RESUMO
A população LGBTQIA+, ao buscar assistência à saúde, é constantemente exposta a vulnerabilidades evidenciadas por práticas preconceituosas decorrentes de atendimentos que reproduzem discriminação. Considerando a importância do debate relativo à diversidade sexual e de gênero, e em contraposição ao atendimento baseado em uma cis-heteronormatividade presumida, discriminatória e desconectada das necessidades das pessoas usuárias, este trabalho partiu de inquietações advindas do campo de atuação da enfermagem. Como a enfermeira percebe o corpo sob seus cuidados? Como se relaciona com esse indivíduo no contexto do processo de enfermagem? A enfermeira está preparada para assistir à população LGBTQIA+? Quais as melhores práticas que podem ser adotadas? Essa profissional tem conhecimento sobre os riscos de uma assistência ineficaz para as pessoas LGBTQIA+? Este estudo qualitativo foi desenvolvido mediante questionário semiestruturado aplicado a 17 enfermeiras atuantes no Hospital Maternidade Theresa Sacchi de Moura/Hospital da Mulher, no município de Barra Mansa, interior do Rio de Janeiro. No processo de pesquisa científica, foi adotada a técnica de análise de discurso a partir das falas compiladas que apontaram despreparo em relação às especificidades da comunidade LGBTQIA+, resultando na reprodução de violências e, consequentemente, tornando-se uma barreira ao acesso dos serviços de saúde.
PALAVRAS-CHAVE
Identidade de gênero; Pessoas cisgênero; Normas de gênero; Vulnerabilidade sexual; Cuidados de enfermagem
Introdução
A população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexuais ou Intersexos, Assexuais e outras (LGBTQIA+) engloba múltiplas manifestações de sexualidade, gênero e orientação sexual, cujas expectativas e atitudes são moldadas por fatores sociais, econômicos, religiosos e culturais11 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ. Real. 2017 [acesso em 2022 jan 17]; 20(2):71-99. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721.
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao... , 22 Brasil. Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV, regula sua expedição, altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Diário Oficial da União. 6 Jun 2012.. Essa realidade é permeada por processos de descoberta, desafios do processo transexualizador, medo, dificuldades na inserção laboral, convivência com a LGBTfobia, entre outras demandas impostas em um contexto de fragilidade social. A busca pela garantia de direitos, pela superação das representações estigmatizadas, assim como o combate à discriminação, à violência e ao apagamento dessa realidade, mostra-se urgente. Esse grupo apresenta necessidades específicas de saúde, demandando uma abordagem multiprofissional, além cuidados globais como a adoção de hábitos saudáveis, prevenção, detecção precoce de doenças, tratamento e reabilitação de forma respeitosa e acolhedora33 Ferreira BO, Nascimento MA. Construção de políticas de saúde para as populações LGBT no Brasil: perspectivas históricas e desafios contemporâneos. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3825-3834..
A Pesquisa Nacional de Saúde informa que, no Brasil, 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declararam lésbicas, gays ou bissexuais, e 1,8 milhão dessas declararam-se homossexuais. Ainda nesse estudo, 1,1 milhão se identificou como bissexual, e 1,7 milhão não soube responder. É importante destacar também que 3,6 milhões recusaram-se a responder e que 100 mil disseram se identificar com outras orientações. Em relação às mulheres, 0,9% delas declararam-se lésbicas, e 0,8%, bissexuais. Entre os homens, 1,4% deles declaram-se gays, e 0,5%, bissexuais. Entre os dois grupos 1,1% disse não saber responder, e 2,3% recusaram-se a responder33 Ferreira BO, Nascimento MA. Construção de políticas de saúde para as populações LGBT no Brasil: perspectivas históricas e desafios contemporâneos. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3825-3834..
Diante desses dados e colocando em destaque as omissões presentes, esta pesquisa apresenta a necessidade de formação especializada em saúde LGBTQIA+ para profissionais da enfermagem a fim de repensar a assistência e os cuidados destinados a essa população. Nesse contexto, a enfermagem desempenha um papel estratégico na adesão aos serviços e na promoção da saúde por atuar, desde a primeira etapa até a última, no processo de atendimento à saúde.
Torna-se necessário desenvolver competências voltadas para a atenção LGBTQIA+, considerando um cuidado ético, qualificado e que respeite as diferentes sexualidades e identidades de gênero, proporcionando ambientes com acolhimento e segurança e combatendo os obstáculos que acabam por afastar essa população dos serviços de saúde. É fundamental que as profissionais da enfermagem compreendam e identifiquem as concepções preestabelecidas e discriminatórias que, historicamente, têm criado barreiras ao processo de atendimento da população LGBTQIA+44 Borrillo D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica; 2010..
Tais preconceitos são reforçados por déficits na formação de base, em que é possível notar o despreparo de docentes e a ausência de disciplinas que abordem a diversidade sexual e de gênero. Dessa forma, compreender a necessidade de processos e de demandas específicas durante o atendimento a mulheres vítimas de violência, a demanda de orientação à saúde para a diversidade sexual, o atendimento acolhedor a travestis e pessoas transexuais conhecendo os direitos e garantindo o uso do nome social são apenas algumas das necessidades que se mostram urgentes no que tange ao papel desempenhado pelas profissionais da enfermagem e que deveriam ser consideradas como parte da formação delas.
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT)55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1 de Dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União. 2 Dez 2011. concentra orientações para ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, incentivo à produção de conhecimentos e fortalecimento da participação popular. Ao provocar um confronto com a ideia binária de orientação sexual e de gênero, tem por principal objetivo promover maior compreensão e ética que, por sua vez, irá impactar nos determinantes sociais da saúde, diminuindo as desigualdades e ratificando os princípios de universalidade, integralidade e equidade do Sistema Único de Saúde (SUS)66 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013., 77 Dacesaro MN, Lazari AH, Silva M, et al. Políticas públicas para LGBT: nome social em foco. In: EPCC – Encontro Internacional de Produção Científica Unicesumar; 2015, Maringá: UniCesumar, 2015. n. 9, p. 4-8..
Os relatos de colegas de trabalho relacionados com o atendimento a pacientes LGBTQIA+ são constantemente permeados por insegurança, surpresa, constrangimento, além dos desafios devido à falta de orientação e formação que gera desconhecimento da melhor prática a ser adotada. São comuns, nesse ambiente, a afirmação orgulhosa e o destaque dado à importância do papel da enfermagem na assistência e no cuidado88 Silva DM. Representações de gênero na assistência de enfermagem: contribuições ao processo de humanização no atendimento à população LGBT. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022.. Discutir sobre a melhor forma de abordagem faz parte do cotidiano dessas profissionais, no entanto, tratar dos cuidados da população LGBTQIA+ permanece um tabu. Este trabalho, por sua vez, reafirma a necessidade de colocar o debate, de tirá-lo da invisibilidade a fim de fazer garantir os direitos à saúde dessa população específica, assegurando conquistas já consolidadas na PNSI-LGBT.
Com base nesse interesse de estudo, emergiram as principais questões que mobilizaram esta pesquisa: no contexto hospitalar, como a enfermeira percebe o corpo sob seus cuidados? Como se relaciona com a população LGBTQIA+ no contexto do processo de enfermagem? A enfermeira está preparada para assistir à população LGBTQIA+? Quais as melhores práticas que podem ser adotadas? Essa profissional tem conhecimento sobre os riscos de uma assistência ineficaz para estas cidadanias?
Diante dessas inquietações, este trabalho objetivou identificar o conhecimento de enfermagem sobre a atenção à saúde da população LGBTQIA+ que utiliza os serviços de saúde oferecidos nesse campo de estudo. Grande parte das profissionais de enfermagem possuem pouco ou nenhum conhecimento sobre essa população, resultando, consequentemente, em inaptidão e violações de direitos. Na presença de algum sinal de desrespeito à identidade de gênero, imediatamente, haverá impedimento para o estabelecimento de um vínculo entre a pessoa usuária e a profissional da enfermagem, o que, no processo de cuidar, consolida-se em marginalização99 Lorenzetti J. A nova Lei do exercício profissional da enfermagem: uma análise crítica. In: Santos EF, Santos EB, Santana GO, et al. Legislação em Enfermagem: atos normativos do exercício e do ensino de enfermagem. São Paulo: Atheneu; 2002..
Material e métodos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se debruça sobre a fala de 17 enfermeiras do Hospital Maternidade Theresa Sacchi de Moura/Hospital da Mulher (HM), no município de Barra Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro, sobre diversidade sexual e atenção à saúde da população LGBTQIA+. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com enfermeiras atuantes na assistência das unidades de Acolhimento com Classificação de Risco (A&CR), no Núcleo Interno de Regulação (NIR), no Ambulatório (AMB), no Alojamento Conjunto (AC) e Tratamento Obstétrico e no Centro Obstétrico (CO) da referida instituição.
Foi entrevistado o equivalente a 68% do efetivo atuante, excluídos 8 profissionais, entre homens e mulheres; os que não encontraram disponibilidade, bem como os que se recusaram a participar do estudo. A amostra correspondeu a 7 (41%) enfermeiros do CO, 4 (23,5 %) do AC, 4 (23,6%) do A&CR, 1 (5,9%) do AMB e a 1 (5,9%) do NIR.
Quanto às características sociodemográficas da amostra, a faixa etária situava-se de 24 a 64 anos com média de idade de 44 anos. Todas eram mulheres heterossexuais, das quais 35,4% exerciam a função na unidade há menos de 1 ano; 23,6%, de 1 a 5 anos; 5,9%, de 6 a 10 anos; 17,7%, de 11 a 15 anos; 17,7%, de 16 a 20 anos, constituindo uma equipe de enfermagem na qual foram encontradas profissionais em que a mais nova tem 4 meses de formação, e a mais antiga, formada há 38 anos.
Sobre a experiência profissional em outras unidades, 76,4% exerciam ou exerceram atividade em outras unidades enquanto 23,6% não passaram por essa experiência. Entre essas profissionais, 94,1% eram pós-graduadas, e 5,9%, com especialização em curso nas seguintes áreas: enfermagem em obstetrícia e ginecologia, Estratégia Saúde da Família, gestão hospitalar, enfermagem do trabalho, administração e auditoria, enfermagem médico-cirúrgica, enfermagem em centro cirúrgico e central de material e esterilização, enfermagem em urgência e emergência, saúde da mulher, preceptoria no SUS, controle de infecções hospitalares, unidade de terapia intensiva.
A análise do discurso foi o método utilizado para acessar o sentido do dito e do não dito nas narrativas das entrevistas no contexto da experiência profissional da enfermagem. Foi esse o caminho escolhido para a interpretação das falas enquanto um discurso que informa sobre um sistema de valores comuns e aceitos socialmente, que estão determinados por um contexto social e histórico determinado, assim como pelas relações estabelecidas ao longo da vida1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004..
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (CEP/Ensp), seguindo as normas e as resoluções de ética, tendo em vista maior beneficência para as participantes da pesquisa que maleficência, de forma que a pesquisa aconteceu a partir da permissão e da liberação do referido CEP, recebendo aprovação CAAE 54879722.6.0000.5240 bem como anuência da instituição pesquisada.
Resultados e discussão
A oportunidade das entrevistas permitiu compreender a trajetória profissional das enfermeiras e os sentidos atribuídos às suas práticas de assistência. Tendo em vista os objetivos da pesquisa, foi necessário compreender as dimensões do acesso e qualidade dos serviços e, depois, confrontá-las com as ações preconizadas pela PNSI-LGBT.
Entre as entrevistadas, 21,2% responderam que o papel do HM se resume à assistência obstétrica. Sob essa ótica, toda pessoa LGBTQIA+ é acolhida e atendida como uma pessoa no período gravídico-puerperal, evidenciando uma invisibilidade que impede o desenvolvimento de boas estratégias de ação em favor da universalidade, equidade e integralidade preconizadas pelo SUS.
Padronizar e homogeneizar corpos implica práticas que, ao não reconhecer a complexidade do atendimento à saúde em contextos de diversidade, violentam direitos das comunidades que divergem dos padrões socialmente estabelecidos, favorecendo o apagamento dessas pessoas usuárias e comprometendo a garantia de uma assistência adequada. Em contraposição, observaram-se enfermeiras que admitem o despreparo diante das demandas da assistência à saúde LGBTQIA+ e que apontam para esforços individuais no sentido de uma atitude mais acolhedora, marcada pela empatia e pela escuta atenta, mas que se mostrou frágil e desprovida de subsídios necessários advindos das políticas públicas de saúde vigentes.
Entretanto, as enfermeiras demonstraram conhecimento da existência de pessoas LGBTQIA+ ao serem interrogadas sobre a área de abrangência do hospital, mas ficou evidente como esse acesso ainda é muito baixo. Apenas uma enfermeira relatou não saber responder a esse questionamento. As demais referiram atendimento em menor escala de mulheres com vínculo afetivo com outras mulheres que apresentam demandas relativas ao atendimento de pré-natal de alto risco, à assistência ao parto e ao puerpério e a algumas demandas do processo transexualizador. Em buscas online, o hospital aparece ainda como referência para atendimento à profilaxia pós-exposição ao HIV e, eventualmente, por homens que sofrem violência.
Mesmo após a aprovação da PNSI-LGBT, verificam-se muitos obstáculos, como a omissão de direitos, o estigma social, a invisibilidade, o preconceito, a intimidação, as práticas antiéticas e o despreparo por parte dos profissionais de saúde no atendimento às especificidades dessa população. Em consequência, muitas pessoas omitem sua orientação sexual ou identidade de gênero devido ao medo da repulsa e ao enfrentamento de obstáculos no atendimento.
A PNSI-LGBT objetivou conhecer a situação de saúde, os estilos de vida, o acesso aos serviços de saúde da população e seu uso, segundo região de moradia, sexo, raça e cor, revelando um pequeno retrato a partir de pessoas que se declaram LGBTQIA+, porém, devemos atentar para a ausência de respostas. Esse silêncio informa os motivos pelos quais as pessoas seguem preferindo não responder a questões que foram preparadas para reconhecer suas identidades e indica a ausência de acolhimento reforçada pela discriminação. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de inclusão, por exemplo, das mulheres lésbicas na agenda de saúde no que diz respeito, entre outras, ao atendimento na área da ginecologia, em que as profissionais partem do pressuposto de que a vida sexual ativa das mulheres é sempre de caráter heterossexual. Esse assunto será visto mais adiante.
Valorizar a existência da diversidade desconstrói um mundo dividido entre masculino e feminino cotidianamente reforçado em instituições de saúde País afora. Essa invisibilidade apoia-se no silêncio, na discriminação e na violação de direitos e só pode ser enfrentada com o reconhecimento das políticas de saúde e da produção de conhecimento acadêmico específico voltadas para essa população, com a garantia de direitos que se consolida em uma escuta qualificada e em um atendimento adequado por parte do conjunto de profissionais da saúde, e não apenas pela enfermagem.
Sob outro ponto de vista, 69,2% das entrevistadas consideraram que o papel do HM é o de oferecer ‘atendimento humanizado’, que responda às demandas de saúde de maneira integral, acolhedora, livre de julgamentos, sem exposição a constrangimentos, garantindo direito de assistência a quem precisar, proporcionando espaço fecundo para liberdade de expressão de sua sexualidade e identidade de gênero, conforme os princípios do SUS. A PNSI-LGBT visa ampliar e garantir o acesso aos serviços de saúde, respeitando o compromisso do SUS com seus princípios e reconhecendo a complexidade e a especificidade da assistência à saúde dessa população55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1 de Dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União. 2 Dez 2011., 1111 Ferreira AP. Evidências científicas sobre o acesso aos serviços de saúde pela população LGBTQI+: revisão de escopo. Res., Soc. Dev. 2022; 11(10):e229111032519.. Isso requer formação política e postura ética que seja democrática e que atue em favor da justiça e da garantia de direitos por parte de gestores e de profissionais da saúde, no sentido de respeitar e reconhecer a importância da saúde sexual e, portanto, dos direitos sexuais em sua diversidade, superando concepções simplistas de um atendimento humanizado e encarando como uma política transversal que visa construir coletivamente estratégias que unam a teoria e a prática1212 Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciênc. saúde coletiva. 2012; 17(11):2865-2875..
Conforme dito anteriormente, a referência a um baixo acesso da população LGBTQIA+ é apresentada nas falas das enfermeiras. Segundo 4,8% das entrevistadas, o atendimento a essa população não é comum na unidade pesquisada. Reforça-se a perspectiva aqui apresentada do aumento da situação de vulnerabilidade com relação à garantia de direitos humanos básicos, como saúde, direitos reprodutivos e sexuais. Já 4,8% das profissionais responderam que atuam baseadas em sua vivência para atender às exigências que surgem na unidade. Considerando um ambiente no qual as especificidades do atendimento à saúde da população LGBTQIA+ é constantemente silenciado, essas profissionais, em geral, contam com atitudes individualizadas para associar o conhecimento técnico-científico à sua prática de assistência e de cuidados. Torna-se urgente e indispensável, assim, ampliar o debate político e ético referente à sexualidade, à diversidade e às garantias do direito à saúde desse segmento.
Nesse processo, é preciso entender como se dá o acesso desse grupo aos serviços oferecidos nessa unidade, bem como a qualidade com que esse serviço é entregue1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004.. Em geral, constatou-se que a população LGBTQIA+ demora para acessar o serviço ou não o acessa como deveria. Das enfermeiras entrevistadas, 5,8% afirmaram acreditar que o acesso está associado a um espaço físico, ou geográfico, que favoreça privacidade e liberdade para apresentar suas demandas e, assim, facilitar sua entrada no serviço de saúde. Já 82,6% delas associaram a forma como esse atendimento acontece norteado por escuta qualificada, acolhedora, eficaz e livre de discriminação.
Estudos apresentam a prevalência da precariedade do acesso à saúde por parte da população negra em decorrência do racismo estrutural vigente na sociedade brasileira, assim como o peso das desigualdades socioeco-nômicas. É importante destacar a análise feita considerando o não acesso à saúde por parte de pessoas fumantes que, em vista do estigma, acabam por ficar marginalizadas e imbuídas de uma concepção de não pertencimento aos serviços de saúde, aumentando as dificuldades no acesso e na adesão aos serviços de saúde1313 Benevides R, Passos E. Humanização na Saúde: um novo modismo. Interface (Botucatu). 2005 [acesso em 2023 mar 8]; 9(17):389-406. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/qgwhN4TZKY5K3LkPfVRbRQK/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/icse/a/qgwhN4TZK... .
Quando se fala sobre a saúde da população brasileira, ainda são observados grandes traços de iniquidade, apesar da legislação vigente, impactando diretamente nos grupos em vulnerabilidade social e resultando em lamentáveis consequências no perfil de morbimortalidade quando comparado ao de outras. Como exemplo, a Política Nacional de Atenção à Saúde da Mulher1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. menciona mulheres lésbicas e bissexuais em apenas um tópico do texto, sem alusão alguma à operacionalização concreta de ações relacionadas com a sua saúde1414 Dantas MNP. Fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 24:E210004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210004.
https://doi.org/10.1590/1980-54972021000... , 1515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013..
Quanto à vinculação com a unidade, as gestantes dão à luz nessa unidade, e as pessoas que realizam o processo transexualizador, sempre que necessitam de algum atendimento e orientação, retomam o contato e permanecem utilizando o serviço. Segundo o discurso, observaram-se profissionais que não se sentem preparados com relação a questões técnicas, pois têm dificuldades até relacionadas com os conceitos. A Carta do Direitos do Usuários da Saúde1616 Brasil. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011. 28 p. (Série E. Legislação de Saúde)., entre outras ações, propõe um atendimento humanizado, com a utilização do nome social como forma de acolhimento a essa população. Ainda que exista teoricamente a garantia da utilização do nome social na instituição pesquisada, constatou-se que os prontuários não estão ajustados. Conforme a legislação em vigor, torna-se indispensável defender e garantir os direitos preconizados para um atendimento justo e democrático e que combata discriminações, seja de raça, geracional, religiosa, incluindo a orientação sexual e a identidade de gênero também como prioridades1717 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. O HumanizaSUS na atenção básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009..
No contexto dos discursos, observa-se que existe um olhar sobre acesso que o compreende como uma prática de trabalho na qual o indivíduo se organiza dentro de um espaço físico, ou geográfico, que favoreça a privacidade e a liberdade para apresentar suas demandas e, assim, favorecer sua entrada para o servido de saúde. A PNSI-LGBT faz referência a um acesso relacionado com a disponibilidade da assistência, o desenvolvimento social como indicadores de saúde e, por fim, o tratamento qualificado. Outras entrevistadas acreditam que o acesso se refere à forma como esse atendimento acontece, por meio de uma escuta qualificada e acolhedora, de forma a dispensar um atendimento universal, igualitário e ordenado nas ações e serviços de saúde do SUS1414 Dantas MNP. Fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 24:E210004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210004.
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Nos discursos, ficam implícitas a negação do preconceito e a reafirmação de um acesso na unidade. A diretriz constitucional na Lei Orgânica da Saúde1414 Dantas MNP. Fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 24:E210004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210004.
https://doi.org/10.1590/1980-54972021000... é orientada sob a forma de três princípios do SUS, que são: a universalidade, que estabelece o acesso de todos às ações e aos serviços; a integralidade, que implica a obrigatoriedade de oferecer uma atenção à saúde de qualidade, que vai da proteção e prevenção a todos os níveis de complexidade de assistência; e a equidade, que busca reduzir desigualdades em saúde. Fica o questionamento sobre quais seriam os limites entre o conhecimento das leis e os direitos voltados para essa população e a omissão e a negligência propriamente dita.
Às pessoas LGBTQIA+ que acessam o sistema, impõe-se um desafio adicional: a garantia dos direitos e a qualidade das ações de saúde. Diretrizes e objetivos para que esse público seja mais bem atendido na rede pública de saúde foram estabelecidos na PNSI-LGBT, mas ainda faltam maior publicidade à política e formação adequada para se tornar efetiva.
A qualidade do serviço de saúde está associada à soma de condições para atender a demandas apresentadas, mobilizando recursos no enfrentamento de problemas de saúde, que maximizam o bem-estar das pessoas usuárias, após ser levado em conta o equilíbrio entre os ganhos e as perdas em todas as etapas do processo. A qualidade deve constituir-se uma busca constante nas práticas em saúde baseada em evidências, assistência humanizada e de responsabilidade de profissionais e gestores de forma a prezar pelas diretrizes do SUS1717 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. O HumanizaSUS na atenção básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009., 1818 Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford USA Trade; 2003..
A qualidade da atenção recebida pela população depende das características particulares do sistema de saúde, da infraestrutura, do perfil da equipe profissional e da organização dos serviços. Entretanto, o contexto histórico em que a população e os serviços de saúde estão inseridos modelam a qualidade em saúde ao expressar a intencionalidade das políticas de saúde e das práticas profissionais. Serviços de boa qualidade podem modificar desigualdades estruturais em saúde por meio de respostas mais equitativas durante a prestação de cuidados. Com ações integrais de boa qualidade, os serviços podem contribuir efetivamente para a superação de desvantagens históricas nos indicadores de saúde de regiões e populações vulneráveis do País1818 Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford USA Trade; 2003., 1919 Carrara S. Discriminação, políticas e direitos sexuais no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):184-189., 2020 Facchini R. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. [dissertação]. Campinas, SP: Unicamp; 2002. [acesso em 2022 jun 17]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1232.
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345... .
Nesse sentido, promover equidade para esse público significa reconhecer suas vulnerabilidades específicas, identificar as iniciativas políticas e operacionais que protegem os direitos humanos e sociais desse grupo e traçar estratégias para sua aplicação. Há um consenso sobre a necessidade do combate à homofobia e à LGBTfobia no SUS, e sobre a necessidade de proteção do direito à livre orientação sexual e identidade de gênero como uma estratégia fundamental e estruturante para a garantia do acesso aos serviços e da qualidade da atenção2121 Albuquerque GA, Garcia CL, Alves MJH, et al. Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil. Saúde debate. 2013; 37(98):516-524., 2222 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013., 2323 Donabedian A. The definition of quality and approaches to its assessment: explorations in quality assessment and monitoring. Michigan: Health Administration Press; 1980.. Então, para acabar com a invisibilidade desse debate, necessariamente, dever-se-ia recorrer a uma nova ordenação social educacional e cultural que não estivesse fixada por uma determinação de natureza biológica ou cultural.
A realização periódica do exame citopatológico continua sendo a estratégia mais adotada para o rastreamento do câncer do colo do útero. Atingir alta cobertura da população definida como alvo é o componente mais importante no âmbito da atenção primária para que se obtenha significativa redução da incidência e da mortalidade dessa doença. A história natural do câncer do colo do útero geralmente apresenta um longo período de lesões precursoras, assintomáticas, curáveis na quase totalidade dos casos quando tratadas adequadamente. Países com cobertura superior a 50% do exame citopatológico realizados a cada 3 a 5 anos apresentam taxas inferiores a 3 mortes por 100 mil mulheres por ano; e, para aqueles com cobertura superior a 70%, essa taxa é igual ou menor que 2 mortes por 100 mil mulheres por ano2424 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância, Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Inca; 2016., 2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Coordenação de Trabalho e Rendimento Serviços de saúde: Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE; 2020..
Mulheres lésbicas e bissexuais devem realizar exame de prevenção do câncer do colo uterino, o Papanicolau, seguindo as mesmas orientações para mulheres com relações heteroafetivas. O primeiro exame de Papanicolau deve ser coletado a partir dos 25 anos de idade. Se o exame for negativo, pode ser colhido a cada 3 anos. A prevalência de infecção pelo vírus do HPV, que está relacionado de forma direta com a incidência do câncer do colo uterino, é relativamente menor em mulheres que se identificam como lésbicas se não tiveram relação sexual peniana ao longo da vida. No entanto, não estão livres da possibilidade de ter o tipo do vírus oncogênico (que pode evoluir para o câncer de colo uterino), por isso é necessário seguir o rastreamento também. É importante um ambiente acolhedor no qual a mulher se sinta à vontade para partilha de seus hábitos sexuais para que a equipe de profissionais de saúde possa buscar a integralidade nas orientações e condutas no decorrer do atendimento. O desconhecimento sobre a oferta de cuidado específico para essas mulheres revela condutas e orientações desalinhadas de evidências científicas1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004., 1515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013., 2424 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância, Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Inca; 2016..
No contexto do nascimento, a Declaração de Nascido Vivo (DNV) é um instrumento padronizado pelo Ministério da Saúde desde 1990 e de uso obrigatório em todo o território nacional, tornando-se documento de identidade provisória que garante o acesso aos serviços públicos até a emissão da certidão e que contribui para o planejamento de ações para melhorias2020 Facchini R. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. [dissertação]. Campinas, SP: Unicamp; 2002. [acesso em 2022 jun 17]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1232.
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345... , 2626 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de instruções para o preenchimento da declaração de nascido vivo. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde: Fundação Nacional de Saúde; 2001..
Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça determinou alterações no layout da DNV e no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), de forma que, nas certidões emitidas, seja contemplada a filiação, independentemente da identidade de gênero, como nos casos de reprodução assistida, casais transgêneros, união homoafetiva e outras situações similares. Assim, fica regulamentada a não utilização dos termos ‘pai’ e ‘mãe’, devendo constar apenas no campo ‘Responsável Legal’ o(s) nome(s) do(s)/da(s) genitor(es/as), bem como não fazer referência aos complementos ‘maternos’ e ‘paternos’ no que diz respeito aos ascendentes, justamente para incluir famílias LGBTQIA+. Assim, todos os profissionais responsáveis pelo seu preenchimento devem ser capacitados sobre as alterações, e os cartórios, obrigados a confeccionar o registro com base nessas alterações, sendo o não cumprimento da lei caracterizada como LGBTfobia institucional22 Brasil. Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV, regula sua expedição, altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Diário Oficial da União. 6 Jun 2012., 2727 Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Brasília, DF: CNJ; 2017., 2828 Conselho Internacional de Enfermeiros. CIPE Versão 1: Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem. São Paulo: Algol; 2007..
As enfermeiras entrevistadas relataram a ausência dessa orientação e, portanto, afirmaram não ter conhecimento das condutas supracitadas no preenchimento das DNV. Trata-se de problemas estruturais que exigem formação qualificada constante a fim de que os direitos sejam garantidos e as práticas profissionais sejam transformadas. Desconhecer e, consequentemente, negligenciar esse direito afeta a qualidade de vida dessa população e produz violências, e não assistência e cuidado.
Torna-se, portanto, um desafio encarar essa temática e ampliar sua discussão nas salas de aula e nos ambientes de trabalho por meio da educação permanente, assim como ampliar a divulgação científica a fim de combater violências que são cotidianamente reificadas. Nesse contexto, reconhecer as deficiências na assistência e buscar mitigá-las é uma tarefa que exige esforço e dedicação – e que precisa ser encarada como uma postura política e ética. Na contramão, segundo os relatos das enfermeiras, neste estudo, essa demanda não é percebida e, dessa forma, é entendida como desnecessária.
Para o campo da enfermagem, o cuidado no acolhimento é sempre colocado em destaque2929 Maynart WHC. A escuta qualificada e o acolhimento na atenção psicossocial. Acta Paul. Enferm. 2014; 27(4):300-304.. Ser capaz de ouvir é tão significativo quanto entender, pois essa capacidade é essencial para uma atenção satisfatória. Da mesma maneira que a habilidade de ouvir o outro, subentende-se propensão a silenciar3030 Ayres JR, França Júnior I, Calazans GJ, et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117-139.. A partir daí, estabelece-se uma relação de diálogo e de confiança depositada na enfermagem, sempre relacionada com as pessoas usuárias, mas que também envolve uma boa comunicação com toda a equipe multidisciplinar de saúde. Trata-se, portanto, de reafirmar o cuidado humanizado enquanto uma política que pode orientar a assistência à saúde no sentido de fazer respeitar e garantir os direitos à saúde.
Deve-se atentar para a invisibilidade de vários grupos da população LGBTQIA+. Para as mulheres lésbicas e/ou bissexuais, o cuidado em saúde parece restrito ao consultório ginecológico. Ademais, sob esse contexto, conforme relatos colhidos nas entrevistas, essa população chega à unidade, busca atendimento, algumas profissionais têm maior, outras, menor contato, algumas sequer passaram por essa experiência. Isso se nota nas enfermeiras com menos tempo de atuação na unidade pesquisada.
As diretrizes políticas exigem profissionais que reconheçam e garantam, a partir de suas práticas, direitos já conquistados e previstos, uma vez que respaldo legal e políticas públicas existem a partir das demandas dos movimentos sociais. Na ponta, na intimidade do relacionamento entre as profissionais e as pessoas usuárias é que o acesso e a qualidade precisam se materializar a fim de combater a LGBTfobia no campo dos cuidados em saúde. Os estigmas existentes, e que geram a marginalização de determinados grupos dos serviços de saúde, precisam ser combatidos. Afinal, pessoas LGBTQIA+ precisam ter acesso à saúde integral. A assistência pode ser colocada em segundo plano, encobrindo múltiplas necessidades e demandas, devido a concepções preestabelecidas sobre a presença dessa população nos serviços de saúde.
As salas de espera são apontadas como lugares estratégicos para democratizar a informação, o aprendizado e a troca de vivências, mas é um espaço ainda pouco aproveitado3131 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. A escuta qualificada, o diálogo, a postura e a reorganização do serviço de saúde resultam em cuidado bem-sucedido no sentido de escutar, identificar as demandas, estabelecer um vínculo e alcançar a adesão ao cuidado. Essa dimensão também atinge as relações entre as equipes, sendo fundamental a constituição de espaços democráticos de diálogo e de proposições coletivas. A escuta é uma ferramenta crucial para promover atendimento como ação integral, estabelecer vínculos justos e éticos, produzindo relações de acolhimento e de respeito à diversidade e à singularidade no encontro entre quem cuida e quem recebe o cuidado3030 Ayres JR, França Júnior I, Calazans GJ, et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117-139..
A capacitação das profissionais de enfermagem por meio de educação permanente em saúde é fundamental para melhorar a qualidade dos serviços de saúde prestados no sentido de garantir o atendimento das necessidades da população3131 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Nesse ponto de vista, e considerando as experiências cotidianas de trabalho, a educação permanente pode cooperar na formulação de estratégias que ajudem a solucionar problemas identificados neste trabalho, adotando medidas mais efetivas que eliminem a discriminação institucional com rotinas e protocolos que estejam de acordo com a legislação vigente.
O conhecimento das necessidades específicas da população LGBTQIA+ foi um dos principais elementos identificados para melhorar a prática na assistência à saúde por parte da enfermagem22 Brasil. Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV, regula sua expedição, altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Diário Oficial da União. 6 Jun 2012.. Se cabe a esse conjunto de profissionais a garantia da assistência integral ao ser humano em todos os seus ciclos de vida, na perspectiva do respeito à diversidade, do mesmo modo, é responsabilidade política, ética e legal da profissão desenvolver debates e reflexões constantes em favor das minorias, de forma a personalizar o atendimento, contemplando a diversidade e ampliando a abrangência do cuidado na prestação de serviços de saúde a toda a sociedade3131 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..
Considerações finais
A partir das entrevistas realizadas, percebe-se que as enfermeiras do HM de Barra Mansa reconheceram, em parte, a população LGBTQIA+ como um público sujeito a seus cuidados. Elas tratam a temática por meio de termos subjetivos, como empatia e respeito, mas desconhecem as políticas públicas voltadas para essa população, assim como as particularidades relacionadas com a assistência à saúde desses grupos. A indiferença à temática da assistência LGBTQIA+ também foi observada na fala de algumas profissionais. Além disso, foram percebidas a sobreposição de valores pessoais e a falta de conhecimento crítico considerando o preconceito e as taxas de violências a que essa população está associada.
O grupo entrevistado reconhece a importância da educação continuada, está inserido em especializações, mas nenhuma que aborde a temática de gênero e sexualidade. Considerando a responsabilidade da instituição em promover formação, constatou-se a ausência de qualquer iniciativa. Por ignorar essa realidade, as profissionais de enfermagem conduzem suas práticas baseadas no senso comum e, portanto, em concepções embasadas na cis-heteronormatividade, reproduzindo discriminação e negligência. De modo geral, as enfermeiras admitem não se sentir preparadas para atuar na atenção à saúde LGBTQIA+. Contudo, não demonstraram a compreensão de que essa situação gera violência, aprofundando a marginalização, o sofrimento psíquico e a exclusão dessa população.
Esta pesquisa, com base na experiência de um grupo de enfermeiras do HM de Barra Mansa, contribuiu para a reflexão sobre as necessidades de formação em torno da assistência de enfermagem à população LGBTQIA+, apontando para urgências no âmbito dos serviços de saúde. Durante as entrevistas, foi possível compreender que, para algumas profissionais, essas realidades nunca foram sequer pensadas como demandas do seu trabalho. Implica dizer que o serviço de saúde também não exigiu delas nenhuma postura, reforçando preconceitos estruturais. Por fim, é preciso ressaltar o debate crítico em torno do conceito de ‘humanização’ dos cuidados sempre referenciados para a assistência da enfermagem. Trata-se de mobilizar as profissionais da enfermagem para redimensionar, em suas práticas, as demandas colocadas pela diversidade da vida e, portanto, a relevância de considerar as representações de gênero e de sexualidade existentes.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jun 2024 - Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
- Recebido
18 Nov 2023 - Aceito
18 Dez 2023