Apontamentos sobre Saúde do Trabalhador, gênero e raça em disciplina de pósgraduação: relato de experiência

Élida Azevedo Hennington Sobre o autor

RESUMO

A categoria raça não faz parte da tradição de produção científica em Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil. Em geral, pesquisas enfocando relações étnico-raciais e trabalho referem-se às barreiras de acesso ao mercado de trabalho/emprego e de ascensão na carreira, e a ações discriminatórias e preconceituosas nos ambientes de trabalho, a maioria oriunda do campo das ciências sociais. O fato de que os sistemas de informação em saúde só mais recentemente têm tido a preocupação de coletar e qualificar o dado racial contribui para esse cenário. Do mesmo modo, a raça ainda permanece invisibilizada na formação em ST e nos cursos de pós-graduação stricto sensu. Este relato de experiência visa apresentar reflexão sobre a inclusão recente de disciplina sobre marcadores sociais e trabalho em programa de saúde pública, analisando aspectos significativos da prática docente e os desafios da incorporação da raça e outros eixos de poder e opressão no debate da área de ST. Diante das desigualdades sociais e injustiças em uma sociedade estruturalmente racista como a brasileira, não há como a ST desconsiderar o racismo na produção de conhecimento sobre o trabalho e sua incorporação no debate, visando à superação do capitalismo que explora, adoece e mata trabalhadoras(es) negras(os).

PALAVRAS-CHAVES
Grupos raciais; Trabalho; Enquadramento interseccional; Educação de pós-graduação; Saúde ocupacional

Introdução

Raça é categoria que expressa historicamente desigualdades no Brasil, refletindo a perpetuação de injustiças em uma sociedade estruturalmente racista11 Almeida SL. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen; 2019.. Segundo Quijano22 Quijano A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: Lander E, compilador. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso; 2005. p. 122-151., a noção de raça tem sua origem na constituição da América e na consolidação do capitalismo moderno eurocentrado como um novo padrão de poder mundial, sendo a raça uma maneira de conferir legitimidade às relações coloniais de dominação. Sob o capitalismo, as novas identidades históricas produzidas com base na ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e dos lugares na nova estrutura de controle global do trabalho. Assim, tanto ‘raça’ como ‘divisão do trabalho’, embora não necessariamente dependentes, permaneceram estruturalmente associadas e reforçando-se mutuamente.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)33 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos. As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. www.dieese.org.br. São Paulo: Dieese; 2023. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2023/conscienciaNegra2023.html.
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demonstrou que, quando pessoas negras conseguem ocupação, as condições de inserção no mercado de trabalho brasileiro são geralmente precárias, sendo que quase metade (46%) dos negros ocupa trabalhos desprotegidos. Entre os não negros, essa proporção era de 34%. Mantendo a tendência ao longo do tempo, observa-se também que os negros têm maiores dificuldades de ascensão profissional: as pessoas negras ocupavam 34% dos cargos de direção e gerência embora representem mais de 50% da população brasileira em idade de trabalhar. Os negros ganhavam 39% a menos do que os não negros; em média e em todas as posições na ocupação, o rendimento médio dos negros é menor do que a média da população. Entre os desocupados, 65% eram negros, e a taxa de desocupação das mulheres negras era de 12% enquanto a taxa de desocupação dos não negros girou em torno de 6%. Uma em cada seis mulheres negras ocupadas trabalhava como empregada doméstica33 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos. As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. www.dieese.org.br. São Paulo: Dieese; 2023. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2023/conscienciaNegra2023.html.
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Em que pese às pessoas negras representarem atualmente 55% da população brasileira, as questões raciais não têm sido centrais da produção de conhecimento científico na área de Saúde do Trabalhador (ST), tradicionalmente caracterizado pelos estudos com recorte de ocupação, classe social e gênero. Observa-se até hoje que pesquisas na área não costumam priorizar a análise de dados étnico-raciais. Contribui para esse cenário o fato de os sistemas de informação em saúde só mais recentemente terem tido a preocupação de coletar e qualificar o dado racial44 Silva Júnior H, Bento MAS, Silva MR. Políticas públicas de promoção da igualdade racial. São Paulo: CEERT; 2010. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/11465/628/1/1682.pdf.
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, 55 Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Saúde da população negra no Brasil: contribuições para a promoção da equidade. Brasília, DF: Funasa; 2005..

No Brasil, a coleta de dados sobre raça/cor tornou-se obrigatória para o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) a partir dos anos 1990. Em 2005, houve a inserção da variável raça/cor nos sistemas de informação do Programa Nacional de DST/Aids66 Braz RM, Oliveira PTR, Reis AT, et al. Avaliação da completude da variável raça/cor nos sistemas nacionais de informação em saúde para aferição da equidade étnico-racial em indicadores usados pelo Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2013; 37(99):554-562.. A Portaria nº 344/2017 do Ministério da Saúde (MS)77 Brasil. Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 2017. Dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. Diário Oficial da União. 2 Fev 2017. tornou obrigatório aos profissionais atuantes nos serviços de saúde o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação, de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário. Contudo, apesar de o quesito ser obrigatório nos formulários de saúde desde 2017, durante a pandemia de Covid-19, somente a partir abril de 2020, e graças à atuação dos movimentos negros, as notificações passaram a informar sobre essa variável no sistema de vigilância do MS, dois meses depois do primeiro caso registrado no País88 Milanezi J. “Eu não vou parar por causa de uma raça”: a coleta da raça/cor no SUS. Blog Dados. 2020 jun 4. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/coleta-da-raca-cor-no-sus/.
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, 99 Pinheiro ML. Pandemia, saúde e informações étnico-raciais no Brasil. Plural Antropologías desde América Latina y el Caribe. 2022; 5(10):139-166..

De acordo com levantamento de artigos em inglês, português, francês e espanhol realizado no Google Acadêmico, no período de 2018 a 2023, utilizando a estratégia de busca “(raça) AND (trabalho)” e “(raça) AND (trabalho) AND (saúde ocupacional)”, observou-se uma produção científica brasileira direcionada principalmente às barreiras de acesso dos trabalhadores negros ao mercado de trabalho/emprego e relações e ações discriminatórias e preconceituosas nos ambientes de trabalho, sendo a maioria oriunda das áreas de ciências sociais e humanas. A mesma busca realizada nas bases Lilacs e SciELO Saúde Pública não identificou nenhuma publicação, denotando que a raça não tem sido enfocada dos estudos brasileiros em ST. A falta de registro dessa variável nos sistemas públicos de informação em saúde é um dos aspectos que têm dificultado a produção de dados com ênfase nas relações étnico-raciais. Entretanto, também não se resume a isso. As discussões em torno da raça e da interseccionalidade na área de ST ainda são incipientes.

Este artigo apresenta relato de experiência sobre a oferta de disciplina em programa de pós-graduação stricto sensu em saúde pública que aborda a temática saúde, trabalho e marcadores sociais da diferença na perspectiva interseccional e discute a importância de incluir a raça no debate e na produção científica e formação em ST.

Contextualização e antecedentes da experiência acadêmica

A área de ST tem suas origens na medicina social latino-americana e no Movimento Operário Italiano, e é fruto do patrimônio de diversos movimentos no interior da saúde coletiva. Sua história é marcada especialmente pela Reforma Sanitária e pela realização de eventos como a 8a Conferência Nacional de Saúde e a Ρ Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador no ano de 1986 e, posteriormente, pela promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A ST estuda as relações entre saúde e doença tendo como referência o processo de trabalho, conceito marxista recuperado nos anos 1970, em contraponto a concepções ainda hegemônicas de uni ou multicausalidade da medicina do trabalho e da saúde ocupacional que desconsideram as dimensões histórica e social do trabalho no processo saúde-doença1010 Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(4):757-766., 1111 Gomez CM, Machado JMH, Pena PGL. Saúde do trabalhador na sociedade Brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011., 1212 Gomez CM, Vasconcellos LCF, Machado JMH. Saúde do trabalhador: aspectos históricos, avanços e desafios no Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1963-1970..

A saúde do trabalhador configura-se como um campo de práticas e de conhecimentos estratégicos interdisciplinares – técnicos, sociais, políticos, humanos -, multiprofissionais e interinstitucionais, voltados para analisar e intervir nas relações de trabalho que provocam doenças e agravos. Seus marcos referenciais são os da Saúde Coletiva, ou seja, a promoção, a prevenção e a vigilância1212 Gomez CM, Vasconcellos LCF, Machado JMH. Saúde do trabalhador: aspectos históricos, avanços e desafios no Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1963-1970.(1964).

Em termos de produção científica em ST, estudo de Bezerra e Neves1313 Bezerra MLS, Neves EB. Perfil da produção científica em saúde do trabalhador. Saúde e Soc. 2010; 19(2):384-394. constatou a concentração na região Sudeste e que os objetos de estudo mais frequentes foram discussões conceituais das relações saúde-ambiente-trabalho, saúde mental e lesões musculoesqueléticas. O método mais utilizado foi o quantitativo, e a população mais estudada foi a dos profissionais da área de saúde, reproduzindo a mesma tendência observada anos antes por Santana1414 Santana VS. Saúde do trabalhador no Brasil: pesquisa na pós-graduação. Rev. Saúde Pública. 2006; 40(esp):101-111. em estudo sobre pesquisas na pós-graduação. Estudo mais recente sobre ST em teses e dissertações de enfermagem apontou como os temas mais frequentes os acidentes de trabalho com material biológico, a resistência e o uso inadequado de equipamentos de proteção individual e a sobrecarga de trabalho1515 Gurgel SDS, Matias ÉO, Bezerra MIC, et al. Produção científica brasileira acerca da saúde do trabalhador nas teses e dissertações de enfermagem. Rev. Enferm. Atenção Saúde. 2017; 6(1):130-139.. Não foram identificados estudos de revisão recentes sobre produção científica no campo da ST.

Hoje, a plataformização, a intensificação e a precarização do trabalho caracterizadas por longas jornadas, baixos salários, insegurança laboral e perda de direitos trabalhistas conformam um novo perfil de morbimortalidade de trabalhadores e trabalhadoras e novos desafios para o campo. De acordo com relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS)1616 World Health Organization, International Labor Office. WHO/ILO Joint Estimates of the Work-related Burden of Disease and Injury, 2000-2016. Geneva: WHO, ILO; 2021. [acesso em 2023 jan 6]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240034945.
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sobre análise de 19 fatores de risco ocupacional, 81% dos óbitos deveram-se à doença pulmonar obstrutiva crônica, ao acidente vascular cerebral e à cardiopatia isquêmica. A OMS1616 World Health Organization, International Labor Office. WHO/ILO Joint Estimates of the Work-related Burden of Disease and Injury, 2000-2016. Geneva: WHO, ILO; 2021. [acesso em 2023 jan 6]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240034945.
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considerou relevante a exposição a longas jornadas de trabalho, à poluição do ar, a substâncias cancerígenas, a riscos ergonômicos e ao ruído. As longas jornadas de trabalho, principal risco, estavam associadas a cerca de 750 mil mortes; a exposição no local de trabalho à poluição do ar (partículas, gases e fumos) causou 450 mil; e os acidentes de trabalho, 360 mil (19% dos óbitos). O relatório destacou que a carga total de doenças relacionadas com o trabalho provavelmente será muito maior futuramente, já que as perdas de saúde causadas por vários outros fatores de risco ocupacionais terão que ser quantificadas, além da mensuração dos efeitos da pandemia da Covid-19.

Em tempos recentes, enfrentamos uma crise sanitária global que, no caso do Brasil, no curso de uma crise ética e política, resultou em mais de 700 mil brasileiros mortos de acordo com estatísticas oficiais1717 Oliveira J. Brasil chega à marca de 700 mil mortes por Covid-19. Gov.br. 2023 mar 28. [acesso em 2023 nov 6]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/brasil-chega-a-marca-de-700-mil-mortes-por-covid-19.
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. Dois fatos marcaram as primeiras impressões a respeito da pandemia no País: o primeiro caso confirmado em fevereiro de 2020 foi o de um homem de 61 anos, da cidade de São Paulo, que havia chegado da Itália e foi atendido no hospital privado que notificou o caso suspeito. O paciente apresentou sintomas leves, foi atendido, acompanhado e monitorado em casa, sem necessidade de hospitalização1818 Organização Pan-americana da Saúde. Brasil confirma primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus. Opas. 2020 fev 26. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/node/69303.
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. Outro fato marcante foi o primeiro óbito ocorrido no estado do Rio de Janeiro em março de 2020: uma empregada doméstica de 63 anos que teve contato com a empregadora que havia estado na Itália e contraiu a doença1919 Melo ML. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. UOL Notícias. 2020 mar 19. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-do-mestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm.
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Segundo informações de familiares, a trabalhadora costumava pegar três conduções para ir e voltar do trabalho, dois ônibus e um trem, e por isso passava a semana na casa da empregadora, saindo de casa no domingo e voltando na quinta-feira. Mais velha de nove irmãos, trabalhava como doméstica desde jovem para ajudar a sustentar a família. Mesmo sendo uma mulher idosa com obesidade, diabetes e hipertensão arterial, não estava aposentada porque não tinha tempo de contribuição. Percorria semanalmente 120 km de sua casa simples na cidade de Miguel Pereira, no sul do estado, até o apartamento onde trabalhava havia mais de 10 anos no bairro do Leblon, na zona sul do Rio, o metro quadrado mais valorizado do País1919 Melo ML. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. UOL Notícias. 2020 mar 19. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-do-mestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm.
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Os primeiros casos de Covid-19 identificados afetando pessoas de alto poder aquisitivo que tiveram a infecção após viagens ao exterior e que sobreviveram à pandemia contrastavam com a exposição de trabalhadores que não puderam cumprir isolamento, como a empregada que não foi dispensada pela ‘patroa’ de ir até a sua casa e adquiriu a infecção que resultou em óbito. No noticiário, não havia menção à raça, mas sabe-se que 67% das trabalhadoras domésticas brasileiras são negras2020 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos. O trabalho doméstico 10 anos após a PEC das Domésticas. São Paulo: Dieese; 2023. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.diee-se.org.br/estudosepesquisas/2023/estPesq106trab-Domestico.pdf.
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e que fatores de risco como hipertensão arterial e obesidade atingem mais a população negra, especialmente as mulheres2121 Abebe F, Schneider M, Asrat B, et al. Multimorbidity of chronic non-communicable diseases in low- and middle-income countries: A scoping review. J. Comorb. 2020; 10:2235042X2096191., 2222 Oliveira FEG, Griep RH, Chor D, et al. Racial inequalities in multimorbidity: baseline of the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). BMC Public Health. 2022; 22(1):1319., 2323 Oraka CS, Faustino DM, Oliveira E, et al. Raça e obesidade na população feminina negra: uma revisão de escopo. Saúde Soc. 2020; 29(3):e191003., 2424 Machado AV, Camelo LV, Menezes ST, et al. Racial discrimination predicts the increase in body weight and BMI in Black individuals from ELSA-Brasil cohort. Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(6):1655-1662.. Os fatos desenhavam na prática os condicionantes das relações entre saúde, doença e trabalho e expressavam de forma inequívoca a determinação social do processo saúde-doença em que raça, gênero e classe social se interseccionam, determinando o desfecho.

Ao partir desse incômodo que delineou com clareza as relações entre trabalho, determinação social da saúde e desigualdades sociais, surgiu a ideia de uma disciplina que colocasse na roda minhas próprias inquietações. Deve-se destacar que houve necessidade de um período de revisão de literatura sobre a temática e de intensiva preparação prévia com a leitura de obras básicas, principalmente de intelectuais antirracistas e contra-hegemônicos, do Sul Global, do feminismo negro e interseccional. Esse processo de busca e seleção de textos e de pensadoras/es foi fundamental para conhecer pressupostos teóricos, conceituais e metodológicos, bem como novas perspectivas de investigação que hoje têm orientado minhas escolhas na abordagem de objetos de pesquisa e na orientação discente.

Assim, pode-se dizer que a disciplina foi criada a partir de uma inquietação pessoal a respeito da falta de inclusão da raça e da perspectiva interseccional nas discussões da ST. Além disso, também foi possível observar lacunas na minha própria formação acadêmica totalmente centrada nas produções científicas da Europa e dos Estados Unidos da América, em grande maioria produzidas por homens brancos, e nas produções brasileiras também masculinas, colonizadas e embranquecidas2525 Mendoza B, Silva LP, Silva Filho SO. A colonialidade do gênero e poder: da pós-colonialidade à decolonialidade. Revista X. 2021; 16(1):290-318., 2626 Miñoso YE, Correal DMG, Muñoz KO. Tejiendo de otro modo: feminismo, epistemología y apuestas des coloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca; 2014.. Enfim, a colonialidade, o cis-heteropatriarcado e o racismo atravessaram e atravessam a carreira acadêmica e a minha própria existência2727 Bernardino-Costa J, Maldonado-Torres N, Grosfoguel R. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica; 2018., 2828 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2020., 2929 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA; 2019.. Sem desconsiderar a importância, as contribuições e a história dos autores que forjaram a minha formação em ST/saúde coletiva, dei-me conta da minha própria ignorância e de como o epistemicídio também operava em mim3030 Carneiro S. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar; 2023..

A disciplina Leituras em Saúde, Trabalho e Marcadores Sociais

Em plena crise gerada pelo advento da pandemia nas estratégias educativas e de formação, professores pesquisadores foram desafiados a criar e a manter a oferta de disciplinas nos cursos de pós-graduação stricto sensu. Após um período de intensa busca e estudo de bibliografia pertinente ao tema, a disciplina foi oferecida de maneira remota por meio de plataforma digital para alunos de mestrado e doutorado de programa de pós-graduação em saúde pública no ano de 2021. Seu objetivo era promover a reflexão crítica e o debate sobre elementos teóricos necessários à compreensão das relações entre saúde, trabalho e marcadores sociais de desigualdades numa perspectiva interseccional.

Ao considerar a categoria trabalho central na sociabilidade humana e na busca de emancipação, a disciplina objetivou discutir as relações entre saúde, trabalho e marcadores sociais no contexto dos modos de vida e trabalho, incluindo relações sociais de produção/reprodução/consumo no capitalismo. Os marcadores sociais são um campo de estudo nas ciências sociais que tenta explicar como são constituídas socialmente as desigualdades e as hierarquias entre pessoas e grupos, formando grandes eixos da diferenciação e poder3131 Nascimento B, Gonzalez L, Carneiro S. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo negro brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.

32 Hirano LFK, Acuña M, Machado BF. Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e interseções. Goiânia: Imprensa Universitária; 2019.
-3333 Oliveira DR, Breder D, Filpo KL. Relações étnico-raciais e outros marcadores sociais da diferença: diálogos interdisciplinares. Paraná: Appris; 2020.. As expressões da exploração/dominação/opressão sobre grupos sociais a partir da raça/etnia, gênero, classe social, sexualidade, capacidade, geração, territorialização e outros eixos de opressão são construídas pela sociedade, porém, tidas como se fossem ‘naturais’.

Com ênfase em raça, gênero e classe social, na perspectiva da interseccionalidade, pretendeu-se ir além do simples reconhecimento dos diversos sistemas de subordinação que reforçam o preconceito e a discriminação de certos grupos sociais, postulando-se a interação desses marcadores sociais na produção e na reprodução das desigualdades que resultam em injustiças sociais3434 Crenshaw K. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stan. L. Rev. 1991; 43(6):1241-1299., 3535 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021.. A interseccionalidade como quadro teórico pode ser usada para entender como a desigualdade social estrutural e sistêmica ocorre em uma base complexa e multidimensional e de relações de poder. É preciso não só refletir sobre como essas diferenças são construídas e perpetuadas ao longo do tempo, suas determinações sócio-históricas, mas também como elas se interconectam, se entrelaçam, interagindo em níveis múltiplos e muitas vezes simultâneos, gerando injustiças3636 Crenshaw K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracist politics [1989]. In: Bartlett KT, Kennedy R, editors. Feminist Legal Theory: readings in law and gender. New York, London: Routledge; 2018 [acesso em 2023 dez 3]. p. 57-80. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4324/9780429500480-5.
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, 3737 Biroli F, Miguel LF. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades. Mediações - Rev. Ciên. Soc. 2015; 20(2):27-55..

A disciplina enfocou três principais eixos: raça, gênero e classe social. Pretendeu, por meio de leituras dirigidas, promover a reflexão e colocar em debate questões como saúde e precarização do trabalho, racismo estrutural e relações de gênero, divisão racial e sexual do trabalho, raça, gênero e mercado de trabalho, entre outras. Importava refletir e analisar criticamente como as relações interseccionais de poder no capitalismo influenciam tanto as relações sociais marcadas pela diversidade como as experiências cotidianas da classe-que-vive-do-trabalho3838 Antunes R. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial; 2015. e suas repercussões na saúde. A bibliografia indicada foi quase totalmente oriunda das ciências sociais, o que, por si só, já é significativo. Nos dois primeiros anos, as aulas foram remotas, e no terceiro, a disciplina voltou a ser presencial.

Na primeira edição da disciplina, as referências bibliográficas foram centradas no resgate histórico do conceito de interseccionalidade e de autoras do feminismo negro norte-americano e brasileiro, como bell hooks, Audre Lorde e Lélia Gonzalez, nos reflexos da pandemia de Covid-19 na força de trabalho e em temas como capitalismo e racismo. Houve também a exibição de vídeos e debates a partir de ‘performances’ da autora portuguesa Grada Kilomba. Artigos de Hirata como uma das precursoras no Brasil da reflexão sobre relações de gênero e divisão sexual do trabalho também foram incluídos. A partir da experiência anterior, alguns textos foram mantidos, mas parte da bibliografia foi atualizada com a inclusão de autoras como Sueli Carneiro, Silvia Federici e Oyèrónké Oyewúmí, além da inserção de temas como trabalho doméstico e perspectiva queer no mundo do trabalho. No terceiro ano de oferta da disciplina, parte das referências foram novamente atualizadas, e percebeu-se a necessidade de introdução de textos sobre as diferentes ondas do feminismo, democracia racial, e de autoras como Bhattacharya para discussão da teoria de reprodução social.

A disciplina de 36 horas foi organizada em torno da leitura prévia de textos disponíveis na internet e de artigos de acesso aberto. Excetuando-se uma aula expositiva sobre marcadores sociais, as demais foram realizadas a partir das leituras e da apresentação de seminários por parte dos discentes que funcionaram como dispositivos de reflexão e debate, visando a uma abordagem amorosa, dialógica, problematizadora e libertadora3939 hooks b. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2017., 4040 hooks b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante; 2021., 4141 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014., 4242 Freire P. Pedagogia da libertação em Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2018.. Em todos os anos, ao final de cada oferta, foi realizada avaliação da disciplina, das estratégias de ensino-aprendizagem, da atuação docente e da participação discente. Os estudantes elogiaram principalmente a bibliografia, que a maioria desconhecia, e a dinâmica de apresentação e de discussão dos textos e vídeos. Dentre as críticas, destacou-se o pouco tempo disponível para leitura antecipada de todos os textos indicados.

O que aprendemos e o que precisamos aprender sobre as discussões de saúde, trabalho, gênero e raça

O presente relato procurou descrever a experiência de oferta de disciplina em nível de pós-graduação stricto sensu tendo como norte a reflexão crítica a respeito dos marcadores sociais da diferença, em uma perspectiva interseccional, partindo do pressuposto de que, ao contrário de outros eixos como classe social e gênero, a raça ainda é tangencialmente abordada na área de ST.

Dada a relevância do tema da racialidade e da colonialidade em uma sociedade de histórico escravagista, em que pessoas africanas escravizadas e seus descendentes contribuíram decisivamente para a expansão do processo de acumulação primitiva e da economia-mundo europeia, e a passagem da economia mercantil para o capitalismo, precisamos criar também no campo da produção de conhecimento em saúde espaços de reflexão e estratégias de superação de uma lógica de pensamento que invisibiliza saberes e que não problematiza a exploração e a opressão da força de trabalho negra. Embora a produção e a reprodução social capitalista sejam sustentadas pelo trabalho de mulheres e de homens negros, essa desumanização foi naturalizada e se perpetua ao longo de séculos.

Algumas experiências envolvendo estratégias pedagógicas têm sido relatadas, especialmente na graduação da saúde, para propiciar o debate sobre temas relativos à diversidade, à interseccionalidade e às relações de poder, em diálogo com o racismo, o machismo, o capacitismo e suas influências na prática profissional4343 Almeida AMB, França LC, Melo AKS. Diversidade humana e interseccionalidade: problematização na formação de profissionais da saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200697., 4444 Santos TQ, Santana RCS, Barbosa RSS, et al. Discussões de gênero na formação de pesquisadores em saúde: um relato de experiência. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200529.. Essas questões, muitas vezes invisíveis na formação e na educação permanente, continuam presentes nas práticas de saúde na qual ainda prevalecem discursos que frequentemente legitimam e naturalizam desigualdades, demonstrando a importância dessa discussão na formação dos profissionais.

As políticas de ações afirmativas e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) apontam que a formação dos profissionais de saúde é um campo estratégico de intervenção para a transformação desse quadro4545 Monteiro RB, Santos MPA, Araujo EM. Saúde, currículo, formação: experiências sobre raça, etnia e gênero. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200697.. Segundo os autores, além de investigar características gerais e singulares relacionadas com a implementação da PNSIPN, por exemplo, deve-se igualmente aplicar suas diretrizes no cotidiano acadêmico, contemplando aspectos inerentes à formação e ao desenvolvimento de práticas educativas antirracistas, o que implica a mudança de nossos próprios referenciais teóricos e o estudo e a inclusão de novos autores e de novas perspectivas teórico-conceituais e aplicadas.

A abordagem interseccional na ST não deve descartar uma crítica contundente ao capitalismo. A sociedade capitalista opera sistemas discriminatórios dinâmicos que geram desigualdades e injustiças como mortes, acidentes, adoecimentos, violências e destruição ambiental. O racismo e o patriarcado se estruturam como sistemas de subordinação que oprimem pessoas e grupos em uma sociedade capitalista que expropria a natureza, explora, adoece e mata trabalhadoras e trabalhadores. Como afirma Vergès4646 Verges F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora; 2020., os processos de racialização, o controle do corpo das mulheres e a hiperexploração capitalista desafiam a imagem civilizatória, republicana e universalista do feminismo ocidental.

Na formação e nas práticas educativas, a colonialidade e o racismo operam deixando marcas e decretando o apagamento de histórias, pensamentos selvagens e o epistemicídio de saberes não hegemônicos. Sabemos que a ferida colonial continua aberta4747 Bento H. “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra”. Entrevista com Grada Kilomba. Geledés Instituto da Mulher Negra. 2019 maio 30. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-colonialismo-e-uma-ferida-que-nunca-foi-tratada-doi-empre-por-vezes-infeta-e-outras-vezes-sangra/.
https://www.geledes.org.br/o-colonialism...
, como nos diz Kilomba, e não há mais como desprezar o “trauma ligado ao racismo e à história colonial”4747 Bento H. “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra”. Entrevista com Grada Kilomba. Geledés Instituto da Mulher Negra. 2019 maio 30. [acesso em 2023 dez 3]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-colonialismo-e-uma-ferida-que-nunca-foi-tratada-doi-empre-por-vezes-infeta-e-outras-vezes-sangra/.
https://www.geledes.org.br/o-colonialism...
como centrais no cotidiano da classe-que-vive-do-trabalho. Essa ferida persiste sangrando. Por isso, projetos pedagógicos de pós-graduação, como na graduação, não devem demorar a incorporar nos seus programas as

dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de classe, gênero, orientação sexual, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social4848 Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. [acesso em 2023 abr 13]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/pnsp/legislacao/resolucoes/rces003_14.pdf/view.
https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-...
.

Torna-se indispensável construir ou repensar propostas de ensino-aprendizagem que busquem contemplar as relações raciais e contribuir para transformação social, fugindo do academicismo abstrato, não intervencionista, superando esse lugar em que certas narrativas são desprezadas pela modernidade com a exclusão ou a invisibilização das lutas de reexistência dos corpos políticos negros. Tal qual afirma Santana4949 Santana TO. Lutas políticas de reexistência dos corpos políticos negros. FRCH - ANPUHSC. 2019; (34):227-232.(227), partimos da premissa de “que o conhecimento está ligado ao poder, além de asseverar que a raça é um princípio estruturante para se problematizar o sistema-mundo moderno/colonial”. Quando a colonialidade do poder assume novas facetas, é preciso lutar para descolonizar corpos, mentes e espaços, contribuindo para a ruptura epistemológica rumo a um novo pacto civilizatório, incluindo o espaço da ciência.

As quase-brancas universidades brasileiras após as políticas de ações afirmativas tornam-se coloridas e, a partir disso, impactam diretamente em pesquisas direcionadas a produção de conhecimento oriundo de experiências e vivências pessoais – em que as distintas formas de vida e organização político-social causam tensões no polo hegemônico da sociedade brasileira e no campo do saber4949 Santana TO. Lutas políticas de reexistência dos corpos políticos negros. FRCH - ANPUHSC. 2019; (34):227-232.(228).

Essa tensão se coloca em sala de aula na medida em que novos atores políticos tomam assento nos bancos da academia. Retomando o tema do gênero, da racialidade e da ST, alguns aprendizados e novas incertezas e desafios se fazem presentes na reflexão sobre a experiência de oferta de disciplinas na perspectiva da formação e do pensamento crítico em saúde. A ST, como área de conhecimento estratégica na saúde coletiva e como campo de luta política de trabalhadoras e trabalhadores por melhores condições de vida e trabalho, não pode se manter à parte desse debate, tanto no ativismo como na formação e na produção de conhecimento. A sociedade mudou, nossos estudantes mudaram, e não há como se manter indiferente a isso.

Considerações finais

Sem pretensão de esgotar a reflexão ou de encerrar o debate, algumas constatações importantes puderam ser feitas a partir dessa experiência. A primeira é que a ST precisa atualizar e incorporar novos temas na sua agenda e incrementar a produção científica sobre as relações interseccionais de raça, gênero e classe, bem como outros eixos de opressão, tais como orientação sexual e identidade de gênero, idade, capacidade e deslocamentos/territorialidade, somente para citar alguns.

Décadas atrás, Souza-Lobo5050 Souza-Lobo E. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2011. afirmou que a classe operária tinha dois sexos, chamando atenção para a divisão sexual do trabalho e as relações desiguais de gênero, contribuindo para a quebra de paradigmas. Hoje, devemos dizer que a classe trabalhadora ou aquela que vive-do-trabalho é formada por homens e mulheres na sua diversidade. Creio que, em boa hora, deve-se problematizar a imagem do ‘trabalhador homem branco universal’ e fortalecer o olhar para a diversidade e as relações de poder no capitalismo. Assim como a ST deslocou o olhar, nos anos 1990, para fora da fábrica diante de um novo mundo do trabalho com a ampliação do setor de serviços, da cibernética e dos processos informatizados, devemos hoje recuperar a história desde a diáspora africana e a força de trabalho escravizada que originou as bases da acumulação capitalista e a construção da sociedade brasileira racista e desigual, assim como considerar que a injustiça e o epistemicídio também atravessaram essa área de intervenção e conhecimento.

As pessoas negras são as que mais desempenham atividades insalubres e perigosas e as que mais adoecem e morrem em decorrência do trabalho no Brasil. Sabe-se também que cerca de 60% da força de trabalho na informalidade é constituída por negros e que, em sua maioria, são negros as crianças e os adolescentes obrigados a entrar precocemente no mercado de trabalho. As pessoas negras enfrentam os maiores obstáculos para conseguirem emprego; e, quando conseguem, recebem cerca de 30% a menos do que as brancas. São as pessoas negras que mais sofrem violências no ambiente de trabalho e as mais expostas à violência urbana e aos acidentes. Está claro, então, que, para transformar essa realidade, é preciso colocar luz sobre esses temas e reforçar o quanto as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, além de gênero, têm raça.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2023
  • Aceito
    30 Dez 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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