‘Meninos vestem azul e meninas vestem rosa’: Análise do Discurso Crítica sobre a ‘ideologia de gênero’ no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Leandro de Oliveira Bitencourt Maria Helena Barros de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

Este artigo investiga qual foi a principal ideologia norteadora das políticas públicas do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) no governo Jair Bolsonaro (2019-2022). Em seu discurso de posse, Bolsonaro afirmou que um dos objetivos de seu governo seria combater a ‘ideologia de gênero’ e defender ‘os verdadeiros direitos humanos’. Assim, esta pesquisa parte da perspectiva de que, no Brasil, existe uma disputa em torno da noção de direitos humanos, e a utilização do sintagma ‘ideologia de gênero’ é um elemento-chave para compreender de que modo essa disputa ocorre no cenário político, especialmente no que diz respeito à criação de pânico moral a respeito das pessoas LGBTQA+. Com o objetivo de compreender qual é a ideologia norteadora das políticas públicas desenvolvidas pelo MMFDH, setor estatal no qual essa disputa parecia ser um elemento central, foi utilizada a Análise do Discurso Crítica como metodologia analítica. Para compor o corpus da pesquisa, foram analisados os discursos das principais representantes do MMFDH, Damares Alves e Angela Gandra, no período de 2 de janeiro de 2019 a 31 de março de 2022. Concluiu-se que, no período analisado, o MMFDH foi promotor de ‘ideologia de gênero’.

PALAVRAS-CHAVES
Direitos humanos; Ideologia de gênero; Minorias sexuais e de gênero

Introdução

O discurso de posse do ex-presidente Jair Bolsonaro destacou uma questão relevante no que diz respeito à salvaguarda dos direitos humanos, especialmente no contexto dos direitos das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexuais ou Intersexos, Assexuais e outras (LGBTQIA+). Ao afirmar que um dos objetivos de seu governo seria combater a ‘ideologia de gênero’11 Redação D. Leia a íntegra dos dois primeiros discursos do presidente Jair Bolsonaro. Veja. 2019 jan 1. [acesso em 2023 mar 11]. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/leia-a-integra-dos-dois-primeiros-discursos-do-presidente-jair-bolsonaro.
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, Bolsonaro introduziu na estrutura governamental esse sintagma vazio, que serviu, na última década, para produzir pânico moral em relação às pessoas LGBTQIA+. O termo ‘ideologia’ foi citado diversas vezes em seu discurso, fazendo referência sempre a algo negativo, herança de governos anteriores, do qual o País precisaria se livrar. Semanas depois, durante seu discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos, ao afirmar que iria defender os ‘verdadeiros direitos humanos’, Bolsonaro sinalizou que seu governo e suas bases ideológicas entrariam em uma disputa de sentido em relação a quem seriam os humanos sujeitos de direitos.

Segundo Eagleton22 Eagleton T. Ideologia: uma introdução. Edição Kindle ed. São Paulo: Boitempo; 2019., a definição mais comum sobre ideologias tem a ver com a forma com que elas legitimam o poder de determinado grupo ou classe dominante e mantêm relações de dominação. A partir dessa perspectiva, o sintagma ‘ideologia de gênero’ opera um papel central na disputa sobre outras formas de existência no contexto social. A compreensão desse sintagma como uma ofensiva à perspectiva de gênero nas políticas públicas implica negligência estatal com a população de mulheres, LGBTQIA+ e qualquer outro grupo social e/ou indivíduos que não correspondam às normas de gênero heteronormativas e hegemônicas. Ao que parece, foi exatamente esse o esforço empreendido pelo governo Bolsonaro e, mais especificamente, pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). Ao ser anunciada como ministra da pasta, Damares Alves afirmou por meio de declaração pública que, a partir daquele momento, seria uma nova era no Brasil, em que “menino veste azul e menina veste rosa”33 G1. Em vídeo, Damares diz que “nova era” começou: “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. G1. 2019 jan 3. [acesso em 2023 mar 20]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/em-video-damares-alves-diz-que-nova-era-comecou-no-brasil-meninos-vestem-azul-e-meninas-vestem-rosa.ghtml.
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, em uma clara afirmação dos papéis e marcações de gênero heteronormativas.

Tanto as declarações de Bolsonaro quanto de Alves evidenciam a disputa e a reafirmação das normas de gênero como diretrizes das políticas públicas nesse período. Em especial, reforçam uma disputa ideológica sobre uma determinada concepção de mundo e dos modos de vida, e que não há relações de poder que não estejam permeadas por ideologias. Nesse sentido, o uso do sintagma ‘ideologia de gênero’ é central para a criação de pânico moral e mobilização política e social. Segundo Junqueira44 Junqueira RD. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Rev. Psicol. Polít. 2018 [acesso em 2021 maio 10]; 18(43):449-502. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo .php?script=sci_abstract&pi d=S1519-549X2018000300004&lng =pt&nrm=iso&tlng=pt.
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, a ‘ideologia de gênero’ é uma invenção do catolicismo, cunhada como uma reação antagônica aos direitos sexuais e reprodutivos, que circula em publicações católicas desde a década de 1990; e na segunda década dos anos 2000, ganhou contornos de uma ofensiva transnacional.

Em linhas gerais, ‘ideologia de gênero’ se refere a um conjunto de ideias e crenças na natureza divina de homens e mulheres e em seus papéis inatos, como a maternidade como natural às mulheres e o papel de provedor próprio aos homens. Esse sintagma pode ser entendido como a crença de que esses papéis considerados ‘naturais’ jamais podem ser colocados em questão, assim como não podem ser consideradas outras perspectivas de gênero que não seja a perspectiva heteronormativa dominante. Todo discurso nesse sentido aponta o gênero, a ‘teoria de gênero’ ou a ‘ideologia de gênero’ como um inimigo, que pretende destruir a família e a inocência das crianças. Essa estratégia confere um caráter ideológico a qualquer discussão ou possibilidade de questionamento das normas de gênero, o que reafirma as estruturas hegemônicas de opressão como naturais55 Abrantes FS. Processos de construção da fórmula “ideologia de gênero”. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2020. [acesso 2022 jan 13]. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/1657.
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No Brasil, esse sintagma foi acionado massivamente a partir da votação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2013, e foi um elemento muito importante para o fortalecimento da extrema-direita no País. O pânico moral acionado pela ‘ideologia de gênero’, a respeito de uma suposta sexualização precoce de crianças, associado à crise política do governo do Partido dos Trabalhadores e à ruptura da democrática relacionada com o impeachment de Dilma Rousseff, pavimentou o caminho para a emergência de discursos conservadores e antidemocráticos e que culminaram na eleição de Jair Bolsonaro ao final de 201866 Corrêa S, Kalil I. Políticas antigénero en América Latina: Brasil. Rio de Janeiro: SPW; 2020..

A eleição de Bolsonaro representa a consolidação da ‘ideologia de gênero’ na estrutura do Estado e sua influência na produção das políticas públicas, em que o MMFDH se destaca como um dos lugares privilegiados para essa disputa em torno dos direitos humanos, em especial, os direitos sexuais e reprodutivos. Assim, o objetivo desta pesquisa foi, por meio da Análise do Discurso Crítica (ADC), compreender qual era a ideologia presente no discurso das representantes ministeriais e que foi norteadora das políticas desenvolvidas por esse ministério.

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter transdisciplinar, que utiliza a metodologia da ADC77 Batista JR, Sato DTB, Melo IF. Análise do Discurso Crítica para linguistas e não linguistas. São Paulo: Parábola Editorial; 2018. 224 p., que se propõe a compreender como o uso dos discursos e da linguagem opera relações de poder a fim de perpetuar certas ideologias e arranjos sociais. Essa metodologia se mostrou uma potente ferramenta para avaliar a ideologia norteadora das políticas e coalizões realizadas pelo MMFDH. Estratégias discursivas que se afirmam não ideológicas e que utilizam recursos como unificação, eufemização, expurgo do outro, personificação, entre outras, são os principais pontos em que a ADC serviu como ferramenta para a análises. A pesquisa compreende o intervalo de 2 de janeiro de 2019 a 30 de março de 2022, período em que Alves esteve à frente do cargo no MMFDH. Na pesquisa e seleção desses conteúdos, foram analisados os discursos e as declarações que poderiam ter conexões com a ‘ideologia de gênero’, em que se utilizaram as expressões-chave: “LGBT”, “aborto”, “ideologia de gênero”, “defesa da família” e “proteção da família” na realização da busca. A partir desses marcadores, foram selecionados cinco discursos e alguns documentos das políticas ministeriais que se relacionam com os discursos mencionados.

Para compor o corpus de análise, selecionaram-se declarações oficiais, entrevistas e participação em eventos das principais agentes públicas representantes do MMFDH, a então ministra Damares Alves e a secretária de família à época, Angela Gandra. A partir dessa metodologia, foi realizada uma análise textualmente orientada dos discursos selecionados e que foram transcritos em textos. Os discursos selecionados para compor a análise estão relacionados no quadro 1. Todos os discursos foram transcritos, e o último foi traduzido para o português.

Quadro 1
Discursos transcritos e utilizados nas análises

Além disso, os documentos de políticas e ações realizadas direta e/ou indiretamente pelo MMFDH e que compõem transversalmente o corpus das análises de textos já existentes foram selecionados no site oficial do governo federal, são eles: o Projeto Família na Escola; o Programa Famílias Fortes; o Edital Capes Família e Políticas Públicas; o Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos; e a Portaria nº 457/2021, conforme quadro 2.

Quadro 2
Textos transversais citados nas análises

Nesse caso, cabe destacar que não foi realizada uma análise crítica das políticas, mas sim de que forma essas políticas estão diretamente conectadas aos discursos da ministra e da secretária e são orientadas pelos discursos que compreendem a ‘ideologia de gênero’.

Resultados e discussão

A partir dos cinco discursos selecionados, destacam-se a análise dos principais pontos de cada um e a sua relação com as políticas ministeriais.

A apresentação formal do governo

O primeiro discurso analisado foi o pronunciamento da então ministra Damares Alves na 40ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em 25 de fevereiro de 201988 Fundação Alexandre de Gusmão. Discurso da Ministra Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Gov.br. 2021 nov 7. [acesso em 2022 abr 16]. Disponível em: https://www.gov.br/funag/pt-br/centrais-de-conteudo/politica-externa-brasileira/discurso-da-ministra-damares-alves-no-conselho-de-direitos-humanos-da-onu.
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. No discurso em análise, a ministra apresentou o governo Bolsonaro e as ações que seriam desenvolvidas nos próximos anos em relação aos direitos humanos no Brasil. Alves percorre ao menos duas pautas ligadas diretamente aos discursos da ‘ideologia de gênero’, que são o aborto e a educação domiciliar.

Ao afirmar a “defesa da vida desde a sua concepção”, Damares sinalizou de forma indireta o enfrentamento da ‘ideologia de gênero’ e evidenciou a posição ideológica do governo brasileiro a respeito do aborto. Para os fins desta pesquisa, a compreensão da ‘ideologia de gênero’, no campo de sexualidade e gênero, também inclui no sentido desse sintagma a pauta antiaborto, que esteve presente no discurso da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro99 Aragusuku HA. O percurso histórico da “ideologia de gênero” na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Ag. Polit. 2020 [acesso 2022 jan 13]; 8(1):106-130. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/issue/view/25.
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para a Presidência da República, com claro viés moralizante. A inclusão dessas agendas em um evento da ONU, dada a visibilidade global dessa organização internacional, funciona como sinalização aos demais países para a possível construção de alianças ideológicas transnacionais com setores ultraconservadores.

A educação domiciliar, também denominada de homeschooling, é uma agenda presente no movimento de ultradireita Movimento Escola Sem Partido (Mesp). A discussão dessa temática busca apontar para a radicalidade de responsáveis que optam por não colocar seus filhos em escolas com a ‘justificativa’ de selecionar os conteúdos discutidos em sala de aula. Assim, o desejo de gerenciamento dos conteúdos escolares é justamente o que esteve na base das discussões morais, tanto envolvendo a polêmica sobre o projeto ‘Escola sem Homofobia’ designado por grupos da extrema-direita como o ‘kit gay’ e os discursos sobre a ‘ideologia de gênero’ durante a discussão do PNE em 201399 Aragusuku HA. O percurso histórico da “ideologia de gênero” na Câmara dos Deputados: uma renovação das direitas nas políticas sexuais. Ag. Polit. 2020 [acesso 2022 jan 13]; 8(1):106-130. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/issue/view/25.
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Além de conectado à ‘ideologia de gênero’, o ensino domiciliar também traz elementos do que se tem denominado como desdemocratização neoliberal1010 Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. 1. ed. São Paulo, SP: Politéia; 2019. 256 p., a partir dos projetos de encolhimento das funções do Estado e das famílias assumindo atribuições historicamente desenvolvidas pelo Estado por meio das políticas públicas. A educação domiciliar tem por objetivo uma educação baseada em conteúdos considerados por seus defensores como ‘não ideológicos’, pautada por princípios cristãos, e a substituição da ‘ideologia de gênero’ pela ‘ideologia de gênesis’1111 Filho EMAM, Franco CD. “Menino veste azul e menina, rosa” na Educação Domiciliar de Damares Alves: as ideologias de gênero e de gênesis da “ministra terrivelmente cristã” dos Direitos Humanos. RBHR. 2019 [acesso em 2022 mar 13]; 12(35):297-337. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/48106.
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, que teria como base conteúdos que estão de acordo com a moral cristã.

A apresentação do MMFDH e suas bandeiras

O segundo discurso analisado foi uma breve conversa em tom informal, que a ministra concedeu ao deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), presidente da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e pastor evangélico1212 Frente Popular Evangélica. Ministra faz balanço de 200 dias de trabalho com apoio da Frente Parlamentar Evangélica. Facebook. 2019 jul 30. [acesso em 2022 jun 20]. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=933222353679748.
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. A pauta da conversa girou em torno das ações dos 200 dias do governo Bolsonaro e da importância do apoio da FPE ao MMFDH. Destaca-se o trecho abaixo que contém uma série de elementos intertextuais que servem para as análises:

Todas as nossas bandeiras, deputado, todas as bandeiras que eu e o senhor lá na Câmara, mais de 20 anos levantando, estão aqui: defesa da vida, da família, liberdade religiosa, do idoso, da criança. São oito secretarias nacionais e estamos nos propondo, deputado, aquele nosso grande sonho, uma contrarrevolução cultural no Brasil, uma releitura de direitos humanos no Brasil1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(180).

A afirmação de Alves “todas as nossas bandeiras” considera na intertextualidade a referência às bandeiras evangélicas que se tornaram bandeiras políticas dos deputados da FPE e do MMFDH. A segunda ‘bandeira’ citada, a “defesa da família”, é a que traz na intertextualidade a referência direta à ‘ideologia de gênero’. À medida que os avanços dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil são apontados como ameaça, com a suposta ‘destruição da família’, em que se destaca a reação com a ‘defesa da família’, a menção a esse sintagma evidencia a perspectiva não explícita da ‘ideologia de gênero’, como um contraponto aos avanços de direitos. Em termos de escolha semântica para efeitos políticos, a menção à proteção ou à defesa da família parece produzir mais engajamento político do que a menção diretamente à ‘ideologia de gênero’, pois oferece uma noção mais compreensível e mais imediata do inimigo a ser combatido. Nesse contexto, é possível afirmar que a menção de Alves à ‘defesa ou proteção da família’ constitui-se como uma referência indireta à ‘ideologia de gênero’.

O trecho seguinte é um dos mais significativos deste corpus, pois evidencia as perspectivas do governo Bolsonaro e do MMFDH, especificamente, em relação aos direitos humanos. Primeiro, cabe destacar a afirmação de Alves “aquele nosso sonho”, o que leva à compreensão de que ela evidencia não apenas um sonho pessoal, mas também um sonho da bancada evangélica, e esse sonho seria uma “contrarrevolução cultural no Brasil”. Essa ‘contrarre-volução’ parece se opor às mudanças sociais ocorridas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos ao longo das últimas décadas, que certamente tiveram impactos na cultura, principalmente quando o Estado promove a proteção de grupos sociais específicos, como mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Dentre os avanços na esfera de políticas públicas, é possível destacar a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, lançada em 2011, como um grande marco social e cultural no campo da saúde pública. Garantir o acesso e a atenção às demandas de saúde específicas desse grupo social tem impacto não só na cultura do campo da saúde como também na cultura em si. Essas mudanças culturais em relação às populações historicamente negligenciadas pelo Estado são um dos efeitos nomeados de ‘marxismo cultural’ pela ideologia conservadora1414 Pena LPJ. “Globalismo”: o discurso em política internacional sob a ideologia da nova extrema direita brasileira. Fronteira. 2019 [acesso em 2022 jul 3]; 18(36):371-386. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/fronteira/article/view/1967.
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. Quando Alves destaca a “contrarrevolução cultural”, está se referindo à tentativa de frear esses avanços e à proposição de uma cultura social e política baseada em ideologias cristãs e ultraconservadoras.

A noção de ‘releitura de direitos humanos no Brasil’ está diretamente ligada a uma disputa de sentido sobre os direitos humanos, que historicamente serviram e ainda servem para garantir o status de humanidade a populações, corpos e pessoas tradicionalmente vistos como não humanos, como a população LGBTQIA+por exemplo. A releitura de direitos humanos que a ministra enuncia traz em seu texto a ideia de que o trabalho em direitos humanos talvez não deva priorizar mais as populações discriminadas, bem como pretende ressignificar quem são os humanos sujeitos de direitos. Essa noção é aprofundada e será retomada em discurso posterior de Alves.

A contrarrevolução cultural

O terceiro texto analisado é a entrevista dada ao jornalista Ricardo Senra, da BBC Brasil, publicada em 18 de dezembro de 20191515 Senra R, Kriezis E. Damares Alves: “Tem mulher mais empoderada no Brasil do que eu?” BBC News Brasil. 2019 dez 18. [acesso em 2022 ago 15]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50800983.
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Trata-se de uma entrevista concedida em Roma, durante o encontro entre primeiras-damas de alguns Estados com o Papa Francisco, no qual Alves também participou. O primeiro ponto dessa entrevista que destacamos se refere a uma suposta universalização dos direitos humanos empreendida pelo MMFDH:

Olha, direitos humanos são para todos. Para todos. [...] Nós universalizamos os direitos humanos e o discurso. [...] Por um período, as lutas ficaram muito segmentadas. As pessoas achavam que direitos humanos eram só as minorias ou a população carcerária1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(182-183).

Quando Damares se apoia na Declaração de 1948 e afirma que os direitos humanos são para todos, busca justamente legitimar as escolhas que o MMFDH faz no desenvolvimento das políticas públicas. É notório que uma parte significativa da população tem seus direitos humanos reconhecidos e que as políticas públicas de Estado nessa área tradicionalmente enfocaram suas ações em grupos sociais que foram sistematicamente violados em seus direitos. Essa tradição de atuação é enunciada por Damares como “lutas segmentadas”, o que traz a ideia de que o restante da população historicamente privilegiada, e que não faz parte desses segmentos, estaria fora das garantias dos direitos humanos.

Quando Alves menciona “universalização” dos direitos humanos, traz na intertextualidade as relações simbólicas relacionadas com a suposta perda de direitos por uma parte da população, agora restaurada pelo MMFDH. A ‘universalização’ se conecta também com a ideia defendida por Bolsonaro sobre os “verdadeiros direitos humanos”, que remetem à reação ultracon-servadora que tem como matriz as estratégias do Vaticano contra o avanço de direitos sexuais e reprodutivos e na qual a ‘ideologia de gênero’ é um elemento central1616 Vaggione JM. A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na américa latina. In: Biroli F, Vaggione JM, Machado MDC, et al. Gênero, neoconservadorismo e democracia. 1. ed. São Paulo: Boitempo; 2020. p. 41-82..

Outro trecho da entrevista que cabe destaque é quando Alves afirma que “a esquerda não é pai e mãe dos direitos humanos”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(191). Nessa afirmação, ela usa mais uma vez a estratégia de legitimação de sua ideologia, levando à compreensão de que os direitos humanos podem ser interpretados de maneira diferente pela esquerda e pela direita, que é o que o MMFDH propõe. A unificação1717 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes; 2011. 427 p. é uma estratégia utilizada para construir uma coletividade homogênea em relação à esquerda política, como adversário antagônico, como se as esquerdas políticas não fossem heterogêneas entre si. Há nessa estratégia discursiva uma disputa cultural e política de ressignificação dos sentidos de conceitos e termos já existentes, ou, como Alves afirma, uma “contrarrevolução cultural”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(180). A releitura dos direitos humanos parece então uma estratégia linguística e retórica para justificar a omissão do Estado em relação à população LGBTQIA+.

A ‘ideologia do cão’

O quarto texto em análise foi a entrevista concedida por Alves ao portal Deutsche Welle Brasil, em 28 de fevereiro de 2020, para a jornalista Karina Gomes1818 DW Brasil. “É o momento de a igreja ocupar a nação”, diz Damares Alves. DW Brasil. 2020 mar 2 [acesso em 2022 abr 12]. Vídeo: 25 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fYTLsV4SEKU&t=28s.
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. Ao contrário da entrevista concedida à BBC, nesta, destaca-se um tom mais duro, em que a ministra é questionada a respeito de denúncias contra o governo apresentadas na ONU acerca de violações de direitos humanos.

O presidente Bolsonaro ele foi eleito de forma legítima com maioria da população brasileira, a maioria do eleitorado e ele veio com uma nova proposta, a universalização dos direitos. [...] Se você observar quem está fazendo essas denúncias genéricas, é a esquerda [...] nunca se fez uma discussão para a sociedade sobre direitos humanos como hoje, isso é mérito do presidente Bolsonaro, é mérito desse governo que está aí, universalização dos direitos1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(193).

Aqui, é possível observar a recorrência no uso do termo ‘universalização dos direitos’, o que leva a considerar que esse termo é um eufemismo que aponta para a negligência na elaboração de políticas para grupos sociais. Pode-se avaliar que esse é mais um modo de operação de uma ideologia que utiliza a dissimulação e a eufemização1717 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes; 2011. 427 p. para ocultar o real sentido do que se quer dizer. Nesse caso, ao invés de se afirmar que não irá promover os direitos humanos para as pessoas LGBTQIA+, por exemplo, afirma-se que os direitos humanos são para todos, o que produz um sentido linguístico e simbólico positivo. Além de reafirmar o eufemismo ‘universalização dos direitos’, Alves atribui qualquer questionamento sobre as atitudes e os posicionamentos do governo à esquerda política. Observa-se que o discurso de Alves expõe a ideologia de direita conservadora do governo, que criou um antagonismo radical com a esquerda política, e atribui a ela apenas elementos negativos, produzindo uma diferenciação simbólica e ideológica. Pode-se confirmar, com isso, que a construção simbólica do inimigo não se refere apenas ao gênero, mas também à esquerda política.

A afirmação “nunca se fez uma discussão ‘para’ a sociedade sobre direitos humanos como hoje” não permite concluir se houve um ato falho1919 Freud S, Tellaroli S. Obras Completas. 13: Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) / Sigmund Freud. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras; 2014. 630 p. por parte de Alves. No entanto, destaca-se a importância simbólica de suas afirmações em virtude da posição institucional à frente do MMFDH. A universalização dos direitos humanos carrega esta representação simbólica: um grupo no poder que afirma ou determina para a sociedade quais são esses direitos e quem são os indivíduos dignos de acessá-los, essencialmente propondo uma ‘reinterpretação’ a partir de suas próprias ideologias.

No trecho seguinte destacado, Alves utiliza a estratégia de unificação1717 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes; 2011. 427 p., primeiro quando menciona “teoria de gênero”, como se as teorias de gênero fossem apenas uma e houvesse um absoluto consenso de todas as perspectivas. Ao unificar todas as produções e perspectivas de gênero em uma só, isso parece facilitar a construção do inimigo simbólico que se deseja combater. Ainda nesse texto, percebe-se que a ideologia que Damares representa compreende ‘teoria de gênero’ e ‘ideologia de gênero’ como sinônimos, como já apontado por Junqueira44 Junqueira RD. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Rev. Psicol. Polít. 2018 [acesso em 2021 maio 10]; 18(43):449-502. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo .php?script=sci_abstract&pi d=S1519-549X2018000300004&lng =pt&nrm=iso&tlng=pt.
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. Quando Alves se refere à ‘teoria de gênero’, está se referindo à ‘ideologia de gênero’:

Há uma diferença muito grande entre a teoria do gênero, a ideologia de gênero, a homossexualidade, a bissexualidade são coisas totalmente diferentes. A teoria do gênero ela, ela transcende a tudo isso, e eu sou contra essa teoria, essa ideologia que, chegou no Brasil forte e eu fiz resistência, liderei movimento de residência e ainda faço1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(198).

Nesse trecho, Alves reafirma a ‘teoria de gênero’ como sinônimo de ‘ideologia de gênero’ e inicia uma narrativa que tenta separar, de forma negativa, as expressões da sexualidade em relação ao gênero. Ela segue: “Uma teoria que chega no Brasil dizendo que você não podia mais ter mais bonecas e brinquedos de meninos, os brinquedos tinham que ser neutros no Brasil”1212 Frente Popular Evangélica. Ministra faz balanço de 200 dias de trabalho com apoio da Frente Parlamentar Evangélica. Facebook. 2019 jul 30. [acesso em 2022 jun 20]. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=933222353679748.
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(198). Nesse trecho, Alves utiliza a personificação como figura de linguagem para se referir à ‘teoria/ideologia de gênero’, como um personagem, uma figura que representaria uma lei ou espécie de conduta moral. O uso da personificação nessa situação pode ser entendido como um desdobramento da estratégia de unificação das teorias de gênero, que ‘se tornam uma pessoa’, e esse uso da figura de linguagem é fundamental na construção do inimigo e na produção do pânico moral. É uma operação que descola dos produtores de pânico moral a implicação nesse processo, pois se refere a alguém ou a algo que vem de fora, um ‘Outro’, um forasteiro que se avizinha e anuncia sua ameaça.

Em outro trecho, Alves afirma que a ‘ideologia de gênero’ “traiu os homossexuais e o usou o movimento LGBT”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(198), podendo-se interpretar que a ex-ministra compreende que os avanços dos movimentos LGBTQIA+só foram possíveis a partir das pautas reivindicatórias de base biológica, em que se ‘nasce gay’, a afirmação de uma natureza gay, lésbica, trans etc. A natureza da heterossexualidade como organizadora da sociedade é a base da ‘ideologia de gênero’, que não rompe com a noção de que qualquer desvio da heterossexualidade seria patológico, negativo, indesejável, abjeto. Quando Alves afirma que o paradigma biológico seria o legítimo, está não só deixando clara a utilização da retórica da ‘ideologia de gênero’ como também defendendo a manutenção das sexualidades não hegemônicas como o oposto abjeto da heterossexualidade.

E eu vou dizer uma coisa: essa ideologia é do cão! [...] Então eu sou uma crítica da ideologia de gênero, era no passado, sou agora e quer que eu diga uma coisa: o movimento gay concorda comigo, com certeza!1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(198).

O ‘cão’ é um termo habitualmente utilizado por algumas religiões cristãs, em especial, evangélicas, para nomear a figura bíblica do diabo, um recurso linguístico para fazer referência sem citar seu nome diretamente. Aqui há uma clara intenção de demonizar qualquer discussão ou teoria sobre gênero. A questão que se coloca é que o discurso político deve estar conectado aos valores democráticos e republicanos brasileiros enquanto o discurso religioso não tem qualquer compromisso com o Estado ou até mesmo a verdade, e sim com a fé. Nesse trecho, Alves afirma de forma explícita sua orientação ideológica com base na ‘ideologia de gênero’ e torna ainda mais visível um dos elementos que compõem esse pensamento, que é a orientação cristã para a formulação de políticas públicas. Ao nomear o ‘gênero’ como cão e se colocar de forma antagônica, Alves utiliza ainda outro elemento para operar sua ideologia, também ligado à produção do inimigo, que é o expurgo do outro1717 Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes; 2011. 427 p.. Essa estratégia constitui a produção do inimigo e um convite a resistir a ele. Se o cão deve ser expurgado da casa de Deus, os debates sobre gênero devem ser expurgados da máquina estatal.

A ‘releitura’ dos direitos humanos

Em 10 de fevereiro de 2021, o MMFDH publicou a Portaria nº 4572020 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Portaria nº 457, de 10 de fevereiro de 2021. Institui Grupo de Trabalho para realização de Análise Ex Ante da Política Nacional de Direitos Humanos. Diário Oficial da União. 11 Fev 2021. [acesso em 2022 abr 18]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/portarias/portaria-no-457-de-10-de-fevereiro-de-2021.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-in...
, que instituiu um grupo de trabalho para a realização da análise ex ante da Política Nacional de Direitos Humanos. Essa decisão causou bastante controvérsia justamente pelo seu caráter antidemocrático, já que o grupo de trabalho foi formado apenas por integrantes do governo. Após toda a polêmica, Alves decidiu publicar um vídeo na página do MMFDH2121 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Depoimento - Ministra Damares Alves. MDHC. 2021 mar 2 [acesso em 2023 nov 2]. Vídeo: 4 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-v=k3OUAnbtOvE.
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como uma tentativa de justificar e esclarecer a decisão. Em sua declaração, Alves afirma que a ideia desse grupo de trabalho é “propor novas ações de direitos humanos no Brasil”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(203), em que se pode compreender na intertextualidade que ela se refere ao que foi afirmado de forma recorrente durante o governo, que é a releitura de direitos humanos no Brasil. Se Bolsonaro, Alves e os integrantes do MMFDH já estavam sugerindo essa reinterpretação no âmbito das ideias, esse grupo de trabalho parece ser um esforço para formalizar essa revisão em termos oficiais, documentos, portarias e outros documentos similares.

Nesse texto, Alves justifica essa ‘releitura’ do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), criando desconfiança em relação ao período em que ele foi criado e afirmando de forma indireta que não houve participação popular na construção do Plano: “Quantos de vocês participaram da construção do PNDH III? Diz pra mim, houve realmente ampla participação popular? Pois agora vai ter!”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(204).

O PNDH-3 foi resultado de ampla discussão com a sociedade e se estruturou a partir de 137 encontros municipais e estaduais, além da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, envolvendo cerca de 14 mil pessoas, tanto do poder público quanto da sociedade civil2222 Faisting AL, Guidotti VHR. Desenvolvimento e direitos humanos: um balanço dos 10 anos do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). PRACS. 2019 [acesso em 2022 mar 18]; 12(3):33-50. Disponível em: https://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/view/5470.
https://periodicos.unifap.br/index.php/p...
. Quando Alves indaga quantas pessoas participaram da construção do PNDH-3, a ex-ministra faz uma pergunta sobre a qual ela sabe que não terá resposta, não porque muitas pessoas não tenham participado, mas pelo próprio formato da comunicação, que não permite contraditório. A intenção de Alves nesse momento parece ser a de utilizar seu lugar de poder para provocar dúvida em relação à transparência e à legitimidade de uma política produzida a partir do estado democrático de direito. Essa estratégia de desinformação parece bastante efetiva em tempos de pós-verdade2323 Dunker C, Tiburi M, Safatle V, et al. Ética e Pós-Verdade. Porto Alegre: Editora Dublinense Ltda; 2017., a qual foi adotada por Bolsonaro de forma recorrente, em especial, no que diz respeito às urnas eletrônicas por exemplo.

A explicitação do projeto neoconservador

O sexto e último texto analisado se refere ao discurso da Secretária Nacional de Família, Angela Gandra, durante o webinário intitulado ‘Uma resposta à Ideologia de Gênero’, promovido pela organização conservadora Political Network for Values (PNFV), em 28 de maio de 20212424 Political Network for Values. Diálogos Transatlánticos PNfV | Una respuesta política a la ideología de género. Political Network for Values. 2021 maio 31 [acesso em 2022 ago 7]. Vídeo: 120 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cfp8nHse7vo&feature=youtu.be.
https://www.youtube.com/watch?v=Cfp8nHse...
.

De imediato, Gandra afirma de forma explícita que o MMFDH está trabalhando em políticas públicas contra a ‘ideologia de gênero’. Na sequência, a secretária explica quais são as políticas públicas que o Brasil está desenvolvendo para o enfrentamento da ‘ideologia de gênero’, em que a primeira citada é o Programa Famílias Fortes2525 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. [acesso em 2022 ago 29]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/familia/familias-fortes-1/SEI_MDH3023059Edital0322.pdf.
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, que é uma adaptação brasileira do Strengthening Families Programme, desenvolvido pela Universidade Oxford Brookes, do Reino Unido. Apesar de o programa original ter um enfoque na prevenção ao uso precoce de drogas entre adolescentes, o texto não explicita o que seriam as ‘condutas de risco’.

A partir da afirmação da secretária de que o programa é uma das políticas desenvolvidas para combater a ‘ideologia de gênero’, é possível realizar duas leituras da intertextualidade que a noção de ‘famílias fortes’ apresenta. A primeira é que, nas ‘condutas de risco’, possivelmente possam estar implícitas as primeiras manifestações da sexualidade no início da adolescência, e, nesse caso, a função parental seria orientar e disciplinar os filhos sobre esse tipo de ‘comportamento’. Apesar de não ser o discurso de Bolsonaro que está em análise, cabe dizer que essa leitura intertextual está alinhada com declarações anteriores do então presidente, como quando afirmou, por exemplo, que se “o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e ele muda o comportamento dele”2626 Brasil. Câmara dos Deputados. Comissão vai debater declaração de Bolsonaro sobre punição a filho gay. Portal da Câmara dos Deputados. 2010 dez 1. [acesso em 2021 ago 29]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/144388-comissao-vai-debater-declaracao-de-bolsonaro-sobre-punicao-a-filho-gay/.
https://www.camara.leg.br/noticias/14438...
.

Nesse sentido, essa política poderia operar como um modo de vigilância também em relação aos aspectos do desenvolvimento psicossexual de adolescentes. A segunda leitura possível a partir dessa ideologia neoconservadora presente no discurso de representantes do Estado no governo Bolsonaro é que filhos homossexuais e transexuais seriam fruto de famílias desajustadas, como defendeu o então ministro da educação Milton Ribeiro2727 G1. Ministro da Educação diz que gays vêm de “famílias desajustadas” e que acesso à internet não é responsabilidade do MEC. G1. 2020 set 24. [acesso em 2022 ago 29]. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/09/24/ministro-da-educacao-diz-que-gays-vem-de-familias-desajustadas-e-que-acesso-a-internet-nao-e-responsabilidade-do-mec.ghtml.
https://g1.globo.com/educacao/noticia/20...
. Nesse contexto, o próprio termo ‘famílias fortes’ se contrapõe a ‘famílias desajustadas’, e fortalecer a família seria um modo de supostamente evitar a homossexualidade e a transexualidade.

O segundo projeto citado pela secretária é o Família na Escola2828 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Projeto Família na Escola. Brasília, DF: MDHC; 19 mar 2021. [acesso em 2022 ago 29]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/familia/acoes-e-programas/projeto-familia-na-escola.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por...
, cujo projeto-piloto foi executado no município de Campos dos Goytacazes e logo se tornou um projeto efetivo do MMFDH. Segundo o Ministério, o Projeto:

[...] visa fomentar ações conjuntas para promoção da parceria família e escola, através da formação das habilidades parentais, das garantias de direitos da criança e do acompanhamento pedagógico, a fim de garantir o desenvolvimento integral da criança e o fortalecimento dos vínculos familiares2828 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Projeto Família na Escola. Brasília, DF: MDHC; 19 mar 2021. [acesso em 2022 ago 29]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/familia/acoes-e-programas/projeto-familia-na-escola.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por...
.

A partir da afirmação da secretária e do texto do projeto, pode-se concluir que o ‘acompanhamento pedagógico’ não se refere ao desenvolvimento no aprendizado das crianças, e sim, ao acompanhamento dos conteúdos trabalhados em sala de aula. Essa ideia está diretamente ligada ao Mesp, que defende uma escola ‘neutra’ e sem conteúdos compreendidos como ‘ideológicos’. Nessa lógica, ‘conteúdo ideológico’ representa tudo aquilo com o qual os familiares não concordam ou não acreditam, desde conteúdos científicos a valores morais. Esse é um dos objetivos do ensino domiciliar, por isso o MMFDH busca a aprovação dessa modalidade no Brasil. Por ‘acompanhamento pedagógico’, é possível inferir a referência à vigilância dos conteúdos em sala de aula, em especial, aqueles ligados à discriminação por raça, religião, orientação sexual e identidade de gênero.

Outra política pública de base familiar não citada pela secretária, mas que já estava em curso nesse período e parece diretamente conectada ao enfrentamento à ‘ideologia de gênero’, é o edital Capes Família e Políticas Públicas no Brasil2929 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Família e Políticas Públicas no Brasil. Brasília, DF: Capes; 2021 jan 8. [acesso em 2022 jan 5]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/programas-estrategicos/formacao-de-recursos-humanos-em-areas-estrategicas/familia-e-politicas-publicas-no-brasil.
https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-...
. Esse edital prevê o fomento de bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado para pesquisas voltadas à temática da família. Compreende-se que a utilização da palavra família, nomeando o Ministério e algumas políticas, não se dá à toa. Isso sugere que, para o MMFDH, há um modelo ideal de família que deve ser buscado e fortalecido, e esse modelo toma como base a família tradicional cristã, composta por pai, mãe e filhas e filhos.

Não há no edital qualquer fomento à pesquisa para compreender as composições heterogêneas de famílias no Brasil, desigualdades de gênero que afetam as mulheres na criação dos filhos, desigualdades salariais no mercado de trabalho e sobre famílias LGBTQIA+, só para citar alguns exemplos possíveis. É importante destacar que o governo Bolsonaro realizou uma série de cortes bilionários no orçamento do Ministério da Educação3030 Luz J. Os cortes na Educação no atual Governo. OBL. 2022 dez 14. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://olb.org.br/os-cortes-na-educacao-no-atual-governo.
https://olb.org.br/os-cortes-na-educacao...
, por isso, deve-se colocar em questão qual é o interesse do MMFDH em investir nessa área, na contramão desses cortes. Pode-se supor que esse edital está no campo da disputa epistemológica sobre as noções de família e algumas possíveis políticas em torno dela.

Outra política ministerial implementada que faz enfrentamento da ‘ideologia de gênero’ diz respeito ao serviço Disque 100 do governo federal. Esse serviço existe na estrutura estatal desde 2003, e, em 2010, passou a se chamar Disque Direitos Humanos e a receber denúncias também de violações de direitos humanos de grupos sociais sub-representados. Os atendimentos desse serviço são estruturados com base no ‘Manual de Taxonomia de Direitos Humanos’3131 Brasil. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Manual da Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Brasília, DF: MDHC; 2022. [acesso em 2022 set 1]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/ondh/manual-da-taxonomia-de-direitos-humanos-da-ondh.pdf/view.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de...
. A ação que será destacada aqui se refere ao fato de o manual ter sido modificado em 2021 pelo MMFDH, que incluiu no item 2.11 ‘ideologia de gênero’ como uma das possíveis motivações de violências contra crianças e adolescentes. Na sequência, Gandra afirma:

Também tiramos o [gênero do] vocabulário. Agora não é possível, em todos os documentos quando se usa gênero significa sexo, não há dois sexos, e também estamos trabalhando nisso para que uma realidade não seja alterada pela linguagem1212 Frente Popular Evangélica. Ministra faz balanço de 200 dias de trabalho com apoio da Frente Parlamentar Evangélica. Facebook. 2019 jul 30. [acesso em 2022 jun 20]. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=933222353679748.
https://www.facebook.com/watch/?v=933222...
(206).

Ao dizer “tiramos o vocabulário”, ela parece se referir a menções do termo gênero nos documentos oficiais do governo. Ao apresentar a candidatura do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos da ONU para o triênio 2020-2022, o governo não incluiu o termo gênero no documento; e pela primeira vez colocou a família na centralidade das políticas públicas, quando afirmou que “está desenvolvendo políticas públicas transversais, que têm na família ponto focal da atuação do estado”3232 Gravia G. Sem menção a gênero e a tortura, Brasil apresenta documento de candidatura a conselho da ONU. G1. 2019 jul 11. [acesso em 2022 ago 29]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/11/sem-mencao-a-genero-e-a-tortura-brasil-apresenta-documento-de-candidatura-a-conselho-da-onu.ghtml.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
. Isso indica que, de fato, existe um falso antagonismo produzido entre gênero e família, e não é à toa que o MMFDH tem feito políticas públicas como as citadas anteriormente.

Gandra afirma que o governo está trabalhando para que a “realidade não seja alterada pela linguagem”1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
(206). No entanto, cabe destacar que, desde que a ‘ideologia de gênero’ apareceu no cenário político brasileiro, os segmentos conservadores e religiosos têm trabalhado arduamente para inscrever e definir, por meio da linguagem, o conceito de gênero e a possível ‘ameaça’ social desse conceito. O fato é que a linguagem é a principal ferramenta para o exercício do poder, e é exatamente por isso que esta pesquisa se propõe a realizar a ADC, uma vez que as práticas sociais moldam e são moldadas pelo discurso77 Batista JR, Sato DTB, Melo IF. Análise do Discurso Crítica para linguistas e não linguistas. São Paulo: Parábola Editorial; 2018. 224 p.. A instituição sob análise crítica do discurso é um ministério que utiliza a linguagem de forma estratégica para a manutenção de uma realidade que é defendida como a única possibilidade natural e verdadeira para a vida de todos e todas.

[...] e ao mesmo tempo, no governo até temos uma diretora das comunidades LGBT, mas para defender, proteger a pessoa humana. Proteger, mas não promover artificialmente uma realidade que é ontologicamente um ataque aos seres humanos1313 Bitencourt LO. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa: a “ideologia de gênero” no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2022. [acesso em 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/59249.
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(206-207).

Nesse trecho, a secretária deixa evidente o entendimento ministerial de que as vidas de pessoas LGBTQIA+ são um ‘ataque aos seres humanos’, ou seja, afirma a heterossexualidade como a única expressão da sexualidade compreendida como natural e legítima. Conforme discutido anteriormente, quando se afirma a ‘natureza’ da sexualidade, há na interdiscur-sividade a ideia do discurso biológico ligado à reprodução, bem como o discurso religioso do Gênesis bíblico, que afirma também uma suposta natureza divina para os papéis de gênero heteronormativos.

Considerações finais

Nesta última década, a ascensão do neocon-servadorismo disputou e construiu, em torno das teorias de gênero, uma ‘releitura’ bem brasileira que produziu o inimigo ‘ideologia de gênero’ associado à esquerda, ao Partido dos Trabalhadores, ao aborto e aos direitos LGBTQIA+ – e que tem como principal campo de disputa o ambiente escolar.

Esse discurso se baseia na família heteronormativa como referência e na iminente ameaça a ela, por meio das supostas doutrinação e sexualização precoce de crianças, que seriam promovidas por ‘ideólogos de gênero’. Nesse sentido, a ‘ideologia de gênero’ foi cunhada como um recurso retórico para barrar os avanços de direitos humanos LGBTQIA+ e um instrumento de violência simbólica contra essa população, uma vez que se utiliza de argumentos falsos e religiosos para manter as populações sexo-diversas em uma categoria secundária de humanidade e abjeção.

O MMFDH, no período estudado, foi o principal cenário nessa disputa de grupos de uma determinada posição ideológica propondo a releitura dos direitos humanos e atribuindo ao governo um suposto feito de ‘universalização’ desses direitos. Por intermédio do desmonte de conselhos e da consequente retirada da participação da sociedade civil no processo de produção de políticas, esse ministério agiu de forma autoritária e antidemocrática.

A principal hipótese desta pesquisa – de que a ‘ideologia de gênero’ seria a norteadora de uma parte das políticas públicas desenvolvidas pelo MMFDH – foi validada sem ressalvas. Pôde-se observar que as ideologias norteadoras do ministério se organizam a partir de perspectivas essencialistas e biologizantes e que suas representantes se pronunciam a partir de suas convicções pessoais como se estas fossem vontades do povo, não utilizando bases científicas para seus argumentos e possuindo um discurso moralista religioso.

Esses pressupostos para a compreensão da sexualidade a partir de apenas um paradigma dito como natural, hegemônico, não são compreendidos por seus promotores como ideológicos, mas como vinculados à natureza humana e à criação divina. Percebe-se, pelo discurso das representantes do MMFDH, que esse ministério foi responsável, na estrutura governamental, por transformar em políticas públicas as bandeiras dos setores conservadores e religiosos, em especial, as bandeiras da FPE. Além disso, foi possível observar que a ideologia norteadora do MMFDH está diretamente ligada à ‘ideologia de gênero’.

Pode-se concluir que a ‘defesa da família’ e a ‘proteção da família’ expressam o caráter não explícito da ‘ideologia de gênero’. A partir dos discursos de Damares Alves e de Angela Gandra, infere-se também que, quando no discurso político, em especial de ideologias neoconservadoras, enuncia-se em ‘defesa da família’, na verdade, está se afirmando um posicionamento não explícito contra o que esses grupos designam como ‘ideologia de gênero’.

A pesquisa apresentou limitações, já que se encontrou dificuldade no acesso e na transparência às informações nos canais oficiais do MMFDH; por isso a escolha de acompanhar os discursos de suas principais representantes no período selecionado. Além disso, apesar da nova composição ministerial com a não reeleição de Jair Bolsonaro, o MMFDH consolidou o sintagma ‘ideologia de gênero’ na estrutura estatal e no campo político de forma geral. Por esse motivo, faz-se necessário seguir acompanhando as possíveis mutações e usos desse discurso no cenário político brasileiro, bem como suas conexões transnacionais.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2023
  • Aceito
    29 Dez 2023
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