenvolver e avaliar uma proposta de educação permanente para a equipe de saúde bucal, buscando identificar e acolher populações em vulnerabilidade, e que permita refletir sobre o combate às variadas formas de discriminação. Isso de forma a promover a proteção do direito à livre orientação sexual e de gênero para a saúde integral dessas pessoas, além de resguardar os direitos humanos e de cidadania conforme previsto, mas não executado66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União. 2 Dez 2011..

Nesse sentido, trata-se de promover a prática de uma saúde que não se limite ao tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, ou seja, saúde integral baseada na equidade, que auxiliará no enfrentamento das desigualdades sociais inerentes à saúde da população LGBTQIA+66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União. 2 Dez 2011.,3636 Mello L, Perilo M, Braz CA, et al. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca da universalidade, integralidade e equidade. Sex., Salud Soc. 2011; (9):7-28.,3737 Oliveira CP. Aproximando a equipe de saúde bucal do cuidado às populações vulnerabilizadas. [monografia]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021. 30 p..

Considerações finais

A pesquisa de assistência à saúde bucal da população LGBTQIA+ teve como objetivo analisar a saúde bucal dessas pessoas, contribuindo de forma inédita para a inclusão de identidade de gênero e orientação sexual em estudo nacional de saúde bucal. Mesmo em participantes com maior escolaridade e nos grandes centros urbanos, a população trans-gênera e negra teve os piores resultados. Isso demonstra que raça, gênero e sexualidade influenciam diretamente no acesso ao cuidado em saúde; logo, que o enfoque interseccional é imprescindível para organização do serviço.

As dificuldades sinalizadas por essa população advêm de múltiplos sistemas de opressões estruturais, que não a reconhecem enquanto composta por sujeitos em decorrência de uma cultura patriarcal, heterossexual, cisgênera e branca.

A carência de estudos em outros países e a ausência de pesquisas nacionais reforçam e evidenciam a invisibilidade na formação profissional e de pesquisas em saúde. Nesse sentido, é imprescindível que os profissionais sejam capacitados sobre a temática, o que viabiliza uma visão menos estigmatizada e mais próxima das reais necessidades. A educação permanente em saúde, nesse contexto, torna-se o principal recurso a ser utilizado para o reconhecimento, o planejamento e a execução de ações voltadas a essa população. Outrossim, são prementes a promoção e a proteção do direito à livre orientação sexual e identidade de gênero que auxiliará no enfrentamento das desigualdades sociais inerentes à saúde de pessoas LGBTQIA+.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2023
  • Aceito
    22 Nov 2023
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