Motivações para o rompimento do ciclo de violência em mulheres acolhidas na Sala Lilás do Instituto Médico Legal do Centro do Rio de Janeiro no contexto pandêmico de Covid-19

Fernanda de Sousa Gabriel Schütz Sobre os autores

RESUMO

Quais motivações levam uma mulher em situação de violência física a realizar o registro de ocorrência em uma delegacia policial rompendo o ciclo de violência em que estava envolvida? O fenômeno da violência contra a mulher é complexo, envolvendo atravessamentos históricos, religiosos, culturais, sociais, políticos e econômicos que influenciam nas relações íntimas e sociais. Visando responder à pergunta-problema, foi realizada uma pesquisa qualitativa, a partir de entrevista com 15 mulheres adultas, agredidas fisicamente, acolhidas pelo Projeto Sala Lilás IML Centro RJ. A pesquisa ocorreu em julho de 2022, ainda em período pandêmico, quando o confinamento domiciliar determinou um aumento da violência doméstica. A estratégia de pesquisa consistiu em traçar um perfil sociodemográfico das mulheres agredidas e dos contextos da agressão a partir do qual foram analisados os depoimentos levantados após o atendimento à mulher na Sala Lilás. Concluiu-se que a motivação da mulher agredida para realizar o registro de ocorrência policial não é uma reação ao último episódio de violência sofrido, mas como desfecho de experiências vivenciadas ao longo de sua vida, que acabam impactando no seu processo de decisão.

PALAVRAS-CHAVES
Gênero; Violência contra a mulher; Ciclo de violência

Introdução

Sofrer uma agressão física é uma experiência desgastante vivenciada de maneira traumática pelas mulheres em função das múltiplas desigualdades culturais e socioeconômicas que as vulneram.

Em finais da década de 1970, a psicóloga estadunidense Lenore Walker11 Walker LEA. El síndrome de la mujer maltratada. Bilbao: Editorial Desclee de Brouwer; 2012. 688 p. descreveu a Síndrome da Mulher Maltratada, identificando que as agressões ocorrem como um ciclo de violência sequencialmente repetido, constituído por três fases: a Fase 1, com o aumento da tensão, em que o agressor se mostra irritado, tem acessos de raiva, profere insultos, faz ameaças e pode até destruir objetos em geral, a mulher tende à negação, a calar os fatos perante terceiros e a se culpar pela reação do companheiro; a Fase 2, em que o ato de violência se materializa, o agressor perde o controle e parte para a agressão, nessa fase, realizam-se atos de violência verbal, física, psicológica, moral e/ou patrimonial; e a Fase 3, que caracteriza uma estratégia de manipulação do agressor, mostrando-se arrependido e carinhoso em busca da reconciliação. Confusa, manipulada, a mulher tenderia a perdoar e dar mais uma chance ao seu agressor, até que reinicia um novo episódio de Fase 1 fechando o ciclo22 Instituto Maria da Penha. Ciclo de Violência. [local desconhecido]: IMP; [data desconhecida]. [acesso em 2023 nov 14]. Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html.
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Mulheres expostas à violência doméstica, contudo, rompem o ciclo de violência em que estão envolvidas e decidem comunicar sua situação. Dessa forma, pedem ajuda e denunciam seu agressor, solicitam que ele seja afastado do convívio familiar, bem como requerem medidas protetivas de garantias legais que a protejam do contexto da agressão.

Nesse contexto, quais motivações levam a uma mulher agredida a romper o ciclo de violência denunciando seu agressor em uma delegacia de polícia?

Em busca de respostas à pergunta norteadora, em julho de 2022, realizou-se uma pesquisa de cunho analítico qualitativo com base em informações levantadas por meio de entrevistas individuais. Participaram 15 mulheres adultas, na faixa etária entre 18 e 59 anos, residentes no município do Rio de Janeiro, em situação de violência doméstica por agressões físicas, que fizeram boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia, sendo encaminhadas para realizar exame de corpo de delito e atendidas na Sala Lilás do Instituto Médico Legal (IML) do Centro da cidade. Serão apresentados os resultados sobre o perfil sociodemográfico das entrevistadas, bem como os resultados da análise categorial33 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977. das falas recolhidas. Em outras palavras, será analisado quem são essas mulheres e serão discutidos os motivos que as levaram a romper com o ciclo de violência.

Considera-se que este estudo poderá contribuir para a geração de conhecimentos sobre os desdobramentos da violência contra as mulheres, um problema de intrínseca relevância social em função das vidas perdidas, dos direitos violados e dos sofrimentos evitáveis. Conhecer melhor um problema é crucial para a implementação de políticas públicas corretamente fundamentadas que pretendam enfrentá-lo. Também, espera-se que este estudo colabore para melhor entendimento do problema por parte de equipes de saúde que cotidianamente enfrentam com perplexidade situações de atendimento a mulheres agredidas fisicamente. Com efeito, o manejo dos casos de violência contra a mulher demanda conhecimento técnico, reflexões teóricas e metodológicas que permitam desconstruir a hegemonia simbólica da dominação masculina, patriarcal, sexista, binária e heteronormativa, a fim de proporcionar intervenções respeitosas, humanizadas, pautadas em direitos, que possibilitem o efetivo rompimento do ciclo de violência.

Vale destacar que a pesquisa foi realizada na conjuntura da saída do confinamento domiciliar da população como medida preventiva à pandemia de Covid-19, um contexto histórico singular que contribuiu adversamente às situações de violência doméstica.

Contextos da pesquisa

O contexto histórico da pesquisa foi caracterizado pelas restrições à vida cotidiana impostas pelas ações de controle da pandemia de Covid-19. Nesse período, foram apontadas evidências da prática de violência doméstica contra as mulheres, de acordo com os dados do ‘Dossiê Mulher 2021’44 Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dossiê Mulher 2021. 16. ed., Rio de Janeiro: ISP; 2021. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2021.pdf.
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, em um contexto em que as mulheres agredidas foram virtualmente obrigadas a se confinar com seus agressores, condicionadas pela convivência forçada, a insegurança econômica e o medo de contrair o vírus Sars-CoV-2. Além da externalidade sanitária, a conjuntura política também foi desfavorável à implementação de qualquer pauta de gênero, uma vez que, na vigência do governo Bolsonaro, de perfil conservador e antifeminista, questões como a violência contra as mulheres eram consideradas como uma pauta meramente ideológica.

Mesmo nessa circunstância, as denúncias de agressão doméstica contra mulheres em 2020 foram publicadas pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ) no relatório ‘Dossiê Mulher 2021’. O documento informa que, no Brasil, foram notificadas 105.821 denúncias de violência contra a mulher efetuadas por meio do Ligue 180 e do Disque 100. No Rio de Janeiro, o citado dossiê informa que as delegacias policiais do estado receberam um total de 98.681 denúncias de casos de violência contra a mulher. Destes, 34.241 (34,7%) correspondem ao município do Rio de Janeiro. Em relação à tipificação oficial de violências (física, psicológica, moral, sexual e patrimonial), o relatório aponta uma maior incidência das violências físicas (34.192 casos; 34,6%). Ao desdobrar os dados de denúncia de violência física por idade, constatou-se que 36,7% correspondem à faixa etária de 18 a 29 anos, ao tempo que 51,1% correspondem à faixa etária de 30 a 59 anos. Ou seja, as denúncias de violência física contra mulheres adultas concentram 87,8% do total das notificações44 Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dossiê Mulher 2021. 16. ed., Rio de Janeiro: ISP; 2021. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2021.pdf.
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Para contextualizar o espaço de realização da pesquisa, que ocorreu na Sala Lilás do IML do Centro da cidade do Rio de Janeiro, localizado na Av. Francisco Bicalho, nº 300, corresponde descrever brevemente sua inserção na política pública intersetorial. Esse local foi o primeiro espaço a ser instituído, em dezembro de 2015, no marco da implementação do Projeto. De acordo com informações da página web do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ):

A Sala Lilás é um espaço criado para prestar atendimento especializado e humanizado às mulheres vítimas de violência física e sexual, e funciona dentro do Instituto Médico Legal (IML). O local é equipado para fazer exames periciais e possui uma equipe multidisciplinar composta por policiais, assistentes sociais e enfermeiras para realizar os atendimentos especializados. A integração dos serviços pretende ajudar as vítimas a se sentirem mais à vontade para relatar e falar sobre a violência sofrida. A ambientação mais acolhedora e aconchegante com mensagens escritas nas paredes, servem de apoio para as vítimas que estão em momentos de extrema fragilidade física e emocional. O projeto é o resultado de uma parceria da Polícia Civil com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a Secretaria Estadual de Saúde, Secretaria Municipal de Saúde e do Rio Solidário55 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Observatório Judicial da Violência contra a Mulher. Projetos-Convênios. Sala Lilás. Rio de janeiro: TJRJ; [data desconhecida]. [acesso em 2023 nov 15]. Disponível em: https://www.tjrj.jus.br/web/guest/observatorio-judicial-violencia-mulher/projetos-convenios/sala-lilas.
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Posteriormente, em 2018, foi implementada uma segunda sede no município do Rio de Janeiro, dessa vez no bairro Campo Grande. Mais tarde, foram estabelecidos convênios análogos com outras prefeituras, expandindo o serviço para os municípios de Petrópolis, inaugurado em junho de 2020; de Niterói, instituído em agosto de 2020; de São Gonçalo, inaugurado em dezembro de 2020; e de Nova Iguaçu, em dezembro de 2021.

Inicialmente, no planejamento das atividades do Projeto Sala Lilás, pensou-se em acolher somente mulheres, contudo, ao iniciar os atendimentos, logo percebeu-se a necessidade de atender todas as pessoas em situação de violência doméstica, sexual, homofóbica e comunitária. O público acolhido no Projeto Sala Lilás é de crianças, adolescentes, mulheres em todos os ciclos de vida, idosos e a população LGBTQIA+, que necessitem fazer o exame de corpo de delito decorrente de situações de agressões físicas e/ou sexuais.

Formalmente, a equipe técnica do Projeto Sala Lilás IML Centro RJ é multidisciplinar, composta por profissionais servidores públicos, tanto da Secretaria Estadual de Segurança Pública (policiais e peritagem médica) como da Secretaria Municipal da Saúde (enfermeiras e assistente social), contando com apoio de pessoal cedido pela ONG RioSolidario.

A pessoa encaminhada pela delegacia policial para realizar o exame de corpo de delito no IML é atendida na recepção de exame pericial por um policial. Em seguida, é direcionada ao acolhimento da equipe de saúde, em um espaço reservado, privativo e sigiloso, proporcionando uma escuta qualificada sem julgamentos morais, podendo se expressar e, inclusive, refletir sobre os ciclos de violência. Todos os acolhimentos são registrados em uma planilha de atendimento, sendo preenchida a Ficha de Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada.

Ao final de cada mês, a Coordenadoria de Área Programática 1.0 (CAP 1.0) analisa os dados produzidos para a elaboração de relatórios estatísticos e encaminhamento ao TJRJ. As fichas de notificação de violência são encaminhadas para a Divisão de Vigilância em Saúde (DVS), da CAP 1.0.

Documentos de fundamental valor para a Vigilância em Saúde, as fichas de notificação constituem uma ferramenta importante para o levantamento de dados epidemiológicos. Essas informações devidamente coletadas e consolidadas em bases de dados permitem dar subsídios empíricos para o planejamento, o monitoramento, a avaliação e a execução de políticas públicas que visem à redução da morbimortalidade decorrente das violências, à promoção da saúde e à equitativa qualidade de vida, conforme descrito no instrutivo de notificações de violências de 201666 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. VIVA: Instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada. 2. ed. Brasília, DF; 2016. [acesso em 2023 nov 14]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf#:~:text=Instrutivocom%20orienta%C3%A7%C3%B5es%20para%20o%20Preenchimento%20da%20Ficha%20de,%28vers%C3%A3o%2015%20de%20junho%20de%202015%2C%20em%20anexo%29.
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Os casos tipificados como violência física são enquadrados nas medidas protetivas instituídas na Lei Maria da Penha, incluídas as garantias de segurança e bem-estar da mulher agredida, reforçando o papel das medidas protetivas em resguardo da sua vida.

Material e métodos

Este estudo foi realizado a partir de pesquisa qualitativa, cujo objetivo geral consistiu em compreender os fatores que repercutem no processo de decisão da mulher acolhida na Sala Lilás IML Centro RJ em romper com o ciclo de violência. Teve seu desenvolvimento mediante análise de conteúdo documental33 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977., bibliográfico e de aplicação de questionários a essas mulheres. A pesquisa visou a analisar o perfil sociodemográfico das mulheres entrevistadas e suas as motivações para realizar o registro de ocorrência em uma delegacia policial.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com 15 mulheres selecionadas com os seguintes critérios de inclusão: i) mulheres adultas, isto é, na faixa etária entre 18 e 59 anos; ii) residentes no município do Rio de Janeiro; iii) em situação de violência doméstica por agressões físicas, que realizaram exame de corpo de delito e que foram atendidas no Projeto Sala Lilás IML Centro, RJ. Foram excluídos da pesquisa: crianças, adolescentes, idosas, homens de todas as idades, mulheres residentes em outros municípios e aquelas em situações de violência sexual. A coleta de dados ocorreu no mês julho de 2022, logo após as aprovações do projeto por parte dos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Púbica Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Certificado de Apresentação de Ética (CAAE) 55456022.4.0000.5240, parecer nº 5.305.282, e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, CAAE 55456022.4.3001.5279, parecer nº 5.397.376.

Uma vez finalizada a fase de acolhimento, mulheres agredidas foram convidadas a participar da pesquisa, em que 15 delas aceitaram participar de forma voluntária. O propósito da pesquisa foi esclarecido às participantes por intermédio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram aplicados 15 questionários semiestruturados, com as mulheres selecionadas de acordo com os critérios de elegibilidade, pela pesquisadora deste estudo. A abordagem e o recrutamento foram iniciados logo após o término do acolhimento realizado na Sala Lilás, de forma voluntária, sem prejuízo nenhum de seu atendimento.

As entrevistas ocorreram em um espaço privado, resguardando o sigilo e a confidencialidade das informações concedidas. Além das falas gravadas nas entrevistas, foram extraídas informações contidas na ficha de notificação de violência preenchida durante o atendimento. Dessa forma, conseguiu-se reduzir o tempo tomado da entrevistada e evitar a redundância de perguntas.

Em seguida, as informações foram sistematizadas e codificadas de acordo com os itens das perguntas do questionário sobre o perfil sociodemográfico (cor/raça, idade, escolaridade, renda, moradia, entre outros) e os motivos expostos na fala das entrevistadas. Foram desenvolvidos gráficos para análise dessas variáveis e construção de um banco de dados. Além disso, foram investigados o histórico de vida, suas dificuldades e os fatores que influenciaram o processo de decisão da mulher em recorrer a uma autoridade policial.

Os nomes das mulheres participantes desta pesquisa foram preservados anonimamente, sendo substituídos por nome de flores, como uma reflexão do poema ‘Hoje recebi flores’, de uma autora desconhecida, que alerta para o risco de feminicídio, chamando a atenção sobre a vulnerabilidade da vida da mulher diante do agravamento dos ciclos de violência.

Resultados e discussão

A discussão dos resultados será dividida em duas etapas: a) o perfil sociodemográfico das entrevistadas; e b) a identificação e a análise dos motivos para o rompimento do ciclo de violência. Traçar primeiro o perfil das mulheres acolhidas na Sala Lilás permitirá entender os motivos e os condicionamentos para suas decisões.

De forma sintética, o levantamento revelou que 11 das 15 entrevistadas pertenciam à faixa etária entre 20 e 39 anos. Nessa fase do ciclo de vida, a mulher está em plena idade reprodutiva e economicamente ativa, sendo muito comum que as agressões graves a impossibilitem de continuar suas atividades produtivas, necessitando de cuidados de saúde.

No quesito cor/raça, o grupo de 15 entrevistadas se constituiu por 9 mulheres pardas e 4 mulheres pretas, configurando o total de 13 mulheres negras e 2 brancas. A atribuição da cor/raça seguiu o padrão da autodeclaração com base na classificação estabelecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com Sueli Carneiro77 Carneiro S. Mulheres negras, violência e pobreza. In: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher. Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas. Brasília, DF: A Secretaria; 2003. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livro.pdf.
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, a violência doméstica e sexual atinge todas as mulheres, sendo um fenômeno que atravessa todas as classes sociais e grupos raciais. A autora também destaca que a mulher negra, exposta a preconceitos raciais, em geral, tem maior probabilidade de sofrer todos os tipos de violência em relação à mulher branca, como consequência de um imaginário social colonizado pelo passado de coisificação (escravatura, subalternidade) dos corpos negros77 Carneiro S. Mulheres negras, violência e pobreza. In: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher. Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas. Brasília, DF: A Secretaria; 2003. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livro.pdf.
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Entre as 15 entrevistadas, foi constatado que 10 mulheres iniciaram o ensino médio, sendo que 5 não o completaram, 3 mulheres o completaram e 2 conseguiram iniciar a faculdade, porém, somente uma delas concluiu o ensino superior. Essa questão traz à baila o fato de que o grau de instrução e o efetivo acesso à rede escolar podem oferecer à mulher melhores condições para desenvolver seu senso crítico, o reconhecimento de seus direitos e de sua cidadania.

Em relação ao trabalho/emprego, 13 entrevistadas disseram estar trabalhando – 7 com vínculo formal e 6 na informalidade –, e as 2 restantes disseram estar desempregadas. Mulheres com vínculo de emprego, bem como as autônomas que contribuem para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), estão formalmente protegidas com direitos trabalhistas que lhes permitem, por exemplo, obter uma licença médica para cuidar da saúde física ou mental ante as violências sofridas sem comprometer a renda familiar. Entretanto, a frequência de afastamentos ou do comprometimento do seu desempenho pela ocorrência de violência pode, em algum momento, acarretar sua demissão. Em contrapartida, as seis mulheres (negras) que trabalham informalmente estão muito mais desprotegidas. No ponto de vista da vulnerabilidade financeira, a pior situação é a das mulheres desempregadas. A brecha salarial apresenta um perfil racializado, uma vez que as menores rendas corresponderam às mulheres negras: das duas mulheres que manifestaram ganhar de 3 a 5 salários mínimos, uma se declarou branca e a outra, parda, sendo que as duas atuam em área informal.

Ainda em relação à renda e às possibilidades de sobrevivência, das 15 entrevistadas, 9 mulheres informaram que não recebem nenhum tipo de benefício social, sendo 6 pardas, 1 preta e 2 brancas. Por outro lado, 6 mulheres negras manifestaram receber o Auxílio Brasil, entre as quais, 3 pardas e 3 pretas.

O perfil da situação habitacional mostrou predominância da habitação na área regular da cidade, em moradia de aluguel (8 de 15); 5 disseram morar em casa própria, uma delas convivendo na moradia do agressor, e a última no espaço da família da entrevistada.

Nesse quesito, observou-se que a maioria das entrevistadas (12 de 15) se encontram em situação de fragilidade, dado que a dependência do aluguel muito frequentemente compromete os meios de sobrevivência e fragiliza a autonomia financeira da mulher caso deseje romper o relacionamento com o agressor. A situação de ‘não ter aonde ir’ que condiciona a mulher agredida à convivência com seu agressor piora em casos de violência patrimonial, isto é, quando a mulher tenta romper o ciclo de violência com seus parceiros e esses, como forma de coerção, destroem os pertences delas, mudam senhas bancárias e as privam do acesso a seus documentos44 Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dossiê Mulher 2021. 16. ed., Rio de Janeiro: ISP; 2021. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2021.pdf.
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Com relação à religiosidade das 15 participantes, 7 entrevistadas se declararam cristãs (6 evangélicas e uma católica), 3 delas se declararam espíritas, 1 declarou-se umbandista e 4 disseram não participar de nenhuma crença. É importante lembrar que os monoteísmos semíticos (cristianismo, judaísmo e islamismo) predicam a preservação dos laços matrimoniais, influenciando a mulher a permanecer submissa no relacionamento, dando novas oportunidades para o agressor na fé de que ele irá mudar seu comportamento.

Das 15 mulheres entrevistadas, 11 residiam com seus filhos. Somente uma delas encontrava-se em processo de gestação (último trimestre), que denunciou a sua irmã como autora das agressões físicas sofridas, com a qual convivia. Oito delas informaram que tiveram filhos com o agressor. Filhos inseridos em conflitos entre a mãe e o pai podem ser reduzidos a situações de disputas, podendo sofrer com alienação parenteral, quer dizer, quando um dos progenitores prejudica a imagem que o filho tem do outro. Para Joan Scott, a violência tem caráter relacional e, nesse caso, pode também ocorrer em caminho de mão dupla88 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ. Soc. 1989; 16(2):5-22..

Na perspectiva do feminismo marxista, Heleieth Saffioti99 Saffioti H. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo; 2015. afirma que o contexto de violência doméstica e intrafamiliar perpassa por questões sociais que acirram as cenas de violência, como uma cultura machista e patriarcal, que determina papéis sociais legitimando condutas autoritárias pelo homem, em que a mulher é subjugada a condições de inferioridade99 Saffioti H. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo; 2015.. Essa perspectiva encontra a sua gênese no ensaio de Friedrich Engels ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’, escrito em 1884. Para o autor, a construção do núcleo familiar seria uma forma primordial da exploração de classes, na qual o marido representa a burguesia e a esposa, o proletariado1010 Saffioti H. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu. 2001 [acesso em 2023 nov 16]; (16):115-136. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007.
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. Dando continuidade a esse ponto de vista, para Saffioti, a mulher está sujeita a um contrato sexual com seu marido em nome da produção e reprodução da sociedade1010 Saffioti H. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu. 2001 [acesso em 2023 nov 16]; (16):115-136. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007.
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. Dessa forma, iria se constituindo o conjunto de opressões patriarcais impostas pelos homens às mulheres.

Das 15 entrevistadas, 8 disseram ser agredidas por seus companheiros; 4 afirmaram ter sido agredidas por seus ex-companheiros, e 1 mulher, por seu namorado, totalizando 13 mulheres agredidas por pessoas que constituem um vínculo afetivo por serem parceiros íntimos. As 2 mulheres restantes informaram ter sofrido agressões de suas irmãs.

Seis das 15 mulheres participantes da pesquisa manifestaram estar em um período relativamente recente de 1 a 5 anos de relacionamento; 5 delas, um período de 6 a 10 anos; e 2 mulheres conviveram em um período de 11 a 15 anos. Scott destaca que as agressões do companheiro à esposa ocorrem em um espaço no qual o poder é articulado, em que a mulher cria estratégias de resistências para conviver com a violência masculina88 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ. Soc. 1989; 16(2):5-22.. As 2 entrevistadas restantes, denunciantes de suas irmãs, conviveram por mais de 16 anos com suas agressoras.

Verificou-se a predominância da residência como local da agressão. Somente uma das entrevistadas foi agredida em via pública. Nesse sentido, Saffioti1010 Saffioti H. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu. 2001 [acesso em 2023 nov 16]; (16):115-136. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007.
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afirma que o espaço doméstico é considerado como um espaço privado, um território físico e simbólico que confere aos homens poder opressor sobre as mulheres, mesmo que separados. Tal como mencionado anteriormente, o confinamento domiciliar no período pandêmico provocou uma sobre-exposição à violência doméstica44 Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dossiê Mulher 2021. 16. ed., Rio de Janeiro: ISP; 2021. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2021.pdf.
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. Por outro lado, nove entrevistadas afirmaram que, no momento da agressão, o agressor não havia feito uso abusivo de álcool e outras drogas. Entretanto, cinco delas relataram o uso abusivo de álcool, e a restante comunicou o uso de outras drogas.

Finalmente, o levantamento revelou que 8 das 15 mulheres fizeram sua denúncia em delegacia comum, e as outras 7, em delegacias especializadas (Delegacia de Atendimento à Mulher – Deam). Ademais, todas informaram que a agressão física sofrida não foi a primeira, sendo o agressor reincidente.

Para nove entrevistadas, esse foi seu primeiro relacionamento agressivo, e as seis restantes informaram já ter vivenciado violência em relacionamentos anteriores. Onze delas disseram ter sido a primeira vez em ir a uma delegacia para fazer o registro das agressões físicas sofridas, e quatro mulheres informaram que era a segunda vez.

Em todos os casos, as 15 mulheres entrevistadas decidiram, por algum motivo, romper o ciclo de violência. Quais foram esses motivos?

O resultado da indagação de pesquisa sobre quais motivações levaram a mulher a realizar o registro de ocorrência em uma delegacia de polícia aparece no gráfico 1, no qual são representadas as categorias discursivas mais recorrentes nas falas das entrevistadas.

Gráfco 1
Motivações para romper com a violência

No gráfico, observa-se a predominância da motivação por medo de morrer, com sete relatos. Seis mulheres mencionaram a saturação de suportar as agressões físicas devido a sua intensidade e frequência, visto que se sentem cansadas e não suportam mais essas situações. As questões relativas ao desrespeito foram relatadas por quatro mulheres. Em relação aos filhos, identificaram-se três casos em que as mulheres descreveram a preocupação em protegê-los, de evitar assistirem a novas agressões dentro de casa e por medo de perder a guarda destes. Destacam-se duas narrativas, para cada uma das motivações que envolvem os quesitos de apoio familiar, de humilhações e do agressor ser advertido judicialmente, a fim de ser responsabilizado pela gravidade do ato violento.

Chamou a atenção o fato de não ter havido a oportunidade de entrevistar mulheres trans nos atendimentos realizados na Sala Lilás apesar dos altos números de crimes de ódio praticados contra a população trans no Brasil1111 Benevides BG. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA; 2023. 109 p.. Uma possível resposta a essa situação é dada por Prado et al.1212 Prado MAM, Santos ART, Alecrim AJD, et al. Travestis e Transexuais no Brasil: ciclos de violência, inteligibilidade institucional e efeitos da invisibilidade. In: Veiga AM, Lisboa TK, Wolff CS, organizadores. Gênero e Violências: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Edições do Bosque; 2016. p. 238-263., que destacam que esses grupos sociais costumam enfrentar situações vexatórias e degradantes, constrangimentos denominados violência institucional. Por meio dessas ações discriminatórias, são deslegitimadas as suas demandas e é impedido o seu acesso a seus direitos1111 Benevides BG. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA; 2023. 109 p.. A ausência de um segmento social nos serviços repercute na subnotificação estatística. Prado et al.1212 Prado MAM, Santos ART, Alecrim AJD, et al. Travestis e Transexuais no Brasil: ciclos de violência, inteligibilidade institucional e efeitos da invisibilidade. In: Veiga AM, Lisboa TK, Wolff CS, organizadores. Gênero e Violências: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Edições do Bosque; 2016. p. 238-263. explicam que as recorrentes situações de humilhação e maus-tratos têm consequências físicas e psicológicas, fazendo com que essas pessoas desistam do cuidado, de reivindicar seus direitos ou de denunciar sua situação de abandono.

Uma vez tomada a decisão de denunciar seu agressor, quais dificuldades as mulheres encontram para decidir romper com o ciclo de violência?

São múltiplos os motivos que dificultam a decisão da mulher a romper com o ciclo de violência. A partir das falas levantadas, seguindo o método de Bardin33 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977., categorizaram-se as seguintes dificuldades: filhos; ameaças de morte; escândalos no trabalho da mulher; esperança de mudança de comportamento; dependência financeira; falta de moradia; não querer prejudicar o agressor; vergonha; chantagem; manipulação do agressor (controle dos atos da mulher); seus relacionamentos. Uma das entrevistadas referiu já não enfrentar nenhuma dificuldade devido a ter vivenciado antes outra relação violenta. O gráfico 2 esquematiza a frequência das categorias mencionadas.

Gráfco 2
Difficuldades no processo de decisão de denunciar seu agressor

As narrativas sobre as dificuldades diante das ameaças de morte são significativas e requerem cuidados com a segurança da mulher, a fim de resguardar a sua vida. O momento em que a agredida decide romper com a violência é o mais delicado, pois o agressor sente perder o controle, agindo com mais violência, como pode ser visto na seleção das falas abaixo:

Sempre falava que se eu procurasse a polícia ele iria me matar, me aleijar. Ele sempre foi muito agressivo. Esta é a primeira vez que eu tomei coragem. (Lavanda).

Ele dizia que se eu não ficasse com ele, eu não ficaria mais com ninguém. Sempre a mesma coisa... Se eu não aceitasse ele do jeito que ele é, se prepara, vou encher sua cara de tiro. (Gardênia).

Conforme destaca Saffioti99 Saffioti H. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo; 2015., na estrutura patriarcal da sociedade, o papel do homem é de provedor, de garantir a segurança e o sustento familiar. Atos de controle e de poder opressor sobre a mulher são legitimados pela estrutura patriarcal. Desse modo, a masculinidade é considerada falha quando não responde a essas expectativas. Consequentemente, não existem cobranças de mudanças ao comportamento agressivo do homem em prol da família. Em contrapartida, há, sim, cobranças à mulher no sentido de suportar a agressividade masculina em nome de preservar os vínculos familiares.

Assim, no momento em que a mulher decide quebrar o silêncio e denunciar a violência que a oprime, ela necessita de todo o apoio possível para cessar com a agressão. Esse processo de decisão é atravessado por situações de violência estrutural, simbólica, falta de políticas habitacionais, baixos salários, dependência financeira, sobrevivência e bem-estar dos filhos, falta de apoio familiar, institucional, entre tantos outros que influenciam no processo de romper com a violência. Perceberam-se esses fatores tanto na fala de uma entrevistada – “Medo, tipo do que os outros iriam falar” (Hortência) – quanto de outra – “Eu sempre tive medo e vergonha de contar, apesar de ver vários casos pela TV” (Rosa).

Em síntese, as motivações para romper com a violência decorrem de diversas experiências e vivências na trajetória de vida da mulher agredida por meio de consecutivos atos de violência. Tais atos de violência iniciam-se por agressões psicológicas e morais, mediante palavras de desqualificações, ofensas, xingamentos, ameaças, em uma sequência de atos de humilhação, intensificados por agressões físicas cíclicas que somente terão fim se a mulher decide romper a trama que a vincula ao seu agressor, podendo contar com uma rede de apoio para que sua decisão efetivamente se realize.

Considerações finais

Com muita frequência, as mulheres em situação de violência doméstica se sentem culpadas por ter sido agredidas, sentem medo de expor sua história, seu sofrimento, com medo de críticas, julgamentos morais, do que os outros irão falar e achar delas. A maioria se sente sozinha, sem saída, caindo em um poço sombrio e sem fim. Suas forças estão comprometidas pelo adoecimento mental devido à manipulação, à humilhação e à inferiorização sofridas ao longo do relacionamento. Torna-se fundamental, portanto, que as mulheres agredidas possam contar com o apoio familiar, social, comunitário e institucional que as ajude a romper com os ciclos de violência.

Culturalmente, cabe à mulher o papel da subalternidade diante das ações de controle e dominação do homem que a manipula e a agride. A naturalização das relações compostas por atos de violência psicológica e moral, como também por influências religiosas que orientam a mulher a suportar ao máximo as agressões sofridas contra si mesma, mantem-se na sucessão do ciclo de violência. Tais condicionamentos dificultam a decisão de enfrentar a violência que a oprime, cede e se conforma em prol do bem-estar da família, criando expectativas para mudanças no comportamento do agressor.

O momento em que a mulher decide realizar o registro de ocorrência em uma delegacia policial é posterior a uma trajetória de agravamento de sucessivas situações de violências domésticas, como: psicológica, moral, física e patrimonial. A mulher é envolvida por uma mistura de sentimentos, pois, em linhas gerais, encontra-se magoada, assustada, envergonhada, frustrada, desapontada, indignada, entre outras situações possíveis. Em muitas circunstâncias, pode afirmar não querer mais o relacionamento que a oprime pela intensidade da violência que lhe é aplicada, pelo medo de morrer e de que algo terrível aconteça com seus filhos.

Ao romper com o ciclo de violência, a mulher quebra o silêncio de uma relação opressora. Dessa forma, é crucial que possa sentir o apoio familiar, comunitário e institucional no sentido de obter suporte, cuidados e segurança.

O Projeto Sala Lilás é um equipamento importante no acolhimento à mulher em situação de violência, pois lhe proporciona um lugar de fala e escuta dentro de um ambiente sigiloso e de privacidade. A mulher que sai de casa para denunciar seu agressor se encontra no momento de vivência do ápice da violência. Nas entrevistas, comprovou-se que o sentimento de agonia e do insuportável são motivações para romper com o ciclo da violência. Considera-se que a escuta qualificada como a que a mulher pode encontrar na Sala Lilás é um dos fatores para a promoção de um espaço para que consiga externalizar suas indignações, tristezas, refletir sobre a submissão a que esteve sujeita; sobre os tipos de violências sofridas, sobre a relação de opressão que a manteve manipulada do lado do seu agressor.

No percurso da investigação, foram identificadas algumas limitações. A pesquisa não conseguiu atingir a participação de mulheres trans. Um dos desafios nas intervenções da Sala Lilás se refere ao acolhimento à população LGBTQIA+ devido à dificuldade de acesso aos serviços de justiça, de segurança pública e de saúde dessa população. Dessa forma, é necessário discutir de forma ampla, nas reuniões intersetoriais, estratégias que possam garantir o acesso dessa população aos serviços da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência e da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.

Em definitivo, para o enfrentamento da violência contra a mulher, é preciso que se consolidem políticas públicas no sentido de produzir as mudanças culturais necessárias para a emancipação das múltiplas desigualdades que oprimem de forma interseccional identidades colocadas em lugares sociais subalternos. Ademais, devem ser estimuladas políticas públicas transversais e intersetoriais que, além de agir na desconstrução da cultura machista e patriarcal, possam também contribuir para a integralidade das ações de assistência a mulheres extremamente fragilizadas em situação de violência doméstica.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2023
  • Aceito
    12 Nov 2023
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