Saúde mental: onde se colocam as questões de gênero? Os papéis das mulheres cisgêneras

Sabrina Proença Azevedo Rangel Adriana Miranda de Castro Sobre os autores

RESUMO

O artigo discute como os trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e militantes da luta antimanicomial compreendem as questões relativas às hierarquizações de gênero e suas possíveis implicações no cuidado integral em saúde mental direcionado a mulheres cisgêneras. Considerando que o manicômio serviu para o isolamento e o controle de corpos femininos e as transformações propostas pela reforma psiquiátrica permitiram o cuidado em liberdade com base no respeito aos direitos humanos e na promoção da cidadania, buscou-se analisar como os estereótipos acerca do papel da mulher na sociedade atravessam as práticas de cuidado na abordagem da maternidade e das situações de violências experimentadas pelas mulheres na Raps. Embora se observe o reconhecimento das hierarquizações de gênero e da necessidade de transformação das práticas nos serviços de saúde mental, emergiu, das entrevistas, um discurso hegemônico vinculado aos estereótipos relativos às mulheres.

PALAVRAS-CHAVES
Gênero; Saúde mental; Mulheres; Sistema Único de Saúde

Introdução

A história das mulheres na saúde mental se fez e faz marcada por questões sociais, políticas e culturais, que produziram e produzem diferentes visões sobre o que é ser mulher, o que é feminino e que papéis sociais tais corpos devem desempenhar11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017..

Por décadas, os manicômios operaram como instrumentos de opressão de gênero, colocando mulheres em situações de violência, isolamento e invisibilidade. Silenciadas e preconceituosamente descritas a partir da imaginação masculina, elas eram internadas por qualquer sinal classificado com ‘desvio’11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,33 Amarante PDC, coordenador. Loucos pela Vida: A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP; 1995..

O Movimento de Luta Antimanicomial investiu na ruptura da lógica violenta das internações, reunindo trabalhadores, usuários e familiares33 Amarante PDC, coordenador. Loucos pela Vida: A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP; 1995.,44 Amarante PDC, Loyola MA. As Cores da Utopia: loucura, arte e a reforma psiquiátrica. Rev Electron. Comum. Inf. Inov. Saúde. 2014 [acesso em 2023 mar 27]; 8(1):56-59. Disponível em: https//www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/505.
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,55 Amarante PDC, Diaz FS. Os movimentos sociais na Reforma Psiquiátrica. Cad. Bras. Saúde Ment. 2012 [acesso em 2023 mar 27]; 4(8):83-95. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68655.
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. Com a implementação da reforma psiquiátrica e a criação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), o Sistema Único de Saúde (SUS) se comprometeu com o cuidado territorializado e a elaboração de projetos terapêuticos singulares, priorizando autonomia, individualidade e integralidade33 Amarante PDC, coordenador. Loucos pela Vida: A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP; 1995.,44 Amarante PDC, Loyola MA. As Cores da Utopia: loucura, arte e a reforma psiquiátrica. Rev Electron. Comum. Inf. Inov. Saúde. 2014 [acesso em 2023 mar 27]; 8(1):56-59. Disponível em: https//www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/505.
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,55 Amarante PDC, Diaz FS. Os movimentos sociais na Reforma Psiquiátrica. Cad. Bras. Saúde Ment. 2012 [acesso em 2023 mar 27]; 4(8):83-95. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68655.
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Na Raps, as mulheres se inserem como usuárias, familiares e trabalhadoras, sendo uma presença majoritária. Para familiares e trabalhadoras da rede, o papel do cuidado é naturalizado como algo da ordem do ‘feminino’, com repercussões importantes na sua qualidade de vida22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.. Sobre as mulheres, persiste a pressão para que exerçam o papel socialmente determinado do que ‘é ser mulher’ e, ao mesmo tempo, opera a invisibilização, a desvalorização e o silenciamento de suas ‘funções de cuidado’, gerando efeitos de sofrimento22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.. Tal processo atinge principalmente mulheres negras, marcadas pelo racismo estrutural e a atualização da racionalidade colonialista66 Piscitelli A. Recriando a (categoria) mulher? In: Algranti LM, organizadora. A Prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/ UNICAMP; 2002. p. 7- 42.,77 Passos RG. ‘De escravas a cuidadoras’: invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira. O social em questão. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2017 [acesso em 2022 ago 1]; 20(38):77-94. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=552256732015.
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Nos serviços de saúde mental, é comum a presença de mulheres acompanhando os filhos com sofrimento psíquico sem a presença paterna, mulheres egressas de décadas de internação psiquiátrica, mulheres em situação de rua, mulheres vítimas de diferentes violências e/ou em outras condições de vulnerabilidade social77 Passos RG. ‘De escravas a cuidadoras’: invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira. O social em questão. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2017 [acesso em 2022 ago 1]; 20(38):77-94. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=552256732015.
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Na sociedade brasileira, as questões de gênero seguem carregadas de preconceito e violências, perpetuando mecanismos de opressão e/ou exclusão dos corpos fora de padrões hegemônicos22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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. Pesquisas dos movimentos feministas e da luta antimanicomial apontam a importância de investirmos nas reflexões entre gênero e saúde mental, analisando seus atravessamentos nos processos de cuidado22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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. De forma similar, sublinham a necessidade de considerar contexto social, trajetória de vida e integralidade na construção de estratégias, tendo em vista as relações de gênero e suas implicações na saúde mental de homens e mulheres88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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Em sintonia com tais preocupações, apresenta-se um extrato da pesquisa ‘Saúde mental, onde se colocam as questões de gênero? Mulheres cisgênero na Saúde Mental’, que objetivou compreender como trabalhadores da Raps e integrantes da luta antimanicomial enxergam as hierarquizações de gênero e suas implicações no cuidado integral em saúde mental de mulheres cisgêneras em sua diversidade cultural, etária, racial e de orientação sexual.

Mulheres e saúde mental

A produção social da discriminação de gênero toma características e diferenças biológicas, as naturaliza e, simultaneamente, atribui qualidades para corpos de homens e mulheres, delimitando seus espaços sociais de atuação, afetos, fragilidades e potências. Tal processo naturaliza desigualdades, mantém privilégios e determina silenciamentos11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,66 Piscitelli A. Recriando a (categoria) mulher? In: Algranti LM, organizadora. A Prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/ UNICAMP; 2002. p. 7- 42..

A ‘ciência moderna’ produziu a imagem do homem que domina a natureza, à qual se associou simbolicamente o feminino. Assim, criaram-se analogias entre intelecto, razão e ‘masculino’, que garantiam aos homens o lugar da cientificidade88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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. Tal cientificidade, quando operada pela medicina, vinculou o ‘feminino’ a uma natureza nervosa e o corpo da mulher à versão imperfeita do corpo do homem, tomado como padrão normativo. O discurso científico constituiu, sob pretensa neutralidade, força fundamental para a hierarquização de gênero88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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. Tendo como suporte anatomia, fisiologia e bioquímica, definiu papéis e espaços permitidos e interditos para homens e mulheres, bem como justificou a escravização dos corpos que diferiam do homem branco europeu88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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Ao partir de estudos médicos sobre os corpos femininos, em que se dava centralidade ao útero como responsável pelas alterações de humor, comportamento sexual e adoecimento das mulheres, reforçava-se a ideia de fragilidade e ‘destempero’. Dessa maneira, o período menstrual e o puerpério seriam momentos facilitadores do adoecimento das mulheres, em que as atitudes femininas moralmente ‘inadequadas’ poderiam causar patologias uterinas. Frágil, à mulher, cabia a esfera doméstica, cumprindo seu papel de mãe e esposa, cuja sexualidade vinculava-se só à procriação88 Andrade APM, Maluf SW. Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero. Interface (Botucatu). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 21(63):811-821. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0760.
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No Brasil, a psiquiatria participou intensivamente da política de controle social. A ‘loucura’ transfeita em doença e tendo o manicômio como lugar adequado contribuiu para silenciar e dominar corpos e subjetividades femininas99 Martins APV. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004.. A medicina transformou comportamentos classificados como desviantes e perigosos para a ordem social em patologias, e, pari passu, a psiquiatria estabeleceu um ideal de mulher e de uma ‘loucura feminina’99 Martins APV. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004..

Pesquisas realizadas em registros dos primeiros hospitais psiquiátricos brasileiros traçaram o perfil das mulheres lá internadas1010 Priore MD, organizadora. História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2000.,1111 Facchinetti C, Ribeiro AO, Muños PFN. As insanas do Hospício Nacional de Alienados (1900-1939). Hist. Ciênc. Saúde Manguinhos. 2008 [acesso em 2021 set 1]; 15(supl):231-242.,1212 Toledo ET. A Circulação e Aplicação da Psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: Uma questão de Gênero (1936-1956). [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. 296 p.. Embora minoritárias entre os internados, elas tinham o maior tempo de internação e acabavam morrendo institucionalizadas. Grande parte delas foi descrita como parda, negra e pobre, que chegava aos manicômios involuntariamente e levadas pela polícia1010 Priore MD, organizadora. História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2000.,1111 Facchinetti C, Ribeiro AO, Muños PFN. As insanas do Hospício Nacional de Alienados (1900-1939). Hist. Ciênc. Saúde Manguinhos. 2008 [acesso em 2021 set 1]; 15(supl):231-242.,1212 Toledo ET. A Circulação e Aplicação da Psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: Uma questão de Gênero (1936-1956). [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. 296 p..

Nos prontuários, vê-se o julgamento moral sobre a sexualidade, os corpos e os comportamentos das mulheres, sempre confrontados ao que seria um padrão feminino adequado1010 Priore MD, organizadora. História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2000.,1111 Facchinetti C, Ribeiro AO, Muños PFN. As insanas do Hospício Nacional de Alienados (1900-1939). Hist. Ciênc. Saúde Manguinhos. 2008 [acesso em 2021 set 1]; 15(supl):231-242.. Nessa direção, elas eram maioria entre aqueles submetidos à lobotomia, que se justificava porque ‘suspendia o vestido’, ‘dizia palavras obscenas’, ‘não aceitava se entregar ao marido’, ‘muito para frente com garotos’, ‘de difícil trato’1111 Facchinetti C, Ribeiro AO, Muños PFN. As insanas do Hospício Nacional de Alienados (1900-1939). Hist. Ciênc. Saúde Manguinhos. 2008 [acesso em 2021 set 1]; 15(supl):231-242.,1212 Toledo ET. A Circulação e Aplicação da Psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: Uma questão de Gênero (1936-1956). [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. 296 p..

Embora a trajetória das mulheres fosse marcada pelo machismo e a misoginia, resultando em sofrimento psíquico e/ou no enquadre de loucas quando rompiam com as normas sociais11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,66 Piscitelli A. Recriando a (categoria) mulher? In: Algranti LM, organizadora. A Prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/ UNICAMP; 2002. p. 7- 42., convém sublinhar que o ideal de mulher – frágil, maternal e presa ao espaço privado – não era universal na medida em que as hierarquizações de gênero se articulavam àquelas referidas à cor da pele e à classe social11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.. Assim, mulheres negras e de classes populares ocupavam as ruas, trabalhavam duro e experimentavam violências distintas daquelas que atingiam as brancas de outros estratos sociais11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,66 Piscitelli A. Recriando a (categoria) mulher? In: Algranti LM, organizadora. A Prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/ UNICAMP; 2002. p. 7- 42..

Na história das mulheres, existia também luta e resistência, que se intensificaram a partir da década de 195011 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017., período em que emergiram e se fortaleceram movimentos sociais ávidos por mudanças políticas e sociais. A revolução sexual, o feminismo e o movimento negro marcaram tal processo, apresentando importantes propostas quanto a políticas públicas e produções acadêmicas que significaram a ampliação de pesquisas articulando psiquiatria e direitos das mulheres11 Perrot M. Minha história das mulheres. 1. ed. São Paulo: Contexto; 2007.,22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017..

Também buscando transformações sociais, a reforma psiquiátrica brasileira investiu no deslocamento da compreensão dos sentidos e práticas quanto ao sofrimento psíquico com enfoque no respeito aos direitos humanos, acolhimento das singularidades e cuidado territorializado22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,55 Amarante PDC, Diaz FS. Os movimentos sociais na Reforma Psiquiátrica. Cad. Bras. Saúde Ment. 2012 [acesso em 2023 mar 27]; 4(8):83-95. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68655.
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. Tal processo consolidou a Raps no SUS, que representa enorme avanço22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,1313 Prado Y, Severo F, Gerrero A. Reforma Psiquiátrica Brasileira e sua discussão parlamentar: disputas políticas e contrarreforma. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 ago 1]; 44(esp3):250-263. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/3875.
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. Contudo, deve-se lembrar que a luta antimanicomial é um movimento sempre inconcluso22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,1313 Prado Y, Severo F, Gerrero A. Reforma Psiquiátrica Brasileira e sua discussão parlamentar: disputas políticas e contrarreforma. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 ago 1]; 44(esp3):250-263. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/3875.
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. Entendendo que a lógica manicomial pode ocorrer em quaisquer espaços, incidindo nos corpos e nas subjetividades das mulheres usuárias, cuidadoras e trabalhadoras da Raps, empreende-se esta pesquisa.

Material e métodos

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, trabalhando os polos epistemológico, teórico, morfológico e técnico em sua articulação dialética1414 Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2014. [acesso em 2021 set 1]. Disponível em: http://ensino.hospitalsiriolibanes.com.br/downloads/caderno-pesquisa-qualitativa-mestrado-2014.pdf.
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. Nessa direção, vinculou-se à hermenêutica-dialética, buscando compreender, estabelecer relações e construir conclusões e considerando as condições em que se produzem os textos. Trata-se de entender que sujeitos transformam a realidade, a qual atua sobre eles mesmos marcando a sua produção de pensamento. Depoimentos, falas e textos precisam ser interpretados, pois, como processos sociais com significado específico, resultante de múltiplas determinações1414 Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2014. [acesso em 2021 set 1]. Disponível em: http://ensino.hospitalsiriolibanes.com.br/downloads/caderno-pesquisa-qualitativa-mestrado-2014.pdf.
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Ao considerar esse objetivo, elegeu-se como sujeito de pesquisa o trabalhador da Raps que estivesse vinculado aos movimentos de luta antimanicomial. Apostou-se que trabalhadores envolvidos na luta antimanicomial estariam mais sensíveis às questões vinculadas às hierarquizações de gênero e diversidade de orientação sexual das mulheres cisgêneras na medida em que o compromisso ético do movimento é a garantia de direitos humanos e cidadania22 Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia; 2017.,33 Amarante PDC, coordenador. Loucos pela Vida: A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP; 1995.,44 Amarante PDC, Loyola MA. As Cores da Utopia: loucura, arte e a reforma psiquiátrica. Rev Electron. Comum. Inf. Inov. Saúde. 2014 [acesso em 2023 mar 27]; 8(1):56-59. Disponível em: https//www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/505.
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,55 Amarante PDC, Diaz FS. Os movimentos sociais na Reforma Psiquiátrica. Cad. Bras. Saúde Ment. 2012 [acesso em 2023 mar 27]; 4(8):83-95. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68655.
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Realizada sob efeitos da pandemia, a pesquisa aconteceu valendo-se das plataformas digitais. Assim, elaborou-se filipeta de convite para participação na pesquisa, que foi divulgada nas redes sociais de movimentos da luta antimanicomial com link que levava a formulário elaborado no aplicativo Google Forms, que ficou disponível por 15 dias.

Analisou-se a planilha consolidada com as informações dos formulários, excluindo-se os respondentes que: não concluíram o preenchimento; vinculavam-se a instituições privadas de saúde e/ou educação; trabalhavam exclusivamente com ensino e pesquisa; eram usuários ou familiares de usuários da Raps. Com isso, chegou-se a um total de nove sujeitos de pesquisa disponíveis para a realização da entrevista semiestruturada1414 Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2014. [acesso em 2021 set 1]. Disponível em: http://ensino.hospitalsiriolibanes.com.br/downloads/caderno-pesquisa-qualitativa-mestrado-2014.pdf.
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, que eram dos estados do Rio de Janeiro, de Pernambuco e de Mato Grosso do Sul.

As entrevistas individuais aconteceram por meio da plataforma Zoom, em dia e horário convenientes ao sujeito de pesquisa, e tiveram duração média de uma hora. Antes do início da entrevista, retomou-se o texto do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para o assentimento do participante em continuar o processo e em que fosse iniciada a gravação. Para garantir o sigilo e o anonimato, os participantes foram identificados pela letra E (entrevistado) e acrescidos números de um a nove. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, por intermédio da Plataforma Brasil, sob Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE nº 56479222.1.0000.5240 e parecer nº 5.371.655.

Quadro 1
Perfl dos sujeitos de pesquisa

O roteiro das entrevistas incluiu os seguintes aspectos: o trabalho desenvolvido na Raps; a importância do movimento da luta antimanicomial; a percepção da relação entre saúde mental e as mulheres, o modo como homens e mulheres experimentam o sofrimento psíquico e os efeitos do sofrimento psíquico na vida das mulheres; a forma como as mulheres chegam à Raps e se há abordagem específica para elas; a maneira como a mulher com sofrimento psíquico é vista pela sociedade; a existência ou não de situações vivenciadas por mulheres na sociedade que afetam sua saúde mental e se aparecem nos serviços da Raps; e a presença das mulheres como trabalhadoras de Raps e no serviço em que desenvolve suas atividades.

Transcreveu-se e sistematizou-se o conteúdo das entrevistas, depreendendo-se de sua análise os elementos que, segundo os participantes, marcariam a relação mulheres cisgêneras e saúde mental. São eles: a reforma psiquiátrica, a divisão sexual do trabalho, o exercício da maternidade, a violência de gênero e a violência autoprovocada. Tais elementos foram reorganizados na análise aprofundada de cada entrevista em diálogo com as categorias teóricas oriundas da revisão bibliográfica. No presente artigo, trabalhar-se-á com dois eixos analíticos: a maternidade e as violências.

Resultados e discussão

Quem tem direito a ser mãe? Mulheres com sofrimento psíquico e o exercício da maternidade

A psiquiatria contribuiu para a produção da maternidade como experiência a que o corpo das mulheres estava predestinado tendo em vista a sua função reprodutiva, tornando a negação desta um desvio de comportamento. No entanto, essa perspectiva traz um tensionamento que persiste: como lidar com o desejo da maternidade das mulheres ditas loucas?

Se a maternidade permanece entendida como o que ‘naturalmente’ caracteriza uma mulher, simultaneamente, continua não ‘aconselhável’ nem ‘permitida’ às mulheres pobres que fazem uso de álcool e outras drogas e àquelas com sofrimento psíquico.

Segundo os entrevistados, as mulheres que chegam aos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD) são, frequentemente, encaminhadas pelo Conselho Tutelar ou pelo judiciário em processos que envolvem a guarda e o cuidado de seus filhos. É comum que mulheres que fazem uso de álcool e outras drogas sejam avaliadas por serviços da rede de proteção à criança e ao adolescente sob suspeita de negligência no cuidado com seus filhos e, em muitos desses casos, sejam destituídas do poder familiar.

A gente vê pessoas sofrendo situações, perda de poder familiar pela mulher por ela fazer um uso de substância que nem é um uso problemático [...] como se ela tivesse que ser a pessoa perfeita da família. O preconceito dos serviços de proteção por exemplo. A gente percebe várias mulheres que perderam os filhos, a criança fica abrigada e às vezes ela tem o cuidado com a criança, elas demonstram afeto, mas perdem a criança por serem usuárias de drogas. (E3).

Por vezes, as medidas de acolhimento institucional para o bebê acontecem logo após o nascimento, já que são poucos os serviços de proteção e apoio econômico direcionados para a manutenção do binômio mãe-bebê junto. Assim, essas mulheres não encontram proteção para o exercício da maternidade.

Uma usuária daqui que estava em situação de rua grávida, foram feitas várias reuniões solicitando o acolhimento dela e não conseguimos, por ela estar grávida, estar em situação de vulnerabilidade e usando drogas não conseguimos o acolhimento dela. E aí ela foi ter o neném e o hospital encaminhou a demanda ao Conselho Tutelar e solicitou uma vaga em acolhimento para ela e para a criança. E não tinha esse lugar. A criança vai para o abrigo e ela não vai ter direito de cuidar da filha. (E3).

Todas as mulheres que derem à luz naquela maternidade e que tenham algum histórico, seja recente ou de 20 anos atrás de uso de drogas, a justiça precisa ser notificada e aí isso é uma tristeza sem tamanho [...] porque a gente tem uma situação de mulheres que dão à luz e não levam a criança para casa. (E2).

Os serviços de acolhimento institucional são voltados apenas para as crianças após o ‘afastamento’. Os profissionais encontram dificuldades em realizar ações que contribuam para a promoção da família diante da ausência de políticas públicas de proteção e apoio à maternidade que considerem as dificuldades materiais, os estigmas e toda a fragilidade vivenciada por essas famílias.

O que é o papel dessa mãe? Tem o Estatuto da Criança e do Adolescente relacionado a isso. Mas o quanto que isso recai para as mulheres de uma maneira diferente em relação ao que acontece com os homens. Também no Caps AD onde eu atuo, a gente tenta fazer um trabalho inclusive de tentar minimamente desconstruir e dizer que essas mulheres… tentar algum diálogo com a justiça pra dizer que essas mulheres mesmo sendo usuárias elas podem ser mães caso elas queiram. (E2).

Tais mulheres são julgadas a partir dos modelos ideais de mãe, família e moradia calcados na perspectiva da família patriarcal nuclear produzida na articulação dos modelos da burguesia europeia e do higienismo. Desconsideram-se a construção social das famílias brasileiras e como a dinâmica familiar é efeito da realidade social e econômica, bem como a possibilidade de vinculação e de exercício do cuidado, desumanizando e tutelando tais corpos.

No entanto, vê-se que as mulheres procuram formas de resistir à perda da guarda de seus filhos e à sustentação de seu desejo de maternidade, mesmo que isso represente maior risco à sua saúde e à sua segurança.

Em dois casos, o que elas fizeram? essas mães perderam os filhos, dois, três filhos, e aí numa próxima gravidez elas saíram pra fora da cidade, para ter filho em outro lugar para conseguir ficar com aquela criança que nasceu depois. Teve uma paciente que pra não perder esse filho, ela entregou o filho para um familiar que era do tráfico de drogas, e aí ninguém entrava lá para pegar, nem o conselheiro conseguiu entrar lá para pegar. A forma que ela teve de ter acesso a essa criança e proteção foi dentro do tráfco. (E3).

Um cuidado territorializado implica compreender as singularidades das mulheres, as suas possibilidades de existência e de suas famílias diante da ausência de direitos fundamentais em espaços marcados pela desigualdade social e pela violência. Sem políticas públicas garantidoras do direito à maternidade, o ‘poder paralelo’ faz a mediação e ‘intercede’ por essas mulheres e sua maternidade.

Em outra direção, barganha-se o direito à maternidade em relação à adesão ao ofertado pela Raps. Se o tratamento se faz possibilidade de retomar a guarda do filho e investir em um projeto de vida menos vulnerabilizado, então as mulheres se aproximam das equipes de saúde – o que cria impasses e frustrações, e “quando não conseguem recuperar os filhos, abandonam esse cuidado” (E3).

Apesar da militância na luta antimanicomial, persiste a vinculação da loucura à ideia de incapacidade que, no caso de mulheres, é extensiva ao exercício da maternidade. Referindo-se à gestação de mulheres com sofrimento psíquico considerado ‘grave’, os entrevistados falam da preocupação com relação a medicamentos e danos à saúde mãe-bebê, à sustentabilidade financeira e à sobrecarga emocional.

Um dos entrevistados diz que quando uma paciente fala sobre gestação, em geral, “já está grávida” (E9), e que se soubesse antes do seu desejo de engravidar, investiria em fazê-la mudar de ideia.

Se uma paciente fala que quer engravidar, nós vamos ter que pensar em como ela vai poder... Às vezes tem paciente que é curatelado. Como é que vai fazer para cuidar dela e da criança? Mas às vezes nunca aconteceu, de verdade. Eu te falo sabendo que é uma questão difícil. [...] Eu acho que eu tentaria conversar com ela para nós pensarmos em outros projetos ou pensar muito bem, porque é assim, não vai ser fácil. (E9).

Uma gestação poderia e deveria integrar o projeto de vida de mulheres atendidas na Raps. No entanto, não foram citadas nas entrevistas informações sobre a realização de trabalhos referentes a planejamento familiar nos serviços, tampouco se fez referência a encaminhamento e/ou ação intersetorial para a abordagem da gestação e da maternidade de pessoas em acompanhamento de saúde mental.

Por certo, a maternidade representa desafios para mulheres com sofrimento psíquico tendo em vista o estigma da ‘doença’, as dificuldades com relação a sua autonomia e o uso dos psicotrópicos. No entanto, muitas delas perdem a guarda de seus filhos por serem consideradas, a priori, incapazes para o cuidado. É fundamental que se questionem tal ideia de ‘incapacidade’ e o direito à maternidade das mulheres em acompanhamento pela saúde mental.

A construção do feminino a partir da violência

A violência foi descrita pelos entrevistados como um fenômeno muito presente na vida das mulheres atendidas na Raps. Segundo eles, quase todas trouxeram relatos sobre episódios de violência sofridos em algum momento de suas vidas, especialmente de violência sexual na infância e/ou juventude e de violência psicológica. Os trabalhadores percebem que as histórias de violências aparecem com maior frequência nos discursos femininos quando comparados aos de homens atendidos.

O sofrimento dessas mulheres era muito tocado a partir da violência de gênero. Então o uso das substâncias era algo irrisório frente ao sofrimento que viviam que era em sua maioria das vezes desencadeado também por violências, violências estruturais, violência física, violência psicológica, sobretudo todas elas do grupo passaram por violência psicológica. Então é um sofrimento muito diferente, é um sofrimento que tem uma causalidade na forma como a gente se organiza se constrói e vive como mulher no mundo e no Brasil. (E4).

Alguns sofrimentos que a gente percebe no Caps são muito pautados por essa coisa da violência sexual. A gente vê muito isso de mulheres que estão nesse momento de crise, chegam com a depressão, chegam com um ponto crítico na vida. Isso salta aos olhos. E a gente vai discutir na reunião clínica os casos e sempre tem, sempre tem uma história de abuso de alguma forma, como essa mulher foi violada. E aí depende se foi na infância, se foi na juventude ou se foi recentemente. Habitualmente na juventude. E os casos são muito maiores do que os casos que os homens sofrem violência. Essa coisa da violência parece uma coisa que constitui as mulheres e constitui obviamente o sofrimento dela. (E1).

Nas entrevistas, a subjetividade feminina emerge como constituída pelo sofrimento e pela violência, afirmando-se que todas as mulheres estão sujeitas a sofrerem violências nos espaços que ocupam dentro ou fora de casa, bem como se estabelece a ideia de que a violência é possível causadora de sofrimento psíquico. Entretanto, chama atenção que a constatação da violência e do sofrimento como elementos basais na construção do ser mulher na sociedade brasileira não é acompanhada de reflexões críticas nem de atitudes de transformação da situação, sendo, em grande parte dos relatos, absolutamente naturalizada.

Destaca-se, ainda, que, apesar do reconhecimento da presença da violência na vida das mulheres, quando as situações de violência aparecem nos relatos daquelas que fazem acompanhamento Raps, são, por vezes, desconsideradas. Os relatos são classificados como delirantes de modo que a ideia da violência como causadora de sofrimento é relativizada ou negada quando se trata das usuárias da Raps. Muitas vezes, tais usuárias são desacreditadas, e suas narrativas atribuídas à personalidade e ao diagnóstico.

Muitas vezes vejo profissionais minimizando o sofrimento dessas mulheres a partir do argumento e da cristalização do diagnóstico, são histéricas, são border, são histriônicas, logo estão somatizando, estão teatralizando, isso tem um efeito importante no modo de leitura do sofrimento logo no modo de oferta de cuidado. (E7).

Isso pra mim é uma das coisas mais difíceis de lidar, porque muitas vezes a mulher vem e fala que apanhou do marido ou do pai. E aí você vê aquela pessoa totalmente acolhedora e às vezes toda a família com assim dizendo que ela que tá maluca. E aí? [...] E digo para você que até difícil situações em que a gente faz assim a notificação outras não se faz tamanho sofrimento daquela família, não tem a notificação necessariamente. Às vezes é difícil. Eu fico pensando será que o cara bateu mesmo? Que o cara não agrediu? e às vezes está lá a mãe dela, o pai dela, os filhos dela e dizendo que ela que não tá bem. E aí é difícil, é difícil você até saber como agir nessas situações. Em saber no que acreditar. (E5).

Diante da dúvida sobre a veracidade das informações apresentadas pela mulher, geralmente, não são feitas notificações, denúncias nem encaminhamentos para serviços de apoio às vítimas de violência. Isso tem implicações no cuidado oferecido a essa mulher, na garantia da sua segurança e na subnotificação das situações de violência contra a mulher.

Quando o tema é violência autoprovocada, os entrevistados observaram aumento do número de tentativas de suicídio. Considerando as pessoas que chegam aos serviços de emergência psiquiátrica em consequência de situações de tentativa de suicídio, os participantes disseram que a maioria é de mulheres e, normalmente, jovens. Entre as situações que levam mulheres jovens a tentar suicídio, estão tensões intergeracionais; preconceito, repressão sexual e conflitos com familiares que ‘não aceitam’ sua orientação sexual e a pressão social para que elas correspondam ao ideal feminino instituído pela perspectiva patriarcal.

De acordo com o Ministério da Saúde1515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico nº 33. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil. Brasília, DF: MS; 2021 set 20. [acesso em 2022 ago 1]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf/view.
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-...
, a maioria das vítimas de morte por suicídio no Brasil é de homens, mas mulheres representam o maior grupo com ideações e tentativas de suicídio. Em 2019, foram registrados 124.709 casos de lesões autoprovocadas no País, um aumento de 39,8% em comparação ao ano de 2018. Em 71,3% dos registros realizados, as vítimas eram mulheres, na maior parte dos casos (46,3%), na faixa etária de 20 a 39 anos, seguida pela de 15 a 19 anos (23,3%). Tais diferenças podem ser explicadas pelo fato de que homens utilizam métodos mais letais e são mais resistentes a buscar atendimento na Raps.

O homem para chegar e dizer que precisa desse suporte já está um longo período nessa caminhada sofrendo ou buscando outros meios de responder à sua necessidade. (E5).

Outro aspecto central na produção de sofrimento intenso vincula-se, segundo os entrevistados, aos impactos da desigualdade social. As mulheres encontram-se em extrema vulnerabilidade social diante do desemprego, da solidão, da falta de moradia e da fome. Uma das entrevistas menciona que muitos profissionais acreditam que a medicação vai retirar todo o sofrimento da vida de mulheres, mas defende que “saúde mental não é só feita dentro do serviço” (E4), sublinhando que, durante as visitas domiciliares, percebe as condições precárias em que vivem muitas usuárias da Raps.

O caso que eu acompanhava, que era uma usuária com três filhos, histórico de um já estar para adoção no abrigo e os filhos ficarem em situação de rua com ela. E ela falou que não tinha mais o que dar para comer aos filhos, que foi pedir dinheiro e conseguiu comprar feijão, cozinhou o feijão e colocou chumbinho e ia dar para eles. Ela já tinha o planejamento de dar o feijão com chumbinho para os filhos comerem e ela ia comer, ela dizia que é insuportável ver os filhos passando fome. (E2).

Embora seja preconizado um cuidado territorializado, ou seja, vinculado ao espaço físico e social em que a vida se constrói em toda sua complexidade, percebe-se que persiste uma abordagem exclusivamente setorial das necessidades em saúde e, muitas vezes, apenas farmacologizada do sofrimento psíquico.

Pesquisas apontam que são as mulheres que mais consomem substâncias lícitas, como fármacos antidepressivos e ansiolíticos16. Uma das entrevistadas diz que, no serviço em que trabalha, é comum a chegada de mulheres que fazem uso dessas medicações:

Esse grupo de saúde mental da minha unidade tem o intuito de trabalhar isso, de criar uma oportunidade de desmame. Muitas mulheres tomam medição para ansiedade, são dependentes desses remédios. Quando a gente propõe uma mudança a reação é muito negativa, porque existe um apego, o remédio vai curar, ‘o remédio cura, salva e liberta’ e a gente busca trabalhar de uma forma diferenciada o bem-estar e a autoestima. (E6).

Ao partir da ideia de que mulheres sofrem maior pressão social, os entrevistados acreditam que aquelas com sofrimento psíquico, além do estigma da loucura, sofrem preconceito pelo simples fato de serem mulheres. Ou seja, na experiência delas, associam-se a misoginia e a opressão pela ‘desrazão’.

No entanto, quando se perguntou sobre como os trabalhadores lidam com as questões relacionadas com a desigualdade de gênero nos serviços, eles disseram que há momentos em que se reproduzem determinados estereótipos de gênero. Uma das entrevistadas afirmou que “essa coisa do estereótipo que a gente tem da histeria da mulher é sempre um tom a mais” (E5). As mulheres são consideradas mais ‘viscosas, barulhentas e críticas’. Outra entrevistada conta que já ouviu de profissionais de saúde da Raps que as usuárias são culpadas por experimentarem situações de violência e assédio sexuais.

Quando uma mulher diz que já se sentiu violentada ou assediada, ou importunada tem sempre um ‘mas também ela deu uma risadinha’, ‘mas também ela fica se oferecendo’. Mas eu acho que já melhorou bastante porque as mulheres que trabalham no Caps em que eu trabalho a gente faz questão de pontuar isso incessantemente. Eu acho que de certa forma a gente se percebe um pouco atingida quando isso acontece. (E2).

Os entrevistados dizem que há trabalhadores que ‘respeitam’ e ‘compreendem’ o sofrimento de mulheres como parte da ‘doença mental’, do ‘transtorno’. No entanto, devido ao julgamento moral de parte das equipes, o sofrimento psíquico de mulheres também é associado à ‘frescura’, ao ‘excesso de sensibilidade’. De acordo com os entrevistados, é comum que mulheres com ansiedade e depressão, mesmo aquelas que tentaram suicídio, sejam ‘classificadas’ como ‘sensíveis’, e seus relatos, entendidos como ‘frescura’.

Tem aqueles que respeitam, que têm o cuidado e que têm a atenção. E entendem que aquilo é um movimento de crise, que é o momento de doença que precisa ser cuidado. Alguns podem achar que é frescura. E é isso acontece muitas vezes, não com paciente psicótico, acontece principalmente com pacientes mulheres que tentam suicídio. Que é o número muito expressivo, muito mais expressivo, eu tenho observado isso na emergência de mulheres que tentam suicídio, mulheres jovens e muitos jovens mesmo. (E5).

Algumas trabalhadoras afirmam que, ao presenciarem julgamentos morais ou comentários preconceituosos de outros profissionais da equipe sobre mulheres, fazem questão de intervir e de se posicionar, utilizando seu lugar de fala na tentativa de fomentar o debate sobre a utilização e a banalização de determinados termos e atitudes na condução dos casos.

Parte dos entrevistados consideram que é importante lançar luz e debater as questões relacionadas com a desigualdade de gênero e seus efeitos na saúde mental de mulheres. Contudo, é possível perceber que persiste um julgamento moral e religioso que atravessa a produção de cuidado em saúde mental na medida em que está presente na escuta profissional e na percepção acerca do sofrimento das mulheres. Além disso, o olhar machista e preconceituoso a respeito do feminino desconsidera aspectos importantes de sua realidade, reproduz as lógicas patriarcal e manicomial, que contribuem para o sofrimento psíquico e o silenciamento de mulheres.

Considerações finais

Este trabalho buscou refletir sobre as relações de gênero e a saúde mental a partir do lugar das mulheres cisgêneras como usuárias e trabalhadoras da Raps e dos sentidos que lhes são atribuídos por profissionais de serviços públicos da saúde mental e membros de movimentos da luta antimanicomial.

A relação das mulheres cisgêneras com a saúde mental foi representada pelos entrevistados por meio do exercício da maternidade, que é visto com suspeição quando se trata de usuárias da Raps, e das violências, que funcionam como disparadores de sofrimento psíquico em mulheres e, ao mesmo tempo, podem ser invisibilizadas quando enunciadas pelas usuárias.

Se a maternidade e o cuidado resumem o que ‘naturalmente’ caracteriza a experiência de ser mulher, então é criado um lugar de exceção para as mulheres em sofrimento psíquico posto que, a elas, é atribuído o rótulo de incapazes de ambos. O desejo da maternidade tende a não ser acolhido pelas equipes e até mesmo desestimulado. Na maioria das vezes, à saúde mental e à justiça, cabe retirar-lhes a prole a fim de proteger as crianças da sua desrazão e/ou do uso de álcool e outras drogas.

O mesmo processo de deslegitimação acontece quando se trata das violências que são minimizadas, questionadas e/ou invisibilizadas quando emergem de corpos ‘diagnosticados’, apesar de serem reconhecidas como produtoras de sofrimento psíquico e de seu agravamento. Tais mecanismos expõem as mulheres cisgêneras usuárias da Raps a situações crescentes de vulnerabilização, retirando-lhes os direitos de proteção garantidos pela legislação. Simultaneamente, a subnotificação dos casos de violência nessa população invisibiliza a necessidade de políticas públicas mais efetivas de proteção e garantia de direitos.

Nessa direção, percebeu-se que a proposição de estratégias intersetoriais para proteção de mulheres em sofrimento psíquico que experimentam situações de violência e/ou a maternidade são poucas e, na maior parte das vezes, insuficientes na medida em que operam a partir das ideias de ‘incapacidade, doente mental, delírio, frescura’.

O respeito à autonomia, à singularidade e à integralidade do cuidado não pode se limitar a valores e compromissos éticos pessoais dos profissionais uma vez que são diretrizes das políticas públicas de saúde. Mesmo considerando a presença majoritária de mulheres entre os trabalhadores Raps, a persistência de elementos vinculados ao machismo, ao patriarcado e à lógica tutelar daquelas que sofrem psiquicamente emergiu nas falas dos sujeitos de pesquisa. Nessa perspectiva, as trabalhadoras entrevistadas afirmaram que movimentos de tensionamento das hierarquizações de gênero reproduzidas nos serviços são tímidos e que, hegemonicamente, persiste a naturalização dos discursos e das práticas marcados pelo machismo e pelo sexismo, inclusive na organização e na gestão dos processos de trabalho.

Parece fundamental, pois, apontar que há necessidade de estratégias de educação permanente para atuações mais qualificadas no cuidado em saúde mental e para a organização de serviços da Raps que incluam a discussão das hierarquizações de gênero e seus efeitos.

Entende-se que a discussão sobre gênero, mulheres e saúde mental é vasta e que não se esgota nas considerações e nas contribuições feitas neste trabalho. Aposta-se na possibilidade de mobilizar as trabalhadoras, as usuárias e os familiares para a garantia de um cuidado integral em saúde mental mais atento à construção social das hierarquizações de gênero, a fim de engajá-las em processos de transformação da sociedade e das práticas estigmatizantes ainda existentes.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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