RESUMO
Apresentam-se os achados da pesquisa da dissertação de mestrado com abordagem integrativa que objetivou revisitar as publicações com a temática LGBTQIA+ de periódicos científicos. Ao colocar, como enfoque, a estratégia de Redução de Danos (RD), a presente pesquisa objetivou identificar quais as práticas realizadas para a população trans e contextualizar como a RD pode contribuir para construção de vínculo no cuidado à saúde. Coletaram-se os dados nas bases Lilacs e SciELO. Recuperaram-se 110 artigos publicados, entre 2005 e 2020, em português. Seus resumos foram lidos na íntegra. Identificaramse sete abordagens: RD como estratégia de políticas públicas; violências vivenciadas nas trajetórias de transição percorridas pelas travestis; atendimento à população LGBTQIA+; profissionais de saúde capazes de prestar um cuidado humanizado, verdadeiramente centrado na pessoa, com escuta ativa; o cuidado a saúde e hormonização como processo de construção feminina; movimentos sociais; educação e ações afirmativas para a continuidade do estudo e colocação profissional. Assim, a pesquisa contribui para ampliar o conhecimento e a compreensão sobre a temática LGBTQIA+. As demandas específicas de travestis e transexuais em sua busca por atendimento nos serviços de saúde são explicitadas de modo a compreender como a RD pode ser estratégia de cuidado à saúde da população trans.
PALAVRAS-CHAVE
Redução do dano; Travestilidade; Pessoas transgênero; Direitos humanos.
Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar o resultado da revisão bibliográfica sobre o atendimento a mulheres trans e travestis na saúde, no campo da Redução de Danos (RD), por meio da abordagem de pesquisa integrativa. Este estudo busca trazer também uma breve discussão sobre acesso, integralidade, equidade e aproximação dessa população aos serviços de saúde.
O interesse nesse tema tem relação com a atuação de uma das autoras deste artigo, no território da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, como agente redutora de danos, no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-AD). A RD, como estratégia de cuidado à saúde, apresenta possibilidades para alcançar populações vulneráveis, ofertar acesso e contribuir para a aproximação e fortalecimento desses usuários de álcool e outras drogas aos seus direitos como cidadãos.
O conceito RD foi construído no decorrer do tempo pelas pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas, inseridos no campo dos movimentos sociais, contra os estigmas, bem como no contexto da crescente mortalidade por aids devido à contaminação mediante o compartilhamento de seringas11 Machado LV, Boarini ML. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol. Ciênc. Prof. 2013 [acesso em 2021 dez 19]; 33(3):580-595. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000300006.
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Entendemos que, além de entrega dos insumos comuns ao serviço (camisinha, lubrificante, máscara, sabão, álcool em gel), fazem-se necessárias a construção de vínculo, ao ouvir os usuários, e a elaboração de formas de acesso às travestis e às mulheres transexuais que estavam no território, contemplando a equidade, um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). A junção desses fatores são instrumentos que têm possibilitado a atuação nos territórios com formas de inclusão produtiva e uma atenuação das desigualdades sociais22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015..
Consideramos também como a RD pode ser uma ferramenta de cuidado diante da dificuldade no atendimento dos usuários de drogas, travestis e mulheres trans, e dos cuidados em saúde dirigidos a essa população, caracterizada com demandas muito particulares. A relevância desses estudos sobre RD voltada para a população de mulheres trans e travestis consiste em apresentar as ações territoriais e as abordagens, para esse público específico, bem como o acesso aos dispositivos de saúde pública e, portanto, a garantia de direitos a essa população33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Coordenação Nacional de DST e AIDS. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2003..
Redução de Danos, políticas e fundamentos
A ‘guerra às drogas’ advém de políticas públicas desestruturadas e com o viés da criminalização e repressão, abreviado ao âmbito da segurança e do judiciário, e não da saúde pública, finalizando por produzir o estigma, a marginalidade e a violência, em que se dá mais importância à criminalização do uso e menos à saúde e à qualidade de vida dos usuários44 Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicol. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 17]; 23(1):154-162. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-71822011000100017.
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Em 2002, ao implantar as estratégias de RD, o Ministério da Saúde estabeleceu que os danos pertencem tanto ao campo social - como a marginalização, vulnerabilidade, desigualdade e exclusão social - quanto ao campo da saúde. No ano de 2005, a Portaria nº 1.028, de 1º de julho, considerou que cabe ao Ministério da Saúde ações que visem à RD sociais e à saúde, contribuindo para o resgate da cidadania do sujeito em sofrimento psíquico, potencializando os efeitos de promoção à saúde55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União. 14 Ago 2009..
Evidenciada como política, a ancoragem de RD determina um novo paradigma ético, clínico e para a política pública, que implica enfrentamento e embates contra as políticas antidrogas - estabelecidas no período em que o País passou pela sua última ditadura militar -, como controle social66 Brasil. Gabinete de Segurança Institucional, Conselho Nacional Antidrogas. Resolução nº3/GSIPR/CH/CONAD, de 27 de outubro de 2005. Aprova a Política Nacional Sobre Drogas. Diário Oficial da União. 28 Out 2010. [acesso em 2022 set 16]. Disponível em: http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/326979.
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Por meio desta revisão, entendemos que uma importante contribuição da RD seria precisamente o questionamento da relação de uso da droga ao usuário, cuidando do sofrimento já existente ou possivelmente produzido pelo uso, sem necessariamente exigir abstinência, intervindo quando avaliado o risco à vida.
Faz-se necessário que o profissional reconheça a RD como estratégia de política pública e ferramenta de cuidado, entendendo que a RD não é contra a abstinência, mas que seja um caminho para essa escolha do sujeito, se assim desejar, e apresentá-la entre outras tantas possibilidades igualmente éticas, em que os sujeitos possam vislumbrar a vida com outros pontos de foco que não seja o uso.
Para tanto, o Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, confirma a implantação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), buscando estratégias, em parceria na intersetorialidade dos serviços, de forma a integralizar o cuidado, assegurando o acesso aos usuários em toda a rede e possibilitando a prática de RD, principalmente nos Caps, consolidando, assim, a reforma psiquiátrica77 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientação para elaboração de projetos de construção reforma e ampliação de CAPS e de UA. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015..
Com a mudança de governo federal em 2019, foi promulgada a Lei nº 13.840, que adicionou e alterou os dispositivos à Lei nº 11.343/2006, retirando a RD da política nacional e, por conseguinte, ampliando investimentos em comunidades terapêuticas, em que estabeleceu a autorização da internação compulsória de pessoas decorrente do uso de álcool e outra droga, distanciando-os de seus familiares, o que aponta graves violações de direitos humanos nessas instituições88 Brasil. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de 2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas. Diário Oficial da União. 6 Jun 2019. [acesso em 2021 nov. 7]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13840.htm.
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É importante problematizar os investimentos públicos, sem fiscalização, nessas entidades que são, em grande maioria, privadas e de cunho religioso, e que têm como base a exclusão e o higienismo social. Contrapondo-se a isso, a RD é uma prática construída por pessoas pertencentes à população em vulnerabilidade, que se fez ouvida em suas demandas, e por profissionais que a usam como estratégia na construção de vínculo, garantindo acesso ao cuidado e à saúde. Destaca-se, portanto, a importância, nos processos de estratégia de cuidado e de promoção de saúde, de haver pessoas da própria população atuando enquanto agentes de saúde99 Petuco DRS. Redução de Danos: das técnicas à ética do cuidado. In: Ramminger T, Silva M, organizadores. Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. Bis. 2014 [acesso em 2022 maio 17]; 21(2):94-103. Disponível em: https://doi.org/10.52753/bis.2020.v21.34622.
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Metodologia
Ouvir “Não somos cobaias para que nos pesquisem e nos deixem”, no início de minha atuação no trabalho de RD na ação noturna, marcou-me muito. Tempos depois, ao ingressar na academia, decidi, como mulher cisgênera, desenvolver a pesquisa de revisão integrativa para levantar, sistematizar e analisar dados que possam fundamentar novos estudos, bem como políticas públicas voltadas para população de mulheres trans e travestis no campo de RD.
Por meio de revisão integrativa1010 Roos CM. Ações de redução de danos voltadas para usuários de drogas: uma revisão integrativa. [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011. [acesso em 2022 jun 18]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/31126.
http://hdl.handle.net/10183/31126... , foram acessados os principais trabalhos científicos já produzidos sobre o tema tanto em pesquisa de campo como nas experiências da RD voltadas para travestis e mulheres transexuais que têm sido desenvolvidas no Brasil - e de grande importância ao apresentarem dados atuais e relevantes entre os anos de 2005 e 2020.
A etapa de coleta de dados foi feita em bases de dados específicas, a partir de descritores, critérios de exclusão e inclusão de artigos para uma busca de publicações, realizada pela internet, e abrangeu: Literatura Latino-Americana de Saúde (Lilacs); Scientific Electronic Library Online (SciELO); e Medical Literature Analysisand Retrieval System Online (MedLine).
Durante esse processo, buscou-se compreender a RD como estratégia na construção de vínculo e cuidado à saúde, para as travestis e mulheres trans, a partir do mapeamento dos produtos científicos sobre as experiências de RD realizadas no Brasil e das experiências de RD contextualizadas pelo território onde ocorrem as ações.
Primeiro, foi realizada uma leitura cuidadosa dos trabalhos, visando obter uma compreensão completa dos conteúdos descritos e que apresentam informações para serem desenvolvidas neste trabalho integrativo sobre o tema.
A questão norteadora da revisão integrativa, importante para a coleta de dados desta pesquisa, teve início na busca acerca de quais as práticas em comum de RD que são ofertadas para a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Queer, Intersexuais ou Intersexos, Assexuais e outras mais possibilidades de existências (LGBTQIA+), e mais especificamente para as travestis, mulheres trans, publicadas na literatura científica; recorte feito a partir de bases de dados especificas, utilizando descritores, critérios de inclusão e exclusão de artigos, mediante buscas na internet, em março de 2022.
Foram destacados, como critérios de inclusão: artigos on-line e gratuitos, publicados entre 2005 e 2020, que contemplassem a temática, tanto sob aspectos teóricos quanto políticos e/ou práticos. Para critérios de exclusão: artigos que não contemplassem a temática proposta ou que tivessem sido publicados fora do período indicado. A partir dessas demarcações metodológicas, deu-se início à pesquisa com a captura de dados nas bases mencionadas.
Resultados
Foram utilizadas pesquisas dentro da temática, considerando a sua importância e o valor informativo do material. Pesquisas que tinham como os descritores apresentados aqui: Redução de danos; Travesti; Pessoas transgêneros e Direitos humanos, combinados entre si e que exibo no quadro 1. Chamo de abordagens para situar, a partir da leitura dos trabalhos, características que se apresentam nos artigos coletados1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022..
No total da seleção foram encontrados 118 artigos, utilizando de primeira e segunda leitura dos seus respectivos resumos, sendo oito artigos removidos da seleção por duplicidade nos bancos de dados, desses 58 foram encontrados nas bases SCIELO, 47 no LILACS, cinco na base MEDILINE, assim ao final, foram analisados 110 resumos que contemplavam as questões norteadoras e descritores1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022.(39).
O quadro 1 que apresento a seguir, elaborado como resultado da minha dissertação de mestrado, exibe os conteúdos apresentados nos estudos de revisão integrativa. Na primeira coluna, situo as principais abordagem de buscas; na segunda, coloco um breve resumo do conteúdo das pesquisas; e na terceira, o número de artigos lidos.
O quadro 1 acima evidencia que pode haver produção de barreiras ao acesso à saúde e direitos, bem como questões de violência, discriminações, estigmas; e demonstra que travestis e mulheres trans estão expostas a vulnerabilidades em saúde e imersas em obstáculos e desigualdades sociais. Coloco essas questões como provocação quanto às necessidades de: i) promover o acesso, aos cuidados de saúde, às populações vulnerabilizadas, em especial, mulheres trans e LGBTQIA+; ii) potencializar a qualidade da atenção prestada pelos profissionais de saúde; e iii) consolidar a concepção de que os serviços de saúde precisam se adaptar às necessidades da população LGBTQIA+.
Na base de dado Scielo foram encontrados 52,73% dos artigos; Lilacs 42,73% e Medline 4,55%, onde destes números para as abordagens se apresenta em: redução de danos como estratégia de políticas públicas 22,%; violências vivenciadas nas trajetórias de transição percorridas pelas travestis 20,00%; atendimento à população LGBT 18,18%; profissionais de saúde capazes de prestar um cuidado humanizado, verdadeiramente centrado na pessoa, com escuta ativa 15,45%;o cuidado a saúde e hormonização como processo de construção feminina 13,64%; movimentos sociais 7,27%; educação e ações afirmativas para a continuidade do estudo e colocação profissional 2,73%1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022.(40).
O uso do nome social, na forma escrita ou oral, quando não respeitado, como foi demonstrado nesta pesquisa, expõe as travestis e as transexuais a constrangimento, não respeita seus diretos e causa grande impacto psicológico, como casos de depressões, entre outros agravamentos em saúde mental, com a possibilidade de produzir rompimento do mínimo de vínculo existente, além da consequentemente descontinuidade da procura de serviços de saúde1212 Souza MHT, Malvasi P, Signorelli MC, et al. Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria. Cad. Saúde Pública. 2015 [acesso em 2022 mar 22]; 31(4):767-776. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00077514.
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Hormônios femininos, utilizados para obter o contorno feminino desejado pelas mulheres trans e travestis, proporciona forma de cuidado, apresentado como demanda no atendimento, necessitando de acompanhamento médico. Muitas não o fazem, pois desejam uma mudança rápida do corpo, já que a dosagem utilizada por elas é muito superior, para alcançar a aparência almejada, o que implica ainda mais atenção a essa população. Como estratégia de RD, faz-se necessária a oferta de um cuidado integral1313 Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, DF: EDA/FBN; 2012..
A falta de acesso, na formação de alguns profissionais de saúde, à temática do cuidado à população LGBTQIA+ provavelmente corrobora a dificuldade do acolhimento e a falta de preparo no trabalho, concomitantemente à falta de políticas públicas adequadas, o que pode produzir um atendimento carregado de discriminação quando essa população busca as unidades de saúde; especialmente se considerarmos que, para as travestis e as mulheres trans, as demandas do atendimento extrapolam as questões de saúde biológicas, pois elas têm outras questões específicas e necessitam do olhar ampliado do profissional de saúde.
Pesquisas retratam trechos de entrevistas que caracterizam sentimentos de sofrimento mental, como tristeza, angústia e discriminação vivenciadas nos serviços de saúde, derivando em abandono de tratamentos que foram iniciados. Ou seja, o lugar onde deveriam ser acolhidas se torna um espaço de relações discriminatórias, efetuando o distanciamento da população LGBTQIA+ dos ambientes de saúde pública, que, diante de tal conjuntura, tem refletida em si uma piora das suas condições de saúde1414 Carrara S, Hernandez JG, Uziel AP, et al. Body Construction and Heath itineraries: a survey among travestis and trans people in Rio de Janeiro, Brazil. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jul. 27]; 35(4):e00110618. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00110618.
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Entre a população LGBTQIA+, as pessoas trans são as que enfrentam maiores dificuldades na busca por serviços de saúde, tanto pelas demandas específicas quanto no acesso aos serviços transexualizadores. Episódios de trans/travestifobia presentes no cotidiano dos equipamentos de saúde levam a apontamentos para que haja redução nos processos discriminatórios perante essa população, bem como à compreensão da diversidade em relação à sexualidade, de modo que se busque o respeito à singularidade dos sujeitos1010 Roos CM. Ações de redução de danos voltadas para usuários de drogas: uma revisão integrativa. [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011. [acesso em 2022 jun 18]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/31126.
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Ainda que o Ministério da Saúde tome iniciativas importantes, como publicar portarias e instituir serviços de saúde específicos a essa população, podemos entender que, mesmo assim, esse segmento é o que mais enfrenta dificuldades pertinentes ao acesso a serviços de saúde, da atenção básica à alta complexidade. Dessa forma, a escassez de recursos e a ausência de políticas e programas voltados ao combate à discriminação tendem a assumir o papel de protagonismo como barreira no acesso à saúde a travestis e a mulheres trans1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022..
Nesta pesquisa integrativa foi encontrada na literatura menções sobre a publicação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT que advoga em favor do acesso à saúde sem a ocorrência de discriminação e com direito e respeito ao nome social [...]88 Brasil. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de 2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas. Diário Oficial da União. 6 Jun 2019. [acesso em 2021 nov. 7]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13840.htm.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... (42).
Os resultados desta pesquisa, portanto, corroboram as aferições de Querino et al.1212 Souza MHT, Malvasi P, Signorelli MC, et al. Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria. Cad. Saúde Pública. 2015 [acesso em 2022 mar 22]; 31(4):767-776. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00077514.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007751... , que afirmam como a promoção de serviços, programas e ações em saúde para a população LGBTQIA+ indica maior equidade, integralidade e universalidade proposta pela reforma sanitária brasileira.
Discussão
Nomeio de abordagens para colocar, a partir da leitura dos trabalhos, características que se apresentam nos artigos coletados e indicam, como resultado, que é de extrema importância construir e formar redes com outros setores, acompanhar a saúde mental no território e estabelecer ações específicas.
O cuidado está em constante produção, dentro de contextos e experiências que se apresentam na rotina. Interessante refletirmos que nos CAPS quem acolhe os sujeitos são os profissionais multidisciplinares e com formação ou especialização em saúde mental, com suporte da presença de um médico para definir e incluir o código internacional de doenças (CID) entendendo que o protagonismo e autonomia dos usuários podem caminhar na direção mais individual para a mais coletiva, onde o cuidado de si perpassa o cuidado do outro, entendendo que isso depende do serviço que os usuários passam a integrar1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022.(42).
É de suma importância salientar políticas afirmativas, considerando que o alto índice de evasão escolar, a baixa escolaridade e a falta de acesso à formação técnica e profissional, na vida das travestis e mulheres trans, podem levar à vulnerabilidade e à marginalização dessa população e dificultam ainda mais sua inserção no mercado de trabalho1313 Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, DF: EDA/FBN; 2012..
Destacamos, aqui, a questão da busca pela feminilidade do corpo, necessidade que se sobrepõe ao medo diante do risco existente e que resulta na ausência de um sistema de saúde que ampare tais demandas, na administração de doses excessivas de hormônios, e até mesmo na aplicação de silicone industrial1414 Carrara S, Hernandez JG, Uziel AP, et al. Body Construction and Heath itineraries: a survey among travestis and trans people in Rio de Janeiro, Brazil. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jul. 27]; 35(4):e00110618. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00110618.
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Considerações finais: a importância de política públicas inclusivas para mulheres trans e travestis
Ainda pensando especificamente no caso de mulheres trans e travestis, a presente pesquisa de revisão integrativa permite elaborar, nos limites nos dados aqui descritos, que a discriminação e a estigmatização nos serviços e equipamentos de saúde - clara expressão de transfobia institucional -, por exemplo, desrespeito ao nome social, constituem evidência de barreira de acesso que culmina em sofrimento e adoecimento1515 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, et al. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab. Educ. Saúde. 2020 [acesso em 2022 jun. 16]; 18(1):e0023469. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002... . Defendemos, como propostas de melhoria do atendimento a essas pessoas e do seu acesso à saúde, a divulgação da legislação vigente de atenção à população LGBTQIA+. Além disso, é essencial a inclusão de conteúdos na formação do profissional de saúde que abordem o cuidado específico às mulheres trans e travestis nas disciplinas dos cursos de saúde1616 Fernandes FMB, Moreira MR. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na Saúde Coletiva. Physis. 2013 [acesso em 2021 ago 22]; 23(2):511-529. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312013000200010.
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Considero de grande importância a educação permanente ou continuada voltada para os profissionais que estejam atuando, além de que a formação dos profissionais de saúde precisa estar articulada com as necessidades e as demandas da população-alvo. Para além de políticas de saúde, faz-se necessário produzir conhecimento científico para que novas ações auxiliem no enfrentamento dos desafios ainda existentes.
Ressalto aqui a consolidação do Caps como serviço substitutivo que tem sua origem na Reforma Psiquiátrica, movimento com sua complexidade distinta, pois sendo este uma ampliação de processos que envolvem lutas sociais de cuidar do sujeito em sofrimento mental e que se configura como uma estratégia de produção de cuidados, como um arranjo institucional que se faz por meio de uma rede de ações realizadas para além dos muros do serviço1111 Ribas SM. Redução de danos como estratégia de cuidado à saúde: um estudo sobre atendimento a mulheres transexuais e travestis. [dissertação]. Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022.(30-31).
Ao atuar no território, algumas mudanças de estratégias podem ocorrer devido à sua dinâmica. Com isso, ajustes e até mesmo alterações de estratégias podem ocorrer em face das respostas do território. Temos, assim, a saúde como produção social e modos de atuação no cotidiano desses serviços1717 Cezar MA, Melo W. Centro de Atenção Psicossocial e território: espaço humano, comunicação e interdisciplinaridade. Hist., Ciênc. Saúde-Manguinhos. 2018 [acesso em 2022 ago 22]; 25(1):127-142. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702018000100008.
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Construídas com muita dinâmica, as práticas de RD buscam olhar não somente para a substância, mas também para o sujeito, de forma macro, para a sua relação com a droga e com o mundo; portanto, é preciso ampliar suas ações com vistas a outros objetivos, como os da garantia da cidadania e dos direitos humanos. Considerando o debate que este artigo propõe, uma conclusão se destaca: a necessidade de enfrentamento da transfobia no SUS permanece. Tal enfrentamento é fundamental e compreende a garantia de acesso aos serviços de saúde pública e a qualidade da atenção à população LGBTQIA+.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Machado LV, Boarini ML. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol. Ciênc. Prof. 2013 [acesso em 2021 dez 19]; 33(3):580-595. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000300006
» https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000300006 - 2Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Jun 2024 - Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
- Recebido
23 Out 2023 - Aceito
03 Dez 2023