Por uma bioética queer: perspectivas a partir do Sul Global

Henrique Rabello de Carvalho Fabio Alves Gomes de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O objetivo deste artigo foi investigar as intersecções entre a agenda LGBTI+ e a bioética enquanto campo disciplinar. Esta pesquisa se baseou em análise qualitativa e revisão bibliográfica que englobam tópicos relacionados com bioética, estudos pós-coloniais, teoria queer, direitos humanos e relações internacionais. Por meio de reflexões sobre o contexto político e social que precedeu o surgimento da bioética, com enfoque na interpretação da sexualidade e na identidade de gênero durante os períodos coloniais e imperialistas, buscou-se compreender como as perspectivas históricas influenciaram a evolução da bioética. Além disso, pretendeu-se examinar a consolidação da bioética como um campo disciplinar e área de conhecimento científico, destacando a predominância do principialismo na segunda metade do século XX. Nesse sentido, analisou-se o potencial de uma abordagem feminista na bioética para enfrentar as desigualdades e opressões presentes em sua própria estrutura, com uma visão crítica e reflexiva. Por último, apresentou-se de que forma as contribuições epistemológicas da teoria queer podem subsidiar o desenvolvimento de uma bioética queer, a partir do Sul Global. Essas discussões visam ampliar a reflexão sobre as desigualdades e opressões enfrentadas pelas pessoas LGBTI+ enquanto grupo social no contexto da bioética.

PALAVRAS-CHAVES
Bioética; Teoria queer; Pessoas LGBT; Direitos humanos; Sul Global

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões a respeito das relações entre diversidade sexual e de gênero e bioética a partir da contextualização da bioética enquanto campo disciplinar. Dessa forma, o artigo está dividido em três seções que têm por base a revisão bibliográfica dos temas que se pretende relacionar. Na primeira parte, objetiva-se apresentar algumas reflexões acerca do contexto político e social que antecede o surgimento da bioética enquanto disciplina, dando destaque ao modo como orientação sexual e identidade de gênero foram interpretadas nos contextos coloniais, imperialistas e de surgimento do nazifascismo. Adiante, intenciona-se analisar o entrecruzamento entre bioética, direitos humanos e relações internacionais, de onde localizamos o surgimento das tensões e os redirecionamentos epistemológicos sugeridos na perspectiva dos estudos pós-coloniais.

Na segunda seção, propõe-se analisar o surgimento da bioética enquanto campo disciplinar, no qual se destaca a hegemonização do principialismo na segunda metade do século XX. Nesse cenário, pretendemos discutir – na perspectiva de uma bioética crítica – de que forma a bioética de inspiração feminista pode contribuir com aportes teóricos acerca da consideração das desigualdades e opressões para a própria fundamentação da bioética.

Na terceira e última seção, procura-se discutir, apresentar e defender de que forma as contribuições epistemológicas da teoria queer podem subsidiar, em uma perspectiva da bioética crítica, uma bioética queer em uma perspectiva de viés pós-colonial, como uma primeira possibilidade de ampliação das reflexões sobre as desigualdades e opressões relacionadas com a população sexo-gênero diversa no campo disciplinar da bioética.

A LGBTIfobia estrutural e seus desdobramentos bioéticos

Nesta primeira seção, pretende-se analisar como a LGBTIfobia se torna um problema (bio)ético e que esteve presente em momentos distintos, sugerindo aqui que precisam ser analisados como continuidades, como as formas de imperialismo europeu sobre o continente africano e o Holocausto no contexto da Segunda Guerra Mundial. Assim, a Conferência de Berlim, realizada entre 1884 e 1885, marcou um ponto histórico crucial em que a divisão artificial do continente africano entre as potências europeias deu início a um intenso período de colonização e dominação sobre povos e culturas considerados ‘incivilizados’. Esse enquadramento refletia uma falta de correspondência aos padrões ocidentais e europeus de inteligibilidade, reconhecendo apenas um modelo de civilização, língua e cultura. A conferência abordou principalmente questões econômicas, visto que as nações europeias industrializadas necessitavam das matérias-primas disponíveis na África, como ouro, diamantes, borracha, cacau, entre outras11 Coker A. Film as Historical Method in Black Studies: Documenting the African Experience. In: Kete MA, Karenga M. Handbook of Black Studies. California: SAGE Publications, Inc.; 2006 [acesso em 2023 nov 16]. p. 352-366. Disponível em: http://dx.doi. org/10.4135/9781412982696.n25.
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Esse período de dominação imperialista europeia na África, caracterizado por violência sistematizada, resultou na estimativa de pelo menos 10 milhões de mortes22 Milani MC. Estado Livre do Congo: imperialismo, a roedura geopolítica (1885-1908). [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; 2011. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: http://dx.doi. org/10.11606/d.8.2011.tde-26042013-095008.
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, genocídio que ainda é negligenciado na historiografia sobre a África, direitos humanos e relações internacionais. O colonialismo não apenas impôs práticas culturais e violência como processos ditos civilizacionais, mas também introduziu um regime jurídico completamente diferente das práticas e visões de mundo das diversas etnias e grupos sociais africanos. Isso incluiu a imposição de valores e definições de humanidade por meio de legislações civis e penais, como as leis antissodomia do período vitoriano no Reino Unido, na Alemanha e em outros países, que foram transplantadas para a África nos processos de dominação. Esse contexto histórico-colonial e imperialista contribuiu para a LGBTIfobia estrutural ainda presente atualmente em alguns Estados africanos, refletida em legislações que criminalizam a existência de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Intersexo e outras (LGBTI+).

Pode-se afirmar que a homofobia se estruturou como parte dos projetos segregacionistas que têm sua origem na Europa Ocidental, permanecendo mesmo após o Holocausto, em que segmentos da população LGBTI+ foram submetidos a violências e experimentos clínicos com base na orientação sexual e/ou na identidade de gênero. Os valores e as percepções, incluindo a definição de humanidade, eram refletidos nos sistemas legais por meio da codificação de comportamentos e ações permitidos e proibidos, baseados em valores morais consolidados como lei. Entende-se que essa LGBTIfobia estrutural deve ser contextualizada nessa perspectiva histórico-colonial e imperialista de criminalização e reprodução de dispositivos legais jurídicos que buscavam a normalização a partir da heterossexualidade e da branquitude enquanto modelo único de existência e reconhecimento de direitos.

Essas formas de segregação da população sexo-gênero diversa foram amplificadas durante o Holocausto no contexto da Segunda Guerra Mundial, resultando na morte de, aproximadamente, 6 milhões de pessoas, em que se destaca uma política de Estado de segregação e eliminação de segmentos populacionais indesejados. No Holocausto, observa-se uma junção do racismo e da homofobia que potencializou e sofisticou essa máquina de guerra e extermínio organizada pelo Estado contra grupos que deveriam ser afastados daquela comunidade moral, política e social, uma vez que eram entendidos como indesejados, mas também como uma ameaça.

Ao lado de Lindqvist33 Lindqvist S. “Exterminate all the brutes”: One man’s odyssey into the heart of darkness and the origins of European genocide. New York: The New Press; 2021., propomos que o processo de dominação e de extermínio iniciado no continente africano, a partir da Conferência de Berlim e do Holocausto no contexto da Segunda Guerra Mundial, seja entendido como uma máquina de guerra imperialista que se organiza e se sofistica ao longo das décadas. Sob a égide do racismo e da eleição-rejeição de corpos indesejados, e que tem na população sexo-gênero diversa um dos seus principais alvos, nossa hipótese é de que essa máquina ainda se mantém ativa.

Essa máquina de guerra organiza-se a partir de uma perspectiva majoritariamente racista, LGBTIfóbica e com nuances necropolíticas44 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2021.; e está ativamente envolvida em uma série de práticas que merecem nossa análise crítica. Nesse contexto, é importante destacar que a patologização das pessoas LGBTI+ é uma manifestação preocupante dessa realidade. Um exemplo notório dessas práticas de patologização é a persistência de terapias denominadas de ‘conversão’55 Golightley S. ‘I’m Gay! I’m Gay! I’m Gay! I’m a Homosexual!’: overt and covert conversion therapy practices in therapeutic boarding schools. Br. J. Soc. Work. 2023; 53(3):1426-1244.,66 Tillewein H, Kruse-Diehr AJ. The impact of sexual orientation conversion therapies on transgender individuals. Psychol. Sex. 2023; 14(4):676-688. que buscam a modificação da orientação sexual. Essas terapias são amplamente condenadas por organizações de saúde e direitos humanos, mas ainda são praticadas em muitos lugares, refletindo a persistência de preconceitos enraizados.

As práticas nazifascistas de extermínio de populações indesejadas e de aprisionamento dos inimigos – ou, de alguma forma, daquelas pessoas que ameaçassem um ideal de família e de moral que sustentava esses mesmos regimes de exceção – resultaram no aprisionamento e no extermínio em campos de concentração, majoritariamente de judeus, bem como de contingentes expressivos de dissidentes políticos, de ciganos, de pessoas com algum grau de deficiência física, assim como pessoas sexo-gênero diversas. De acordo com a ‘Law for the protection of hereditary health’ lei que instituiu a eugenia como prática na Alemanha nazista, pessoas esquizofrênicas, com surdez e com algum tipo e grau de deficiência deveriam ser esterilizadas77 Adelson BM. The Lives of Dwarfs: Their Journey from Public Curiosity Toward Social Liberation. New Jersey: Rutgers University Press; 2005.. Foi sob essa lei que o médico nazista Joseph Mengele realizou suas experimentações com seres humanos pertencentes a esses grupos populacionais88 Vansuch B. Mengele’s ethics: an analytical approach to understanding Josef Mengele’s motives. [tese]. Washington, DC: Georgetown University; 2011.. Em particular, as pessoas homossexuais foram sujeitas inclusive a experimentos para ‘cura’ da homossexualidade e o desenvolvimento de imunização para febre tifoide no campo de concentração de Buchenwald99 Röll W. Homosexual inmates in the buchenwald concentration camp. J. Homosex. 1996; 31(4):1-28..

Frequentemente, observa-se o silenciamento sobre as violências cometidas contra a população LGBTI+ nesse período, bem como a ausência de reparação histórica em uma perspectiva da bioética e dos direitos humanos referentes a esse grupo social. É sobre essa última parcela da população indicada que este artigo pretende se debruçar. Nesse contexto, é necessária uma contextualização histórica para que possamos expor as práticas homofóbicas e de rejeição perpetradas historicamente e que, ainda hoje, resultam em criminalização e patologização que vêm perdurando durante todo o século XX, expandindo-se para o século

XXI. Por essa razão, cabe destacar que, ao fim da Segunda Guerra Mundial, foi aprovado o Código de Nuremberg, como um reconhecimento de que a instrumentalização da medicina e das pesquisas clínicas poderia acontecer por meio da ação de organizações sociais, políticas e econômicas, tornando-se necessário o estabelecimento de diretrizes para evitar situações como aquelas ocorridas no contexto do Holocausto1010 Annas G, Grodin M. The nuremberg code. In: Emanuel EJ, Grady CC, Crouch RA, et al., editores. The Oxford textbook of clinical research ethics. New York: Oxford University Press; 2008. p. 136-140. No entanto, o Código de Nuremberg não faz qualquer menção às pessoas homossexuais.

O aprisionamento de pessoas identificadas como pertencentes à população sexo-gênero diversa, majoritariamente homossexuais, estabelecia-se na Alemanha a partir da interpretação do § 175 do Código Penal da Alemanha Imperial de 1871, que criminalizava as relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo. Não obstante a queda do Terceiro Reich (1933-1945), a perseguição aos homossexuais continuou. A homossexualidade enquanto conduta imoral foi confirmada pela Corte Constitucional alemã em 1957, que declarou que o § 175 não era apenas um legado do regime nazista na medida em que, conforme o entendimento da Corte Constitucional alemã, ela deveria ser considerada um comportamento imoral inclusive em tempos de democracia1111 Euchner EM. Morality politics in a secular age: strategic parties and divided governments in Europe. New York: Springer; 2019..

Assim, mesmo após o final da Segunda Guerra Mundial, com a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a criminalização prevista no Código Penal da Alemanha Imperial de 1871 permaneceu vigente até 1994. Na Inglaterra e no País de Gales, a criminalização da homossexualidade somente foi revogada em 19671212 Han E, O’Mahoney J. British colonialism and the criminalization of homosexuality. Camb. Rev. Int. Aff. 2014; 27(2):268-288.; na Escócia, em 1980; e na Irlanda do Norte, em 1982. Entretanto, segue sendo válida em países das ex-colônias inglesas, como Jamaica e Uganda, bem como em outros países do continente africano que ainda criminalizam as relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo, bem como a expressão pública da orientação sexual e da identidade de gênero, com penas que variam de prisão perpétua a pena de morte.

Um exemplo de como se operacionalizava a articulação entre criminalização e patologização das orientações sexuais e das identidades de gênero é o caso de Alan Turing, conhecido como fundador da ciência computacional e da inteligência artificial, e que foi fundamental durante a Segunda Guerra Mundial, contribuindo para a decodificação dos códigos e mensagens nazifascistas, além de seu impacto no desenvolvimento da rede mundial de computadores1313 Bowen JP. Alan Turing: Founder of Computer Science. In: Bowen J, Liu Z, Zhang Z, editores. Engineering Trustworthy Software Systems. Cham: Springer International Publishing; 2017 [acesso em 2023 nov 16]. p. 1-15. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1007/9783-319-56841-6_1.
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. No entanto, em 1952, Turing foi preso por acusação de indecência devido à sua homossexualidade, sendo submetido à castração química em vez de prisão1414 Doan L. Queer history queer memory: the case of Alan Turing. GLQ. 2017; 23(1):113-136., o que o levou ao suicídio.

O caso de Turing destaca ainda a necessidade de integrar a orientação sexual e a identidade de gênero no campo dos direitos humanos, mas, sobretudo, nas bases teóricas da bioética enquanto disciplina. Mesmo no contexto de existência da ONU e do Código de Nuremberg, Turing e outros foram submetidos a tratamentos experimentais para reversão de orientação sexual. É crucial questionar por que esses aspectos não foram considerados no código de Nuremberg e como foram tratados em nível doméstico e internacional. Tais fatores evidenciam que a universalidade dos direitos humanos ainda não abrange completamente a orientação sexual e a identidade de gênero, mantendo-se criminalizadas e patologizadas em alguns estados, reflexo de lógicas coloniais e imperialistas persistentes.

Esse cenário expõe a constante necessidade de pensar nos direitos humanos não apenas como ponto de chegada, mas, particularmente, como ponto de partida1515 Herrera Flores J. A (re) invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.. Da mesma forma, pensar de que forma alguns localismos globalizados se universalizam e que, por isso, merecem reflexão para adequação histórica e contextualização geopolítica1616 Santos BS. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez; 2005.. Aqui reivindicamos a necessidade de destacar como essa projeção incide em categorias como gênero, classe, sexualidade e raça, em uma perspectiva interseccional ao analisar os sistemas de subordinação e discriminação, bem como as políticas indutoras de opressão, que têm como consequência as situações de desvantagem e discriminação contra mulheres negras, por exemplo1717 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem. 2002; 10(1):171-188.. A interseccionalidade e a interdisciplinaridade tornam-se, por isso, fundamentais para a compreensão e a contextualização das categorias gênero e sexualidade como geopoliticamente localizadas1818 Puar JK. Terrorist assemblages: homonationalism in queer times. London: Duke University Press; 2017.,1919 Puar J. Rethinking Homonationalism. Int. J. Middle East Stud. 2013; 45(2):336-339., principalmente quando analisadas necessariamente em conjunto com outras categorias como raça e religião, entre outros marcadores que incidem sobre os corpos dos sujeitos ‘outros’; dos sujeitos ‘queer’.

A abordagem pós-colonial destaca a hegemonia da heteronormatividade, imposta pelo sistema colonial e imperialista, que influencia os padrões sociais e institucionais. Isso pode ser percebido, especialmente no continente africano, quando se analisa o papel dos atores coloniais europeus e a retórica moral para descrever atos homossexuais como não naturais ou pecaminosos no contexto dos códigos judaico-cristãos1212 Han E, O’Mahoney J. British colonialism and the criminalization of homosexuality. Camb. Rev. Int. Aff. 2014; 27(2):268-288.. No continente africano, as práticas homossexuais estavam presentes antes dos processos de colonização, o que não significa que eram plenamente aceitas, da forma como os processos de reconhecimento de direitos sob a perspectiva liberal de direitos no ocidente se organizam. O que deve ser sublinhado é o impacto do colonialismo europeu sobre como as comunidades locais passaram a considerar a homossexualidade1212 Han E, O’Mahoney J. British colonialism and the criminalization of homosexuality. Camb. Rev. Int. Aff. 2014; 27(2):268-288..

Sob essa perspectiva, observa-se como a heteronormatividade molda os padrões de aceitação, não apenas nos países imperialistas, mas especialmente nos países subjugados pelo imperialismo, mesmo após o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero nos países dominadores. Isso levanta questões sobre como a bioética tende a refletir predominantemente perspectivas hegemônicas e a ignorar outras epistemologias subalternas. Portanto, torna-se relevante promover diálogos entre direitos humanos, bioética, gênero e sexualidade no contexto das relações internacionais, especialmente em sociedades marcadas por feridas coloniais.

O desenvolvimento da bioética no pós-Segunda Guerra Mundial: a invisibilidade da orientação sexual e da identidade de gênero

Ao partir dessas perspectivas e desse contexto, buscamos abordar gênero, sexualidade e bioética considerando as lacunas de contextualização histórica e (geo)política em muitos estudos bioéticos, que frequentemente negligenciam desigualdades de raça, gênero, classe e orientação sexual. A bioética surgiu como disciplina relativamente recente, em que se destaca a obra ‘Bioética: uma Ponte para o Futuro’, de Van Rensselaer Potter, publicada em 1971. Embora haja debate sobre seu surgimento em Madison ou Washington, nos Estados Unidos da América (EUA), é importante destacar sua origem ligada à pesquisa clínica e ao desenvolvimento científico, respondendo a dilemas morais da prática biomédica2020 Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2002.. Esse período coincide com a intensa atividade de diversos movimentos sociais nos EUA, como os movimentos feminista, negro e pelos direitos das pessoas LGBTI+.

Apesar do Holocausto e das violações dos direitos humanos sob os regimes nazifascistas, com destaque para o genocídio de milhões de judeus, inclusive judeus LGBTI+, a realização de pesquisas com seres humanos de forma compulsória – e do posterior estabelecimento de um regime internacional de direitos humanos –, as desigualdades estruturais e as categorias como classe, raça, gênero e sexualidade ainda não foram plenamente consideradas na bioética como campo disciplinar. Nos EUA, após eventos de má prática na pesquisa com seres humanos, surgiu a necessidade de estabelecer princípios éticos para as pesquisas científicas2020 Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2002..

O relatório Belmont, originado em 1978 por iniciativa do governo e congresso dos EUA, tem o propósito de universalizar princípios éticos para abordar dilemas morais na pesquisa científica, especialmente após irregularidades relacionadas com experimentações clínicas que ocorriam desde a Segunda Guerra Mundial. Os princípios de respeito pelo ser humano, beneficência e justiça são fundamentais, integrando tradições morais do Ocidente. A publicação desse relatório marcou a integração da bioética como campo disciplinar na esfera acadêmica2020 Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2002..

A partir do relatório Belmont, Beauchamp e Childress propuseram que os conflitos morais poderiam ser analisados e resolvidos via princípios éticos. Nesse sentido, na obra ‘Princípios da ética biomédica’2121 Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 2001., publicada em 1979, os autores defendem os princípios da autonomia, da beneficência, da justiça e da não maleficência para estruturarem sua teoria assentada nesses quatro vetores éticos. Essa teoria foi dominante no campo da bioética por quase duas décadas, ocasionando inclusive uma certa confusão com a própria disciplina. Ou seja, muitas vezes, dizer a bioética implicaria referenciar e defender o principialismo elaborado por Beauchamp e Childress2020 Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2002..

Conforme mencionado, o papel da bioética principialista (ou principialismo) tornou- se uma vertente hegemônica da bioética, confundindo-se até mesmo com a própria disciplina2222 Rego S, Palácios M, Siqueira-Batista R. Bioética para profissionais da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. De modo geral, o principialismo defendido por Beauchamp e Childress tem como escopo de análise principalmente a pesquisa clínica com seres humanos, bem como a própria atividade humana laborativa na prestação de serviços de saúde, o que envolve várias profissões ligadas à área de saúde. Inevitavelmente, como vem se construindo nos últimos anos, a bioética se apresenta como uma área de estudos interdisciplinar, em que se vinculam as perspectivas da ética aplicada, buscando reflexões sobre o comportamento humano em situações específicas, assim como a saúde coletiva – particularmente, para ponderar o impacto de determinadas decisões práticas e políticas no âmbito da sociedade.

Em linhas gerais, a perspectiva estadunidense sobre a bioética que se hegemonizou, em especial por meio da teoria principialista, não evidencia de forma significativa variáveis como a desigualdade social e econômica entre os grupos sociais, assim como os diversos níveis de percepção e de proteção dos direitos humanos e sua incidência nos processos decisórios. Dessa forma, torna-se evidente que a universalidade que não anuncia a sua origem e limites pode ocultar os chamados localismos globalizados1616 Santos BS. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez; 2005., entre os quais, categorias como gênero, classe, raça e orientação sexual que estão interconectadas de forma complexa.

Desse modo, a interdisciplinaridade como característica fundadora da bioética deve ser expandida e enriquecida a partir da adoção e da percepção de novas categorias e perspectivas subalternizadas em processos históricos, políticos e sociais, com base na análise das epistemologias hegemônicas em diálogo e/ou confronto com as epistemologias subalternas. É dessa forma que a localização geopolítica dos saberes e a perspectiva que parte de uma divisão inicial entre Norte Global e Sul Global tornam-se relevantes para pensar em uma bioética mais democrática e que considere na sua fundamentação essa complexidade de elementos e categorias que, neste artigo, somam-se à bioética de inspiração feminista e aos estudos pós-coloniais.

Pretende-se, com isso, diferenciar esta abordagem daquela de inspiração estadunidense e que caracteriza a bioética principialista, qual seja: uma preocupação voltada ao modo de agir. Entendemos que a reflexão sobre a fundamentação é decisiva para que, de fato, a bioética considere outras variáveis sociopolíticas na sua definição, assim como outras categorias de análise importantes para a ampliação e a democratização dessa disciplina. O debate acerca da fundamentação do agir e do modo de agir certamente irá orientar as diferenciações entre múltiplas percepções da bioética, dentre as quais se destacam o principialismo fundamentado em uma perspectiva estadunidense e outras teorias que consideram as desigualdades como estruturantes da própria fundamentação.

Garrafa, Martorell e Nascimento2323 Garrafa V, Martorell LB, Nascimento WF. Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saúde Soc. 2016; 25(2):442-451. abordam críticas ao principialismo na bioética, com destaque para a confusão entre o principialismo com a própria bioética. Os autores destacam a supervalorização do princípio da autonomia, levando a um individualismo que desconsidera questões de coletividade e justiça social. Um exemplo ilustrativo é a indústria do termo de consentimento informado, em que a autonomia se torna mais uma formalidade do que um verdadeiro esclarecimento no processo decisório em pesquisas clínicas2323 Garrafa V, Martorell LB, Nascimento WF. Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saúde Soc. 2016; 25(2):442-451.. Além disso, é discutido o ‘universalismo’ presente na bioética principialista, no qual se busca universalizar uma moralidade, ignorando particularidades culturais e diferenças entre grupos sociais. As críticas a partir do Sul buscam contextualizar a autonomia dentro de diferentes contextos culturais e enfatizam a necessidade de a bioética abordar não apenas conflitos biomédicos individuais, mas também questões globais e coletivas2323 Garrafa V, Martorell LB, Nascimento WF. Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saúde Soc. 2016; 25(2):442-451..

O debate sobre a fundamentação da bioética e a hegemonia da teoria principialista sobre a bioética passa a receber contribuições, em especial na América Latina, em que se busca considerar outras variáveis que incidem sobre a fundamentação da bioética, assim como os limites da bioética principialista. Destacam-se nesse cenário, dentre outras teorias, a bioética de proteção, a bioética de intervenção e a bioética de inspiração feminista que promovem um tensionamento epistemológico acerca de outras variáveis relevantes que devem ser consideradas pela bioética.

A bioética de inspiração feminista: aportes teóricos para uma bioética emancipatória

A partir dos anos 1990, a bioética de inspiração feminista, no contexto da terceira onda do feminismo, fincou as suas raízes nos debates bioéticos por meio de publicações que buscavam adicionar aos cânones da bioética outras categorias, como perspectivas de gênero e as desigualdades no âmbito social2424 Diniz D, Guilhem D. Feminismo, bioética e vulnerabilidade. Est. Fem. 2000; 8(1):237-244.. Essas reflexões estavam ancoradas em trabalhos sobre ética feminina e feminista produzidas desde os anos 1960. É necessário destacar que, desde a sua origem, a bioética de inspiração feminista tinha por objetivo evidenciar as desigualdades sociais com destaque para as assimetrias de gênero e, conforme apontam as autoras, atuar como agente potencial de provocação dos pressupostos universalistas e abstratos da bioética principialista2424 Diniz D, Guilhem D. Feminismo, bioética e vulnerabilidade. Est. Fem. 2000; 8(1):237-244..

Salienta-se a importância de contextualizar a bioética considerando categorias como orientação sexual, gênero, identidade, raça e classe social, pois a falta de fundamentação a partir desses pressupostos amplia a invisibilidade e a vulnerabilidade de certos grupos, perpetuando desigualdades. As discriminações resultantes do cruzamento de opressões indicam que os conflitos morais não podem ser resolvidos apenas com base em princípios como autonomia e liberdade. Portanto, é crucial situar esses princípios no contexto das desigualdades como variáveis estruturantes e indissociáveis dos indivíduos e seu poder de decisão.

A contextualização das características individuais revela motivos da desigualdade social e limitações para o exercício da autonomia e da liberdade, especialmente em sociedades latino-americanas com altos índices de desigualdade. Isso se reflete na disparidade de renda, acesso a saneamento básico, saúde, educação e alimentação de qualidade. A LGBTIfobia estrutural também contribui para o não reconhecimento das pessoas LGBTI+ como sujeitos de direitos, colocando-as em desvantagem social diante de uma perspectiva cis-heteronormativa de organização da sociedade e das suas instituições.

Reconhecemos, portanto, a necessidade do desenvolvimento de uma bioética crítica que incorpore na sua fundamentação a reflexão a respeito das desigualdades e das situações de opressão e de vulnerabilidade que incidem sobre os corpos sexo-gênero diversos, não hegemônicos e racializados, com o objetivo de verificar o grau de autonomia e liberdade nos processos decisórios, que entrecruzam não apenas o campo da bioética clínica, mas, sobretudo, da saúde coletiva e dos direitos humanos de forma geral. Essa incorporação é fundamental para tornar a bioética efetivamente emancipatória.

Destacamos que, na obra ‘Feminism and bioethics: beyond reproduction’, Susan Wolf2525 Wolf SM. Feminism & bioethics: beyond reproduction. New York: Oxford University Press; 1996. indica que a bioética feminista não se resume à discussão acerca da reprodução e procriação humana e seus efeitos na saúde da mulher em uma perspectiva da ética médica ou da bioética2525 Wolf SM. Feminism & bioethics: beyond reproduction. New York: Oxford University Press; 1996.. Para além disso, a proposta de Wolf, além de outras autoras que compõem a obra em referência, busca enfatizar as relações entre o feminismo e a bioética a partir da preocupação a respeito da incorporação das perspectivas feministas em relação a diversas questões estabelecidas no campo da bioética. Dessa forma, essas perspectivas problematizam as diversas abordagens bioéticas que têm por base o principialismo, bem como o utilitarismo ou as teorias de inspiração kantiana que não enfrentam, a partir de uma perspectiva política e social, o racismo, o machismo e as relações de classes que se apresentam como estruturais2525 Wolf SM. Feminism & bioethics: beyond reproduction. New York: Oxford University Press; 1996..

Esta abordagem torna-se de extrema relevância na medida em que as práticas médicas e bioéticas inserem-se também nesses contextos, afetando as vidas e o próprio exercício da autonomia das pessoas em situação de opressão e de vulnerabilidade. Na obra organizada por Wolf2525 Wolf SM. Feminism & bioethics: beyond reproduction. New York: Oxford University Press; 1996., fica evidente a intersecção das opressões quando se levam em consideração os impactos em mulheres negras de baixa renda a respeito do acesso ao sistema de saúde, dos processos decisórios e da autonomia sobre o corpo, especialmente em situações de gravidez e acesso a opções de aborto, assim como a prática de cesarianas em mulheres que desejam o parto natural2525 Wolf SM. Feminism & bioethics: beyond reproduction. New York: Oxford University Press; 1996..

A partir dessas proposições, é preciso refletir não apenas sobre a necessidade de incorporação, pela bioética, em sua fundamentação, de categorias como gênero, classe social e, especificamente, orientação sexual e identidade de gênero, mas, particularmente, problematizar quais princípios e valores informam a bioética. Ou seja, sobre qual fundamentação entende-se a bioética? Quem determina a bioética? Aqui destacamos uma vez mais como o contexto no qual se insere a definição de bioética pode ser não só importante, mas determinante para efetivamente enfrentar problemas relativos às desigualdades sociais que ainda se apresentam enquanto questões da agenda bioética contemporânea.

O contexto hegemônico, sobretudo em um cenário neoliberal cada vez mais excludente – no qual a saúde pública se organiza mundialmente sob a forma de grandes conglomerados e as pesquisas clínicas têm se pautado majoritariamente pelos processos decisórios que envolvem grupos empresariais e a big pharma –, torna necessário pensar em uma bioética crítica e qual é sua orientação em relação à fundamentação escolhida.

Neste artigo, pretende-se refletir sobre as influências e o alcance da bioética de inspiração feminista, especialmente para pensar nas desigualdades em um viés da diversidade, que se vincula diretamente à identidade de gênero e à orientação sexual. As críticas endereçadas ao principialismo a partir de uma divisão Norte/Sul, e que leva em consideração a relação centro-periferia e os processos de colonialidade, confluem com as críticas e as constatações apresentadas pela bioética de inspiração feminista, evidenciando ainda um processo a ser construído para a pavimentação de novos rumos para a bioética. Nesse sentido, torna-se importante articular as contribuições da teoria queer acerca das críticas aos binarismos e da heteronormatividade como padrões de reconhecimento de direitos.

Confluências entre bioética e teoria queer: caminhos para a superação do binarismo

Os aportes teóricos oferecidos pela bioética de inspiração feminista contribuem para a discussão sobre a necessidade de desnaturalização do binarismo. A necessidade de entendimento de que o binarismo é uma construção cultural e histórica marcada pelas contribuições da civilização judaico-cristão ocidental torna-se relevante para a reflexão sobre os processos de colonização e de imperialismo que se expandem também para a colonização dos corpos e, como consequência, das orientações sexuais e das identidades de gênero, em especial na perspectiva do Estado e das instituições sociais.

Os anos 1990 representam um período de cruzamentos teórico-epistemológicos para diversas áreas do conhecimento. No movimento feminista, pode-se identificar, a partir da obra de algumas autoras, a terceira onda; em contrapartida, começam a ser desenhadas algumas iniciativas antigênero a partir da atuação de membros do Vaticano e de teólogas/os2626 Corrêa S. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cad. Pagu. 2018; (53):e185301.; no campo da bioética, observa-se o desenvolvimento da bioética de inspiração feminista, em especial, a partir de contribuições da América Latina2222 Rego S, Palácios M, Siqueira-Batista R. Bioética para profissionais da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.,2323 Garrafa V, Martorell LB, Nascimento WF. Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saúde Soc. 2016; 25(2):442-451.; e nos estudos queer, cabe destacar a conferência de Teresa de Lauretis na Universidade da Califórnia2727 Lauretis, T. Queer theory: lesbian and gay sexualities an introduction. Differences. 1991 [acesso em 2023 nov 16]; 3(2):3-18. Disponível em: https://doi. org/10.1215/10407391-3-2-iii.
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, que representa um marco ao discutir as sexualidades percebidas como patológicas em conjunto com outras categorias como gênero e raça, as quais, para esta pesquisa, adquirem fundamental importância.

A proposta de Lauretis pode ser resumida no papel que deveria ser desempenhado pela teoria queer, especificamente, de evidenciar discursos subalternizados nos debates e trabalhos sobre gênero e sexualidade2727 Lauretis, T. Queer theory: lesbian and gay sexualities an introduction. Differences. 1991 [acesso em 2023 nov 16]; 3(2):3-18. Disponível em: https://doi. org/10.1215/10407391-3-2-iii.
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. Ainda, a teoria queer teria como função dialogar com outras epistemologias e áreas do conhecimento ao mesmo tempo que desempenharia uma função política e de contestação da matriz teórica até então vigente e que organizava gênero e sexualidade enquanto categorias analíticas2727 Lauretis, T. Queer theory: lesbian and gay sexualities an introduction. Differences. 1991 [acesso em 2023 nov 16]; 3(2):3-18. Disponível em: https://doi. org/10.1215/10407391-3-2-iii.
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. Dessa forma, a teoria queer teria, desde a sua raiz, um caráter desestabilizador e contestador a respeito das vivências de gays e de lésbicas, bem como das perspectivas que se hegemonizaram e que ainda reproduziam e naturalizavam a branquitude e a heteronormatividade.

Paul Preciado provoca um diálogo e intersecções entre a teoria queer e a bioética a partir de um tensionamento das perspectivas que orientam estas teorias. Em ‘Testo Junkie’, publicado em 2008, Preciado autoetnografa suas experiências ao autoaplicar testosterona em forma de pomada em seu corpo pelo período de 236 dias, descrevendo os diversos sentimentos e experiências que são percebidos a partir dessa aplicação hormonal, além de contextualizá-las política e socialmente2828 Preciado P. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições; 2018..

As contribuições de Preciado vão além de questionar o gênero e os processos de subjetivação em contextos capitalistas/ neoliberais. Preciado descreve o período pós-Segunda Guerra Mundial como ‘era farmacopornográfica’, marcado por mudanças na acumulação de riqueza e na sociedade pós-fordista2828 Preciado P. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.. Destaca-se o avanço biotecnológico, incluindo o desenvolvimento de medicamentos pela indústria farmacêutica, como pílulas contraceptivas e tratamentos para disfunção erétil. O autor também analisa o uso estatal de hormônios femininos, como progesterona e estrogênio, como uma forma de normatização biopolítica, especialmente sobre corpos femininos2828 Preciado P. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições; 2018..

Essas formas de governo e produção de corpos ocorrem sob o que Preciado denomina de biocapitalismo farmacopornográfico, contexto no qual se observa a construção das subjetividades por meio da ampliação biotecnológica, que se retroalimenta a partir das formas digitais de acesso à informação, estimulando o desejo relacionado com a modelação dos corpos por intermédio de cirurgias, do uso de hormônios, da aplicação de suplementos e próteses sintéticas, e da utilização de medicamentos e substâncias anestesiantes e psicotrópicas. Esse contexto organiza não apenas a construção dos corpos, mas também os desejos e as formas de construção dos afetos2828 Preciado P. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.. Tais perspectivas que entrelaçam os fundamentos da teoria queer, das teorias de gênero e da bioética propõem, sob outros paradigmas, a reflexão a respeito das essencializações e das biologizações que orientam os campos do conhecimento da tradição ocidental.

A partir das proposições de Preciado, podemos questionar as implicações bioéticas e, nesse sentido, o próprio papel da bioética na reiteração e na afirmação da cis-heteronormatividade ou, de outra forma, na construção de um potencial emancipatório dos corpos e identidades cis-heterodissidentes. Conforme se verifica historicamente, e nesse contexto de binariedade e de neoliberalismo, como governamentalidade e gestão dos corpos e desejos especialmente a partir das proposições de Michel Foucault, algumas situações evidenciam os conflitos bioéticos no contexto da orientação sexual e da identidade de gênero.

Pensar em uma bioética queer, transviada, marica, bixa ou mesmo seu desdobramento de ‘queer’ em ‘cuir’ a partir de uma reestruturação terminológica desde o Sul/América Latina, em um contexto pós-colonial, implica contestar as formas de hegemonia, de universalização e de normalização, o que converge com as propostas de Vidarte2929 Vidarte P. Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: N-1 Edições; 2020.. Suas proposições tornam-se fundamentais para pensar em uma (bio)ética queer e, com isso, ampliar não somente os espaços de aplicações do pensamento bioético, mas forjar uma fundamentação bioética que já possua, desde sua base, a consideração moral do corpo, sujeito e subjetividade queer, transviada, bixa, sexo-gênero diversa.

Nesse sentido, torna-se necessário pensar em uma (bio)ética localizada, na medida em que a ideia de universalismo inevitavelmente está relacionada com a LGBTIfobia e suas opressões estruturais. Uma (bio)ética bixa/ queer deve ter na sua fundamentação a reflexão sobre as identidades e subjetividades da população LGBTI+ como estruturantes, de forma a opor-se à homofobia estrutural. É neste sentido que essa (bio)ética queer deve interseccionar-se em uma perspectiva antirracista, antifascista e anticapacitista em sua estrutura, de modo a evidenciar os privilégios que interseccionam diversas categorias, como raça, gênero e classe social. A (bio)ética queer deve ser antineoliberal por excelência2929 Vidarte P. Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: N-1 Edições; 2020..

A proposta de Vidarte2929 Vidarte P. Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: N-1 Edições; 2020. e sua crítica ao universalismo e ao sujeito abstrato exemplificam-se no que ele denomina de homofobia ideal e homofobia real. Nesse sentido, a homofobia ideal é aquela que atinge a pessoa LGBTI+ de forma abstrata. A homofobia real pode ser entendida como aquela localizada que deve ser contextualizada territorial, econômica e racialmente. Essa diferenciação entre homofobia ideal e homofobia real permite que se observem as formas de opressão que incidem sobre os sujeitos LGBTI+ e que não se limitam apenas à questão da orientação sexual ou da identidade de gênero, mas se potencializam a partir do território, da classe social e da raça.

Nessa perspectiva, cumpre também destacar a crítica ao neoconservadorismo entre pessoas LGBTI+, em particular em um contexto de mercantilização à luz do neoliberalismo dessas orientações sexuais e identidades de gênero. A perspectiva liberal e econômica sobre a promoção dos direitos LGBTI+ sobrepõe inevitavelmente a ideia de indivíduo à ideia de coletividade. O rompimento das opressões2929 Vidarte P. Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: N-1 Edições; 2020. dirige-se de forma contrária, pois deve se estabelecer no reforço à ideia de coletividade como possibilidade para valorização do indivíduo.

Essa perspectiva ecoa as ideias de Jasbir Puar1818 Puar JK. Terrorist assemblages: homonationalism in queer times. London: Duke University Press; 2017.,1919 Puar J. Rethinking Homonationalism. Int. J. Middle East Stud. 2013; 45(2):336-339., especificamente, no contexto da incorporação das pessoas LGBTI+ pelo Estado-Nação e do neoliberalismo que influencia esses processos. O homonacionalismo determina quais corpos serão reconhecidos pelo Estado-Nação. Corpos queer não binários e não brancos frequentemente não se enquadram nesse reconhecimento devido a padrões de inteligibilidade e pertencimento. As interseções de gênero, raça e nacionalidade, nessa lógica, são cruciais para determinar quem será reconhecido como parte da comunidade LGBTI+.

Embora Puar se concentre na análise do homonacionalismo nos EUA1818 Puar JK. Terrorist assemblages: homonationalism in queer times. London: Duke University Press; 2017.,1919 Puar J. Rethinking Homonationalism. Int. J. Middle East Stud. 2013; 45(2):336-339., seus aportes são relevantes neste contexto, em que as perspectivas hegemônicas da bioética e dos debates sobre teoria queer são predominantemente influenciadas pelo Norte Global, especialmente pelos EUA. A influência cultural e econômica dos EUA também pode ser vista na disseminação de padrões de homonacionalismo para além de suas fronteiras, assumindo formas de neoimperialismo.

Considerações finais

No presente artigo, nossa proposta é contribuir para uma aproximação entre a bioética e a teoria queer a partir de uma perspectiva pós-colonial. A laicidade enquanto princípio estruturante da bioética em contraposição a uma visão/compreensão religiosa da bioética implica algumas reflexões. Assim, cabe indagar: em que medida a bioética tradicional que se intitula laica consegue lidar com todos os elementos e categorias que conformam a proposta bioética? Nesse sentido, torna-se imperativo refletir sobre processos de reparação histórica em uma perspectiva bioética em que se identifique o binarismo como um ponto-chave a ser superado para que, efetivamente, construa-se uma bioética crítica que traga para sua fundamentação a diversidade sexual e de gênero.

A perseguição às pessoas LGBTI+ nos regimes nazifascistas exemplifica um macroprojeto eugenista que negava reconhecimento de direitos e proteção à vida a certos grupos. Na atualidade, a criminalização global de pessoas LGBTI+ ainda é comum, evidenciada por leis restritivas em vários países. Nos EUA, projetos de lei visam impedir avanços nos direitos das pessoas trans3030 Paiva P. População LGBTQIA+ Sob Ataque Nos Estados Unidos. Híbrida. 2023. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://revistahibrida.com.br/mundo/eua-drag-queen-lei-anti-lgbtqia/.
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, refletindo hostilidade social e institucional. Em Uganda, legislação recente impõe penas de prisão, incluindo a pena de morte, para pessoas LGBTI+3131 Reuters D. Uganda promulga lei anti-LGBTQ que inclui pena de morte. CNN Brasil. 2023 maio 29. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/uganda-promulga-lei-anti-lgbtq-que-inclui-pena-de-morte/.
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, ilustrando a repressão estatal com base na orientação sexual e na identidade de gênero. A proibição das paradas do orgulho LGBTI+ na Rússia3232 Thomas Kristen L. We’re Here, We’re Queer, Get Used to It: Freedom of Assembly and Gay Pride in Alekseyev v. Russia. Or. Rev. Int. Law. 2012; 14:473-508. e a ameaça de prisão pela exibição da bandeira do arco-íris mostram como as liberdades individuais estão sob ataque globalmente. No Brasil, a recente discussão sobre a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo3333 Buss G. Comissão adia votação que pode proibir união civil homoafetiva [Internet]. Poder 360. 2023 set 5. [acesso em 2023 nov 16]. Disponível em: https://www.poder360.com.br/congresso/comissao-adia-votacao -que-pode-proibir-uniao-civil-homoafetiva.
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reflete opiniões conservadoras que negam direitos fundamentais com base na orientação sexual. Esses exemplos destacam a urgente necessidade de uma análise dessas questões a partir de uma perspectiva bioética, oferecendo uma estrutura ética para examinar políticas e práticas que afetam a vida e a dignidade das pessoas LGBTI+.

O surgimento da bioética feminista destaca lacunas nas abordagens bioéticas seculares, que não lidam adequadamente com questões de desigualdade e opressão. A simples alegação de laicidade não é suficiente para incorporar essas complexidades. É fundamental que a bioética se declare também feminista, antirracista, antiLGBTIfóbica e antineoliberal para abordar eficazmente os desafios enfrentados por pessoas em situação de vulnerabilidade. A ausência de uma base bioética fundamentada em desigualdades e opressões pode perpetuar a exclusão e a vulnerabilidade social.

Fenômenos como a ascensão do nazismo, do fascismo e a dominação colonial na África ressaltam a importância de fortalecer as instituições democráticas e a participação de grupos historicamente excluídos. Caso contrário, esses grupos podem ser instrumentalizados e ter suas vidas menosprezadas mesmo em cenários democráticos. No contexto dos regimes democráticos e de fortalecimento dos direitos humanos, torna-se cada vez mais necessária a discussão da fundamentação desses direitos e da sua universalidade.

Mesmo após o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o binômio patologização e criminalização ainda ameaça as orientações sexuais e as identidades de gênero não normativas, exigindo uma abordagem bioética comprometida com os direitos humanos e a democracia. A confluência desses múltiplos saberes aponta para a necessidade de desenvolvimento e fortalecimento da interdisciplinaridade e da interseccionalidade entre as ciências da saúde/biomédicas e as ciências sociais e humanas como um rico manancial de contribuições que podem constituir teoricamente um referencial de análise importante em uma perspectiva bioética, de forma a situar sujeitos, corpos e territórios, historicamente e socialmente, sem a setorialização ou o recorte que criam artificialidades que vão se naturalizando na pesquisa científica e que se perpetuam ao longo do tempo como verdade imutável. A identificação das desigualdades e das opressões é essencial para contextualizar a sociedade e os indivíduos, considerando suas complexidades e fatores históricos e sociais.

Uma bioética pós-colonial deve evidenciar as categorias historicamente subalternizadas, desafiando as perspectivas hegemônicas. Nesse sentido, os estudos queer contribuem para essas reflexões na medida em que questionam a binariedade cultural e historicamente construída.

Alguns exemplos incluem a necessidade de definir o gênero/sexo de bebês ao nascer, afetando os direitos de pessoas intersexo; a patologização de orientações e identidades heterodiscordantes; e a criminalização de médicos pela realização de cirurgias pioneiras de transgenitalização nos anos 1970, no Brasil, acusados de provocar mutilações devido à falta de reconhecimento dessas cirurgias na época. Como promover uma bioética emancipatória diante da heteronormatividade e do binarismo nas práticas médicas e no reconhecimento de direitos humanos? Observa-se ainda a criminalização das orientações sexuais e das identidades de gênero heterodiscordantes em muitos países, assim como a patologização das transgeneridades e a falta de reconhecimento dos direitos das famílias LGBTI+. Essas questões destacam a necessidade de políticas públicas específicas para proteger essa população, tanto em nível doméstico quanto internacional.

Um exemplo claro é a instrumentalização da agenda LGBTI+ para a criação de pânico moral, como as fake news veiculadas durante a campanha presidencial no Brasil em 2018, sobre ‘mamadeiras em formato de pênis’ supostamente distribuídas pelo Partido dos Trabalhadores. Da mesma forma, a criação da ‘ideologia de gênero’ que se opõe às teorias que questionam a naturalização do gênero. O recurso à ‘ideologia de gênero’, que pode ser entendido como um dispositivo discursivo de caráter (bio)político e bioético3434 Carvalho HR, Oliveira FAG. A ideologia de gênero como dispositivo bioético político: políticas antigênero no Brasil, o crescimento da extrema direita e o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal. Rev. Bras. Estud. Homocult. (no prelo) 2023., tem influenciado debates sobre direitos sexuais e reprodutivos, educação sobre orientação sexual e identidade de gênero, e adoção por famílias LGBTI+. Tais questões inevitavelmente convocam a bioética enquanto campo disciplinar, pois incidem sobre o reconhecimento de quais pessoas merecem proteção legal e, ao não possuírem esse reconhecimento jurídico, político e social, não conseguem exercer com autonomia e liberdade a gestão das suas próprias existências. Além disso, o impacto na saúde mental de crianças e adolescentes inclui o bullying LGBTIfóbico, o desrespeito ao nome social e a falta de discussão de gênero e sexualidade nas escolas. Assim, é fundamental capacitar não apenas profissionais da educação, mas também da área de saúde, integrando gênero e sexualidade à bioética e à saúde coletiva em vez de tratá-los como disciplinas isoladas.

Pensar em uma bioética queer implica deslocar os debates e fundamentos da bioética da esfera clínica-hospitalar-laboratorial e trazê-la ao nível da rua, dos conflitos, das disputas e das formas de segregação humana estruturadas socialmente em complexos processos histórico-políticos. A contextualização da bioética em uma perspectiva da democracia, dos direitos humanos e das relações internacionais em que se evidenciam as categorias da diversidade sexual e de gênero permite desenhar os cenários que se conformam para a bioética enquanto disciplina, em contextos em que esses elementos estão presentes e, por outro lado, quando esses direitos/categorias sofrem restrições.

Estas reflexões buscam apontar a necessidade de articulação da bioética com categorias e instituições diversas e desnaturalizar a ideia de recorte epistemológico ou de distanciamento da bioética da sociedade. O isolamento dessa disciplina de outras categorias, portanto, conduz, ainda que de forma indireta, à reiteração das desigualdades sociais e das discriminações.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    20 Dez 2023
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