Identidade trans e acesso à saúde na cidade de Macaé (RJ)

Victor Tavares de Souza José Inácio Jardim Motta Maria Helena Barros de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O Consultório LGBT na cidade de Macaé, estado do Rio de Janeiro, funciona diariamente para o cuidado em saúde de pessoas LGBTQIA+. Esse serviço integra uma rede que conta com o Hospital Universitário Pedro Ernesto e a clínica da Casa de Convivência. O atendimento tem contemplado, predominantemente, as pessoas travestis e transexuais. O objetivo do estudo foi investigar como se dá o acesso ao Consultório LGBT por pessoas transexuais e travestis no município de Macaé. Buscou-se a discussão de questões de gênero, uma vez que pessoas LGBTQIA+ têm chegado cada vez mais às clínicas de saúde com demandas específicas, o que causa a necessidade de aperfeiçoamento para atenção a esse público específico. A presente pesquisa foi realizada por meio de abordagem qualitativa. Participaram 13 usuários do Consultório LGBT que se declararam transexuais. Como resultado, foram confirmados vários casos em que as populações estudadas não encontraram a ajuda adequada em outros serviços de saúde. Além disso, o Consultório LGBT se mostrou um espaço de acolhimento e de cuidado em saúde para as pessoas transexuais e travestis da região.

PALAVRAS-CHAVE
Assistência integral à; saúde; Minorias sexuais e de gênero; Acolhimento; Atenção Primária à; Saúde.

Introdução

O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de países que mais matam pessoas travestis e transexuais no mundo. Segundo o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o País teve 80 pessoas transexuais mortas no primeiro semestre de 2021. O documento mostra que a maioria das mortes violentas foi de mulheres trans/travestis negras11 Benevides BG. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022.. Em 2020, o País também estava em primeiro lugar no ranking, contando com 175 assassinatos22 Benevides B, Nogueira SNB. Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Brasília, DF: Antra; 2021. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf.
https://antrabrasil.files.wordpress.com/...
. Esses dados apontam a emergência de criação de políticas públicas eficazes a esse grupo, também no âmbito da saúde. Na atualidade, a transfobia, ou seja, agressão, ofensas ou morte da pessoa trans ou travesti33 Ribeiro JKA. “Aonde” está a população trans na divisão sexual do trabalho? Analisando as condições da inserção para os/as trabalhadores/as travestis e transexuais no mercado de trabalho formal. Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social; 2018 dez 2-7; Vitória. Vitória: Ufes; 2018. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/abepss/article/view/22307.
https://periodicos.ufes.br/abepss/articl...
, passou a ser entendida como violência, podendo ser reportada judicialmente. Corpos de pessoa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexuais ou Intersexos, Assexuais e outras (LGBTQIA+) demandam o aperfeiçoamento da prática dos profissionais de saúde, que tenham um olhar para além da cis-heteronormatividade. Refletir sobre a relação entre acesso aos dispositivos de saúde por tais corpos e os efeitos no campo da saúde das práticas transfóbicas se faz necessário.

A transfobia, ou seja, desrespeito à identidade de gênero travesti e trans, é um dos problemas mais comuns mencionados nos relatos dessas pessoas aos cuidados de saúde. Por uma concepção antiga, alguns profissionais de saúde não entendem que sexo biológico é diferente de gênero44 ‌Soares LS. Cuidado em saúde e transfobia: percepções de travestis e transexuais de duas regiões do Rio de Janeiro: Maré e Cidade de Deus, sobre os serviços de saúde. [dissertação]. Rio de janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2018. p. 100. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/27920/ve_Luciano_Silveira_ENSP_2018.pdf;jsessionid=DEB728F7FD75F42CBE29C46FB029D79F?sequence=2.
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ha...
, fazendo com que a escolha social do gênero não seja respeitada ou seja questionada. A transfobia institucional existe em alguns espaços e, nos serviços de saúde, impõe um comportamento que faz parte da expectativa da sociedade quanto ao desempenho de gênero.

Segundo Bento, Xavier e Sarat55 Bento NMJ, Xavier NR, Sarat M. Escola e infância: a transfobia rememorada. Cad Pagu. 2020 [acesso em 2023 mar 24]; (59):e205911. Disponível em: https://doi.org/10.1590/18094449202000590011.
https://doi.org/10.1590/1809444920200059...
, pessoas trans (homens ou mulheres) acabam sendo expulsos de casa, tendo que procurar nas ruas seu abrigo, pois a sociedade não aceita a transição de gênero. O curso da vida desses indivíduos é modificado, sem que consigam dar continuidade à escolarização, sofrendo preconceito no momento da entrevista de emprego e até mesmo tendo suas vidas ceifadas. Nas ruas, esses indivíduos ficam ainda mais vulneráveis, principalmente se não há um abrigo ou alguma instituição que possa acolhê-los. Dessa forma, o Consultório LGBT de Macaé se mostra importante para o cuidado dessa população, visto que ela encontra um acolhimento que talvez não exista em outros espaços.

O Consultório na Rua surgiu em Macaé, estado do Rio de Janeiro, em 2010, por meio da luta e da organização dos profissionais da rede pública, observando o crescente número de pessoas em situação de rua na cidade que fazem parte da comunidade LGBTQIA+. Esse número pode demonstrar a necessidade de ampliar os serviços que contemplem esse público, até mesmo em outras áreas do País, de forma consolidada. O Consultório se interliga com o Hospital Universitário Pedro Ernesto, na cidade do Rio de Janeiro, prestando serviços de fonoaudiologia, terapia hormonal e cirurgias à população LGBTQIA+66 Sirelli PM, Ferreira GG, Dias ACR. Consultório LGBT: (Re)construindo narrativas de combate às violências LGBTfóbicas na saúde em Macaé Rio de Janeiro. Gênero. 2020 [acesso em 2023 mar 24]; 20(2):201-224. Disponível em: https://doi.org/10.22409/rg.v20i2.44575.
https://doi.org/10.22409/rg.v20i2.44575...
.

Em comparação com outras cidades do Norte Fluminense, Macaé ainda enfrenta desafios significativos na prestação de serviços de saúde pública77 Azevedo DC. Caracterização da pobreza em Macaé: uma abordagem multidimensional. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011. 166 p.. Essa disparidade está diretamente ligada à falta de investimento em políticas públicas de saúde na região. Dado que Macaé abriga uma considerável parcela da população em situação de vulnerabilidade social, marcada por desigualdades raciais e de gênero, a ausência de políticas de saúde pública afeta especialmente os mais vulneráveis, como a população em situação de rua, profissionais do sexo, mulheres cis, pretos, trans e travestis.

Apesar de ser reconhecido como um centro de exploração de petróleo, algo que teoricamente deveria impulsionar o desenvolvimento econômico local, o município ainda enfrenta alto índice de pobreza. Isso evidencia que a riqueza gerada permanece concentrada e não é distribuída de maneira equitativa entre os residentes, mesmo em meio ao crescimento econômico. Segundo Azevedo77 Azevedo DC. Caracterização da pobreza em Macaé: uma abordagem multidimensional. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011. 166 p., mais de 14% da população da cidade vive abaixo da linha da pobreza, com quase 5% na linha da indigência.

O preconceito e a discriminação criam barreiras institucionais que dificultam o acesso da população à saúde, em especial, as pessoas que estão em maior vulnerabilidade e fragilidade social. O Sistema Único de Saúde (SUS) continua se mostrando importante, essencial, para garantir a saúde da população brasileira, mais ainda àqueles vulneráveis socialmente. O sistema de saúde brasileiro permite o acesso aos níveis de atenção à saúde, sendo a Atenção Primária à Saúde (APS) o principal ponto de acesso para a utilização dos serviços disponibilizados pelo SUS, concentrando-se, especialmente, em cuidados preventivos. De acordo com Macinko e Mendonça88 Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde debate. 2018 [acesso em 2023 mar 24]; 42(esp1):18-37. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S102.
https://doi.org/10.1590/0103-11042018S10...
, a importância da atenção básica se encontra, também, na promoção de saúde a partir de uma equipe multidisciplinar, em um determinado território e com sua população. Além disso, os princípios da APS são fortalecidos no SUS a partir da ideia de universalidade, coordenação, acessibilidade, entre outras, sendo definida, em 2011, como porta de entrada do SUS.

Em 2004, surgiu o Programa Brasil sem Homofobia, servindo como base para a elaboração de uma política para a população LGBTQIA+, estabelecendo diretrizes que envolvem diversos atores em diferentes setores da esfera pública99 Gouvêa LF, Souza LL. Saúde e população LGBTQIA+: desafios e perspectivas da Política Nacional de Saúde Integral LGBT. Periodicus. 2021 [acesso em 2023 mar 24]; 3(16):23-42. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/33474.
https://periodicos.ufba.br/index.php/rev...
. A partir desse marco, várias conferências públicas foram realizadas, culminando na consolidação da Política Nacional Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em 2011. A participação ativa de membros LGBTQIA+ nos Conselhos de Saúde destacou a importância de reconhecer essas lutas1010 Pereira EDS. Participação social e a construção da equidade em saúde: o conselho nacional de saúde e direitos da população LGBT. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2011. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://www.oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_df2ba51ecdd2a444f5f2033873ed274c.
https://www.oasisbr.ibict.br/vufind/Reco...
. A representatividade nos sistemas de saúde, incluindo o SUS, torna-se crucial para garantir o acolhimento efetivo daqueles que buscam atendimento.

O aumento da participação institucional de pessoas LGBTQIA+ impulsiona a formulação de políticas de acesso mais abrangentes. Questões específicas relacionadas com as travestis e trans, como cirurgias de redesignação sexual, passaram a ser consideradas devido à participação do movimento LGBTQIA+ nas discussões sobre políticas do SUS. Além disso, as questões de saúde dessas pessoas devem ser entendidas a partir da vivência dessa população, considerando que trans e travestis estão mais expostas à violência, aos riscos do trabalho sexual e ao possível uso de substâncias psicoativas1111 Bezerra MVR, Moreno CA, Prado NMBL, et al. LGBT health policy and its invisibility in public health publications. Saúde debate. 2019 [acesso em 2023 mar 24]; 43(esp8):305-323. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S822.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
.

A pesquisa teve como objetivo investigar o acesso ao Consultório LGBT no município de Macaé, estado do Rio de Janeiro, por pessoas trans e travestis. A reflexão sobre acesso, equidade e territórios em saúde é um tema emergente na academia. A complexidade do surgimento de outros desafios à saúde representa um contratempo para um sistema encarregado de atender a todas as necessidades dos brasileiros, como é o SUS. Portanto, é crucial repensar nas políticas públicas vigentes e nos modelos de assistência à saúde, levando em consideração as necessidades e as características dos diversos grupos que ocupam os variados territórios, principalmente suas vulnerabilidades.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), número CAAE 57599922.6.0000.5240, parecer nº 5.493.864.

Material e métodos

A pesquisa foi feita no Consultório LGBT, localizado em Macaé, no estado do Rio de Janeiro, no ano de 2022. A presente pesquisa foi desenvolvida por meio de abordagem qualitativa, com a realização de entrevistas presenciais, aliada à técnica da bola de neve para conformação da amostra intencional, e à observação participante. Assim, torna-se possível a compreensão de vivências de determinada população e grupos sociais, suas questões culturais e de interação1212 Medeiros M. Pesquisas de abordagem qualitativa. Rev. Eletr. Enferm. 2012 [acesso em 2023 fev 7]; 14(2):224-229. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fen/article/view/13628.
https://revistas.ufg.br/fen/article/view...
. Para melhorar a obtenção dos resultados, as entrevistas foram aliadas à observação participante. Nessa etapa, investigou-se a interação dos indivíduos e sua relação com o meio, anotando as ocorrências. A escolha dos participantes se deu de acordo com a lista de usuários que são acompanhados no Consultório LGBT durante o período da pesquisa, no ano de 2022. A técnica ‘bola de neve’ foi utilizada para que mais participantes fossem convidados.

As entrevistas foram semiestruturadas, contendo 12 questões, formuladas para que contemplem o objeto e a hipótese de investigação, ou seja, como se dá o acesso à saúde no município de Macaé e como os usuários percebem esse acesso. As entrevistas semiestruturadas têm como características a elaboração de questões fundamentais a serem perguntadas, apoiadas por teorias e hipóteses relevantes1313 Manzini EJ. Considerações sobre a elaboração de roteiro para entrevista semi-estruturada. In: Marquezine MC, Almeida MA, Omote S, organizadores. Colóquios sobre pesquisa em Educação Especial. Londrina: Eduel; 2003. p. 11-25.. Elas combinam perguntas abertas e fechadas, sendo possível ao pesquisador discutir os tópicos apresentados. Essas perguntas geram novas hipóteses a partir das respostas. De acordo Minayo1414 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18. ed. Petrópolis: Vozes; 2001., essa técnica é como um ‘diálogo proposital’, ou seja, busca enfocar o desenvolvimento de uma conversa, amparada pelo roteiro que contém tópicos abertos ou semiestruturados.

A escolha dos participantes se deu de acordo com o seguinte critério: serem usuários acompanhados no Consultório LGBT no referido período da pesquisa, como forma de facilitar a obtenção das narrativas. A partir da realização das entrevistas, os resultados foram analisados a partir de três categorias: i) acesso à saúde; ii) identidade; iii) homofobia/transfobia.

As perguntas foram: i) você consegue identificar quais foram as dificuldades e facilidades no acesso ao serviço de saúde?; ii) como se dá o acesso nas unidades de saúde no município de Macaé-RJ? Quais os dispositivos de saúde que você tem acessado?; iii) com que frequência tem se dado esse acesso?; iv) você já acessou o Consultório LGBT? e o Ambulatório trans? Relate sua experiência, sobre este acesso; v) gênero e sexualidade são categorias atravessadas por marcadores sociais e práticas discursivas. Como você se identifica?; vi) considerando a sua identidade de gênero, você acredita que haja necessidades específicas para o atendimento nos dispositivos de saúde?; vii) ao ser atendido em uma unidade de saúde, como você avalia o cuidado dos profissionais para com a questão de gênero? Acredita que sua identidade de gênero teve influência nesse cuidado?; viii) como você julga que deveria ser a conduta dos profissionais de saúde no atendimento prestado às pessoas trans nas unidades de saúde?; xix) o Brasil ocupa a posição de liderança, em número de violência de diversas ordens em relação aos corpos travestis e transexuais. Você já sofreu transfobia/homofobia?; x) e nos serviços de saúde, já sofreu algum tipo de violência?; xi) levando em consideração os diversos serviços de saúde existentes no município de Macaé, como você percebe as possibilidades de cuidar da sua saúde?; xii) gostaria de relatar sua experiência acerca dos serviços de saúde em Macaé?

Buscou-se assegurar uma relação de confiança com os participantes, de modo a acessar e compreender o mundo simbólico e subjetivo desses indivíduos. Para a transcrição do material, foi gravado áudio, previamente autorizado pelo interlocutor a partir do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A atuação do pesquisador também pode fazer com que o interlocutor se sinta mais confortável, trazendo abertura e proximidade entre eles, favorecendo respostas mais longas às perguntas, permitindo que questões mais complexas sejam bem abordadas1414 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18. ed. Petrópolis: Vozes; 2001..

A técnica proposta por Bardin1515 Bardin L. Análise de conteúdo. 1. ed. São Paulo: Edições 70; 2011. tem como base as etapas de pré-análise, exploração do material e processamento e interpretação dos resultados obtidos. Desse modo, no presente estudo, foi feita a pré-análise com a sistematização de ideias, tendo como objetivo entender as ideias dos participantes; na segunda fase, explorou-se o material relacionando as ideias apresentadas ao referencial teórico; por fim, o material analisado foi descrito a partir das categorias acima relacionadas em diálogo com o conteúdo bibliográfico.

A avaliação dos dados foi conduzida empregando o referencial da metodologia de análise de conteúdo, visando extrair os possíveis significados e visões de mundo na fala dos usuários entrevistados. A condução da entrevista é importante para a obtenção dessas narrativas, pois facilita a exploração interpretativa dos relatos, podendo, estes, serem organizados e sistematizados em temas e categorias de sentido1616 Boni V, Quaresma SJ. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em ciências sociais. Em tese. 2005 [acesso em 2023 fev 7]; 2(1):68-80. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/viewFile/18027/16976.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emt...
.

Análise e discussão dos resultados

Foram realizadas 13 entrevistas individuais com os usuários do Ambulatório LGBT. Sete dos 13 entrevistados se identificaram como mulher trans, compreendendo a faixa etária dos 18 aos 35 anos. À época da pesquisa, houve a emergência da Covid-19 no Brasil. Com isso, alguns serviços de saúde na cidade de Macaé foram extintos, e os profissionais foram realocados para outros postos.

Entre os serviços descontinuados, estava o Consultório LGBT, originalmente situado na Casa de Convivência. Com isso, ocorreram a falta de assistência e a interrupção no acompanhamento dos usuários atendidos. Em razão do trabalho de uma das autoras deste artigo no local, foi possível observar que houve intensa mobilização popular para o retorno do serviço após seis meses sem funcionamento.

A partir das entrevistas, algumas questões do universo desses indivíduos começaram a aparecer. Nesse sentido, os homens trans expressaram se sentir verdadeiramente ‘masculinos’ somente após a cirurgia de mastectomia:

[...] eu sempre tive vontade. Eu sempre me incomodei. É um alerta feminino muito grande pros homens mexerem com você. É uma coisa que os homens veem e não importa o que você tá usando, mas você tem peito, eles vão falar alguma coisa de você. (entrevistado 11).

A partir dessa fala, foi possível observar que a questão da intervenção cirúrgica ainda está profundamente ligada à autopercepção de identidade. Em relação às mudanças corporais em mulheres trans, estas também tendem a iniciar precocemente o processo de hormonização, a fim de modificar o corpo para se sentirem mais femininas, mesmo sem acompanhamento profissional.

A amizade existente entre os usuários do serviço ajudou a condução da pesquisa, principalmente na técnica bola de neve, podendo ser recordado que um usuário afirmou que seu amigo também havia sido entrevistado e que teria gostado muito da possibilidade de falar sobre o serviço de que faz uso. Esse apoio também ficou demonstrado na divulgação da retomada do serviço ambulatorial LGBTQIA+, de modo que diversos usuários ficaram sabendo por intermédio de colegas ou parceiros que eram atendidos: “a gente fez amizade, que ele é muito comunicativo, muito acolhedor, aí foi ele que me indicou” (entrevistada 5). Isso é uma observação comum das relações no Consultório LGBT, sendo interessante ressaltar que a parceria entre trans e travestis no âmbito da saúde é apontada por outros estudos1717 Selles BRS, Almeida PF, Ahmad AF, et al. Redes sociais de apoio às pessoas trans: ampliando a produção de cuidado. Saúde debate. 2023 [acesso em 2023 out 17]; 46(esp6):148-61. Disponível em: https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/sed/article/view/6910.
https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/se...
.

Além disso, dois entrevistados (trans homem) reconheceram que o grupo de apoio é maior entre os trans homens do que entre as trans mulheres ou travestis. Isso reflete o que acontece no universo cis-heteronormativo, pois há também maior apoio entre grupos de homens do que entre grupos femininos, sendo estimulada a rivalidade entre mulheres, dificultando a ajuda mútua nos ambientes femininos. Essa percepção acerca do gênero, mesmo sendo em um grupo trans, é semelhante, ou seja, homens trans também se apoiam mais entre eles do que mulheres trans se apoiam entre elas:

então os homens têm essa união. O machismo é tão forte, que se você for um bom homem trans entre aspas, tiver um corpo masculino, tiver barba, eles te acolhem. (entrevistado 6).

É percebido que mulheres trans sofrem mais a violência em comparação aos homens trans:

[...] eu acho que a violência maior é contra mulher, mulher trans. Me dói muito porque é o que tô falando, eu acho que até sendo trans, homem é mais privilegiado que mulher. Isso é descarado, tá? É muito bizarro. Achei que isso nunca fosse acontecer, mas a passabilidade do homem funciona muito melhor. (entrevistado 6).

No Brasil, travestis e transexuais enfrentam escassez de qualificação profissional e falta de oportunidades no mercado de trabalho formal, em que muitas encontram na prostituição uma fonte de renda, aumentando ainda mais o risco à violência. Segundo Benevides e Nogueira22 Benevides B, Nogueira SNB. Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Brasília, DF: Antra; 2021. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf.
https://antrabrasil.files.wordpress.com/...
, em 2019, foram assassinadas 124 pessoas transgêneras ou travestis, sendo uma violência também racializada: a maioria, nesse grupo, era negra. Ainda, entre janeiro de 2020 e abril de 2020, o número de homicídios aumentou 40% em relação ao mesmo período de 2019.

Uma pesquisa sobre a territorialização da violência contra travestis e transgêneros comparou a relação entre ocupação, espacialidade e morte, mostrando que as principais vítimas fatais eram travestis e trans, principalmente aquelas que eram trabalhadoras do sexo1818 Silva GWS, Souza EFL, Sena RCF, et al. Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro. Rev. Gaúcha Enferm. 2016 [acesso em 2023 out 17]; 37(2):e56407. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.56407.
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.0...
. Considerando isso, é importante que o Consultório LGBT consiga oferecer um espaço seguro de acolhimento, sendo confirmado nos relatos que o local oferece os cuidados necessários nos serviços de psicologia e psiquiatria ofertados.

Em relação aos profissionais que atuam na APS, com a pesquisa, é observado que é importante conhecer travestis e trans que vivem na região e suas vulnerabilidades individuais no curso do processo saúde-doença. É interessante que o profissional de saúde esteja preparado para entender essas questões e que o dispositivo de saúde promova um vínculo com o usuário, de modo a favorecer a continuidade do acompanhamento.

A violência contra o público trans ocorre nos mais diferentes espaços. No estudo, as ruas se apresentaram como um local de violência. No entanto, observou-se que essa violência também se dá em casa, escolas, serviços de saúde e outros. Quanto à espacialidade da violência, percebeu-se que a violência nas ruas é um fato comum no cotidiano das pessoas trans1818 Silva GWS, Souza EFL, Sena RCF, et al. Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro. Rev. Gaúcha Enferm. 2016 [acesso em 2023 out 17]; 37(2):e56407. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.56407.
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.0...
, confirmando o resultado da pesquisa.

A violência de gênero envolve estruturas sociais, especialmente o patriarcado, o machismo e o capitalismo, controlando corpo e vida daqueles subalternizados. Com a exploração do corpo feminino cis, o patriarcado também estimula a violência contra mulheres trans e travestis, além da LGBTfobia que sofrem, pois, para além da aparência física semelhante, o espaço que as trans e travestis ocupam tendem a ser os mesmos dos femininos - por exemplo, sendo cabeleireiras, manicures, no ambiente doméstico, ocupando a função de cuidadora do lar, assim como as mulheres cis1717 Selles BRS, Almeida PF, Ahmad AF, et al. Redes sociais de apoio às pessoas trans: ampliando a produção de cuidado. Saúde debate. 2023 [acesso em 2023 out 17]; 46(esp6):148-61. Disponível em: https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/sed/article/view/6910.
https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/se...
. As experiências das trans e travestis também são atravessadas pelo preconceito de classe, já que grande parte enfrenta a pobreza. Outrossim, é comum que a ideia de travesti seja relacionada com a prostituição, uma realidade no Brasil, visto que essa população não detém grande poder econômico e que, decerto, muitas vezes, tem de recorrer a esse tipo de atividade1919 Marilac L, Queiroz N. Eu, Travesti: memórias de Luísa Marilac. Rio de Janeiro: Record; 2019..

A violência nem sempre é reconhecida como objeto de intervenção nas profissões da área da saúde, sendo visualizada mais como algo apenas judicial/policial. No entanto, o setor da saúde pode desempenhar um papel de orientação e apoio às vítimas de violência, instruindo os pacientes com medidas de cuidado. Nesse sentido, as abordagens para enfrentar a violência contra trans e travestis devem ser implementadas horizontalmente na política de saúde, enfocando também as vivências das trans e travestis2020 Condé LB. As medidas protetivas de urgência e a lei de feminicídio em face ao combate à violência doméstica: um estudo de caso. [monografia]. Brasília, DF: UniCEUB; 2020. [acesso em 2023 out 17]. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/14853.
https://repositorio.uniceub.br/jspui/han...
.

Observou-se que há despreparo e falta de sensibilidade em alguns dos serviços de saúde em Macaé, ou seja, naqueles que não são destinados especificamente para atendimento da população LGBTQIA+. A entrevistada 9, ao relatar a história de uma amiga que sofreu agressão e precisou do hospital, demonstrou essa falta de preparo:

Foi parar no hospital com traumatismo craniano, porque quebraram uma barra de ferro na cabeça dela, chegaram no hospital ninguém queria colocar a mão nela porque falaram que trans tinha HIV, que trans era doente.

Os relatos coincidiram sobre o bom tratamento nos serviços de saúde específicos à população LGBTQIA+, como o Consultório LGBT: “no ambulatório trans [...] eu fui quatro vezes ali, as quatro vezes eu fui super bem atendida” (entrevistada 7). Diversos usuários atendidos do ambulatório LGBT acessam, primeiramente, o Centro de Referência do Adolescente (CRA), local onde está disponível uma equipe de cuidado multiprofissional. Os relatos evidenciam o nome da assistente social do CRA, de modo a recordar o bom atendimento, definindo-a como ‘mãe’. A categoria de ‘pai’ é dada ao médico que atende no ambulatório LGBT, sendo definido como um ser humano observador e cuidadoso com os pacientes.

Os entrevistados mencionaram questões de âmbito psicológico, como depressão e ansiedade. Foi relatado que o serviço do Consultório LGBT, em relação à psicologia e psiquiatria, era bom. É importante que profissionais de outros serviços sejam bem treinados de modo a perceber um possível trauma ou sofrimento, demonstrado pelo paciente no atendimento, mesmo que a busca inicial não tenha sido o tratamento em saúde mental.

A avaliação do atendimento nos serviços de saúde depende de diversos fatores, como o respeito à identidade de gênero e o preparo para o atendimento. Foi mencionado que os funcionários dos serviços de saúde têm de respeitar o nome social - algo que ainda não é cumprido por todos. No entanto, avaliou-se que há falta de informação sobre questões LGBTQIA+ por diversos profissionais, fazendo com que tomem atitudes errôneas para com esses pacientes. A parte positiva foi relacionada com o respeito ao nome social, ao bom atendimento, à escuta dentro do consultório e aos serviços ofertados: “não só trans como LGBT ao todo podem fazer exames, já tem tudo aqui pronto, tem endócrino, tem tudo, aqui tá super ótimo” (entrevistada 12).

A passabilidade, ou seja, conseguir ser reconhecida socialmente no gênero ao qual a pessoa se entende pertencente, também foi um tema levantado: “quando eu era menina, era muito mais fácil”, dito pelo entrevistado 3, que relatou também que evita “dizer que é um homem trans para não sofrer preconceito”, sendo favorecido por sua ‘passabilidade’. No Consultório LGBT de Macaé, o entrevistado 1 evidenciou que os funcionários foram cuidadosos e respeitaram sua escolha de nome, evitando chamá-lo pelo nome de batismo: “Eu acho que é um cuidado, porque se as pessoas estão de certa forma tentando entender ou melhorar, eu acho que sim é um cuidado sim”.

A decisão sobre seu próprio nome é algo pensado ao iniciar o processo de transição, sendo parte da vivência de pessoas trans e travestis. O respeito à mudança do nome, conforme foi mostrado pelo entrevistado 1, é como uma demonstração de cuidado. Ter seu nome desrespeitado, ser chamado pelo gênero incorreto, ou pelo nome ‘morto’, pode afetar psicologicamente aqueles que sofrem essa violência. Também, por isso, a retificação em cartório é considerada tão importante, já que não há mais possibilidade de que o nome ‘morto’ seja trazido à tona. No entanto, a retificação não é algo simples. Segundo a entrevistada 9:

[...] em Macaé é uma burocracia muito grande uma trans conseguir mudar o nome [...] Tenho amigas aqui que já tão mais de um ano tentando fazer a retificação. Pede documentação atualizada [...] tem muitas meninas aqui que não têm condição de pagar a tarifa do cartório, tem cartórios que não aceitam a isenção.

É importante ressaltar que o Brasil não disponibiliza esse serviço gratuitamente ainda que seja um direito social.

O tempo de espera pode ser um problema para aqueles usuários que não têm condições financeiras de pagar a cirurgia ou o tratamento hormonal pela rede privada. O entrevistado 3 relatou que há pessoas que passam por volta de sete anos na fila esperando atendimento para cirurgia. Essa busca fora da rede pública foi relatada pelo entrevistado 6, ficando evidente também a importância de serviços específicos para a população LGBT+:

[...] eu não fiz nada pelo SUS […] tentei pelo Dona Alba, na época que eu fui, não tinha médico. Hoje minha amiga até falou que tem ambulatório pras pessoas trans. Na minha época não tinha esse consultório em Macaé.

Muitos usuários buscam atendimento na cidade do Rio de Janeiro, pois entendem que a oferta ainda é baixa em Macaé. Arraial do Cabo também foi mencionada. Além disso, foi relatada a ida ao sul do Brasil, a fim de realizar a cirurgia de implantes de silicone.

A entrevistada 7 relata que, após a cirurgia de redesignação sexual, os médicos costumam pedir para que ela fique desnuda no consultório, recorrentemente sendo observada por acadêmicos de medicina, e indica que

Aquilo ali pra mim é natural, eu entrar numa sala, uma pessoa me interrogar e ter um monte de estagiários olhando pra minha cara, mas pra uma trans que está começando agora, aquilo ali é meio intimidador.

Como algo positivo em relação ao atendimento, os entrevistados destacaram a atuação dos profissionais do ambulatório e do Consultório LGBT, ou seja, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, recepcionistas, entre outros. Houve a percepção de que os funcionários do Consultório LGBT eram especialistas: “acho que eles têm até a preparação pra isso, trata a gente super bem” (entrevistado 13). Também foi destacado que o acompanhamento nos postos de saúde para hormonização faz com que uma relação positiva entre os funcionários e o paciente seja estabelecida, com trocas de experiências, conversas, proporcionando um ambiente agradável.

Ao falar sobre o processo de transição, a percepção de ter um corpo diferente daquele designado ao nascer começa desde a infância. Nas entrevistas, foi relatada a dificuldade de começar a transicionar, especialmente pelo poder de coação das instituições sociais que cerceiam essa liberdade, como família e religião.

Segundo o entrevistado 3:

Eu tomei essa decisão depois do falecimento da minha mãe, eu me conheço desde os oito anos de idade, eu já tinha uma coisa diferente, eu me achava um homem, sempre me vi como um menino, mas eu não podia por causa da minha mãe.

A sociabilidade da pessoa trans ou travesti também é modificada quando é decidido transicionar. Nesse contexto, o preconceito nos processos seletivos foi sentido pela entrevistada 12:

[...] uma coisa que dificulta muito é o emprego, muitas pessoas não querem dar emprego […] a moça que eu fiz o curso, uma senhora perto da minha casa, fiz um curso de almoxarife, ela falou que a empresa não podia me contratar porque não aceitava minhas condições.

As ‘condições’ seriam o seu reconhecimento enquanto mulher trans, retirando seu direito de ocupar um cargo em que ela tinha a competência devida.

Considerações finais

Ainda que os resultados da pesquisa sejam limitados, visto que as entrevistas só conseguiram englobar uma parte pequena da população LGBTQIA+ da região, foi possível oferecer uma visão sobre a vivência dessa população no contexto de Macaé, Rio de Janeiro. O Consultório LGBT de Macaé se mostrou um lugar que os usuários se sentiam bem e confortáveis de serem atendidos. Houve muitos relatos positivos direcionados aos profissionais de saúde do local, também às assistentes sociais e às atendentes. Entende-se que essa experiência, então, deveria ser ampliada para todo o Brasil. Nesse sentido, há a necessidade de averiguar com mais profundidade como se dá o acesso em outras partes do território nacional, pois houve reclamações dos atendimentos fora do Consultório LGBT, como no pronto-socorro do Aeroporto.

Nos relatos dos participantes, foram confirmados vários casos em que as populações estudadas não encontraram a ajuda adequada e que procuraram outros serviços de saúde para suprir essa demanda. Os juízos de valor e juízos expressos nas ações de alguns profissionais de saúde sugerem que suas atitudes discriminatórias em relação às travestis e transexuais têm se manifestado historicamente em diversos espaços sociais. É comum a necessidade de convivência em serviços públicos de saúde destinados a atender às necessidades de saúde e produzir cuidados para as massas cisheteronormativas.

O acesso de trans e travestis à saúde, muitas vezes, acaba por expor a intolerância e a baixa compreensão dos profissionais de saúde sobre questões relacionadas com a identidade de gênero e sua singularidade, levando ao preconceito e à discriminação institucional. Considerar a saúde para essa população pode significar que os profissionais precisam se afastar de valores preconceituosos para dar lugar às visões mais amplas de diversidade sexual e de gênero. Constatou-se, também, a necessidade de verificar, por meio de mais pesquisas, como se dá o atendimento em outros dispositivos de saúde do referido município.

As falas demonstram que tais indivíduos carregam histórias de sofrimento e estigmatização em torno dessa experiência do que é ser trans ou travesti no Brasil. Portanto, é importante que mais pesquisas sejam realizadas, de modo a tornar evidente a necessidade de acolhimento a essa população, tanto pelos dispositivos de saúde, com mais Consultórios LGBT pelo Brasil, quanto pelos profissionais de saúde, tendo acesso a essas narrativas desde a sua formação em processos de capacitação, para saber lidar com as diferenças e as demandas que chegam em um consultório, um pronto-socorro ou em uma clínica.

Para travestis e transgêneros, o ato de apresentar documentos na recepção dos serviços de saúde pode ser algo ansiogênico, já que o desrespeito à identidade de gênero escolhida ainda é algo recorrente nos atendimentos que não são específicos ao público LGBTQIA+. Esse preconceito ao uso do nome social pode desempenhar um papel decisivo na continuidade do tratamento de um indivíduo. Em todos os locais de saúde, é importante que se considerem necessidades específicas das pessoas trans ou travestis, mesmo que não seja um local específico para o atendimento da população LGBTQIA+. Como necessidades próprias dessa população, pode-se considerar: a avaliação criteriosa da indicação de exames ginecológicos em homens trans; o respeito ao nome; o cuidado ao corpo do paciente após a cirurgia.

A negação dos direitos sociais das trans e travestis passa pela lógica neoliberal, em que é necessário que algumas populações estejam colocadas à margem, como outros grupos, por exemplo, negros e pobres. No caso de Macaé, uma cidade que avança industrialmente, não se encontra o retorno financeiro voltado para a ampliação de políticas que envolvam a população LGBTQIA+ ainda que o Consultório LGBT tenha se mostrado efetivo para o cuidado dessas pessoas. Isso demonstra que, para o poder do Estado e da iniciativa privada, a população LGBTQIA+ não tem destaque em relação às suas demandas. Para a manutenção de uma sociedade capitalista, é necessário que haja aqueles que ganham e aqueles que perdem, dito isso, sobrariam as trans e as travestis por não serem o padrão da classe dominante, ocupando um lugar socialmente desprezível, demonstrado pela ausência de políticas públicas, de cuidado em saúde, de acolhimento e rejeição de necessidades básicas.

Os relatos das entrevistas apontam para necessidade de ampliação de dispositivos de saúde que acolham a população LGBTQIA+, pois foi evidenciado que os usuários se sentiam mais acolhidos no Consultório LGBT do que em outros dispositivos de saúde, como o pronto-socorro do Aeroporto. Portanto, problematizar as narrativas dominantes, centradas na cis-heteronormatividade, é fundamental para garantia e efetivação de direitos da população LGBTQIA+. Isso pode ser modificado com políticas públicas de inclusão, como o atendimento de assistentes sociais para auxiliar na busca da cidadania dessas pessoas por meio de obtenção de documentos e auxílios financeiros. Além disso, abrigos como a Casa Florescer e locais de consulta como o Consultório LGBT em Macaé são outros exemplos de maneiras que pessoas trans e travestis podem conseguir acolhimento e exercer sua cidadania.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Benevides BG. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília, DF: Distrito Drag, Antra; 2022.
  • 2
    Benevides B, Nogueira SNB. Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Brasília, DF: Antra; 2021. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
    » https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
  • 3
    Ribeiro JKA. “Aonde” está a população trans na divisão sexual do trabalho? Analisando as condições da inserção para os/as trabalhadores/as travestis e transexuais no mercado de trabalho formal. Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social; 2018 dez 2-7; Vitória. Vitória: Ufes; 2018. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/abepss/article/view/22307
    » https://periodicos.ufes.br/abepss/article/view/22307
  • 4
    ‌Soares LS. Cuidado em saúde e transfobia: percepções de travestis e transexuais de duas regiões do Rio de Janeiro: Maré e Cidade de Deus, sobre os serviços de saúde. [dissertação]. Rio de janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2018. p. 100. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/27920/ve_Luciano_Silveira_ENSP_2018.pdf;jsessionid=DEB728F7FD75F42CBE29C46FB029D79F?sequence=2
    » https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/27920/ve_Luciano_Silveira_ENSP_2018.pdf;jsessionid=DEB728F7FD75F42CBE29C46FB029D79F?sequence=2
  • 5
    Bento NMJ, Xavier NR, Sarat M. Escola e infância: a transfobia rememorada. Cad Pagu. 2020 [acesso em 2023 mar 24]; (59):e205911. Disponível em: https://doi.org/10.1590/18094449202000590011
    » https://doi.org/10.1590/18094449202000590011
  • 6
    Sirelli PM, Ferreira GG, Dias ACR. Consultório LGBT: (Re)construindo narrativas de combate às violências LGBTfóbicas na saúde em Macaé Rio de Janeiro. Gênero. 2020 [acesso em 2023 mar 24]; 20(2):201-224. Disponível em: https://doi.org/10.22409/rg.v20i2.44575
    » https://doi.org/10.22409/rg.v20i2.44575
  • 7
    Azevedo DC. Caracterização da pobreza em Macaé: uma abordagem multidimensional. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011. 166 p.
  • 8
    Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde debate. 2018 [acesso em 2023 mar 24]; 42(esp1):18-37. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S102
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042018S102
  • 9
    Gouvêa LF, Souza LL. Saúde e população LGBTQIA+: desafios e perspectivas da Política Nacional de Saúde Integral LGBT. Periodicus. 2021 [acesso em 2023 mar 24]; 3(16):23-42. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/33474
    » https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/33474
  • 10
    Pereira EDS. Participação social e a construção da equidade em saúde: o conselho nacional de saúde e direitos da população LGBT. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2011. [acesso em 2023 mar 24]. Disponível em: https://www.oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_df2ba51ecdd2a444f5f2033873ed274c
    » https://www.oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_df2ba51ecdd2a444f5f2033873ed274c
  • 11
    Bezerra MVR, Moreno CA, Prado NMBL, et al. LGBT health policy and its invisibility in public health publications. Saúde debate. 2019 [acesso em 2023 mar 24]; 43(esp8):305-323. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S822
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042019S822
  • 12
    Medeiros M. Pesquisas de abordagem qualitativa. Rev. Eletr. Enferm. 2012 [acesso em 2023 fev 7]; 14(2):224-229. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fen/article/view/13628
    » https://revistas.ufg.br/fen/article/view/13628
  • 13
    Manzini EJ. Considerações sobre a elaboração de roteiro para entrevista semi-estruturada. In: Marquezine MC, Almeida MA, Omote S, organizadores. Colóquios sobre pesquisa em Educação Especial. Londrina: Eduel; 2003. p. 11-25.
  • 14
    Minayo MCS, organizadora. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18. ed. Petrópolis: Vozes; 2001.
  • 15
    Bardin L. Análise de conteúdo. 1. ed. São Paulo: Edições 70; 2011.
  • 16
    Boni V, Quaresma SJ. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em ciências sociais. Em tese. 2005 [acesso em 2023 fev 7]; 2(1):68-80. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/viewFile/18027/16976
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/viewFile/18027/16976
  • 17
    Selles BRS, Almeida PF, Ahmad AF, et al. Redes sociais de apoio às pessoas trans: ampliando a produção de cuidado. Saúde debate. 2023 [acesso em 2023 out 17]; 46(esp6):148-61. Disponível em: https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/sed/article/view/6910
    » https://saudeemdebate.emnuvens.com.br/sed/article/view/6910
  • 18
    Silva GWS, Souza EFL, Sena RCF, et al. Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro. Rev. Gaúcha Enferm. 2016 [acesso em 2023 out 17]; 37(2):e56407. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.56407
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.56407
  • 19
    Marilac L, Queiroz N. Eu, Travesti: memórias de Luísa Marilac. Rio de Janeiro: Record; 2019.
  • 20
    Condé LB. As medidas protetivas de urgência e a lei de feminicídio em face ao combate à violência doméstica: um estudo de caso. [monografia]. Brasília, DF: UniCEUB; 2020. [acesso em 2023 out 17]. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/14853
    » https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/14853

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2023
  • Aceito
    23 Dez 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br