RESUMO
O yoga vem passando por um processo de transformações e conformação à racionalidade médico-científica chamado ‘medicalização do yoga’, com afastamento das reflexões acerca do ser presentes na sua fonte védica. Orientado por uma tradição hermenêutica indiana, este ensaio investigou sentidos para os termos hṛdayam (‘coração’) e yoga, frente à atual inserção desta última no âmbito da prevenção cardiovascular. Na tradição védica, o coração possui significado distinto do órgão médico: o termo também é utilizado para se referir ao 1) intelecto e ao 2) locus do Eu (ātmā). Entre outros significados, yoga é visto como um artifício cognitivo que visa à discriminação entre o real e o aparente. Nessa tradição, a saúde do coração aponta mais para uma condição existencial – da ignorância do Eu – e seus efeitos (egotismo, aversões, desejos etc.) do que para os fatores de risco cardiovascular explorados nas pesquisas e nos cuidados clínicos. Tal visão poderia servir como prevenção quaternária aos efeitos adversos da introjeção e reificação dos fatores de risco, e aponta para outra direção na compreensão e atuação do yoga nos serviços de saúde, destacando a importância de aprofundar reflexões filosóficas sobre o yoga e outras práticas integrativas e complementares presentes no Sistema Único de Saúde (SUS).
PALAVRAS-CHAVES
Yoga; Coração; Promoção da saúde; Conhecimento; Prevenção de doenças
ABSTRACT
Yoga has been undergoing a process of transformation and adaptation to medical-scientific rationality, referred to as the ‘medicalization of yoga’, with a distancing from reflections on being present in its Vedic source. Guided by an Indian hermeneutic tradition, this essay investigated meanings for the terms hṛdayam (‘heart’) and yoga, in the context of the current integration of the latter into cardiovascular prevention. In the Vedic tradition, the heart holds a distinct meaning from the medical organ; the term is also used to refer to 1) intellect and 2) the locus of the Self (ātmā). Among other meanings, yoga is seen as a cognitive tool aimed at discriminating between the real and the apparent. In this tradition, heart health points more towards an existential condition – ignorance of the Self – and its effects (egotism, aversions, desires, etc.) than towards the cardiovascular risk factors explored in research and clinical care. Such a perspective could serve as quaternary prevention against the adverse effects of the introjection and reification of risk factors, indicating a different direction for understanding and implementing yoga in healthcare services. It underscores the importance of deepening philosophical reflections on yoga and other integrative and complementary practices within the Unified Health System (SUS).
KEYWORDS
Yoga; Heart; Health promotion; Knowledge; Disease prevention
Introdução
O yoga passou por expressivas modificações de significado no último século11 Alter JS. Yoga in modern India: The body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press; 2004.. Essas transformações, que refletem o seu processo de ocidentalização e globalização, conformaram o entendimento secular de yoga como “prática que combina posturas físicas, técnicas de respiração, meditação e relaxamento”22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017; Seção I:68-9.(69). Mesmo com transformações significativas, aspectos metafísicos permanecem associados ao termo, como o entendimento popular de que yoga é uma prática que promove a ‘união mente-corpo’ e possui relação com o ‘autoconhecimento’33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... . Esse semblante metafísico do yoga é, simultaneamente, remoto e recente: tanto herança de seu contexto sul-asiático quanto influência de correntes esotéricas posteriores aos movimentos contraculturais (como o new age)44 Michelis Ed. A history of modern yoga: Patanjali and western esotericism. Londres: A&C Black; 2005.,55 Singleton M. Yoga body: The origins of modern posture practice. Oxford: Oxford University Press; 2010.. Considerado um construto de grande adaptabilidade social e cultural11 Alter JS. Yoga in modern India: The body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press; 2004., portador de discursos híbridos (científicos e tradicionais), o yoga foi categorizado como Prática Integrativa e Complementar em Saúde (Pics) pelo governo brasileiro22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017; Seção I:68-9..
A complexidade do construto yoga impossibilita a sua plena adequação à etiqueta Pics ou mesmo a outras categorias mais clássicas, como religião, espiritualidade, metafísica ou ciência11 Alter JS. Yoga in modern India: The body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press; 2004.. Poder-se-ia olhar para o yoga como ‘ciência mestiça’66 Santos BS. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. São Paulo: Autêntica; 2019. ou ‘objeto de fronteira’77 Siegel P, Bastos CLGB. Yoga: um objeto de fronteira? Interface (Botucatu). 2020 [acesso em 2023 set 22]; 24:e200180. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.200180.
https://doi.org/10.1590/interface.200180... , dada a sua capacidade de refratar para diferentes áreas e prismas culturais, abarcando múltiplos significados88 Mallinson J, Singleton M. Roots of yoga. Londres: Penguin Books; 2017.. Contudo, foi a adaptação ao racionalismo técnico-científico, em geral, e à biomedicina, em particular, que permitiu a estabilidade conceitual do yoga, por meio da qual logrou uma posição socialmente vantajosa, se comparada a outras Pics, atualmente lidas como ‘pseudociências’99 Taschner NP, Orsi C, Almeida PVG, et al. The impact of personal pseudoscientific beliefs in the pursuit for non-evidence-based health care. J. EvidBased Healthc. 2021 [acesso em 2023 set 22]; 3:e3516. Disponível em: https://doi.org/10.17267/2675-021Xevidence.2021.e3516.
https://doi.org/10.17267/2675-021Xeviden... .
Essa conformação à racionalidade científica emerge da interpretação e tradução do termo yoga dadas pelo monge indiano Vivekananda (1863-1902) ao público ocidental no fim do século XIX44 Michelis Ed. A history of modern yoga: Patanjali and western esotericism. Londres: A&C Black; 2005.. Tal processo envolveu mudanças ocorridas no léxico yóguico durante sua anglicização e ocidentalização. Contudo, é somente a partir da década de 1920, com a inauguração de instituições indianas (Kaivalyadhama Yoga Institute e The Yoga Institute), que o processo ganhou corpo, a partir da exploração empírica dos efeitos físicos e fisiológicos decorrentes de exercícios posturais, respiratórios e de sucção abdominal11 Alter JS. Yoga in modern India: The body between science and philosophy. Princeton: Princeton University Press; 2004.. Tais explorações científicas não se deram sobre aquele yoga de Vivekananda, à época, fortemente vinculado à tradição espiritual indiana, especialmente, à vertente não dual (chamada advaita vedānta); mas sobre um construto racionalizável, um saber que, no intervalo de três décadas, transmutou-se numa prática física aparentemente indiana, porém, bastante influenciada por outras culturas de movimento44 Michelis Ed. A history of modern yoga: Patanjali and western esotericism. Londres: A&C Black; 2005.,55 Singleton M. Yoga body: The origins of modern posture practice. Oxford: Oxford University Press; 2010.. Assim, embora seja considerado no imaginário popular como uma prática milenar indiana, o yoga vem sendo estruturado a partir de ideias modernas e transnacionais sobre corpo, saúde e doença. O que se conhece popularmente por yoga (e academicamente por ‘yoga postural moderno’) seria, mais propriamente, uma pequena fração dos sentidos historicamente constituídos de yoga moldada no seu processo de cientificização e medicalização44 Michelis Ed. A history of modern yoga: Patanjali and western esotericism. Londres: A&C Black; 2005.,1010 Alter JS. Modern Medical Yoga: Struggling with a History of Magic, Alchemy and Sex. Asian Med. 2005; 1(1):119-146..
A medicalização do yoga pode ser definida como o uso de: 1) discursos médicos que servem de modelo teórico para explicação de termos tradicionais (e.g. a associação entre cakra’s e glândulas do corpo) incluindo o(s) objetivo(s) dessa prática; 2) métodos clínico-epidemiológicos de exploração do yoga postural moderno como promotor de saúde e/ou prevenção que reduz os marcadores de risco, notadamente, cardiovasculares.
A medicalização do yoga parece crescer à medida que a prática é assimilada pelas chamadas ‘medicina integrativa’ e ‘medicina do esporte’; e em que aumenta a tecnologia instrumental (i.e., o uso de biomarcadores) utilizada em pesquisas em saúde sobre o tema. Segundo Jeter et al.1111 Jeter PE, Slutsky J, Singh N, et al. Yoga as a therapeutic intervention: a bibliometric analysis of published research studies from 1967 to 2013. J. Altern. Complement. Med. 2015; 21(10):5865-92., o número de ensaios clínicos sobre yoga aumentou lentamente até a virada do século, quando passou de 28 publicações, entre 1999 e 2003, para 76 entre 2004 e 2008, seguido por um aumento acentuado (quase o triplo) das pesquisas (para 243), entre 2009 e 2013. As principais condições médicas exploradas foram saúde mental, doença respiratória e doenças cardiovasculares (DCV).
Parte dessas pesquisas tem constatado que a prática modifica fatores de risco associados às DCV, como marcadores inflamatórios, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, tabagismo, estresse e sedentarismo1212 Khalsa SBS, Cohen L, Mccal T, et al. The principles and Practice of Yoga in Health Care. Londres: Jessica Kingsley Pub; 2016.. Contudo, a despeito do reconhecimento de que o yoga não se restringe a um conjunto de técnicas psicocorporais, mas engloba um 'estilo de vida', constata-se que conceitos outrora constitutivos da ontologia desse saber permanecem "irrelevantes para discussão"1212 Khalsa SBS, Cohen L, Mccal T, et al. The principles and Practice of Yoga in Health Care. Londres: Jessica Kingsley Pub; 2016.(9) nas investigações médicas sobre yoga. É o caso do termo sânscrito hṛdayam (também hṛdi ou hṛdaya), parente remoto da palavra 'coração', recorrente nas escrituras de yoga, porém, negligenciado no atual compêndio de 'Princípios e Práticas do Yoga na Medicina Cardiovascular'1313 Basu-Ray I, Mehta D, organizadores. The Principles and Practice of Yoga in Cardiovascular Medicine. Singapore: Springer Nature Singapore; 2022..
A medicalização do yoga reflete a 'monocultura do saber científico'66 Santos BS. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. São Paulo: Autêntica; 2019.: quando há subjugação epistemológica de um saber por outro, hegemônico, nesse caso, a biomedicina. Em associação, ocorre o 'epistemicídio de saberes tradicionais'66 Santos BS. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. São Paulo: Autêntica; 2019., ideia que merece ser aprofundada com relação ao yoga, já que o aumento do seu uso implicou a desvalorização de suas bases ontológicas sul-asiáticas1414 Feuerstein G. Whither Yoga therapy? Int. J. Yoga Therap.1999; 9(1):5-6.. Se a dissociação das raízes filosóficas/espirituais do yoga tem, por um lado, contribuído para sua maior aceitação popular1515 San Diego. Superior Tribunal de Justiça da Califórnia. Apelação Stephen Sedlock vs Baird. Pedido de Licença para Arquivo Amicus Curiae briefin Apoio aos Respondentes e Afirmação: caso nº 37--2013-00035910-CU-MC-CTL. Court of Appeal of the State of California. 2015. [acesso em 2022 dez 20]. Disponível em: https://www.yogaalliance.org/portals/0/articles/sedlock%20v.%20baird%20amicus%20briefpdf
https://www.yogaalliance.org/portals/0/a... , e mesmo para a emergência criativa de 'yogas' de matriz não-indiana1616 Simões RS. In Search of the Authenticity of Contemporary Yogas of Non-Indian Matrix. J Lat Am Relig. 2022; 6:323-46., por outro, afastou possíveis explorações desses fundamentos que poderiam contribuir, para além das DCV, para a 'saúde do coração', conforme a tradição védica.
Nessa direção, este ensaio investiga significados dos termos hṛdayam (coração) e yoga, presentes em uma tradição hermenêutica indiana, de modo a problematizar a atual inserção do yoga na prevenção das DCV e apontar um direcionamento diverso para a sua compreensão e atuação no Sistema Único de Saúde (SUS).
Material e métodos
O presente ensaio orienta-se pela perspectiva decolonial, visando à teorização do yoga e do termo hṛdayam informada pela tradição védica, considerando tratar-se de um saber com racionalidade própria, alicerçada em práticas de ensino oral, nos cânones literários védicos e em métodos específicos de absorção do conhecimento.
A perspectiva decolonial se justifica pela necessidade de confrontar estruturas epistemológicas que historicamente moldaram a concepção de yoga, exercendo influência significativa na pesquisa, implementação e compreensão deste no campo da saúde coletiva brasileira. Mesmo com o término do colonialismo, persiste uma forma de colonialidade que subjuga o conhecimento filosófico indiano, relegando-o à condição de mera técnica. Isso se manifesta na expansão da 'medicina baseada em evidências' para o campo das Pics e na adoção do discurso biomédico.
Importa abrir espaço na esfera da racionalidade científica para uma 'ecologia de saberes' que permita a coexistência de diferentes corpos de conhecimento culturais. Daí a necessidade de estudar afinidades, divergências, contradições e complementaridades que existem entre esses saberes66 Santos BS. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. São Paulo: Autêntica; 2019.. A valorização da tradição védica não se limita à decolonização do yoga; poderia, também, contribuir para uma outra concepção de saúde, não orientada exclusivamente para uma abordagem alternativa, tampouco alinhada à biomedicina.
Em conformidade com os objetos de investigação (hṛdayam e yoga), foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre a 'parte final dos Vedas' (vedānta), coletivamente denominada upaniṣad's, juntamente com os comentários de Śaṅkara1717 Jha G, tradutor. The Chāndogyopaniṣad: A Treatise on Vedānta Philosophy Translated into English with the Commentary of Sankara. Puna: Oriental Book Agency; 1942.,1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.,1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,2020 Gambhirananda S, tradutor. Eight upaniṣads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2003. (v. 2).,2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).. Śaṅkara (788-820) é considerado um dos principais interlocutores da advaita vedānta, cujo legado literário impulsionou uma série de comentários e estudos de grande originalidade, vigor e insight filosófico, que o seguiram2222 Dasgupta S. A history of indian philosophy. Cambridge: University Press; 1922..
Também como fonte primária de informação, utilizou-se método próprio da pedagogia soteriológica da Advaita Vedānta. No contexto vedantino, o termo ‘soteriologia’ traduz a ideia da busca do derradeiro objetivo humano. Definido em termos de ‘liberação’ (mokṣa), seria a cessação de um senso de limitação que resultaria no fim do sofrimento. Isso é alcançado por meio do ‘conhecimento do si-mesmo’ (ātmā jñāna). A tradição orienta que se deve “ouvir (śravaṇa); pensar (manana); e meditar (nididhyāsana) sobre o si-mesmo”1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.(776). Nesse sentido, a pesquisa teve início com a escuta (śravaṇa) e o estudo de aulas gravadas de Swami Dāyānanda Sarasvatī (1930-2015), um renomado professor de vedānta, nas quais expôs o conteúdo de uma upaniṣad durante um curso em 2010, em Coimbatore (Índia)2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... . A fase da averiguação (manana) visou a examinar o conteúdo à luz da razão, com contra-argumentos, lógica, inferência e analogias da experiência cotidiana. Já a contemplação (nididhyāsana) é um aspecto distintivo das chamadas ‘tradições orientais’, que consideram insuficiente o entendimento conceitual de um fenômeno, apartado da experiência pessoal. A contemplação envolve o movimento de apropriação desse saber pelo pesquisador, convertendo-o em conhecimento não mediado2424 Puligandla R. Fundamentals of indian philosophy. Nashville: Abingdon Press; 1975.,2525 Murti TRV. Studies in Indian Thought: Collected Papers of Prof. TRV Murti. Delhi: Motilal Banarsidass Publ; 1983.. A apreensão da ontologia contida nas upaniṣad’s não se efetua somente na leitura e interpretação autônoma desses textos. Embora inclua tais processos, esse modo de conhecimento opera na exposição de um estudante ao conteúdo escritural veiculado por um professor inserido em uma tradição pedagógica que lhe possibilita uma hermenêutica dos textos conforme significados historicamente estabilizados1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
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O ensaio é resultado parcial de uma pesquisa de doutorado conduzida por um professor e ‘pesquisador-praticante’2626 Singleton M, Larios B. The scholar-practitioner of yoga in the western academy. In: Newcombe S, O’brien-Kop K, organizadores. Routledge Handbook of Yoga and Meditation Studies. Londres: Routledge; 2020. p. 37-51. de yoga, ou seja, alguém engajado tanto na docência quanto na pesquisa sobre yoga. O estudo pretende estabelecer pontes entre a prevenção das DCV e a tradição védica na qual o yoga se insere. Para isso, é preciso compreender, antes, o coração no yoga, ou seja, o termo hṛdayam em sua rede semântica.
Resultados e discussão
O vocábulo sânscrito hṛdayam foi originalmente encontrado nos vedas, a literatura mais antiga do Sul da Ásia2727 Gonda J. Some notes on the function of the ‘heart’. In: Gonda J. The vision of the vedic poets. Paris: Mouton & Co. Pub.; 1963. p. 276-88.. Sua raiz etimológica, *hṛd, é tanto origem de palavras como heorte, do inglês antigo (que se tornou, posteriormente, heart), quanto fonte provável de termos como kardia, do grego (utilizado na terminologia médica, como em ‘cardíaco’), cœur (do francês) e ‘coração’, esses últimos modificados do original por meio da raiz protoindo-europeia *kṛd2828 Pokorny J. An Etymological Dictionary of the Proto-Indo-European Language. Badajoz: Indo-European Language Revival Association; 2007.,2929 Skeat WW. An etymological dictionary of the English language. Oxford: Clarendon Press; 1893.. No sânscrito, hṛdayam significa: 1) o coração, a mente, a sede ou faculdade de pensamentos e sensações; 2) conhecimento ou ciência; 3) a essência de uma coisa3030 Baṭṭācārya JV. A comprehensive Sanskrit-English lexicon: chiefly based on Professor Horace Hayman Wilson’s Sanskrit - English Dictionary and compiled from various recent authorities for the use of schools and colleges. Calcutta: Calcutta Press; 1900.(836).
A relação do coração com certas emoções, sensações e experiências possui longa história em comunidades arcaicas. Determinadas emoções são descritas como afetando aquela parte da integridade psicofísica da pessoa que, por alguma razão, é considerada o seu suporte2727 Gonda J. Some notes on the function of the ‘heart’. In: Gonda J. The vision of the vedic poets. Paris: Mouton & Co. Pub.; 1963. p. 276-88.. Nos vedas, assim como em outras línguas arcaicas, o termo referente ao coração é usado figurativamente, sem localização anatômica, para denotar o centro da vida e/ou do corpo, região passível de ser afetada por inimigos ou doenças3131 Takezaki R. The Heart (hārdi/hṛd-) and the Formula “to Fashion (ffl takṣ) a Hymn” in the Ṛgveda. J. Int. Assoc. Buddh. Stud. 2017; 65(3):1054-8.. Culturas antigas (hebreus, gregos) consideravam o coração como o centro do conhecimento, do entendimento, do pensamento e da sabedoria3232 Mcarthur J. Ephesians MacArthur New Testament Commentary. Chicago: Moody Publishers; 1986..
De maneira parecida com o termo ‘kardia ’, da bíblia, que possui forte conotação racional e volitiva3232 Mcarthur J. Ephesians MacArthur New Testament Commentary. Chicago: Moody Publishers; 1986., o termo ‘hṛdayam’, nas upaniṣad’s, passa a significar, por metonímia, o intelecto. Dessa maneira, hṛdayam é visto como locus do Eu ou si-mesmo (ātmā), uma vez que a natureza de cognoscibilidade deste último se expressa no intelecto1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.,1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,2020 Gambhirananda S, tradutor. Eight upaniṣads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2003. (v. 2).,2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1)..
As upaniṣad’s abordam o sofrimento humano como um problema centrado no eu, apresentando como saída diferentes abordagens que investigam a realidade última do ātmā. Um dos métodos mais conhecidos parte da análise sobre duas dimensões que, combinadas, constituem o indivíduo: a real (o ātmā) e a aparente (3). Constitui a dimensão do aparente tudo o que se apresenta como objeto ao intelecto, sejam objetos-do-mundo, considerados não Eu (anātmā), sejam aspectos pessoais relacionados à fisicalidade e ao psiquismo (que caracterizam a identidade individual), tais como sensações, percepções, pensamentos etc. Já o ātmā, por não possuir atributos, não pode ser experienciado como um objeto, até por ser, ele mesmo, o princípio da cognoscibilidade; aquilo que evidencia os objetos1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.,2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
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Conforme Śaṅkara, o sofrimento ocorre devido à superimposição de atributos, especialmente aspectos psicofísicos (constitutivos do que se conhece, grosso modo, por ego) sobre o ātmā. Esses aspectos não são considerados reais nem irreais, pois não possuem existência independente do ātmā; sendo, dessa maneira, chamados de ‘adjuntos limitantes’ (upādhi’s). A sobreposição do ātmā por upādhi’s pode ser ilustrada pela imagem de uma corda enrolada no chão, em um ambiente mal iluminado, que é erroneamente percebida como uma cobra por alguém distraído1717 Jha G, tradutor. The Chāndogyopaniṣad: A Treatise on Vedānta Philosophy Translated into English with the Commentary of Sankara. Puna: Oriental Book Agency; 1942.,1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.,1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,2020 Gambhirananda S, tradutor. Eight upaniṣads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2003. (v. 2).,2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).,2222 Dasgupta S. A history of indian philosophy. Cambridge: University Press; 1922.,2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
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A tarefa das upaniṣad’s é conduzir o interessado à constatação de que “o que eu penso [que sou], não é o que eu sou”2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... . Inicia-se, então, um empreendimento racional para a remoção da ‘ignorância primordial’ (avidyā)3333 Loundo D. Os upaniṣads e a noção de ignorância (avidyā) segundo Śaṅkarācārya. REVER: Rev. Est. Rel. 2021; 21(2):11-28. via discriminação entre o ātmā e os objetos apreendidos, culminando na não dualidade entre esses elementos e na constatação de que o ātmā é a causa do universo, brahman. A ontologia vedantina possui caráter imanente e transcendente, pois o mundo (a cobra, do exemplo) é, essencialmente, ātmā/brahman (a corda), mas este último (ātmā/brahman) não é o mundo.
Śaṅkara esclarece que o ātmā não é uma entidade metafísica abstrata, mas, sim, algo universal, apreendido na imediaticidade do conteúdo ‘eu’1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.. Sobre isso, Dāyānanda observa que a pedagogia das upaniṣad’s não está interessada em reafirmações do tipo ‘eu sou’, ‘eu existo’, mas em revelar ‘o que’ eu sou2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... . Para isso, as upaniṣad’s apresentam definições sobre ātmā/brahman classificadas em dois tipos: substancial, como “brahman é verdade, conhecimento e infinitude”2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(303); e acidental2525 Murti TRV. Studies in Indian Thought: Collected Papers of Prof. TRV Murti. Delhi: Motilal Banarsidass Publ; 1983., como “brahman é a causa da origem, sustentação e cessação do mundo”1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.(14). O sentido derradeiro dessas definições, encontradas aqui e ali nas upaniṣad’s, viria por meio de uma disciplina racional rigorosa, propiciada por um ambiente pedagógico em que um professor habilidoso favorece a remoção de concepções errôneas que o estudante tem sobre si3434 Loundo D. A Mistagogia Apofática dos Upanisads na Escola Não-Dualista Advaita Vedanta de Satchidanandendra Saraswati. Numen. 2011; 14(2):109-30..
Pode-se situar o hṛdayam na fronteira entre as dimensões do aparente e do real, em que ele é compreendido a partir de ambas as categorias: como objeto científico, relacionado a processos manifestos, e como entidade ontológica, relacionada à unidade ātmā/brahman. Na primeira, concebe-se hṛdayam como objeto empírico, cujos aspectos morfofisiológicos comuns do órgão anatômico se entrelaçam com um tipo de ‘morfofisiologia sutil’ indiana. Essa intersecção de morfologias aparece em um comentário de Śaṅkara, no qual o coração é descrito como um:
[...] órgão carnoso, semelhante à for-de-lótus; a sede da força vital, que se abre através de muitas nāḍī’s [canais suprassensíveis do corpo por onde fui tal força], com a face voltada para baixo; e é visto e bem reconhecido por todos quando um animal sacrificado é dissecado. Nele existe um espaço, como em um jarro2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(267). [tradução e grifo nosso].
No mesmo texto, Śaṅkara detalha a morfofisiologia sutil ligada ao hṛdayam ao relatar o que ocorre durante a realização do si-mesmo (mokṣa):
A naḍī de nome suṣumṇā, se dirige do coração para cima [processo esse] bem conhecido nas escrituras de yoga. E essa nāḍī corre na conhecida parte do meio dos dois palatos [...] [até] onde o fm ou as raízes do cabelo se dividem – i.e. a coroa da cabeça; alcançando esse lugar, o (caminho) emerge a partir daí, dividindo os ossos da cabeça; aquilo que (assim) emana para fora é o caminho de Brahman, i.e. o caminho da realização de sua própria natureza2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(268). [tradução nossa].
Em outra upaniṣad, observa-se o papel do hṛdayam em eventos vitais (nascimento, desmaio e morte) e em diferentes estados da consciência (vigília, sonho e sono profundo). Ele funcionaria como eixo centralizador dos cinco tipos de ‘força vital’ (prāṇa’s) que, de acordo com a racionalidade yóguica, dirigem as atividades corporais. Exemplo: o sono profundo viria quando os prāṇa’s, retirando-se (via nāḍī's) dos órgãos sensoriais, permanecem reclusos no hṛdayam1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.. No sono profundo, existe uma obliteração da distinção percebida entre sujeito-objetos, e a consciência, na ausência de particularização criada pelos upādhi’s, torna-se um breu absoluto e, por isso, experiencia a plenitude2020 Gambhirananda S, tradutor. Eight upaniṣads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2003. (v. 2)..
Sobre a dimensão ontológica de hṛdayam, nas upaniṣad’s, encontra-se a ideia de que o ātmā possui “o tamanho de um polegar e está sempre no coração dos homens”2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).,(232). Tal afirmação não é factual e deve ser compreendida em termos metafóricos: assim como uma gota de óleo de sândalo é capaz de perfumar todo um ambiente, também o ātmā, fonte da inteligibilidade, embora aparentemente localizado no coração, animaria todo o corpo, tornando-o senciente2222 Dasgupta S. A history of indian philosophy. Cambridge: University Press; 1922..
Os enunciados védicos que buscam confinar o ātmā estão se referindo não ao órgão anatômico, mas ao núcleo da subjetividade, que se identifica ora como agente, ora como experienciador. Śaṅkara esclarece que a declaração factual ‘eu sou esse’ é espontaneamente acompanhada pelo gesto de levar a mão ao peito, indicando ser ali onde o princípio identitário adquire expressão no mundo2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(175). Ao localizar o ātmā no corpo, o gesto acaba por vincular as duas dimensões do hṛdayam, a aparente e a ontológica. A partir de casos de transplante documentados, especula-se que aspectos relacionados à identidade estejam, de fato, ligados ao órgão anatômico3535 Cowan T. Human heart, cosmic heart: a doctor’s quest to understand, treat and prevent cardiovascular disease. Vermont: Chelsea Green Pub; 2016..
Nas upaniṣad’s, encontramos duas explicações para a formação da palavra hṛdayam. A primeira, de natureza morfológica, encontrada na Cāndogya upaniṣad, aponta para sua dimensão ontológica – como locus do ātmā – e para a imediaticidade desse último, com o uso do pronome demonstrativo próximo ao locutor: “Este (ayam) que reside no coração (hṛdi) é chamado de hṛdayam”1717 Jha G, tradutor. The Chāndogyopaniṣad: A Treatise on Vedānta Philosophy Translated into English with the Commentary of Sankara. Puna: Oriental Book Agency; 1942.(427). A segunda explicação, de ordem silábica, é encontrada na Bṛhadārāṇyaka upaniṣad:
hṛdaya (coração) tem três sílabas. ‘hṛ’ é uma sílaba. Para aquele que sabe, como acima, seu próprio povo e outros trazem (presentes). ‘Da’ é outra sílaba. Para aquele que sabe, como acima, seu próprio povo e outros dão (seus poderes). ‘Ya’ é outra sílaba. Para aquele que sabe, como acima, vai para o plano celestial1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.(81). [tradução nossa].
Śaṅkara comenta o verso, que é uma orientação para meditação: a primeira sílaba, oriunda da raiz *hṛ, que significa trazer, serve como metáfora para compreender os órgãos sensoriais trazendo, à guisa de oferenda, seus respectivos objetos ao hṛdayam (ao intelecto), que é, em última análise, a realidade única, ātmā. Secundariamente, ao meditar dessa maneira sobre o significado da sílaba hṛ, a pessoa receberia presentes1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.. Śaṅkara considerou o coração como lugar privilegiado da meditação por razões óbvias: é ali que o absoluto (brahman) se revela como ‘eu’ (ātmā). Contudo, o comentarista deixou claro que a introspecção era apenas uma estratégia eficaz para diminuir o efeito reificador que a diversidade costuma produzir1717 Jha G, tradutor. The Chāndogyopaniṣad: A Treatise on Vedānta Philosophy Translated into English with the Commentary of Sankara. Puna: Oriental Book Agency; 1942.(413). Pode-se inferir que uma eventual fixação em exercícios introspectivos sobre o ‘eu’ acarretaria uma jornada soteriológica inconclusa, pois, desse modo, o sujeito não saberia que, além do ‘eu’, brahman é, igualmente, o ‘tu’ (os outros sujeitos) e o ‘ele’ (quer dizer, a terceira pessoa, no caso, os objetos empíricos).
O ‘nó do coração’
Nas upaniṣad’s, é comum o uso da expressão ‘nó do coração’ (hrdayagranthi) para se referir à situação de aprisionamento do sujeito à sua condição existencial1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.,1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,2020 Gambhirananda S, tradutor. Eight upaniṣads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2003. (v. 2).,2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).. Dāyānanda observa que esse nó se manifesta no desejo e na ação. Portanto,
fazer várias coisas só torna o nó mais apertado, já que a ação decorre de uma falha em entender o problema original [...]. O problema é a ignorância e, para isso, você precisa de discernimento2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... .
Śaṅkara comenta que os nós do coração geram falsas noções centradas no eu, como “eu sou gordo”1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.(6), resultantes da falta de discriminação entre o sujeito e o objeto-corpo e da “superimposição das propriedades de um sobre o outro”1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.(2). O projeto soteriológico das upaniṣad’s pode ser entendido como um desatar dos nós do coração: uma gradual mudança cognitiva (mas não perceptiva) de desreificação sujeito-objetos, que causaria a nulificação do medo e de sentimentos aversivos afins, calcados na dualidade1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.. Declara a Kaṭha upaniṣad:
Quando todos os nós [todos os conceitos que emergem da ignorância, que aprisionam a pessoa como nós apertados] do coração [do intelecto] são desatados, ainda em vida, então o mortal se torna imortal. Esse é o ensinamento [de todas as upaniṣad’s]2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(229). [tradução nossa, comentários entre colchetes de Śaṅkara].
Antes, na mesma escritura, o comentarista indaga: “Como alcançar o governador do coração?” E responde: “Para esse motivo, yoga é recomendado”2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(223).
O termo ‘yoga’
O termo sânscrito yoga, derivado da raiz *yuj (‘unir’), foi originalmente utilizado nos vedas para designar o ato de unir diferentes coisas, como palavras em uma sentença ou o atrelamento de cavalos à carruagem3737 Joshi KS. On the meaning of yoga. Philos. East West. 1965; 15(1):53-64.. Sobre esse último uso, especula-se que carruagem seria uma metáfora do caminho do homem ao plano divino3838 Frawley D. Gods, sages and kings: vedic secrets of ancient civilization. Salt Lake City: Passage Press; 1991.. Autores já observaram a ampla polissemia que ‘yoga’ adquiriu na literatura indiana, comportando significados díspares, como: soma; uso; aplicação; desempenho; método; mágica; truque, fraude; empreendimento; lucro; propriedade etc.88 Mallinson J, Singleton M. Roots of yoga. Londres: Penguin Books; 2017.,3939 White DG. The “Yoga Sutra of Patanjali”: A biography. Princeton: Princeton University Press; 2014..
Para Śaṅkara, yoga está ligado à ‘aptidão’ (yogyatā), sendo utilizado para denotar disciplinas, condutas e atitudes voltadas para tornar o interessado apto à liberação, incluindo meditações, o controle dos órgãos sensoriais, a atitude de leniência para com as vicissitudes da vida, de confiança epistemológica com relação às escrituras, o exercício do discernimento etc. Além de designar método, yoga também se refere ao objetivo, seja a liberação definitiva (mokṣa), a aquisição de poderes (siddhi’s) ou um estado temporário de não dualidade (samãdhi)88 Mallinson J, Singleton M. Roots of yoga. Londres: Penguin Books; 2017..
Outra distinção a ser feita sobre yoga, manifesta na aparente ambiguidade de Śaṅkara sobre o tema, tem a ver com o fato de que, naquela época, yoga já havia assumido um significado altamente técnico, referindo-se ao sistema delineado por Patañjali no Yogasūtra (aqui grafado Yoga para distinguir). Śaṅkara faz referência à acepção genérica do termo (como disciplina preliminar) e, também, em outros comentários, ao sistema de Patañjali, que posteriormente se estabeleceu como uma das escolas ortodoxas do pensamento indiano4040 Comans M. The Question of the Importance of Samādhi in Modern and Classical Advaita Vedānta. Philos. East West. 1993; 43(1):19-38.,4141 Rukmani TS. Śaṅkara’s views on yoga in the Brahmasūtrabhāṣya in the light of the authorship of the Yogasūtrabhāṣya - vivaraṇa. J. Indian Philos. 1993; 21(4):395-404.,4242 Sundaresan V Yoga in Śaṅkaran Advaita Vedānta: a reappraisal. In: Wicher I, Carpenter D, organizadores. Yoga: the Indian Tradition. Londres: Routledge Curzon; 2003. p. 99-129..
Existem características do Yoga que contrariam princípios vedantinos, como a ideia de que a causa material do mundo é independente e distinta do ātmā (dualismo ontológico) e de que existem múltiplos ātmā’s. Além disso, Śaṅkara refuta a existência de uma via alternativa e independente da hermenêutica védica como saída para o sofrimento. No caso do Yoga, isso ocorreria via samādhi. Śaṅkara recorre ao caráter temporário de plenitude livre de atributos da consciência, ocasionado durante o sono profundo, não só para refutar a ideia de que os upādhi’s constituem a natureza do sujeito, mas também como argumento para rejeitar a crença de que um evento de samādhi seria o suficiente para remover, permanentemente, a ignorância primordial1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.,4242 Sundaresan V Yoga in Śaṅkaran Advaita Vedānta: a reappraisal. In: Wicher I, Carpenter D, organizadores. Yoga: the Indian Tradition. Londres: Routledge Curzon; 2003. p. 99-129..
Curiosamente, o termo yoga também pode ser derivado da raiz *samādhau (‘absorção’)2525 Murti TRV. Studies in Indian Thought: Collected Papers of Prof. TRV Murti. Delhi: Motilal Banarsidass Publ; 1983., um sentido aparentemente mais alinhado à tradição vedantina. Śaṅkara observa que, embora yoga seja mais conhecido como ‘união’ (do espírito individual com o espírito universal), o termo aponta, paradoxalmente, para uma disjunção (viyoga). Isso porque o que caracteriza esse estado é dissociação dos órgãos dos sentidos, da mente e do intelecto, daquilo que não tem valor, que não possui substancialidade (os upādhi’s), ficando o ātmā estabelecido em sua própria natureza livre de superimposições2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).. Mesma ideia é encontrada no Yogasūtra (verso 2.17) e na Bhagavad Gītā (6.23), conhecidas escrituras de yoga. Esses versos destacam que a causa do sofrimento reside na conjunção daquele-que-vê com aquilo-que-é-visto, ou do sujeito com o objeto; a ideação do ‘eu’ é produzida a partir do aparente condicionamento do sujeito aos objetos. Por isso que yoga seria, na verdade, a separação dessas entidades4343 Gītā B. With the Commentary of Śrī Śaṅkarācārya. Tradução Gambhirananda S. Tradutor Calcutá: Advaita Ashrama; 2006..
Noutra upaniṣad, é descrito que yoga ocorre quando os órgãos dos sentidos e a mente se abstêm de seus respectivos objetos e funções cognitivas, e, desse modo, realiza-se o “governador da mente que reside no coração”2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1).(223). Yoga, aqui, configura-se como um exercício de progressivo afastamento daquilo que é particular e ilusório, captado pelos sentidos, e absorção naquilo que é substancial4040 Comans M. The Question of the Importance of Samādhi in Modern and Classical Advaita Vedānta. Philos. East West. 1993; 43(1):19-38..
Embora Śaṅkara reconheça a necessidade de uma etapa preliminar ao conhecimento soteriológico, o princípio vedantino de que brahman é uma entidade pré-existente, e não resultado do esforço humano, contrasta com a visão do Yoga de que a ação (física, oral ou mental) seja ‘o’ meio para a liberação.
Pode-se sumarizar com uma distinção strictu e outra latu sensu de yoga: a primeira, Yoga, como uma escola independente (uma outra via soteriológica); e a segunda, yoga como qualquer apoio que sirva como meio indireto para ‘desatar os nós do coração’. Śaṅkara refuta a primeira, muito por representar uma visão de espiritualidade orientada para experiências extraordinárias, e adota a segunda, reconhecendo sua importância dentro do projeto soteriológico4040 Comans M. The Question of the Importance of Samādhi in Modern and Classical Advaita Vedānta. Philos. East West. 1993; 43(1):19-38..
Os dois campos da tradição védica
No trecho em que Śaṅkara comenta sobre o significado silábico de hṛdayam, o tópico é encerrado com um louvor ao conhecimento soteriológico:
Se resultados tão conspícuos são adquiridos através da meditação sobre as sílabas de seu nome, o que dizer da meditação sobre a realidade do próprio coração?1818 Madhavananda S, tradutor. The Bṛhadāraṇyaka upaniṣad: with the commentary of Śankarācārya. Almora: Advaita Ashrama; 1950.(821).
Śaṅkara faz alusão a dois campos da tradição védica: o ‘campo da ação’, voltado para o conhecimento e a obtenção de diversos objetos/ objetivos; e o ‘campo do conhecimento’, que, neste caso, refere-se ao conhecimento do ātmā, como já discutido.
O primeiro campo, exemplificado pela meditação sobre as sílabas de hṛdayam, é formado pelo repertório védico de atividades religiosas e ritualísticas. Por extensão, esse campo abrange qualquer atividade humana, contemporânea ou de outrora, secular ou religiosa. A racionalidade científica e seus modos de conhecimento (percepção, lógica, inferência etc.) inserem-se nesse campo. Já o ‘campo do conhecimento’, da ‘meditação sobre a realidade do coração’, da citação, envolve “a prática da razão meditativa, de caráter analítico, sobre a natureza última do sujeito e da realidade que o cerca”4444 Loundo D. As raízes hinduístas do budismo. Numen: Rev Est. Pesq. Rel. 2017; 20(1):47-56.(49).
Para cada campo existe um tipo distinto de yoga como método. No primeiro, yoga é considerado um instrumento real, visando à produção ou transformação (seja para a obtenção de siddhi’s ou para reduzir a pressão arterial). No segundo, yoga é concebido como um artifício, um ‘estratagema da imaginação’3434 Loundo D. A Mistagogia Apofática dos Upanisads na Escola Não-Dualista Advaita Vedanta de Satchidanandendra Saraswati. Numen. 2011; 14(2):109-30., justificável apenas em função do seu resultado, no caso, a remoção da ignorância primordial. Dāyānanda ilustra o caráter sui generis desse método por meio de uma parábola:
Um idoso, dentro de sua casa, acometido pelos primeiros sintomas de Alzheimer, exclama à sua esposa: – Aonde estou? Por favor, me leve para casa! Percebendo a confusão do marido, a esposa o coloca no carro para dar uma volta no quarteirão, dizendo que iria conduzi-lo à sua casa. Durante a volta, a esposa o lembra de lugares que lhe são familiares: ‘olha a padaria que você frequenta; veja aquela farmácia, onde costumas comprar seus remédios... Parece que estamos a caminho de casa’. Em casa, o idoso se tranquiliza2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... . [adaptação do autor].
Nesse caso, yoga seria lembrança4545 Nunes T. Yoga como lembrança. Florianópolis: Vida de Yoga; 2020.. Embora distante do entendimento comum sobre yoga, a tradição denomina o método desse campo de jñāna-yoga, o ‘caminho do conhecimento’. Alternativamente, poderíamos chamá-lo de ‘racionalidade yóguica’, do radical ratio (de divisão, separação), por se tratar de um processo cognitivo de ‘dis-cernimento’ (ou, no sânscrito, vi-yoga) entre o real e o aparente, que, em tese, culminaria no estabelecimento do Um, sem segundo (advaita).
Yoga no SUS
O yoga entra no SUS como uma prática de saúde, laica, que apresenta pelo menos três narrativas sobrepostas: 1) yoga como estratégia para a promoção de saúde, pelos benefícios físicos e mentais (‘fortalece o sistema musculoesquelético, estimula o sistema endócrino, expande a capacidade respiratória e exercita o sistema cognitivo’) e para a prevenção de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT)22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017; Seção I:68-9.,33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... ; 2) yoga para tratamento e prevenção de problemas mentais (depressão, ansiedade, insônia)22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017; Seção I:68-9.,33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... ; 3) yoga voltado para o bem-estar, harmonia ou ‘união corpo-mente’33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... , que “preconiza o autocuidado, uma alimentação saudável e uma ética que promova a não-violência”22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União. 28 Mar 2017; Seção I:68-9.(69).
O fato de o yoga ser abordado em documento oficial nos termos da medicina preventiva sugere que, no SUS, há maior enfoque no discurso médico (pontos 1 e 2) do que no aspecto wellness, esse mais pronunciado no setor privado. O argumento central do yoga no SUS é o da redução dos riscos de DCNT. Vale observar que o yoga, no SUS, é geralmente praticado nos Centros de Saúde (CS), conduzido por profissionais de saúde e comumente acessado via encaminhamento médico33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... . Além disso, a maioria desses usuários encontra o yoga por razões distintas daquelas que levam à sua procura no setor privado. No SUS, geralmente existe algum diagnóstico ou risco de DCNT.
O discurso sobre os fatores de risco, instaurado, sobretudo, com o estudo de Framingham (iniciado em 1948), é considerado o pilar estruturante da medicina preventiva e da epidemiologia clínica. Embora existam claras correlações entre biomarcadores e desfechos de morbimortalidade cardiovascular, considera-se que a noção de risco, no âmbito da saúde, tem levado à individualização dos problemas sociais, ao reducionismo biológico e à dissolução das fronteiras entre o normal e o patológico4646 Maturo A. Medicalization: Current concept and future directions in bionic society. Mens sana Monogr. 2012; 10(1):122-33..
Juntamente com o conceito de ‘estilo de vida’, o fator de risco está na gênese do healthism4747 Turrini M. A genealogy of “healthism”: healthy subjectivities between individual autonomy and disciplinary control. J Med Humanit & Soc St Scien Tec. 2015; 7(1):11-27 (imperialismo sanitário), definido como a obsessão compulsiva e neopuritana pela saúde e pela longevidade característica da sociedade contemporânea4848 Skrabanek P. The death of human medicine and the rise of coercive healthism. Londres: The social affair unit; 1994.. Skrabanek observa que, mesmo que a maioria das pessoas não sofra as consequências esperadas de portar um determinado fator de risco, uma vez identificado como tal, existe um processo de reificação: o fator se torna parte constitutiva da pessoa4848 Skrabanek P. The death of human medicine and the rise of coercive healthism. Londres: The social affair unit; 1994.. Majeski e Bhavanani4949 Majeski L, Bhavanani AB. Yoga therapy: a whole-person approach to health. Filadelfia: Singing Dragon; 2020. sugerem que o yoga pode ser um antídoto a essa introjeção, atuando como ‘prevenção quaternária’, definida como proteção de danos iatrogênicos e medicalização desnecessária.
Armstrong5050 Armstrong D. The rise of surveillance medicine. Sociol. Health Illn. 1995; 17(3):393-404. chama de medicina da vigilância o saber/prática médico emergente no final do século XX, associado às DCNT, que não só alargou o saber e as intervenções para além do corpo como ampliou a temporalidade da intervenção, incluindo enfaticamente e preferencialmente o futuro, via noção de risco. Novamente, o yoga, particularmente, suas práticas meditativas, poderia romper ou ao menos suavizar efeitos físicos, mentais e emocionais de viver em um modo antecipatório de existência, em parte, atribuído ao discurso/manejo dos fatores de risco5151 Pereira LF, Tesser CD. O sofrimento futuro pode ser evitado: o yoga como estratégia na prevenção primária das doenças cardiovasculares. Physis. 2023; 33(e33049)..
O fato de o yoga, no SUS, estar inserido em um contexto biomédico não impede a circulação de discursos próprios, característicos de uma ‘racionalidade médico-yóguica’ (concepção de corpo, saúde-doença, cura etc.), formada pela bricolagem de correntes discursivas que foram se vinculando ao yoga. Em estudo observacional em serviços públicos de saúde, Silva et al.5252 Silva e Gomes LR, Almeida FQ, Galak EL. O yoga no serviço de orientação ao exercício (SOE) de Vitória: uma ascese contemporânea religiosa e corporal. Pensar a prática. 2020; 23(e56650):1-24. identificaram que o yoga apresenta um entrecruzamento de narrativas sobre autoajuda, autocuidado e amor-próprio. Contudo, importa compreender os limites do prefixo ‘auto’ dessas expressões, bem como de outros termos utilizados nas aulas, que, sem o tratamento adequado, parecem servir mais para a medicalização do yoga.
Há, também, a expressão ‘união corpo-mente’, frequentemente tida como um dos objetivos da prática. Nas aulas de yoga, é comum a fala de que a mente controla o corpo, como se fosse “uma inteligência consciente descendo de um reino superior para tomar posse de um veículo físico”5353 Watts AW. The joyous cosmology: Adventures in the chemistry of consciousness. California: New World Library; 2013.(2). Essa ideia, bastante cristã, mas que também remonta a metáforas das upaniṣad’s (como a do cocheiro [o intelecto] conduzindo os cavalos [os instintos])2121 Gambhirananda S, tradutor. Eight Upanisads: with the commentary of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 2004. (v. 1). talvez seja
uma maneira desajeitada de descrever o poder de um organismo inteligente de se controlar. Parece razoável pensar em uma parte controlada como uma coisa e a parte controladora como outra33 Figueiredo R, Paiva C, Morato M. Práticas integrativas no SUS: Yoga e Meditação. [Rio de Janeiro]: Canal Saúde Fiocruz, 2017. Vídeo: 26min 24s. [acesso em 2023 set 22]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23071.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... (2–3).
Watts5353 Watts AW. The joyous cosmology: Adventures in the chemistry of consciousness. California: New World Library; 2013. considera que o corpo é inteligente e se informa e se controla, em parte, por meio de processos conscientes e racionais. Para esse autor, a busca de equilíbrio ou união mente-corpo é uma narrativa falaciosa, ligada ao estilo ocidental de individualidade, cuja visão de espiritualidade não confronta o entendimento de sujeito, narcísico e competitivo, que sustenta a sociedade hodierna5353 Watts AW. The joyous cosmology: Adventures in the chemistry of consciousness. California: New World Library; 2013.,5454 Watts AW. Psychotherapy east & west. Nova Iorque: Pantheon Books; 1963.. Para Śaṅkara, que desconhece a expressão ‘união corpo-mente’, o corpo possui tanta verdade intrínseca quanto a expressão figurada “espaço dentro de um copo”1919 Gambhirananda S, tradutor. Brahma Sūtra Bhāṣya of Śaṅkarācārya. Calcutá: Advaita Ashrama; 1983.(51). O valor de ambos, copo e corpo, assumem positividade empírica por estarem em relação com uma entidade verdadeira, espaço e ātmā, respectivamente. Em consonância com a tradição2323 Arsha Vidya Research & Publication. Trust. Teachings of Swami Dayananda [áudio]. Tamilnadu: Arsha Vidya Research & Publication. Trust; 2010. [acesso em 2023 ago 23]. Disponível em: https://playgoogle.com/store/apps/details?id=com.avrpt.teachingsofswamidayananda&hl=en&gl=US&pli=1.
https://playgoogle.com/store/apps/detail... , poder-se-ia dizer que o corpo possibilita (ou, mesmo, é) a transacionabilidade da consciência.
Enquanto autores aventam que o yoga se assemelha a uma prática ascética clássica, no sentido foucaultiano, capaz de produzir uma forma diferente de ser e de conduzir a vida de forma mais sensível e cuidadosa com o outro e consigo5555 Pantoja PD, Chiesa GR. Yoga: um método-chave para o cuidado de si e do outro. Physis. 2022; 32(3):1-18.,5656 Rabello EG, Yonezawa FH, Louzada APF. O yoga como prática de áskesis. Motriviv. 2018; 30(55):208-26., Silva et al.5252 Silva e Gomes LR, Almeida FQ, Galak EL. O yoga no serviço de orientação ao exercício (SOE) de Vitória: uma ascese contemporânea religiosa e corporal. Pensar a prática. 2020; 23(e56650):1-24. argumentam que a prática converge para uma ‘ascese contemporânea’, expressão utilizada por Ortega5757 Ortega F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cad. Saúde Colet. 2003; 11(1):59-77. para se referir aos procedimentos de cuidado corporal (e.g. fitness), médico (e.g. monitoramento da pressão arterial) e estético voltados para a construção, descrição e justificação de si (e.g. ‘estou fora do peso’, ‘sou hipertenso’) e para a formação de identidades somáticas. Diferentemente das asceses clássicas, direcionadas para a transcendência do corpo e o bem comum, as asceses contemporâneas são apolíticas e individualistas, voltadas para a adaptação à norma e para a constituição de modos de existência conformistas5757 Ortega F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cad. Saúde Colet. 2003; 11(1):59-77..
Essas análises apontam para a ambiguidade do yoga com relação ao processo da medicalização da vida, discutida desde a década de 19705858 Pereira LF, Rech CR, Morini S. Autonomia e Práticas Integrativas e Complementares: significados e relações para usuários e profissionais da Atenção Primária à Saúde. Interface - Comunic., Saúde, Educ. 2021; 25(e200079):1-17.. Por um lado, o yoga atua como um freio a esse processo, uma vez que não depende da indústria farmacêutica e que enfatiza os recursos internos da pessoa. Por outro lado, o yoga no SUS se insere nos mesmos discursos tecnocientíficos impulsionadores da medicalização. E tal lógica tende a acentuar-se à medida que a medicina preventiva avança para uma medicina preditiva, dependente da tecnologia e da ‘clusterização’ de dados, abarcando marcadores das ciências ‘ômicas’ emergentes (genômica, metabolômica etc.). Por exemplo, o estudo de Malhotra et al.5959 Malhotra V, Takare A, Bharshankar R, et al. Efeito do Yoga na taxa de pulso e saturação de oxigênio: análise dos parâmetros psicofisiológicos. Cad. Naturologia Ter. Complement. 2020; 9(17):9-20. utilizou dispositivos avançados para verificar a eficácia de um programa intitulado ‘Módulo de yoga para o coração saudável’, em Bhopal, na Índia.
Segundo a tradição investigada, a saúde do coração envolveria um processo de natureza subjetiva e reflexiva sobre as causas da reificação e de introjeção de atributos, como, à guisa de exemplo, dos chamados fatores de risco (i.e., de que são entidades reais, possuidoras de relações determinísticas com certos desfechos e que compõem a ‘minha’ pessoa), que são sinalizadores de enfermidades e potenciais condicionantes da experiência humana. Na visão das upaniṣad’s, a saúde do coração remete mais a uma condição existencial – da ignorância do ātmā – e seus efeitos principais, como confusão identitária, desejos, aversões e medos, do que aos fatores de riscos.
O significado da expressão ‘nós do coração’ ressoa com os achados do estudo de Good6060 Good BJ. The heart of what’s the matter the semantics of illness in Iran. Cult. Med. & psyc. 1977; 1(1):25-58. acerca da ‘angústia do coração’ (‘heart distress’), uma condição popular no Irã. Ao analisar a rede semântica associada a essa expressão, Good6060 Good BJ. The heart of what’s the matter the semantics of illness in Iran. Cult. Med. & psyc. 1977; 1(1):25-58. constata que a concepção biomédica das doenças como entidades naturais é insuficiente para a consideração desse tipo de sofrimento. Daí a necessidade de uma reavaliação da interrelação entre a terminologia médica e o fenômeno da doença, de modo a evitar a redução da primeira a uma mera função descritiva.
Esse e outros estudos antropológicos têm enfatizado a importância crucial da distinção entre doença (disease) e enfermidade ou adoecimento (illness) na prática e pesquisa médica. Enquanto a doença (disease) é compreendida como um desajuste/disfunção nos processos biológicos/psicofisiológicos, a enfermidade/ adoecimento (illness) engloba as respostas subjetivas, interpessoais e culturais à doença ou ao desconforto. A enfermidade/adoecimento (illness) é moldada por fatores culturais que influenciam a percepção, a rotulagem, a explicação e a valoração da experiência de sofrimento, processos intrincadamente imersos em uma complexa teia familiar, social e cultural6060 Good BJ. The heart of what’s the matter the semantics of illness in Iran. Cult. Med. & psyc. 1977; 1(1):25-58.,6161 Kleinman A, Eisenber L, Good BJ. Culture, illness, and care: clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Annals of inter. medi. 1978; 88(2):251-8..
Além de convergir com parte da rede semântica popular associada ao conceito de coração, acredita-se que a exposição dos fundamentos ontológicos da tradição védica (incluindo a contraparte sânscrita do ‘coração’), que apontam para a irredutibilidade do princípio subjetivo e que questionam a realidade autônoma dos upādhi’s, poderia, no contexto de um grupo de yoga no CS, servir de prevenção quaternária, no sentido de atenuar ou evitar comuns efeitos deletérios da introjeção de fatores relacionados ao estilo de vida (e.g., ‘sou sedentário’), a características físicas (e.g., ‘sou obeso’), fisiológicas (e.g., ‘tenho pressão alta’), moleculares etc. advindas do processo de medicalização da prevenção. Abre-se aí a oportunidade para outros yogas, assemelhados não a uma atividade física/prática corporal, mas a discussões de cunho filosófico-reflexivo, que poderiam enriquecer e ser enriquecidas pelas conhecidas técnicas do yoga. Prevê-se que tais discussões atuariam sinergicamente com estratégias preventivas já utilizadas no CS, redutoras de risco cardiovascular (como grupos de tabagismo, de reeducação alimentar etc), além de outras desejáveis e mais potentes, em abordagem populacional e societal, conforme defendeu Geoffrey Rose6262 Rose G. Strategy of prevention: lessons from cardiovascular disease. Bmj Brit Med J. 1981; 282(6279):1847-51..
Considerações finais
No contexto de inserção das Pics no SUS, este estudo destacou a importância de aprofundar a reflexão filosófica sobre as práticas adotadas, especialmente no que diz respeito ao yoga. O estudo identificou que, na tradição das upaniṣad’s, conforme comentada por Śaṅkara, a palavra ‘coração’ apresenta um caráter ontológico, pois aponta para um princípio único, o Eu (ātmā). Para ‘conhecer’ esse princípio, essa literatura propõe yoga: um processo introspectivo e discriminativo entre o real e o aparente que visa à eliminação de noções errôneas que o sujeito tem sobre si. Também, o estudo identificou um significado pouco explorado de yoga, desconhecido no SUS: como artifício, da ordem do discurso. Tal yoga poderia, por meio da falseabilidade dos ‘adjuntos limitantes’, servir como prevenção quaternária, contrapondo-se ao processo de reificação e de introjeção dos fatores de risco, o que é significativo, devido à promessa da medicina preventiva de perfilar bioidentidades com base em marcadores moleculares de risco.
O yoga ainda é pouco explorado enquanto atividade centrada na e pela palavra, envolvendo autorreflexão, considerando os caminhos desse saber na ocidentalização. Há de se considerar, também, a influência da ideologia neoliberal na sua conformação e popularização. Outrora, fora estabelecido em um contexto hermenêutico-dialógico, entre mestre e discípulo, e agora é formatado em aulas práticas, com narrativas espirituais ajustadas à lógica do mercado6363 Jain AR. Neoliberal yoga. In: Newcombe S, O’Brien-Kop K, organizadores. Routledge Handbook of Yoga and Meditation Studies. Londres: Routledge; 2020. p. 51-62.. Assim como Latour6464 Latour B. Júbilo ou os tormentos do discurso religioso. São Paulo: Ed. Unesp; 2020.(31) fala sobre os enunciados religiosos, as upaniṣad’s “não pretendem transportar informações, mas modificar a quem se dirige”. Ao final do projeto soteriológico, o estudante deve constatar que “o espaço do coração tem a mesma magnitude que o espaço total”1717 Jha G, tradutor. The Chāndogyopaniṣad: A Treatise on Vedānta Philosophy Translated into English with the Commentary of Sankara. Puna: Oriental Book Agency; 1942.(416).
Deixemos para os condutores dos grupos de yoga no SUS o desafio de vislumbrar e implementar outros yogas, se não voltados para a liberação radical do senso de limitação, ao menos para o enfrentamento dos problemas do cotidiano de pessoas e comunidades.
- Suporte fnanceiro: o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001 e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) –processo nº 313822/2021-2
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Abr 2024 - Data do Fascículo
Jan-Mar 2024
Histórico
- Recebido
06 Abr 2023 - Aceito
03 Out 2023