RESUMO
Este estudo objetivou compreender a experiência do curso de Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob a ótica dos educandos. Foi realizada uma pesquisa qualitativa por meio de entrevistas semiestrutu-radas feitas com estudantes do curso (n = 20). Os dados foram interpretados pela análise de conteúdo temática de Bardin. Os resultados compuseram três categorias temáticas: a Pedagogia da Formação, que apresenta a compreensão das estratégias formativas e metodológicas do curso; a Pedagogia do Encontro, que traz as potências que se fizeram no encontro entre as diversidades; a Pedagogia do Movimento, que levanta as implicações do curso para a transformação pessoal e profissional dos participantes. A formação apresentou-se como um potente instrumento de transformação de perspectivas e de práticas, em que o encontro atuou como via de articulação política e de cuidado à saúde.
PALAVRAS-CHAVE
Educação; Saúde pública; Sistema Único de Saúde; Ensino
ABSTRACT
This study aimed to understand the experience of the Specialization course in Popular Health Education in the Promotion of Healthy and Sustainable Territories at Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), from the student’s perspective. A qualitative research was carried out through semi-structured interviews with students from the course (n = 20). Data were interpreted by Bardin’s thematic content analysis. The results comprised three thematic categories: the Pedagogy of Training, which presents the understanding of the training and methodological strategies of the course; the Pedagogy of the Encounter, which brings the powers that have been made in the encounter between diversity; the Pedagogy of Movement, which raises the implications of the course for the personal and professional transformation of the participants. Training presented itself as a powerful instrument for transforming perspectives and practices, in which the meeting acted as a means of political articulation and health care.
KEYWORDS
Professional education; Public Health; Unified Health System; Teaching
Introdução
A Educação Popular em Saúde (EPS) consolida-se enquanto campo de construção do conhecimento e de prática em saúde desde os anos 1960 pela América Latina. Contudo, sua história antecede esse período, uma vez que, no começo dos anos 1950, ela começa a ser construída a partir da perspectiva de educação popular de Paulo Freire, da produção de processos críticos, participativos e emancipatórios, aliada ao desenvolvimento de uma medicina social e comunitária, desenvolvida como resistência no período da ditadura militar no Brasil11 Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde, seus caminhos e desafios na realidade atual brasileira. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Educação Popular em Saúde: desafios atuais. 1. ed. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32. (Grupo Temático de Educação Popular em saúde).,22 Morel APM. Da educação sanitária à educação popular em saúde: reflexões sobre a pandemia do coronavírus. Revista estudos libertários. 2020; 2(3):30-8.,33 Vasconcelos EM, Cruz PJSC, Prado EV. A contribuição da Educação Popular para a formação profissional em saúde. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):835-8..
A EPS levou a práticas articuladas de saúde e educação baseadas em movimentos de autonomia e participação da população, inspirados nos movimentos da educação popular. Convocados pela situação de extrema vulnerabilidade e condições precárias da população, estudantes e professores universitários saíram da academia e foram até comunidades rurais e periféricas das cidades, promovendo atividades extensivas pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Comunitária, apoiados por grupos progressistas da Igreja Católica, seguidores da Teologia da Libertação44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190..
Assim, profissionais e movimentos populares do campo da saúde levaram os questionamentos da educação popular para as questões da área da saúde, constituindo o que ficou conhecido como EPS, que influenciou a própria proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), na década de 198022 Morel APM. Da educação sanitária à educação popular em saúde: reflexões sobre a pandemia do coronavírus. Revista estudos libertários. 2020; 2(3):30-8.. A EPS vincula-se aos próprios princípios e diretrizes do SUS, com vistas a constituir uma saúde sob a perspectiva da garantia de direitos, da justiça social, da integralidade e da participação social.
Em 2013, foi aprovada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEP-SUS)55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União. 20 Nov 2013.. Uma conquista das lutas populares na busca do fortalecimento do SUS e reorientação do modelo de atenção médico centrado que ainda organiza e estrutura os cotidianos do trabalho em saúde.
Entre importantes acontecimentos que impulsionaram a consolidação da PNEP-SUS, cita-se a criação da Rede Nacional de Educação Popular em Saúde, no final dos anos 1990, e, em 2003, a criação da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (Aneps), em atuação até hoje. As organizações constituíram-se como forma de organizar trabalhadores que acreditavam e trabalhavam a partir dessa perspectiva. Também, como forma de ampliar a formação do modelo para mais trabalhadores e de articular as iniciativas brasileiras a outros movimentos com objetivos comuns, espalhados pela América Latina, na luta pelas políticas sociais e pela participação do povo na construção e no controle social dessas políticas66 Bornstein VJ, Travassos RS, Lima LO, et al. A Pnep-SUS e os princípios da educação popular presentes na política. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 57-60..
Entende-se que a instituição da PNEP-SUS é apenas mais uma etapa da consolidação do modelo de EPS no SUS, o que leva a questionamentos constantes na história sobre os impactos de sua institucionalização em orgãos do governo44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190.. Ainda mais quando se vivenciam tempos difíceis de retrocessos nas políticas sociais e desmontes no SUS, como os que enfrentamos há pouco no País, tal como aponta Pedrosa44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190..
Nessa perspectiva, torna-se fundamental a problematização e reorientação da própria formação dos profissionais de saúde. A formação de profissionais é parte da luta pelo fortalecimento do SUS. Contudo, como trazem Nascimento e Oliveira77 Nascimento DDG, Oliveira MAC. A política de formação de profissionais da saúde para o SUS: considerações sobre a residência multiprofissional em saúde da família. REME rev. min. enferm. 2006; 10(4):435-439., ela ainda é majoritariamente estruturada no modelo biomédico, fragmentado e especializado, restringindo a compreensão do modelo ampliado de saúde e limitando a atuação sobre os condicionantes e determinantes de saúde das comunidades e das pessoas.
A EPS fundamenta-se em práticas horizontais e participativas, problematizando e construindo saídas para enfrentamento aos problemas de saúde de forma compartilhada entre gestão, profissionais e usuários. Para além de um método, é uma concepção de mundo voltada para a transformação do campo da saúde e de toda a sociedade. Constrói-se a partir das práticas coletivas e populares, na busca da superação das iniquidades sociais22 Morel APM. Da educação sanitária à educação popular em saúde: reflexões sobre a pandemia do coronavírus. Revista estudos libertários. 2020; 2(3):30-8..
Nesse contexto, uma das dimensões de atuação da EPS é a própria formação dos profissionais de saúde. Entre um dos seus objetivos específicos da PNEP-SUS está a contribuição para educação permanente dos trabalhadores da saúde. A política busca atuar para fortalecer a EPS enquanto campo de produção do conhecimento, a fim de fundamentar um novo modelo de prática assistencial na perspectiva da educação popular, por meio de capacitações dos profissionais de saúde55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União. 20 Nov 2013..
Dantas, Silva e Castro88 Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores(as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190205. indicam que a principal estratégia de implementação da política foi exatamente um curso de educação permanente voltado para os profissionais de saúde, o EdPopSUS, que aconteceu em três edições no País, em 2013/2014, 2015 e 2016/2018, em mais de 15 estados brasileiros. O curso ofertou vagas, em sua maioria, para Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Vigilância em Saúde, mas, também, para outros profissionais e lideranças comunitárias.
Além do EdPopSUS, citam-se, também, entre as experiências de amplitude nacional de formação, no contexto da PNEPS-SUS, o Projeto de Pesquisa e Extensão ‘Vivências de Extensão em Educação Popular e Saúde no SUS’ (Vepop-SUS) e o Curso de Formação Histórica e Política para Estudantes das Áreas da Saúde (FHP). O primeiro, realizado por meio da cooperação entre o Ministério da Saúde e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), entre os anos de 2013 e 2018, em apoio a projetos de extensão com a perspectiva da EPS. A segunda experiência foi realizada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em parceria com outras instituições de ensino superior, e propôs a realização do Curso de FHP com diálogos e reflexões sobre a importância dos espaços de formação política para graduandos, com edições em 2012 e 201499 Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195..
Em 2019, realizou-se a primeira especialização na área, o curso de Especialização e de Aperfeiçoamento em Educação Popular e Promoção de Territórios Saudáveis na Convivência com o Semiárido, uma parceria da Fiocruz Ceará, Aneps e Rede Saúde, Saneamento, Água e Direitos Humanos (RESSADH)99 Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195..
E, em 2021, a Fiocruz Brasília lançou o curso com amplitude nacional, a Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (EEPS). Realizado em parceria com o Grupo de Trabalho de Educação Popular e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (GT de EPS da Abrasco), a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde do Distrito Federal (Aneps-DF), Internacional da Esperança, Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL), a Associação Brasileira da Rede Unida, assim como grupos de pesquisa de universidades, como Universidade Federal do Piauí (UFPI), Uerj, Universidade Estadual do Ceará (Uece), Universidade de Pernambuco (UPE) e Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)1010 Escola Fiocruz de Governo. Projeto Político Pedagógico da Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis. Brasília, DF: Fiocruz; 2021..
No entanto, mesmo com a institucionalização da PNEPS-SUS, percebe-se que sua implementação não foi totalmente consolidada e que há desafios para a implantação no cotidiano dos serviços. Alguns desafios documentados da implantação da PNEP-SUS estão atrelados a falta de financiamento para as ações, dificuldade de engajamento de integrantes e entraves nos diálogos com a gestão1111 Santos MS. O processo de implantação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde na Paraíba: estratégias, desafios e perspectivas do Comitê Estadual de Educação Popular em Saúde da Paraíba. [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2020.. Assim, considerando que há uma forte relação entre educação e saúde, e visto que o SUS está organizado de acordo com os princípios supracitados, é imprescindível suscitar uma reflexão em torno do tema.
A reflexão sobre a ação é fundamento da EPS, o que torna crucial olhar para os processos experienciados, levantando as aprendizagens, fragilidades e potências do vivido. Dessa forma, este trabalho constrói-se com o objetivo de compreender a experiência de formação do curso de EEPS, sob a ótica dos próprios educandos.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, cuja finalidade foi compreender a perspectiva dos educandos sobre a experiência da EEPS, aprofundando-se na forma como eles percebem subjetivamente as suas realidades e os impactos do curso1212 Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso; 2013..
O curso supracitado foi lançado pela Escola de Governo Fiocruz, da Fundação Oswaldo Cruz, da Gerência Regional de Brasília (EFG/Gereb/Fiocruz). A primeira edição ocorreu ao longo de 2021 e 2022 na modalidade semi-presencial, em nível de Pós-Graduação Lato Sensu. Foram ofertadas quarenta vagas para trabalhadores graduados de formações acadêmicas afins e para residentes no Distrito Federal ou outro local do Brasil.
Na especialização, a metodologia adotada da práxis (ação-reflexão-ação) desenvolveu-se entre dois tempos articulados entre si: tempo-aula – quando ocorriam os encontros síncronos, em periodicidade quinzenal, às sextas-feiras à noite e aos sábados, nos períodos da manhã e da tarde, além de outras atividades teóricas remotas; e tempo-comunidade – atividades de dispersão, articulando o tempo-aula com as realidades dos educandos1010 Escola Fiocruz de Governo. Projeto Político Pedagógico da Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis. Brasília, DF: Fiocruz; 2021..
A carga horária total do curso foi de 450 horas/aula (h/a), dispostas em: 288h/a do Tempo-Aula, sendo aulas teórico-práticas e Seminários Integradores (198h/a), elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso ou Sistematização do Projeto de Interação com o Território (30h/a) e atividades de imersão em realidades, processos identitários (30h/a); e 162h/a do Tempo-Comunidade. As atividades foram desenvolvidas por meio de Trilhas Metodológicas, estruturadas de acordo com os eixos da PNEP-SUS no SUS, a saber: Participação, controle social e gestão participativa; Formação, comunicação e produção de conhecimento; Cuidado em saúde; Intersetorialidade e diálogos multiculturais. Também contou com as trilhas: Metodologia da Pesquisa Científica; Seminários Integradores; Percursos e Vivências Autogestionadas1010 Escola Fiocruz de Governo. Projeto Político Pedagógico da Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis. Brasília, DF: Fiocruz; 2021..
A amostra da pesquisa é considerada do tipo intencional e foi constituída pelos estudantes em situação regular de matrícula que estivessem frequentando o curso até a data de encerramento da coleta de dados, previamente determinada. Os critérios de exclusão foram: educandos que não estivessem regularmente matriculados; educandos em licença de saúde, atestado ou afastamento durante o período da coleta de dados; e educandos que não aceitassem participar da pesquisa.
Os dados foram coletados mediante roteiro semiestruturado, elaborado pelos pesquisadores. O instrumento contemplou uma breve caracterização dos participantes, seguida de questões norteadoras acerca da percepção do educando com relação à Especialização. O trabalho de campo foi desenvolvido ao longo do primeiro semestre de 2022, por meio da plataforma on-line Google Forms. O link de acesso ao convite da pesquisa foi disparado em grupo de comunicação virtual da Especialização (WhatsApp). Só era possível acessar o instrumento de coleta de dados após leitura e aprovação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As respostas de cada participante eram automaticamente salvas em uma planilha virtual após o preenchimento.
A análise dos dados ocorreu de acordo com a Análise de Conteúdo Temática de Bardin1313 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2020.. Inicialmente, houve uma pré-análise, que contemplou a operacionalização e sistematização intuitiva das ideias iniciais e a elaboração de um corpus da pesquisa contendo, em um mesmo documento, todas as respostas das seis perguntas norteadoras acerca da percepção do educando com relação à Especialização para análise visual e leitura flutuante do material. Após a pré-análise, o conteúdo foi explorado e codificado em unidades de registro. A unidade, nesse caso, foi o tema.
Em seguida, três categorias foram formadas: ‘a Pedagogia da Formação’, ‘a Pedagogia do Encontro’ e ‘a Pedagogia do Movimento’. As categorias foram elaboradas orientadas pela interpretação do conteúdo das respostas dos educandos e não existiam previamente à exploração do corpus. O conceito de pedagogia explorado baseia-se na definição de Pedrosa44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190., citando Carrillo, que considera a pedagogia o processo que transforma as práticas educativas em saberes e qualifica essas práticas como sendo de educação popular.
O processo desenvolveu-se a partir da interpretação e compreensão aprofundada do conteúdo das mensagens, não sendo, portanto, uma mera descrição das mensagens1414 Batista HFF, Oliveira GS, Camargo CCO. Análise de conteúdo: pressupostos teóricos e práticos. Rev. Prisma. 2021; 2(1):48-62.. Assim, as categorias foram inferidas a partir da descoberta dos núcleos de sentido que compunham as mensagens e, também, a partir do caráter qualitativo da frequência das unidades de registo, o que representou significado para as pesquisadoras1515 Cardoso MRG, Oliveira GS, Ghelli KGM. Análise de conteúdo: uma metodologia de pesquisa qualitativa. Cadernos da Fucamp. 2021; 20(43):98-111..
Destaca-se que o trabalho tem um objetivo analítico. Neste tipo de estudo, as entrevistas são analisadas a partir do tema base, que é utilizado como unidade de registro para estudar a perspectiva subjetiva, como opiniões, atitudes, valores, crenças etc.1515 Cardoso MRG, Oliveira GS, Ghelli KGM. Análise de conteúdo: uma metodologia de pesquisa qualitativa. Cadernos da Fucamp. 2021; 20(43):98-111.. Assim, essa pesquisa se volta para uma dimensão qualitativa de compreensão da experiência pelos participantes, não se configurando em um estudo avaliativo do curso.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Brasília), conforme o Parecer nº 5.292.757. A fim de preservar a identidade dos educandos, foram utilizadas letras, seguidas de números, para codificar a identidade de cada participante (P1 a P20).
Resultados e discussão
Participaram da pesquisa vinte educandos da Pós-Graduação (n = 20). Diante do levantamento das características pessoais dos participantes da pesquisa, obteve-se, como resultado, a prevalência do gênero feminino, com 80%. A faixa etária de maior porcentagem foi de 31 a 40 anos, com 40%, com idade média de 35,45 anos (DP = 7,40). Entre as formações, destacaram-se: Psicologia, com 15%, seguida por Enfermagem, Serviço Social e Pedagogia, com 10% cada. A maioria dos participantes, 60% deles, possui mais de cinco anos de formação. Quanto ao local de residência, a maior prevalência foi no Distrito Federal (45%), Bahia (15%), Pernambuco (10%) e Minas Gerais (10%), como especificado na tabela 1.
Perfil dos participantes com o número total de indivíduos por característica (N) e porcentagem correspondente ao quantitativo (%)
A seguir serão apresentadas as três categorias obtidas pelo estudo. A primeira categoria, ‘a Pedagogia da Formação’, apresenta a compreensão das estratégias formativas e metodológicas do curso. Em seguida, a categoria ‘a Pedagogia do Encontro’ traz o reconhecimento da potência do encontro e da diversidade de educandos, territórios e temáticas no curso. E a última categoria, ‘a Pedagogia do Movimento’, identifica as implicações do curso para a transformação de si e da prática.
A Pedagogia da Formação
Ao se discutir o processo formativo da Especialização, suas metodologias e estratégias foram apontadas pelos educandos como facilitadoras da incorpação dos princípios da EPS pela vivência deles no processo educacional. A experiência de formação foi vivenciada como um processo participativo, que promoveu aproximação entre os participantes com criação de vínculos, bem como aproximação com os saberes, na articulação entre os saberes teóricos com os saberes da experiência. Isso levou a transformações de perspectivas e de práticas de trabalho, promovendo a práxis, conforme se pode identificar nas falas, que trazem as potências das estratégias metodológicas:
A metodologia pedagógica das trilhas com base na PNEPS; a formação de cirandas e o formato dinâmico das aulas; uso da plataforma on-line e recursos educacionais, promovendo interação, troca e exercício da teoria e prática. (P4).
Os momentos em que discutimos sobre dialogicidade e amorosidade também me marcaram bastante, pois pude senti-los no processo de aprendizagem da especialização, transcendendo as explicações conceituais. Jamais esquecerei esses processos e os incorporei nas diversas dimenões da vida. (P17).
A EPS refere-se a processos, práticas e experiências que valorizam as classes ditas populares. O traquejo vem de criar possibilidades de transformar o que está em desacordo na formulação de questões sociais invisibilizadas pelos aspectos que foram puramente hegemônicos, patriarcais e que se mantêm dominantes, em grande parte, nos discursos1717 Cruz PJSC, Silva MRF, Pulga VL. Educação Popular e Saúde nos processos formativos: desafios e perspectivas. Interface (Botucatu). 2020; 24:e200152..
Dentro dessa perspectiva, a Pedagogia da Formação possibilita a capacidade de analisar de forma crítica a metodologia empregada na EEPS. Através da pesquisa empregada aos educandos do curso, estabeleceram-se questões sobre a visão dentro do que foi proposto pelo arcabouço teórico e prático.
Contudo, não é somente isso. A EPS, segundo Cruz et al.1717 Cruz PJSC, Silva MRF, Pulga VL. Educação Popular e Saúde nos processos formativos: desafios e perspectivas. Interface (Botucatu). 2020; 24:e200152., é colocada como uma perspectiva bastante promissora por acatar em sua metodologia visões de cunho político e epistemológico, voltadas à ação dos profissionais da área da saúde, de fortalecimento da práxis de suas atuações, bem como de aprimoramento dos movimentos sociais e de capacidade para tornar os saberes populares, meios de promoção da autonomia e de emancipação dos educandos.
A notoriedade do processo dialógico e a valorizaçao dos saberes foi constatada ao se questionar a importância da Especialização para os educandos, na pesquisa em questão, e, como resposta, o grau da relevância desse item: “É importante para consolidar a formação de profissionais com uma prática mais humana, aberta ao diálogo, que potencializam o saber do outro” (P15).
Um enfrentamento ao atual momento histórico vivenciado, em que as dimensões verticiais são hegemônicas, com estruturas patriarcais estabelecidas, situações em que o desrespeito impera e questões relacionadas aos direitos humanos são constantemente violadas, em que há afronta às liberdades, até mesmo às de expressão. Em contraposição, estão os processos dialógicos, em que todos têm poder de voz e participação. E como afirma Freire1616 Freire P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983.(43),
ser dialógico, para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na qual alguns homens sejam transformados em ‘seres para outro’ por homens que são falsos ‘seres para si’. E que o diálogo não pode travar-se numa relação antagônica.
Dentro dos aspectos da Pedagogia da Formação, um educando ressalta a potência do diálogo e da construção compartilhada no processo formativo da Especialização:
O curso é potente por ampliar conhecimento e sensibilização para arte, cultura, saúde e educação de forma humanizada, com uma metodologia participativa, inclusive que dá voz aos educandos através da coparticipação e compartilhamento de experiências. O que serve para desmantelar o pensamento normativo e hegemônico da academia e revolucionar novos saberes e fazeres, através de novos olhares e de novas metodologias possíveis, trazendo a herança do inédito viável do patrono da educação brasileira e meu conterrâneo, Paulo Freire. (P10).
Seu posicionamento transborda propriedades de falas nos aspectos da formação. A EPS trabalha para minimizar as desigualdades e o elitismo acadêmico estrutural. As questões sobre a contra-hegemonia estabelecem relações de poder muito mais profundas sobre as quais estamos comumente em concordância, mas Freire1616 Freire P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983. apresenta os processos dialógicos como potente estratégia na construção de processos de transformação, significando-os como o encontro amoroso entre as pessoas mediatizado pelo mundo e em um processo recíproco de transformação e humanização.
Nessa perspectiva, a experiência analisada aponta a EPS como estratégia e instrumento para alcançarmos um trabalho em saúde com enfoque integral, afetivo e efetivo. É modelo de educação em saúde participativo, dialógico, crítico, amoroso e emancipatório na superação de modelos com enfoque meramente informativo e autoritário, e na superação de modelos de formação dos trabalhadores de saúde privatistas e fragmentados.
A Pedagogia do Encontro
A vivência da EEPS foi apontada como promotora de encontros potentes, sistematizados na categoria ‘a Pedagogia do Encontro’. Nesse sentido, viver a EEPS caracterizou-se, também, como o ato de valorizar a exposição pessoal e coletiva à multiplicidade de temas e de culturas, por vezes, desconhecidos aos educandos: “no meu caso, como não sou da área da saúde, não conhecia nada sobre o tema, considero que muitos assuntos foi a primeira vez que acompanhei” (P3).
O contato dos educandos com “a diversidade da turma, diversidade de territórios, de categorias e campos de atuação [...] as reflexões e partilhas dos processos” (P2) foi relacionado, principalmente, ao encontro, considerado o promotor-catalisador da experiência, como trazem seus depoimentos: “compreender isso e articular com as/os colegas foi muito fortalecedor” (P20); “o compartilhamento das ideias com essas pessoas foi muito potente” (P15).
Um encontro de diversas identidades e territórios que levaram à ampliação de perspectivas e à apreensão de novos saberes da experiência pela via da reflexão:
pensar e refletir temáticas que perpassam a saúde com gentes de várias cores, de várias formações, credos e culturas, de diversas regiões do País, com uma multiplicidade de experiências e olhares. (P10).
Todavia, foram apontadas fragilidades na formação ligadas, principalmente, ao distanciamento do contato físico, majoritariamente devido ao fato de os encontros ocorrerem de modo virtual, gerando “um distanciamento e distrações que reduzem a nossa [dos educandos] capacidade de interação” (P15), bem como limitando as interações: “a educação popular traz um acolhimento muito potente, que no formato on-line não acontece de forma completa” (P11).
Além de pedagógico, o encontro fomentou tecnologias de cuidado a si e ao outro. Ele possibilitou um espaço de “amorosidade” (P4), de fortalecimento de vínculos pelo “acolhimento em tempos de desamparo e cansaço, [...] partilhar angústias e inéditos-viáveis” (P2), e de promoção “[...] poderosa para a saúde integral de todos” (P19).
Identifica-se que os saberes produzidos no processo de formação se potencilizam na dimensão do coletivo e das partilhas, mediados pela amorosidade e pelo cuidado. Traços que demarcam os processos de formação em EPS, como trazidos em outras experiências pela literatura88 Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores(as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190205.. A amorosidade reconhece e valoriza os afetos e a importância de os processos de aprendizagem serem, também, processos de vivenciar o cuidado66 Bornstein VJ, Travassos RS, Lima LO, et al. A Pnep-SUS e os princípios da educação popular presentes na política. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 57-60..
Ademais, evidenciou-se que o encontro funcionou como uma ferramenta de organização política “para construir a emancipação” (P16). O encontro também funcionou como espaço potente para disparar processos organizativos, criativos e discussões, tendo em vista a conjuntura política do momento:
o momento atual exige [...] organização do povo, que possibilite o enfrentamento dos retrocessos nos direitos e políticas sociais, e que fomente a sua capacidade inventiva e ideias transformadoras. (P17).
Segundo Bonetti, Odeh e Carneiro1818 Bonetti OP, Odeh MM, Carneiro FF. Problematizando a institucionalização da educação popular em saúde no SUS. Interface (Botucatu). 2014; 18(2):1413-26., citando Gadotti, historicamente, a emancipação humana é um dos compromissos da educação popular. Nesse sentido, vivenciar um processo formativo de EPS, em um cenário de retirada de direitos da classe trabalhadora e do abandono da PNEP-SUS pela, então, gestão do Ministério da Saúde1919 Bonetti OP. Por uma institucionalidade transformadora e contra-hegemônica: reflexões sobre o inédito viável da Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Interface (Botucatu). 2021; 25:e200660., foi um desafio e um propulsor de reflexões sobre a realidade política inserida. Isso só reforça como é imprescindível o estímulo de encontros contínuos que provoquem reflexões contra-hegemônicas e fortaleçam coletivos e movimentos de EPS.
A Pedagogia do Movimento
E a Pedagogia do Encontro promoveu movimentos. A terceira trilha dos resultados e discussões apresenta esses movimentos como enredo das aprendizagens no processo pedagógico do curso. Essas são possibilitadas, sobretudo, pelo encontro entre diversos saberes e experiências, uma dinâmica da própria EPS, que promove a construção do conhecimento pelo envolvimento e partilha entre os participantes da experiência44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190.,2020 Nespoli G. Da educação sanitária à educação popular em saúde. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 47-52.. Os relatos das educandas e educandos explicitam como a formação possibilitou deslocamentos e como isso reverberou nos seus cotidianos e em seus cenários de atuação:
Tanto no aspecto teórico quanto prático, esta formação trouxe aprendizagens significativas para o fazer em saúde que acredito e defendo. Apontou possibilidades de uma efetiva construção compartilhada com o território e de práticas emancipadoras, que problematize as situações-limites e vivencie os inéditos viáveis nos contextos reais de minha atuação. Ao mesmo tempo, trouxe-me referenciais que ajudam a dialogar e refletir sobre as práticas. (P2).
Novas maneiras de se reinventar, (re)existir, e uma resistência diante de todas as dificuldades que enfrentamos num contexto social e político fragilizado. (P13).
Compreender a área da Educação Popular em Saúde, compreender seus pilares e possibilidades de compartilhamento certamente me abriu os horizontes de forma positiva. (P20).
Nesse contexto, o curso apresentou-se como um espaço de movimento. As percepções expressas pelas educandas e educandos revelam em comum a implicação que o curso teve em seus processos formativos. Todos concordaram sobre a relevância da especialização, apontando diversas contribuições em suas trajetórias, que transformaram perspectivas e modos de atuação, a exemplo de uma das falas dos participantes:
percebo que estou mais perceptiva quanto à minha comunicação, observando para que não reproduza aspectos opressores em meu cuidado, em minha ação no mundo [...]. (P15).
O trecho citado revela a própria especificidade da EPS enquanto perspectiva transformadora de contextos e práticas. Um pensar e fazer o cuidado em saúde que supera os modelos dominantes baseados em biomedicalização, autoritarismo, medicalização e desumanização, invertendo a lógica por um modelo fundamentado nos processos educativos e nos encontros humanos11 Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde, seus caminhos e desafios na realidade atual brasileira. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Educação Popular em Saúde: desafios atuais. 1. ed. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32. (Grupo Temático de Educação Popular em saúde)..
A formação é percebida como uma oportunidade de educação permanente, de aproximação com a EPS para os iniciantes e de aprofundamento para os que já tinham outras experiências de formação na área. As mudanças nas perspectivas incidiram sobre transformações nas práticas em saúde, bem como em outros campos de atuação nos quais os educandos estão inseridos, como educação
com certeza a formação trouxe transformações para minha prática enquanto docente e educadora, aflorando reflexões antes não desenvolvidas. (P7).
E cultura:
Eu acho que o aprendizado da experiência da educação popular me mostra possibilidades em seguir no campo da cultura abordando essa temática. (P3).
Nessa perspectiva, Nespoli2020 Nespoli G. Da educação sanitária à educação popular em saúde. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 47-52. destaca que as metodologias da EPS propiciam a reflexão e a ação que questionam e problematizam criticamente a realidade, promovendo processos capazes de envolver e articular a população na organização popular em torno da luta pelo direito à saúde. Assim como, também, a luta pela educação, por melhores condições de vida, moradia, trabalho, meio ambiente e todas as dimensões indispensáveis para construção de territórios e sujeitos saudáveis.
As percepções elencadas apontam para a potência da formação como prática de educação permanente, e já foram corroboradas em outras experiências88 Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores(as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190205.,99 Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195., o que decorre da possibilidade de articulação entre os saberes da experiência e os saberes acadêmicos, oportunizando vivências interdisciplinares e o desenvolvimento da criticidade. Uma articulação entre teoria e prática. No reconhecimento e na valorização dos saberes populares, dos saberes da experiência e do cuidado integrativo:
Nasci com a ajuda de uma parteira, mas minha formação focada no modelo biomédico me fez acreditar que isso era algo que não deveria mais acontecer, que a hospitalização é o melhor caminho. Conhecer a história dessas mulheres e o quanto eram e são importantes nos territórios me fez romper esse preconceito e valorizar essa profissão que ainda não tem o seu devido reconhecimento. (P6).
Na escuta e no diálogo com as realidades. Um fazer contextualizado e crítico:
Através de uma escuta mais atenta às pessoas dos meus territórios e um diálogo mais convergente de acordo com as experiências de cada um do território. (P11).
A especialização me fez conhecer novos métodos e formas de enxergar a saúde pública, quebrando tabus e preconceitos em relação a algumas práticas tradicionais e aprendendo a valorizar o conhecimento tradicional. (P6).
Na reorientação de perspectivas e fazeres:
A partir dos aprendizados, eu treino o meu olhar pra mudar a forma como enxergo o mundo, as coisas, as pessoas, os animais, o território, pra, a partir desse olhar, observar e aprender a me humanizar e ter sensibilidade para tomadas de decisão. (P10).
Na incorporação dos princípios norteadores da EPS nos seus cotidianos, seja nos serviços de saúde:
[...] uma atuação mais amorosa, valorizando os saberes dos sujeitos dentro dos territórios, inclusive com o público hospitalar. (P5).
Ou na comunidade:
[...] tenho tentado praticar no território, junto ao usuário, a prática da amorosidade e valorização do conhecimento popular. (P6).
Em diversas situações da vida:
jamais esquecerei esses processos, e os incorporei nas diversas dimensões da vida. (P17).
As percepções acima, apresentadas pelos participantes, podem indicar que as educandas e os educandos foram incorporando os elementos da EPS na prática. Entre eles, pode-se destacar o diálogo, a amorosidade, a problematização, construção compartilhada do conhecimento, emancipação, compromisso com a construção do projeto democrático e popular e a construção compartilhada do conhecimento66 Bornstein VJ, Travassos RS, Lima LO, et al. A Pnep-SUS e os princípios da educação popular presentes na política. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 57-60..
As contribuições do curso na formação técnica, ética e crítica do fazer saúde seguem implicações evidenciadas em outras experiências de formação baseadas na perspectiva da EPS, reforçando a relevância da EPS como referencial da formação em saúde88 Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores(as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190205.,99 Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195..
Quando ingressei na especialização, esperava conseguir fazer grupos com a população na perspectiva da educação popular. Hoje percebo que isso está muito além de uma ação pontual, é uma maneira de vivenciar a prática no território, conseguir ter sensibilidade para acolher as diversas demandas dos participantes e perceber qual a bagagem e necessidade daquele usuário que busca ou não o serviço de saúde. Compreendendo que por trás das demandas de saúde existe todo um contexto no qual o usuário está inserido e que vivências, crenças, condições sociais e diversos outros aspectos são, sim, parte de sua saúde. Me perceber como ser complexo e perceber a comunidade com esse olhar tem me transformando em uma profissional mais humanizada. (P18).
Assim, a Especialização em referência qualifica a formação permanente em saúde, permitindo caminhos e produção de percursos para a práxis. Dessa forma, colabora, também, diretamente, para o fortalecimento do próprio SUS, capacitando profissionais para uma produção de saúde fundamentada nos pressupostos da EPS, do diálogo, da amorosidade, da problematização, da construção compartilhada e da emancipação.
Os achados apontam, também, respostas em torno dos questionamentos que a literatura expõe sobre a sustentação do pensamento crítico da perspectiva em experiências institucionalizadas. Identifica-se, no processo, a promoção da criticidade e de ações transformadoras de realidades, contribuindo para a formação de sujeitos conscientes, críticos, ativos e criativos para o SUS44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190., como exemplificado na fala a seguir, de um dos participantes:
as potencialidades adquiridas ao longo do curso são diversas, com destaque para o desenvolvimento de visões mais críticas em relação aos trabalhos desenvolvidos dentro da minha comunidade. (P7).
Os processos de educação em saúde fundamentados na EPS constituem parte da história de luta contra modelos hegemônicos na construção de práticas de cuidado, de gestão e controle social reflexivas, humanizadas e emancipatórias11 Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde, seus caminhos e desafios na realidade atual brasileira. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Educação Popular em Saúde: desafios atuais. 1. ed. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32. (Grupo Temático de Educação Popular em saúde).. Uma perspectiva de construção compartilhada entre gestores, profissionais de saúde e usuários. O que se tece em partilhas, valorização dos saberes populares, articulados pela compreensão e interpretação crítica da realidade, mas sem deixar de se pautar em relações dialógicas e intersubjetivas que promovem encontro de saberes e de afetos. Um encontro que promove o processo compartilhado de superação das condições opressoras, na busca de uma sociedade justa, democrática, igualitária e com respeito à diversidade e à valorização das culturas tradicionais44 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190.,66 Bornstein VJ, Travassos RS, Lima LO, et al. A Pnep-SUS e os princípios da educação popular presentes na política. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 57-60.,99 Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195..
Considerações finais
A Especialização em questão promoveu um espaço importante de inovação no contexto da pós-graduação, aplicando conceitos da Educação Popular no espaço acadêmico. Também, permitiu a integração de áreas formativas variadas em um contexto horizontalizado e problematizador de aprendizado. Fomentou-se o encontro como estratégia de articulação política e de cuidado em saúde.
Embora o distanciamento social e o ensino remoto tenham sido apontados como barreiras, ressaltou-se fortemente a potência do curso em transformar a trajetória pessoal e profissional dos participantes, sobretudo na reorientação da práxis, transformando perspectivas e fazeres em educação, saúde, arte, entre outras. Assim, este estudo direciona para que sejam firmadas futuras pesquisas, em busca de compreender melhor o perfil dos egressos e o papel da formação em Educação Popular em longo prazo.
Analisar a experiência de formação do curso de EEPS sob a ótica dos próprios educandos proporcionou não apenas refletir sobre a vivência do Curso de Especialização supracitado, mas também colabora para a promoção desse novo espaço de prática de EPS no País, contribuindo para a qualificação da caminhada de consolidação da EPS na formação dos trabalhadores e no SUS.
Entre a Pedagogia da Formação, do encontro e do movimento, diversos desafios foram levantados mediante as estratégias metodológicas adotadas. É necessário avançar no acompanhamento das atividades propostas, sobretudo qualificar os espaços assíncronos. Contudo, as potências foram de maior destaque, as metodologias participativas, o encontro entre uma diversidade de territórios, saberes e experiências, que promoveram transformações de si e das práticas.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde, seus caminhos e desafios na realidade atual brasileira. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Educação Popular em Saúde: desafios atuais. 1. ed. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 19-32. (Grupo Temático de Educação Popular em saúde).
- 2Morel APM. Da educação sanitária à educação popular em saúde: reflexões sobre a pandemia do coronavírus. Revista estudos libertários. 2020; 2(3):30-8.
- 3Vasconcelos EM, Cruz PJSC, Prado EV. A contribuição da Educação Popular para a formação profissional em saúde. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):835-8.
- 4Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re)conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190.
- 5Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União. 20 Nov 2013.
- 6Bornstein VJ, Travassos RS, Lima LO, et al. A Pnep-SUS e os princípios da educação popular presentes na política. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 57-60.
- 7Nascimento DDG, Oliveira MAC. A política de formação de profissionais da saúde para o SUS: considerações sobre a residência multiprofissional em saúde da família. REME rev. min. enferm. 2006; 10(4):435-439.
- 8Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores(as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190205.
- 9Botelho BO, Cruz PJSC, Bornstein VJ, et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200195.
- 10Escola Fiocruz de Governo. Projeto Político Pedagógico da Especialização em Educação Popular em Saúde na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis. Brasília, DF: Fiocruz; 2021.
- 11Santos MS. O processo de implantação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde na Paraíba: estratégias, desafios e perspectivas do Comitê Estadual de Educação Popular em Saúde da Paraíba. [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2020.
- 12Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso; 2013.
- 13Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2020.
- 14Batista HFF, Oliveira GS, Camargo CCO. Análise de conteúdo: pressupostos teóricos e práticos. Rev. Prisma. 2021; 2(1):48-62.
- 15Cardoso MRG, Oliveira GS, Ghelli KGM. Análise de conteúdo: uma metodologia de pesquisa qualitativa. Cadernos da Fucamp. 2021; 20(43):98-111.
- 16Freire P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983.
- 17Cruz PJSC, Silva MRF, Pulga VL. Educação Popular e Saúde nos processos formativos: desafios e perspectivas. Interface (Botucatu). 2020; 24:e200152.
- 18Bonetti OP, Odeh MM, Carneiro FF. Problematizando a institucionalização da educação popular em saúde no SUS. Interface (Botucatu). 2014; 18(2):1413-26.
- 19Bonetti OP. Por uma institucionalidade transformadora e contra-hegemônica: reflexões sobre o inédito viável da Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Interface (Botucatu). 2021; 25:e200660.
- 20Nespoli G. Da educação sanitária à educação popular em saúde. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, et al., organizadores. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 47-52.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Fev 2024 - Data do Fascículo
Jan-Mar 2024
Histórico
- Recebido
12 Abr 2023 - Aceito
03 Out 2023