Notificação de violência da população LGBTQIA+ na perspectiva dos profissionais da ESF/Nasf, município do Rio de Janeiro

Valdete Maria da Silva Gisela Cordeiro Pereira Cardoso Dolores Maria Franco de Abreu Sobre os autores

RESUMO

Objetivou-se analisar as notificações de violência contra a população LGBTQIA+ na perspectiva dos profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica em duas clínicas da Área Planejamento (AP 5.1), no município do Rio de Janeiro. Foram coletados dados sobre violência contra a população LGBTQIA+ no sistema de informação do município, no período de 2013 a 2022. Foram caracterizadas as percepções dos profissionais sobre o que entendem como notificação de violência e descritos os fatores facilitadores e dificultadores na identificação da violência contra a população LGBTQIA+. Dentre os facilitadores, destacam-se: escuta qualificada e utilização de planilha de violência da Coordenadora da Área Programática. Dentre dificultadores, evidenciam-se: não identificação da violência LGBTIfóbica como demanda, dificuldade na abordagem do acolhimento, preconceito (profissionais) com a população LGBTQIA+, não utilização dos quesitos de identidade, orientação sexual e nome social. As estratégias identificadas para enfrentar as dificuldades envolvem ações de Educação Permanente em Saúde sobre a população LGBTQIA+ com as seguintes temáticas: abordagem no acolhimento, elucidação de conceitos de identidade de gênero, orientação sexual e políticas públicas e violência. O estudo sugere a qualificação dos profissionais da ESF, a assistência transversal interdisciplinar e a criação de grupo temático intersetorial.

PALAVRAS-CHAVES
Violência de gênero; Notificação; Pessoas LGBTQIA+; Saúde da família

Introdução

A Word Health Assembly Resolution (WHA 49.25), da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2002, tornou-se um marco para as ciências da saúde ao declarar que a violência é um dos principais problemas de saúde pública. O Brasil dirige sua intervenção à violência considerando-a como um problema de saúde pública, tomando como base as diretrizes da OMS11 Por E, Krug E, Dahlberg L, et al., editores. Relatório mundial sobre violência e saúde. Geneva, World Health Organization, 2002. [acesso em 2023 maio 6]. Disponível em: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/ arquivos/201706/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude.pdf
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Segundo Minayo22 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de janeiro: Fiocruz; 2006 [acesso em 2023 maio 6]. 132 p. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/37579.
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, a violência é um fenômeno que deve ser considerado a partir de uma análise sócio-histórica, relacionada com as disputas de poder. É representada por atos violentos como: ameaças, negligências e omissões. Além disso, é vivenciada subjetiva e sigilosamente, legitimada pela garantia da vergonha da vítima na certeza da absolvição do perpetrador da violência. Uma vivenciada no âmbito individual é tratada coletivamente pela política pública22 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de janeiro: Fiocruz; 2006 [acesso em 2023 maio 6]. 132 p. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/37579.
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Mediante a crescente demanda dos atendimentos atribuídos aos casos de violência nas unidades emergências, em 2001, o Brasil institui a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências33 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2005 [acesso em 2023 maio 14]. 63 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_ reducao_morbimortalidade_acidentes_2ed.pdf.
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Em 2006, no País, o Ministério da Saúde (MS) estabeleceu o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), que unificou todos os sistemas de informação das fichas de notificações em território nacional. Esse sistema dispõe sobre as naturezas de violências, sendo elas: física, sexual, psicológica, privação, negligência, tortura, tráfico de seres humanos, financeira, trabalho infantil e a intervenção legal44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 2023 maio 16]. 94 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
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A violência LGBTIfóbica tem sua gênese a partir da ‘heteronormatividade’ compulsória, imposta pelo binarismo de gênero. Esta sinaliza uma norma aceita e institucionalizada no que se refere ao afeto entre pessoas, determinando que ele apenas seja possível entre gêneros opostos, desconsiderando qualquer possibilidade fora desse eixo55 Jesus J. Homofobia: identificar e prevenir. 2. ed. Rio de Janeiro: Lea Carvalho; 2015. 116 p..

Para fins deste artigo, será utilizada a sigla LGBTQIA+: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Travestis, Queers, Intersexos, Assexuais, e o sinal + contempla as demais diversidades de gênero/orientação sexual55 Jesus J. Homofobia: identificar e prevenir. 2. ed. Rio de Janeiro: Lea Carvalho; 2015. 116 p..

A violência LGBTIfóbica passa a ser identificada por crimes de ódio, enquadrada em crime de racismo. Esse termo tem sido usado para contextualizar a violência contra todo o segmento LGBTQIA+, em que travestis e transgêneros são as vítimas com o maior índice de mortalidade, posicionando o Brasil como o país que mais mata população trans no mundo66 Benevides BG. Associação nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022 [acesso em 2023 maio 15]. 142 p. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2022/01/ dossieantra2022-web.pdf.
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A notificação de violência é um dos instrumentos da política pública de saúde. Observase a partir de estudos que a subnotificação é uma fragilidade institucional, resultado do despreparo de alguns profissionais de saúde – seja ao não identificar as possíveis consequências da violência no atendimento, seja em não considerar situações de violência uma questão de saúde pública77 Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell’Aglio DD, et al. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2013; 18(5):1263-1272..

A Ficha de Notificação de violência é um instrumento que serve para apresentar o quadro epidemiológico de doenças e agravos, incluindo os eventos de violência. Destina-se a subsidiar ações de planejamento, monitoramento, avaliação e execução de políticas públicas integradas e intersetoriais. Também é um instrumento que norteia a promoção da saúde e de cuidado. Nesse sentido, cabe aos gestores federativos investirem na prevenção e em políticas sociais de proteção. Em relação à população LGBTQIA+, é fundamental dar visibilidade aos dados coletados no atendimento em situações de violência, principalmente no que se refere à notificação, uma vez que, com esses dados, criam-se políticas públicas voltadas a essa população33 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2005 [acesso em 2023 maio 14]. 63 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_ reducao_morbimortalidade_acidentes_2ed.pdf.
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Cabe a pergunta, portanto: qual a percepção dos profissionais de saúde sobre a notificação de violência? Ademais, quais são os fatores que facilitam ou dificultam a identificação da violência na saúde da população LGBTQIA+? Acredita-se que as respostas a essas questões poderão subsidiar as ações de Educação Permanente em Saúde (EPS) promovidas pelo Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), agora renomeado como eMulti (Equipe Multidisciplinar), mitigando as consequências do não preenchimento da Ficha de Notificação de situações de violência contra a população LGBTQIA+.

Este artigo visa, assim, analisar o processo de notificação dos casos de violência em relação à população LGBTQIA+ pela perspectiva dos profissionais de nível superior da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Nasf-AB de duas clínicas de saúde da família da Área de Planejamento (AP) 5.1 do município do Rio de Janeiro.

Material e métodos

Estudo descritivo, de análise qualitativa, realizado em duas clínicas da família da AP 5.1 do município do Rio de Janeiro. A pesquisa qualitativa visou responder às questões da realidade social dos sujeitos, a partir de suas vivências, em meio às relações sociais. Analisou-se o processo de notificação dos casos de violência em relação à população LGBTQIA+ no território adstrito a duas Clínicas de Saúde da Família, sobre o prisma dos profissionais de nível superior da ESF e do Nasf-AB88 Deslandes S, Gomes R, Maria CM, et al. Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. 26. ed. Petrópolis: Vozes; 2007..

Para a coleta de dados, foi realizada uma análise documental sobre as notificações da violência na população LGBTQIA+, incluindo o arcabouço legal. Também foi realizada análise do sistema de informação de violência, no período de 2013 a 2022,encontrado no TabNet, tabulador desenvolvido pelo DataSUS, sistema para gerar informações na base de dados do Sistema Único de Saúde (SUS)99 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: edições 70 Persona; 1977. 118 p..

Aplicou-se um questionário semiestruturado, autorresponsivo, aos profissionais de saúde de nível superior da ESF das duas clínicas selecionadas, a saber: médicos, enfermeiros, odontólogos, além dos profissionais do Nasf-AB da AP 5.1, incluindo psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, nutricionista e profissional de educação física. Obteve-se a anuência formal da AP5.1 para a realização do estudo nas duas clínicas da família envolvidas, mediante assinatura do profissional responsável e aprovação dos Comitês de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 55708722.4.0000.5240 e parecer nº 5.938.584; e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), CAAE nº 55708722.4.3002.5279 e parecer nº 5.894.967.

Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes roteiros: a) análise documental; b) análise do sistema de informação; e c) questionário semiestruturado. No questionário, foram explorados os seguintes tópicos: perfil social (gênero, idade, profissão e tempo de experiência na ESF); conhecimento sobre o protocolo de acolhimento dos casos de violência contra a população LGBTQIA+; realização de ações de acolhimento e atendimento dos casos de violência identificados, notificação da violência; e utilização dos fluxos da rede intersetorial para encaminhamentos.

No questionário, levantaram-se questões aos profissionais de saúde entrevistados sobre sua atuação com a população LGBTQIA+, como: identificação de suas atribuições e demandas relacionadas com a assistência da violência LGBTIfóbica; conhecimento do protocolo de atendimento nas situações de violência; conhecimento sobre os campos na Ficha de Notificação do Sistema de Informação de Agravo de Notificação (Sinan), em especial, os quesitos relativos a nome social, identidade de gênero, orientação sexual e motivação da violência; compreensão sobre como realizar as ações de notificação de violência da população LGBTQIA+; além de aferir se os profissionais identificam as situações de violência nessa população e quais desdobramentos devem ser realizados99 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: edições 70 Persona; 1977. 118 p..

A pesquisa visou identificar nas demandas dos profissionais quais os aspectos facilitadores e dificultadores do enfrentamento da violência LGBTIfóbica em seus atendimentos, além disso, abordou sobre a apropriação e vínculo com a rede intersetorial constituída pelos: Conselho Tutelar (CT); Centro de Referência da Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e intersetorial; Centro Psicossocial Adulto e Infantil (Caps, Capsi); Ambulatório de Saúde Mental e Psiquiatria, todos componentes da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Finalmente, o roteiro visou alçar sugestões de temas para ações de EPS que fomentem o conhecimento sobre o tema LGBTQIA+ entre profissionais de saúde.

Foi realizada uma análise de conteúdo temático dos tópicos abordados no questionário e dos documentos, no sentido de apreender categorias analíticas relacionadas com a identificação dos casos de violência, o acolhimento, o manejo e o acompanhamento das situações de violência, assim como a articulação com a rede99 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: edições 70 Persona; 1977. 118 p..

A análise metodológica foi realizada por meio de triangulação de técnicas e fontes de evidências, o que implicou analisar as ações de notificação da violência da população LGBTQIA+ a partir da perspectiva dos diferentes atores entrevistados e dos documentos analisados99 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: edições 70 Persona; 1977. 118 p..

Resultados e discussão

Os dados de notificação de violência contra a população LGBTQIA+ na Atenção Primária do município do rio de janeiro, no período de 2013 a 2022

Os dados de notificação da violência foram acessados no TabNet, na área exclusiva para profissionais, no site da Secretaria de Promoção de Saúde, Atenção Primária e Vigilância deSaúde (Subpav).Foramutilizados os seguintes filtros: ano de notificação, todos os meses de notificação, frequência, área de ocorrência e área de planejamento, bairro de ocorrência, orientação sexual, motivação da violência (homofobia/transfobia) e natureza da violência. Foram encontrados os dados abaixo apresentados nas tabelas 1 e 2.

Tabela 1
Notificação de violência interpessoal/Autoprovocada na AP 5.1 segundo motivação, período de 2013 a 2022
Tabela 2
Notificação de violência Interpessoal/Autoprovocada, por motivação de homofobia/transfobia, e orientação sexual (homossexual), na AP 5.1, por residentes do bairro de Realengo, segundo natureza, período de 2013 a 2022

Na tabela 1, observa-se que, no período de 2013 a 2022, foram notificados 30 casos de violência por homo/transfobia. Em 2021, houve um aumento exponencial em relação aos casos ocorridos em 2020. Para o Grupo Gay da Bahia (GGB), no Relatório de 20211111 Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil. Dossiês do Observatório. Observatório LGB-TIfobia. 2022 maio 20 [acesso em 2023 maio 30]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/todos-dossies/mortes-lgbt-brasil/.
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, esse aumento se deve ao descaso dos governantes em não legitimar os marcadores de violência dirigidos à população LGBTQIA+ como fonte de dados para monitoramento e enfrentamento dos casos de violência. Correlacionado à justificativa do aumento, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) constata que o aumento foi fomentado pela ideologia de governo daquele período66 Benevides BG. Associação nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022 [acesso em 2023 maio 15]. 142 p. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2022/01/ dossieantra2022-web.pdf.
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A negação da realidade da violência específica LGBTIfóbica enraizada na sociedade pelo discurso ideológico e preconceituoso, aliado à ausência dos dados epidemiológicos da violência da população LGBTQIA+, como orientação sexual e/ou identidade de gênero, descontextualiza a violência, que passa a ser vista como atos dolosos, acidentes de trânsitos, furtos seguidos de morte, e não como fonte de violência LGBTIfóbica. O mesmo documento enfatiza a subnotificação como uma realidade que revitimiza e retira os direitos fundamentais dessa população. Os quesitos como o nome social, identidade de gênero, orientação sexual e motivação da violência são sub-registrados ou respondidos pelo profissional de saúde sem consultar o usuário66 Benevides BG. Associação nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022 [acesso em 2023 maio 15]. 142 p. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2022/01/ dossieantra2022-web.pdf.
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A dificuldade em obter dados oficiais é historicamente imposta pelos organismos governamentais, negando continuamente a violência LGBTIfóbica, reforçando a invisibilidade da população LGBTQIA+. Nesse sentido, a oferta de assistência para a população LGBTQIA+ torna-se frágil, uma vez que os profissionais não transversalizam os cuidados conforme as demandas dessa população, de tal forma que rótulos fortalecem o estigma da discriminação por orientação sexual e gênero, agravando o sofrimento mental1212 Ferreira BO, Pedrosa JIS, Nascimento EF. Diversidade de gênero e acesso ao Sistema Único de Saúde. Rev. Bras. Promoc. Saúde. 2018; 31(1):1-10..

A SMS-RJ, em maio de 2022, apresentou os dados de monitoramento da violência interpessoal/autoprovocada e violência sexual entre os anos de 2012 e 2022. Foram utilizados os seguintes marcadores de notificação de violência: mês, ano; residentes no Rio de Janeiro; ciclo de vida; sexo biológico; raça/ cor; por ano e AP. Nesse relatório, não foram inseridos os marcadores sobre orientação sexual, identidade de gênero e motivação da violência, corroborando a premissa da não observância dos eventos de violência contra a população LGBTQIA+1313 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Fluxograma da notificação da violência autoprovocada/ interpessoal. Rio de janeiro: Secretaria municipal de Saúde; 2022. [acesso em 2023 maio 13]. Disponível em: https://subpav.org/aps/uploads/publico/repositorio/ SVS_FluxoViolencia_atualizado_maio2022_(2).pdf.
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. Cabe ressaltar que a violência interpessoal ocorre na família ou por parceiros íntimos e comunitários. Já a violência autoprovocada é dirigida a si mesmo44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 2023 maio 16]. 94 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
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O Instrutivo Viva destaca que os quesitos identidade de gênero, orientação sexual e motivação da violência por homo/transfobia foram implantados na Ficha de Notificação de violência como agravo à saúde a partir de 2014, mas a implantação deles ocorreu na ficha da versão 5.0 em 201544 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 2023 maio 16]. 94 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
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Ao buscar dados comparativos, ocorreram 185 notificações de violência contra a população LGBTQIA+ na cidade do Rio de Janeiro. Segundo o GGB, em 2014, houve 12 assassinatos, tornando esse município o terceiro em números de eventos de violência LGBTIfóbica com 12,12% dos casos da região. No ano seguinte, não houve alteração1111 Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil. Dossiês do Observatório. Observatório LGB-TIfobia. 2022 maio 20 [acesso em 2023 maio 30]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/todos-dossies/mortes-lgbt-brasil/.
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Ainda sobre os registros de violência, a SMS-RJ, em 2022, apresentou os dados sobre a violência motivada por homo/transfobia ocorridos no ano de 2021. Nesse contexto, os dados a respeito da motivação da violência por homofobia foram 315; bifobia, 139; em relação à violência motivada por identidade de gênero contra travestis, 13; transexuais, 47. Cabe ressaltar que os dados apresentam ao menos uma notificação por dia1313 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Fluxograma da notificação da violência autoprovocada/ interpessoal. Rio de janeiro: Secretaria municipal de Saúde; 2022. [acesso em 2023 maio 13]. Disponível em: https://subpav.org/aps/uploads/publico/repositorio/ SVS_FluxoViolencia_atualizado_maio2022_(2).pdf.
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A violência física lidera os indicadores, seguida por violência psicológica e sexual. A violência sexual é mais notificada entre adolescentes1414 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev. Bras. Epidemiol. 2020; 23:e200006. SUPL.1..

A tabela 2 apresenta o quantitativo da ocorrência das naturezas.

Em consonância com os dados achados, no Dossiê da Antra, afirma-se que os eventos de violência registrados como crimes de ódio, em sua maioria, são de natureza física, os quais levam as vítimas a óbito, sendo praticados com crueldade, com a intenção de desumanizá-las, tais como apedrejamento, pauladas, atropelamento intencional, corpo queimado, tiros, homicídio doloso e ocultamento do corpo66 Benevides BG. Associação nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022 [acesso em 2023 maio 15]. 142 p. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2022/01/ dossieantra2022-web.pdf.
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O relatório de 2021 apresentado pelo GGB aponta a residência como o lugar mais desprotegido para a população LGBTQIA+ no Brasil, visto que são os locais de maior incidência de violência, atingindo o quantitativo de 110 casos, o que corresponde a 36,67%, no universo dos 300 casos ocorridos1111 Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil. Dossiês do Observatório. Observatório LGB-TIfobia. 2022 maio 20 [acesso em 2023 maio 30]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/todos-dossies/mortes-lgbt-brasil/.
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Perante o exposto, reflete-se quanto ao papel da intervenção da ESF como ordenadora do cuidado. Os estudos afirmam que a violência LGBTIfóbica tem maior incidência na residência. Essa realidade é atuante nos territórios cobertos pela ESF. No entanto, como identificar a ocorrência da violência, visto que o profissional não identifica os sinais dessa violência nos usuários pertencentes à população LGBTQIA+?1515 Silveira NO, Trindade CS, Bonamigo AW, et al. O pro-fissional da Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica e o enfrentamento à violência doméstica: uma revisão integrativa. Saúde Redes. 2022; 8(supl1):75-88..

Caracterização da percepção dos profissionais de saúde sobre o que entendem como notificação de violência

A pesquisa de campo foi realizada em 2022. Responderam ao questionário 13 profissionais, sendo 5 da equipe do Nasf-AB, composto por: fisioterapeuta, assistente social, nutricionista, psicólogo e profissional de educação física. Foram também entrevistados quatro profissionais da enfermagem e três médicos. Além disso, participou um cirurgião-dentista. O tempo de experiência dos profissionais da ESF e do Nasf-AB variou de 6 meses a 17 anos de atuação.

Sobre o fluxo de atendimento nos casos de violência intrafamiliar/autoprovocada, a SMS-RJ segue o fluxo estabelecido pelo MS, utilizando um protocolo no atendimento de casos suspeitos ou confirmados de violência. A maioria dos entrevistados declarou conhecê-lo, mas o tipo de descrição variou. As principais respostas giraram em torno de acolhimento, notificação e encaminhamento para a rede intersetorial (Cras, Creas, Defensoria Pública, CT) e a Raps via profissionais do Nasf-AB. A palavra acolhimento foi a mais citada pelos entrevistados, como observados abaixo:

O profissional psicólogo afirmou: “nos casos de violência sexual com penetração realizar os procedimentos de profilaxia e teste rápidos em até 48 horas”.

O profissional do Serviço Social informou que procede da seguinte forma: “Acolhimento, atendimento qualificado e sigiloso, profilaxia e Sinan”.

Segundo o MS, orienta-se solicitar os exames laboratoriais de contracepção emergencial, como também realizar a profilaxia das Infecções Sexualmente Transmissível (IST)/ aids e hepatite B, com medidas específicas nas primeiras 72 horas, e não em até 48 horas como colocado pelo profissional psicólogo1616 Brasil. Ministério da Saúde; Ministério da Justiça, Secretaria de Políticas para as Mulheres. Norma Técnica Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual com Registro de Informações e Coleta de Vestígios. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015 [acesso em 2023 maio 15]. 42 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_pessoas_violencia_sexual_norma_ tecnica.pdf.
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Os profissionais médico e da enfermagem afirmaram: “Conhecer o acolhimento, profilaxia, preenchimento do Sinan e a necessidade de acionar o Nasf-AB”. Somente um profissional, o dentista, relatou não conhecer as atividades vinculadas ao protocolo.

Sobre essa questão, os profissionais da equipe Nasf-AB sinalizaram conduzir os casos de violência segundo o protocolo exigido pelo MS. Ainda que esse eixo seja vinculado ao serviço social e à psicologia, na ausência dessas categorias na equipe, faz-se necessário que os demais possam conduzir os casos nas equipes de Saúde da Família1717 Patrocínio SSSM, Machado CV, Fausto MCR. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro. Saúde debate. 2015; 39(esp):105-119..

Aproximadamente a metade dos entrevistados sinalizou o conhecimento em realizar o procedimento da profilaxia, ou seja, as ações de prevenção pós-exposição às IST. Os profissionais do Nasf-AB ressaltaram que, quando o atendimento ocorre integralmente, entre as equipes de Saúde da Família e Nasf-AB, multidisciplinarmente, é mais fácil identificar e conduzir uma situação de violência.

Percebe-se que nas equipes de Saúde da Família, o apoio matricial ofertado pelo Nasf-AB nos casos de violência é uma estratégia de garantia de discussão e suporte. Como sinalizado por Patrocínio et al.1717 Patrocínio SSSM, Machado CV, Fausto MCR. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro. Saúde debate. 2015; 39(esp):105-119., o Nasf-AB é uma ferramenta implantada pelo governo federal na perspectiva de ampliação do alcance da assistência da Unidade Básica (UB), que visa oferecer o matriciamento e direcionar as resolutividades a partir das dimensões assistenciais e pedagógicas de intervenção de cuidado apresentadas pelas equipes.

A articulação em rede ainda é um desafio: apesar de as equipes da ESF manejarem o protocolo e seguirem o fluxo, e afirmarem o preenchimento da Ficha de Notificação, elas sinalizaram que deixam a articulação em rede a cargo da equipe Nasf-AB1717 Patrocínio SSSM, Machado CV, Fausto MCR. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro. Saúde debate. 2015; 39(esp):105-119..

Entre os anos de 2020 e 2021, a equipe do Nasf-AB preconizou as EPS nas atividades realizadas nas unidades. Percebeu-se que as equipes de Saúde da Família passam por alta rotatividade, com contratações de funcionários sem experiência de atuação na ESF. As EPS envolveram os temas da Violência e da Ficha de Notificação.

Como sinalizado por Silveira et al.1515 Silveira NO, Trindade CS, Bonamigo AW, et al. O pro-fissional da Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica e o enfrentamento à violência doméstica: uma revisão integrativa. Saúde Redes. 2022; 8(supl1):75-88., a Atenção Primária (AP) é a coordenadora do cuidado. Responde por promoção, prevenção e reabilitação de saúde, com os seus profissionais. Articulando a rede e a sociedade civil, sob sua ação ativa, são-lhe atribuídas a discussão e a proposição de ações conjuntas na reflexão sobre o impacto da violência1515 Silveira NO, Trindade CS, Bonamigo AW, et al. O pro-fissional da Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica e o enfrentamento à violência doméstica: uma revisão integrativa. Saúde Redes. 2022; 8(supl1):75-88..

Os participantes elencaram sugestões temáticas para EPS sobre a população LGBTQIA+, tais como: a abordagem no acolhimento, esclarecimento sobre os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual, melhor conhecimento acerca das políticas públicas e sobre o tema da violência.

A EPS é uma ferramenta qualificada para os profissionais de saúde. Por meio dela, ocorre a construção de saberes intra e intersetoriais, estimulando uma abordagem interdisciplinar coletiva e horizontal. Além disso, a EPS favorece ações intersetoriais com órgãos públicos e privados, objetivando a promoção da saúde. As mudanças ocorridas na política de saúde da AP tornaram a ESF um lugar potente para EPS, constituindo um espaço atravessado pela interdisciplinaridade1818 Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, et al. Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde debate. 2019; 43(120):223-239..

Quanto ao preenchimento da Ficha de Notificação, observou-se que, do total de 13 participantes, 8 informaram preenchê-la, 3 nunca atenderam casos de violência em geral, e 1 informou que às vezes a preenche. A equipe Nasf-AB, que tem em sua premissa matriciar as equipes de Saúde da Família, apresentou relatos de não preenchimento da ficha. Já os profissionais pertencentes às equipes de Saúde da Família afirmaram preenchê-la, com exceção de um enfermeiro e de um dentista que declararam nunca terem atendido situações de violência. No entanto, a Ficha de Notificação de violência é um instrumento normatizado e qualificador das situações de violência desde 2009, pelo MS. Seu preenchimento é compulsório nos casos de suspeita ou confirmação da violência pelos profissionais de saúde44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 2023 maio 16]. 94 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicac...
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A pesquisa revelou ser um desafio no entendimento da necessidade do preenchimento da Ficha de Notificação como um instrumento de trabalho para todos os membros do Nasf-AB. Destaca-se que a notificação de violência tem como objeto de notificação as populações vulneráveis, tais como crianças e adolescentes, idosos, mulheres. Para esses segmentos, existem arcabouços legais que estabelecem a comunicação compulsória pelos dos profissionais de saúde, educação e segurança. Ressaltase que essa exigência é fruto dos movimentos sociais, que além desses citados, tem-se ainda a população LGBTQIA+, objeto desta pesquisa, bem como a população de quilombolas, indígenas e de pessoas com deficiência44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 2023 maio 16]. 94 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf.
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Cabe aos profissionais que atuam com o fenômeno da violência aprender, assim como incorporar em suas práticas a relevância do preenchimento da Ficha de Notificação e o fomento para a instituição de políticas públicas de enfrentamento das situações de violência. Entende-se que a Ficha de Notificação possibilita a inserção de dados no sistema. Seu monitoramento apresenta a realidade epidemiológica fundamental para gerar políticas públicas e a criação de equipamentos de apoio às vítimas e suas famílias. Assim, será possível mapear as caraterísticas desses tipos de evento1919 Ribeiro RUP, Silva AL. Notificação compulsória de violência na Atenção Básica à Saúde: O que dizem os profissionais? Rev LEVS/UNESP. 2018; 21:115-130..

Ribeiro e Silva1919 Ribeiro RUP, Silva AL. Notificação compulsória de violência na Atenção Básica à Saúde: O que dizem os profissionais? Rev LEVS/UNESP. 2018; 21:115-130. discutem que a forma de gerir e organizar o trabalho pode ocasionar a fragmentação pela condução individualizada. Ademais, por consequência, pode ocasionar a subnotificação. Essa realidade fica clara ao observar a equipe do Nasf-AB, que divide sua atuação em eixos temáticos ligados à sua função nos eixos: violência e psicossocial, conduzido pelo profissional assistente social e psicólogo; alimentar, que é conduzido pela nutrição e fonoaudiologia; reabilitar, conduzido pelo fisioterapeuta e o profissional de educação física. Essa divisão resulta na não compreensão total da Ficha de Notificação para registro epidemiológico de violência, o que impacta a continuidade do cuidado transversal a todos os profissionais1919 Ribeiro RUP, Silva AL. Notificação compulsória de violência na Atenção Básica à Saúde: O que dizem os profissionais? Rev LEVS/UNESP. 2018; 21:115-130..

Assim, o Nasf-AB, como estratégia de matriciamento e articulação em rede, deve se materializar no enfrentamento e no combate às situações de violência, para legitimar o apoio matricial que configura ferramenta de suporte técnico na assistência clínica compartilhada ou individual como dimensão pedagógica por meio das EPS1919 Ribeiro RUP, Silva AL. Notificação compulsória de violência na Atenção Básica à Saúde: O que dizem os profissionais? Rev LEVS/UNESP. 2018; 21:115-130..

Diante dos registros encontrados, observa-se que preencher a ficha de notificação não é uma prática comum a todos os profissionais. Visto que a violência é reconhecida como um problema de saúde pública, deveria fazer parte das atribuições dos profissionais de saúde da AP. Ribeiro e Silva1919 Ribeiro RUP, Silva AL. Notificação compulsória de violência na Atenção Básica à Saúde: O que dizem os profissionais? Rev LEVS/UNESP. 2018; 21:115-130. reforçam a contradição entre a obrigação legal, que normatiza o preenchimento da Ficha de Notificação compulsória nos casos de suspeita ou confirmação de violência pelos profissionais de saúde, e os profissionais de saúde que não realizam o preenchimento da ficha de notificação como ferramenta.

Ao tratar sobre conhecimento da Ficha de Notificação, a maioria dos participantes da pesquisa informou conhecer e usar todos os campos inseridos. Apenas dois entrevistados, um pertencente à equipe Nasf-AB (fisioterapeuta) e outro pertencente à equipe ESF (dentista), relataram não ter conhecimento de todos os campos.

Em relação à rede intersetorial e a Raps, o serviço social e a psicologia apresentaram conhecimento aprofundado acerca da rede intersetorial, haja vista essas categorias serem consideradas referências pela intersetorialidade. Ademais, esses eixos são estabelecidos pela coordenação em nível central na SMS-RJ e seguidos pelas áreas programáticas locais.

A partir da análise dos dados coletados no questionário, aferiu-se que a equipe Nasf-AB, em sua maioria, referiu-se ao conhecimento, ao manejo do protocolo e à articulação em rede. Ressalta-se que a premissa de interlocução com as redes de apoio não está restrita ao Nasf-AB. Mesmo sendo este configurado para tal, também são relevantes as equipes de Saúde da Família, como referência no território e coordenadoras do cuidado, sendo responsáveis por realizar a interlocução entre as redes, estabelecendo o vínculo entre os equipamentos2020 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014 [acesso em 2023 maio 15]. 116 p.: il. (Ca dernos de Atenção Básica, n. 39). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_ apoio_saude_familia_cab39.pdf.
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Para Melo et al.2121 Melo EA, Miranda L, Silva AM, Limeira RMN. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf ): problematizando alguns desafios. Saúde debate. 2018; 42(esp1):328-340., a atenção básica como coordenadora do cuidado tem por premissa a elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS), alinhando o fluxo da Rede de Assistência à Saúde (RAS). A atenção básica é o ponto articulador entre os níveis de atenção secundário e terciário no que consiste à referência e à contrarreferência, isto é, encaminhar o usuário a outros níveis de atenção e a outros equipamentos, bem como retorná-lo à sua UB de referência – isso com o intuito de evitar possíveis ruídos na comunicação, para facilitar a continuidade do cuidado e promover a garantia de direitos. O Nasf-AB, além de articulador entre as equipes de Saúde da Família, também se torna referência e contrarreferência na articulação inter e intrasetorial para discussão de casos que exigem uma intervenção multissetorial e multidisciplinar2121 Melo EA, Miranda L, Silva AM, Limeira RMN. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf ): problematizando alguns desafios. Saúde debate. 2018; 42(esp1):328-340..

Descrição dos fatores que facilitam ou dificultam a identificação de violência pelos profissionais de saúde na população LGBTQIA+

Identificaram-se cinco fatores facilitadores por parte dos profissionais de saúde: escuta qualificada; utilização da planilha de violência da Coordenadoria da Área Programática (CAP); oferta de serviços integral em saúde; ocorrência dos Ciclos de Debate com o tema LGBTQIA+ para os profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) na SMS-RJ; e diretrizes para a abrangência do cuidado à saúde da população LGBTQIA+ disponível na Carteira de Serviços da Atenção Primária-SMS-RJ.

Quanto à escuta qualificada, a equipe Nasf-AB relatou que realiza esse procedimento e sinalizou a importância do olhar mais aprofundado para essa população. A equipe de enfermagem declarou que a escuta qualificada contribui para o acolhimento, possibilitando apreender as dificuldades e as necessidades apresentadas.

Outro facilitador, relatado pela enfermagem, é a realização da busca ativa nos casos inseridos na planilha de violência da CAP, compartilhada entre as equipes ESF/Nasf-AB. Essa planilha refere-se aos casos consolidados de violência ocorridos no município do Rio de Janeiro e atendidos pelas unidades de saúde pública e privada, bem como pelos equipamentos de atendimento à pessoa vítima de violência, como as Salas Lilás.

As Fichas de Notificação são encaminhadas ao setor de Vigilância em Saúde, e enviadas às equipes de Saúde da Família e ao Nasf-AB para monitoramento e acompanhamento dos usuários em seus locais de moradia.

Sobre a oferta de serviços, a equipe de enfermagem fez referência à disponibilidade de testes rápidos, de preservativos e dos demais serviços de assistência na lógica da integralidade em saúde, contrapondo-se à lógica de rótulos.

Na SMS-RJ, ocorrem ciclos de debates que reúnem diversos profissionais de todas as áreas de atuação e de todas as AP para a discussão ampliada sobre alguns segmentos da saúde, entre eles, a população LGBTQIA+, o que funciona como um facilitador para a identificação da violência2222 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Carteira de serviços da Atenção Primária Diretrizes para a abrangência do cuidado. 3. ed. Rio de janeiro: SMS; 2021 [acesso em 2023 maio 16]. 107 p. Disponível em: https://subpav.org/download/impressos/Livro_CarteiraDeServicosAPS_2021_20211229.pdf.
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Na pesquisa, foram identificados oito dificultadores: a não identificação da violência LGBTIfóbica como demanda representativa; a dificuldade na abordagem do acolhimento; o preconceito dos profissionais em relação à população LGBTQIA+; a não utilização dos quesitos (nome social, identidade de gênero, orientação sexual) LGBTQIA+; fila de espera longa para os procedimentos de hormonoterapia, redesignação sexual e mastectomia no nível secundário; o desconhecimento acerca das políticas públicas de saúde para a população LGBTQIA+; a dificuldade do profissional de identificar essa população, diante de sua identidade de gênero e orientação sexual; e a baixa qualificação profissional para a assistência específica às demandas LGBTQIA+.

Quanto a não identificar a violência LGBTIfóbica como demanda representativa, apenas um profissional do Nasf-AB, o psicólogo, relatou já ter realizado atendimento de violência LGBTIfóbica: “eu atendo violência LGBTIfóbicas, mas não é com tanta frequência. A demanda que chega ainda é muito pouca”.

Entre as equipes de enfermagem e de médicos da ESF, três relataram ter atendido casos de violência LGBTIfóbica. Nesse aspecto, Silveira et al.1515 Silveira NO, Trindade CS, Bonamigo AW, et al. O pro-fissional da Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica e o enfrentamento à violência doméstica: uma revisão integrativa. Saúde Redes. 2022; 8(supl1):75-88. consideram que as UB têm a condição da realização dos primeiros atendimentos por estarem no território de moradia dos usuários. A APS possui profissionais articulados e pautados em dimensões técnica, prática e estratégica para a abordagem nas situações de violência e para o reconhecimento da violência de modo a evitar a subnotificação1515 Silveira NO, Trindade CS, Bonamigo AW, et al. O pro-fissional da Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica e o enfrentamento à violência doméstica: uma revisão integrativa. Saúde Redes. 2022; 8(supl1):75-88..

Como último fator dificultador, ressalta-se a baixa qualificação profissional, como corroborado por Guimarães et al.2323 Guimarães NP, Sotero RL, Cola JP, et al. Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral à população LGBT em um município da região Sudeste do Brasil. Rev. Eletron. Comum. Inf. Inov. Saúde. 2020; 14(2):372-385., apontando que os profissionais têm dificuldades em distinguir entre os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero. Durante o trabalho de campo, foi possível observar a dificuldade de alguns profissionais na compreensão dos termos citados pelo autor2323 Guimarães NP, Sotero RL, Cola JP, et al. Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral à população LGBT em um município da região Sudeste do Brasil. Rev. Eletron. Comum. Inf. Inov. Saúde. 2020; 14(2):372-385..

Considerações finais

Foi possível perceber, a partir da pesquisa realizada com os profissionais de saúde de nível superior da ESF e do Nasf-AB, que a questão da violência LGBTIfóbica ainda não é reconhecida para alguns profissionais. Seja pela dificuldade de não perceber seus sinais no usuário durante a assistência, seja por assistir a uma situação de violência ou não a identificar. Para alguns profissionais, a violência ainda não representa uma demanda relacionada com as suas atribuições. Assim, observou-se que notificar não é uma prática totalmente internalizada pelos profissionais de saúde.

A temática da violência exige a transversalidade da assistência integral, isto é, um trabalho multiprofissional e interdisciplinar. As equipes da ESF e do Nasf-AB tornam-se corresponsáveis pela vigilância em saúde das famílias adstritas. Acerca do ato de notificar a violência, cabe o entendimento que, ao notificar, amplia-se o cuidado e estabelece-se a rede, ratificando alguns dos atributos da APS, como a coordenação do cuidado e a longitudinalidade.

Referente à assistência à população LGBTQIA+, foram achados fatores que facilitam e dificultam a identificação de violência pelos profissionais. Foi possível identificar que o conhecimento sobre o protocolo de atendimento, o acolhimento multidisciplinar e o encaminhamento à rede intersetorial apresentavam-se como claros entre os profissionais. Contudo, não foi unânime a prática do procedimento em sua totalidade.

O Nasf-AB, apesar de sua potência na ESF, no que se refere à informação e à formação dos profissionais para este tema em relação à população LGBTQIA+, não explora suficientemente as ações de EPS. Estas poderiam dinamizar e aprimorar as ações profissionais seguindo o fluxo da assistência à violência: a identificação das situações de violência, o acolhimento, o trabalho intersetorial e a manutenção do cuidado.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2023
  • Aceito
    10 Dez 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br