RESUMO
Estudo compreendeu o trabalho dos cirurgiões-dentistas da Estratégia Saúde da Família, na perspectiva da Promoção da Saúde Bucal (PSB) em território rural. Trata-se de uma investigação transversal e qualitativa. A coleta dos dados foi realizada a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com quatorze profissionais que atuavam em equipes de saúde bucal rurais do estado da Paraíba. Para compreensão e sistematização dos dados, adotou-se a análise de conteúdo temática. O referencial teórico condutor do método considerou pilares, valores e princípios da Promoção da Saúde (PS). As narrativas revelam conceitos imprecisos de PSB, restringindo-os às atividades de prevenção aos agravos bucais. Existem potencialidades e fragilidades nas ações de PSB em áreas rurais. Há desigualdades quanto às unidades de apoio e existem populações rurais sem qualquer assistência aos serviços especializados de saúde bucal. Observou-se envolvimento dos profissionais nas práticas campanhistas e nas metas com gestantes. Existem dificuldades na formação de grupo, e as ações intersetoriais são praticamente resumidas à parceria entre saúde/educação. As realidades são discrepantes frente ao apoio da gestão. Os discursos apontaram para ações de PSB capazes de produzir autoestima e melhorar a qualidade de vida, pautadas na integralidade e nos valores de solidariedade e humanização.
PALAVRAS-CHAVES
Atenção Primária à Saúde; Promoção da saúde; Saúde da população rural
ABSTRACT
This study included the work of dental surgeons of the Family Health Strategy, from the perspective of Oral Health Promotion (OHP) in rural territory. This is a cross-sectional and qualitative investigation. Data collection was performed through semi-structured interviews carried out with fourteen professionals who worked in rural oral health teams from the state of Paraíba. To understand and systematize the data, thematic content analysis was adopted. The theoretical framework that guided the method considered pillars, values and principles of Health Promotion (HP). Narratives reveal imprecise OHP concepts, restricting them to oral disease prevention activities. There are potentialities and weaknesses in the OHP actions in rural areas. There are inequalities regarding support units and there are rural populations without any assistance to specialized oral health services. Professionals’ involvement was observed in the campaign practices and in the goals with pregnant women. There are difficulties in group formation, and intersectoral actions are practically limited to the partnership between health/education. The realities are discrepant in the face of management support. The speeches pointed to OHP actions capable of producing self-esteem and improving quality of life, based on integrality and the values of solidarity and humanization.
KEYWORDS
Primary Health Care; Health promotion; Rural health
Introdução
A Promoção de Saúde (PS), a princípio, entendida como processo de capacitação das pessoas para aumentar o controle e melhorar sua qualidade de vida e saúde11 World Health Organization. The Ottawa Charter for Health Promotion. Geneva: WHO; 1986., atualmente, considera ações que transcendem o fortalecimento de capacidades dos indivíduos e o campo da saúde, por representar um amplo processo político22 Nutbeam D, Muscat DM. Health Promotion Glossary 2021. Health Promot. Int. 2021; 36(6):1578-1598.. Ações de promoção da saúde voltam-se para a mudança dos determinantes sociais da saúde, que compreendem aspectos de ordem econômica, social, cultural, política e ambiental33 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília, DF: MS; 2013.,44 Durand MK, Heideman ITSB. Social determinants of a Quilombola Community and its interface with Health Promotion. Rev. Esc. Enferm. USP. 2019; 53:e03451.,55 Abreu MHNG, Cruz AJS, Borges-Oliveira AC, et al. Perspectives on Social and Environmental Determinants of Oral Health. Int. J. Environ. Res. Public. Health. 2021; 18(24):13429..
Promover a saúde implica considerar as iniquidades que impactam diretamente o bem-estar, exigindo abordagens tanto intersetoriais quanto intrasetoriais, abrangendo esforços coletivos e individuais55 Abreu MHNG, Cruz AJS, Borges-Oliveira AC, et al. Perspectives on Social and Environmental Determinants of Oral Health. Int. J. Environ. Res. Public. Health. 2021; 18(24):13429.. Nesse contexto, reconhece-se que as populações residentes em áreas rurais são um grupo prioritário para iniciativas de promoção da saúde66 Bortolotto CC, Mola CL, Tovo-Rodrigues L. Quality of life in adults from a rural area in Southern Brazil: a population-based study. Rev. Saúde Pública. 2018; 52(supl1):1-4s.,77 Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito a saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde debate. 2018; 42(esp1):302-14.,88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520.,99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.. No âmbito intrasetorial, destaca-se a relevância das ações voltadas para a promoção da saúde bucal, visando a aprimorar as condições de saúde bucal dessas comunidades.
A Promoção da Saúde Bucal (PSB) está inserida na Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), ancorada na perspectiva ampla de saúde que transcende a atenção odontológica. A busca da autonomia dos usuários é um enfoque das diretrizes da PNSB1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: MS; 2004., assim como é um dos princípios da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.. Adicionalmente, a humanização das ações está entre as proposições da PNSB e entre os valores das políticas transversais do Sistema Único de Saúde (SUS), como a PNPS1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014. e a Política Nacional de Humanização1212 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília, DF: MS; 2004.. A articulação com outras políticas, como a de alimentação saudável, redução do tabagismo, acesso à água tratada e fluoretada, além da redução de fatores de risco para doenças bucais, é estratégia citada para alcançar PSB junto às coletividades1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: MS; 2004..
Com relação aos municípios rurais remotos brasileiros e às populações rurais no cenário do campo, observa-se que as realidades distintas demandam políticas específicas, para se garantir equidade, integralidade e resolutividade nos serviços, direitos assegurados em lei e difíceis de serem alcançados na assistência à saúde para essas populações77 Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito a saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde debate. 2018; 42(esp1):302-14.,88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520.,1313 Oliveira AR, Sousa YG, Silva DM, et al. A atenção primária à saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Rev. Gaúcha Enferm. 2020; 41:e20190328.,1414 Franco CM, Giovanella L, Bousquat A. Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território? Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(3):821-36.. Para muitas localidades rurais, a Estratégia Saúde da Família (ESF) representa a única opção de assistência na atenção primária à saúde99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.,1313 Oliveira AR, Sousa YG, Silva DM, et al. A atenção primária à saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Rev. Gaúcha Enferm. 2020; 41:e20190328.,1515 Bousquat A, Fausto MCR, Almeida PF, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev. Saúde Pública. 2022; 56:73.,1616 Oliveira AR, Pontes DRQ, Neto JHB, et al. O trabalho de enfermeiros na atenção primária à saúde rural na visão de gestores. Braz. J. Dev. 2022; 8(1):101433.. E, a respeito dos serviços de saúde bucal na ESF, apesar da expansão das equipes1717 Nascimento AC, Moysés ST, Werneck RI, et al. Oral health in the context of primary care in Brazil. Int Dent J. 2013; 63(5):237-43., ampliação do acesso e do número de procedimentos1818 Costa Junior SD, Araujo PG, Frichembruder K, et al. Brazilian Oral Health Policy: metasynthesis of studies on the Oral Health Network. Rev. Saude Publica. 2021; 17(55):105., ainda há desafios para se alcançar cobertura universal, sendo a redução de investimentos financeiros considerada um agravante para a assistência direcionada aos pequenos municípios do interior do País e às áreas rurais1717 Nascimento AC, Moysés ST, Werneck RI, et al. Oral health in the context of primary care in Brazil. Int Dent J. 2013; 63(5):237-43..
Pessoas que vivem em áreas rurais geralmente experimentam resultados de saúde adversos em comparação às populações urbanas66 Bortolotto CC, Mola CL, Tovo-Rodrigues L. Quality of life in adults from a rural area in Southern Brazil: a population-based study. Rev. Saúde Pública. 2018; 52(supl1):1-4s.,1919 Santillo PM, Gusmão ES, Moura C, et al. Fatores associados às perdas dentárias entre adultos em áreas rurais do estado de Pernambuco, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):581-90.,2020 Crouch E, Nelson J, Merrell MA, et al. The oral health status of America’s rural children: An opportunity for policy change. J Public Health Dent. 2021; 81(4):251-260.,2121 Bain LE, Adeagbo OA. There is an urgent need for a global rural health research agenda. Pan. Afr. Med. J. 2022; 43:147., devido ao acesso limitado aos serviços de saúde e à escassez de serviços especializados88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520.,2121 Bain LE, Adeagbo OA. There is an urgent need for a global rural health research agenda. Pan. Afr. Med. J. 2022; 43:147.,2222 Travassos C, Viacava F. Acesso e uso de serviços de saúde em idosos residentes em áreas rurais, Brasil, 1998 e 2003. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(10):2490-502.. No tocante aos agravos bucais, as perdas dentárias em adultos são altamente prevalentes e preocupantes, pois repercutem em impactos negativos na qualidade de vida1919 Santillo PM, Gusmão ES, Moura C, et al. Fatores associados às perdas dentárias entre adultos em áreas rurais do estado de Pernambuco, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):581-90.,2323 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Oral health of elderly people living in a rural community of slave descendants in Brazil. Cad. saúde coletiva. 2018; 26(4):425-431..
Além disso, existem outras adversidades peculiares às populações rurais, as quais extrapolam a abrangência do setor saúde e necessitam da parceria de outros setores2424 Magalhães DL, Matos RS, Souza AO, et al. Acesso à saúde e qualidade de vida na zona rural. Res. Soc. Dev. 2022; 11(3):e50411326906.. As dificuldades de acesso estão relacionadas à distância entre os equipamentos e os locais de moradia e às barreiras geográficas, com pouca ou nenhuma garantia de transporte para trabalhadores e usuários99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.,1616 Oliveira AR, Pontes DRQ, Neto JHB, et al. O trabalho de enfermeiros na atenção primária à saúde rural na visão de gestores. Braz. J. Dev. 2022; 8(1):101433.,2222 Travassos C, Viacava F. Acesso e uso de serviços de saúde em idosos residentes em áreas rurais, Brasil, 1998 e 2003. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(10):2490-502.,2525 Oliveira AR, Sousa YG, Diniz IVA, et al. O cotidiano de enfermeiros em áreas rurais na estratégia saúde da família. Rev. Bras. Enferm. 2019; 72(4):970-7.. Existem, ainda, as barreiras de linguagem ou culturais44 Durand MK, Heideman ITSB. Social determinants of a Quilombola Community and its interface with Health Promotion. Rev. Esc. Enferm. USP. 2019; 53:e03451.,77 Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito a saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde debate. 2018; 42(esp1):302-14., as quais obstaculizam o acesso às informações, com reflexos no processo de cuidar. Percebe-se, também, que as ações de caráter individual e orientadas pelo modelo médico centrado ainda são predominantes na ESF, tanto em áreas rurais como urbanas1414 Franco CM, Giovanella L, Bousquat A. Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território? Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(3):821-36.,2626 Silva NCC, Mekaro KS, Santos RIO, et al. Conhecimento e prática de promoção da saúde de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família. Rev. Bras. Enferm. 2020; 73(5):e20190362.. Há fragilidades no processo de definição da territorialidade e adscrição da população, com priorização do atendimento à demanda espontânea, sem ações de acompanhamento, principalmente nas localidades mais isoladas às sedes dos municípios99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.,1414 Franco CM, Giovanella L, Bousquat A. Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território? Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(3):821-36..
Nas áreas rurais, as ações de PS mais evidenciadas dizem respeito às práticas educativas em grupo e ao modelo campanhista, com marca de descontinuidade1414 Franco CM, Giovanella L, Bousquat A. Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território? Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(3):821-36.,2525 Oliveira AR, Sousa YG, Diniz IVA, et al. O cotidiano de enfermeiros em áreas rurais na estratégia saúde da família. Rev. Bras. Enferm. 2019; 72(4):970-7.. Ações de prevenção de doenças, viabilizadas por meio de palestras, são entendidas como PS, sendo que essa se distingue quanto aos propósitos e métodos/ estratégicos. Nessa perspectiva, é evidente que o aumento da oferta de serviços odontológicos curativos e preventivos nas áreas rurais é relevante para diminuir as urgências e hospitalizações2727 Gardiner FW, Richardson A, Gale L, et al. Rural and remote dental care: Patient characteristics and health care provision. Aust. J. Rural Health. 2020; 28(3):292-300., mas promover saúde bucal transcende essas práticas. Por isso, os aspectos de investigação das práticas de PS devem considerar muito além das atividades preventivas, e se orientar por princípios e valores como equidade, participação, sustentabilidade, autonomia, empoderamento, integralidade, intersetorialidade, governança1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.,2828 Kusma S, Moyses S, Moyses S. Promoção da saúde: perspectivas avaliativas para a saúde bucal na atenção primária em saúde. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(supl):9-19., territorialidade, solidariedade1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014. e humanização1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.,1212 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília, DF: MS; 2004., e, assim, colaborar para a emancipação humana.
Diante do exposto, este estudo se propôs a responder ao seguinte questionamento: como se dá o trabalho dos cirurgiões-dentistas que atuam nas equipes da ESF rurais da Paraíba, na perspectiva da PSB?
Material e métodos
Realizou-se um estudo qualitativo sobre o trabalho de cirurgiões-dentistas de Equipes de Saúde Bucal (EqSB) em áreas rurais da Paraíba, na perspectiva da PSB1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.,2828 Kusma S, Moyses S, Moyses S. Promoção da saúde: perspectivas avaliativas para a saúde bucal na atenção primária em saúde. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(supl):9-19.. Optou-se pela pesquisa qualitativa para melhor compreensão do trabalho em saúde bucal na ESF em áreas rurais, considerando a percepção dos sujeitos que o vivenciam e produzem nos territórios rurais2929 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Editora Hucitec; 2014..
O estudo foi desenvolvido no estado da Paraíba, região Nordeste do Brasil. Esse estado possui 56.467,242 km² e população de 4.059.905 habitantes3030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades e Estados: Paraíba. [acesso em 2023 abr 26]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pb/.
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado... . O Índice de Desenvolvimento Humano em 2010 foi igual a 0,6583030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades e Estados: Paraíba. [acesso em 2023 abr 26]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pb/.
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado... . A população coberta por Equipes de Saúde da Família (EqSF) e por EqSB representava 94,9% (em 2020) e 89,4% (em 2021), respectivamente.
Essa Unidade Federativa possui 223 municípios, os quais estão subdivididos, administrativamente, em três Macrorregiões e 16 Regiões de Saúde. Esta pesquisa teve como cenário as áreas rurais de 14 municípios localizados nas três Macrorregiões de Saúde.
Participaram do estudo cirurgiões-dentistas de EqSB rurais, há pelo menos um ano na mesma equipe. Foram excluídos os profissionais afastados por licença médica ou por qualquer outro motivo.
A inclusão dos participantes se deu na perspectiva da técnica da bola de neve3131 Dusek GA, Yurova YV, Ruppel CP. Using social media and targeted snowball sampling to survey a hard-to-reach population: a case study. Int. J. Doctoral Stud. 2015; 10:279-99.. Dessa forma, o recrutamento dos participantes deu-se de modo consecutivo, a partir da seleção dos primeiros convidados, os quais indicavam outros profissionais que atendessem aos critérios de elegibilidade. Na ausência dessa indicação, procedeu-se com busca ativa de outro cirurgião-dentista.
A coleta de dados foi realizada a partir de 14 entrevistas semiestruturadas no período de setembro a novembro de 2022. A perspectiva de entrevista adotada foi a de uma conversa entre dois sujeitos com o objetivo de dialogar sobre algumas ideias em torno do objeto do estudo, valorizando as ideias, percepções, impressões sobre o trabalho em saúde bucal em áreas rurais, assim como de PSB2929 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Editora Hucitec; 2014..
Previamente às entrevistas, houve revisão dos aspectos potenciais de investigação, considerando a percepção e as práticas de PSB1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.,2828 Kusma S, Moyses S, Moyses S. Promoção da saúde: perspectivas avaliativas para a saúde bucal na atenção primária em saúde. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(supl):9-19. no processo de trabalho do cirurgião-dentista. Nessa ocasião, o roteiro elaborado foi revisado por outro pesquisador. O segundo momento visou a testar a clareza dos questionamentos pelos pesquisadores. Assim, as questões geradoras elencadas no roteiro foram analisadas por três especialistas, sendo elas duas pesquisadoras e profissionais que atuavam em EqSB e uma pesquisadora com experiência na temática do estudo.
Após a definição do roteiro final, seguiu-se com o treinamento, que foi realizado por meio de estratégia baseada em simulação, técnica que envolveu a participação de cirurgiões-dentistas do SUS não incluídos nos participantes do estudo3232 Rabelo L, Garcia V. Role-Play para o Desenvolvimento de Habilidades de Comunicação e Relacionais. Rev. Bras. Educ. Med. 2015; 39:586-596.. As simulações foram supervisionadas por um pesquisador experiente na área de pesquisa qualitativa. Essa etapa de treinamento foi importante, também, para se testar o roteiro das entrevistas, não sendo necessário fazer ajustes ao instrumento orientador das entrevistas.
Na perspectiva de imersão no cenário e contexto da pesquisa, é importante mencionar que a pesquisadora principal possui aproximação prévia com o objeto do estudo por ter atuado como cirurgiã-dentista em equipe de saúde bucal mista da ESF.
Realizou-se contato informal com o cirurgião-dentista, por meio de um aplicativo de mensagens (WhatsApp®), para agendamento das entrevistas e envio do convite formal e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os quais foram encaminhados por meio de correio eletrônico (e-mail). Após anuência concedida, por meio da assinatura do TCLE pelo participante, a entrevista foi realizada individualmente, de forma presencial ou virtual, de acordo com a preferência do profissional. Na modalidade virtual, utilizou-se a plataforma Google Meet®. Todas as entrevistas foram audiogravadas.
Após os cumprimentos iniciais, a entrevistadora explicou os objetivos do estudo e coletou as informações sociodemográficas, seguindo-se com roteiro. Ao final, agradeceu e perguntou se o participante desejava acrescentar algo. As entrevistas não tiveram tempo preestabelecido e duraram, em média, 45 minutos. Impressões adicionais sobre os sentimentos, comportamentos e colaboração dos participantes foram registradas em um diário de campo. Essa ferramenta foi importante para uma compreensão mais reflexiva dos dados2929 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Editora Hucitec; 2014..
Respeitando-se a saturação teórica, a realização das entrevistas foi interrompida quando se constatou que a inclusão de novos elementos não era mais capaz de modificar o entendimento da teorização almejada3333 Saunders B, Sim J, Kingstone T, et al. Saturation in qualitative research: exploring its conceptualization and operationalization. Qual Quant. 2018; 52(4):1893-1907..
Todas as entrevistas audiogravadas foram transcritas por uma pessoa não envolvida na coleta. A validação da transcrição foi realizada pelo pesquisador responsável por ouvir o áudio e acompanhar a transcrição, fazendo ajustes quando necessário.
A análise dos dados empíricos considerou o seguinte referencial teórico: o modelo baseado nos pilares (equidade, participação e sustentabilidade) e nos valores (autonomia, empoderamento, integralidade, intersetorialidade e governança) da PSB2828 Kusma S, Moyses S, Moyses S. Promoção da saúde: perspectivas avaliativas para a saúde bucal na atenção primária em saúde. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(supl):9-19.; como também nos valores e princípios da PNPS1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014., os quais se assemelham aos pilares e valores da PSB, sendo alguns deles comuns.
Realça-se que, embora para fins analíticos, tenham-se categorizado os ecos que mais elucidam a presença ou ausência de determinados princípios, estes não são excludentes. Ao contrário, eles se conectam e, algumas vezes, completam. Uma mesma ação pode e deve ser orientada por mais de um princípio.
Para análise dos dados, adotou-se a Análise de Conteúdo com abordagem temática3434 Bardin L. Análise de Conteúdo. ed. rev. amp. São Paulo: Edições 70; 2016., na qual foram seguidas três etapas. Na pré-análise, realizou-se a exploração do material, por meio da leitura flutuante dos depoimentos. Na segunda etapa, realizou-se a leitura exaustiva do material, respeitando-se os princípios da exclusão mútua, da representatividade, da homogeneidade e da pertinência. Nessa etapa, buscou-se ressaltar os aspectos relevantes de cada questionamento, analisando-se os pontos convergentes e divergentes entre os relatos. Além disso, foram selecionadas as unidades de análise, a partir dos recortes dos depoimentos. Na terceira e última etapa, as unidades de análise foram agrupadas em categorias e interpretadas com base na literatura. Após elencadas as categorias, realizou-se uma reunião com uma terceira pesquisadora, a fim de construir a matriz final de análise.
Com o intuito de proteger a identidade do participante e assegurar o compromisso com a privacidade e a confidencialidade das informações pessoais, os entrevistados foram codificados pela letra E (entrevistado), seguida pelo número de ordem sequencial de ocorrência das entrevistas. As narrativas foram apresentadas sem correções gramaticais.
Procedimentos éticos
Este estudo foi aprovado (sob os pareceres 4.724.462 e 5.025.305) pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro Universitário de Patos. Para a sua execução, foram respeitadas as diretrizes e normas propostas pelas Resoluções nº 466/20123535 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. 13 Jun 2013; Seção I:59., nº 510/20163636 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. Diário Oficial da União. 24 Maio 2016; Seção I:44. e nº 580/2018 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Participaram deste estudo 14 cirurgiões-dentistas que compõem a EqSB rural no estado da Paraíba, sendo nove do sexo feminino e cinco do sexo masculino. As idades variaram de 26 a 44 anos. Quanto ao tempo de atuação na equipe, houve variação de 1 a 14 anos.
Oito participantes tinham vínculo de servidor estatutário e seis eram profissionais contratados. Sobre atuação em outros serviços odontológicos, do total dos participantes, apenas um não complementava a renda com outro vínculo. A maioria dos entrevistados conciliava suas atividades no serviço público com as realizadas nos serviços privados. Todos possuíam carga horária semanal de 40 horas, sendo o trabalho desenvolvido em quatro dias da semana, em alguns relatos, pois o quinto dia útil se destinava às atualizações em plataformas digitais, como estratégia de educação permanente em saúde.
Os resultados foram agrupados em seis categorias: (1) Percepção de Promoção de Saúde Bucal; (2) Humanização e Solidariedade nas Ações; (3) Equidade e Integralidade na Atenção à Saúde Bucal; (4) Autonomia e Empoderamento dos Usuários e Cuidadores nas Decisões em Saúde Bucal; (5) Intrassetorialidade e Intersetorialidade nas Ações de Saúde Bucal; (6) Governança e Sustentabilidade nas Ações de Saúde Bucal.
Percepção de Promoção de Saúde Bucal
As narrativas apontam para relatos imprecisos de PSB, com tendência a referi-las como atividades de prevenção aos agravos bucais. A maioria das narrativas reflete a realização de palestras com transmissão técnica de conhecimentos para a população, e não encontro educativo com a população como estratégia de translação do conhecimento, como requerido pela PS (quadro 1).
Unidades de análise das categorias ‘Percepção de Promoção de Saúde Bucal’ e ‘Humanização e Solidariedade nas Ações’ e depoimentos dos participantes
Apesar da tendência de associar a PSB exclusivamente à prevenção, identificaram-se ecos que suplantam esse entendimento (E3, E4 e E11), os quais, mesmo se referindo aos métodos preventivos para evitar o adoecimento, agregaram, também, preceitos como autonomia dos usuários, qualidade de vida e ações irrestritas ao campo da saúde (quadro 1).
Humanização e Solidariedade nas Ações
Melhorar a autoestima e a qualidade de vida dos usuários, com práticas pautadas na integralidade do cuidado, foram benefícios identificados nas falas sobre reabilitação bucal (E2 e E6) (quadro 1). O ‘se colocar no lugar do outro’ para tentar resolver os problemas de saúde bucal destaca-se como principal valor de solidariedade. O direito básico de realização de uma tomada radiográfica, anteriormente à realização de exodontia, pode nunca ter sido ofertado a um trabalhador rural, segundo o discurso de um dos entrevistados (E1) (quadro 1). E, para além desse direito, a indicação da radiografia, previamente à realização do procedimento cirúrgico, é uma medida não apenas de protocolo, mas de segurança, tanto para o paciente quanto para o profissional.
Equidade e Integralidade na Atenção à Saúde Bucal
A equidade das ações foi compreendida na perspectiva da prioridade do atendimento, identificada nos grupos com maiores vulnerabilidades e nas ações direcionadas ao enfrentamento do câncer bucal. Os cirurgiões-dentistas se reportaram às palestras direcionadas e buscas ativas em grupo de fumantes e em população de agricultores sem qualquer proteção à radiação solar. As narrativas revelam iniquidades quanto à disponibilidade de unidades de apoio ou satélites (mencionadas nos depoimentos como âncoras) para comunidades rurais de mesmo município (quadro 2).
Unidades de análise da categoria ‘Equidade e Integralidade na Atenção à Saúde Bucal’ e depoimento dos participantes
A respeito da integralidade das ações, percebeu-se ampla desigualdade da oferta dos serviços para os diferentes territórios rurais. Se, para algumas populações, existe rede de apoio resolutiva na atenção secundária, representada pelos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), para outras, inexiste qualquer pactuação que venha a garantir o mesmo direito e a respeitar o mesmo princípio. Nas localidades onde não há referência para
CEO, os profissionais mencionaram indicar serviços vinculados a instituições de ensino superior em municípios próximos, porém, sem nenhuma garantia de atendimento (quadro 2).
Autonomia e Empoderamento dos Usuários e Cuidadores nas Decisões em Saúde Bucal
Compreendem-se nos discursos as ações dos profissionais dirigidas à capacitação de usuários e/ou cuidadores para a tomada de decisões conscientes sobre suas vidas e de seus dependentes, a fim de ressignificarem ou ampliarem as ações com vistas à PSB. Como consequência da efetividade dessas ações, tem-se a promoção da autonomia do sujeito como agente ativo de seu cuidado, mas não único responsável; daí, também se identificam nas vozes dos cirurgiões-dentistas o incentivo e o apoio às gestantes para a realização de pré-natal odontológico (quadro 3).
Unidades de análise da categoria ‘Autonomia e Empoderamento dos Usuários e Cuidadores nas Decisões em Saúde Bucal’ e depoimentos dos participantes
O estímulo ao empoderamento foi percebido nas vozes dos cirurgiões-dentistas, principalmente na atenção voltada aos grupos de gestantes e fumantes/agricultores. Destaca-se que uma comunidade empoderada tem condições de fazer escolhas saudáveis e reivindica dos setores governamentais o cumprimento das suas responsabilidades.
Intrassetorialidade e Intersetorialidade nas Ações de Saúde Bucal
O princípio da intrassetorialidade tange à desfragmentação da atenção a partir de redes cooperativas e resolutivas no mesmo setor1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014. como orientador das práticas dos cirurgiões-dentistas e se materializou nos relatos dos cirurgiões-dentistas que indicaram a parceria dos profissionais na discussão de casos, no planejamento das ações e na pactuação de estratégias para consecução de metas definidas no Programa Previne Brasil. Além disso, existe o envolvimento da equipe nas campanhas e/ou atividades educativas, envolvendo linhas de cuidado, como saúde do adolescente, saúde do homem, saúde da mulher e saúde mental, com narrativas que expressam dificuldades de formação de grupos pela falta de transporte, o que acarreta desestímulo dos profissionais. O apoio de profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (Nasf) foi mencionado principalmente nos casos de auxílio psicológico no tratamento do bruxismo infantil. Nesse circuito colaborativo, tem-se, também, as ações dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na identificação das famílias mais vulneráveis e na comunicação entre os profissionais e os usuários, colaborando de forma decisória para a promoção da equidade, outro princípio da PSB (quadro 4).
Unidades de análise da categoria ‘Intrassetorialidade e Intersetorialidade nas Ações de Saúde Bucal’ e depoimentos dos participantes
Os relatos também denotam o potencial da intersetorialidade na parceria da saúde e da educação para o Programa Saúde na Escola (PSE). Apesar disso, as falas sinalizaram desigualdades nas ações do PSE quanto às atividades realizadas. A maioria dos discursos revelou atividades pontuais, sem acompanhamento, não abrangentes a todas as crianças e marcadas pela dificuldade de transporte dos profissionais. O uso do transporte escolar gratuito pelos usuários de áreas rurais mais afastadas da Unidade de Saúde da Família (USF) foi apontado como meio importante de deslocamento. Houve menção sobre o apoio de setor do desenvolvimento/assistência social, por meio do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) (quadro 4).
Governança e Sustentabilidade nas Ações de Saúde Bucal
Nessa categoria, as análises referiram-se ao apoio, ou à falta dele, da gestão local em manutenção, infraestrutura, condições de trabalho, valorização dos profissionais e perspectivas futuras. As falas também fizeram referência às gestões dos âmbitos estadual e federal (quadro 5).
Unidades de análise da categoria ‘Governança e Sustentabilidade nas Ações de Saúde Bucal’ e depoimento dos participantes
As narrativas sugerem falta de suporte da gestão para realização de levantamentos epidemiológicos de saúde bucal e de insumos básicos para efetivar as práticas de PSB. Chama atenção a falta de água em algumas unidades. Um relato mencionou a inércia da gestão para resolver o problema da água de consumo, a qual, possivelmente, contém altos teores de fluoreto residual, diante da identificação dos casos de fluorose dentária. A falta de opção de outras fontes de água impede que a população faça escolhas quanto ao consumo da água (E10) (quadro 5).
A cobrança, por parte da gestão, para um maior número de atendimentos, aliada ao quantitativo insuficiente de instrumentais e materiais disponibilizados, foi explanada em um dos discursos (E8). A falta de pontes e as dificuldades de deslocamento dos profissionais e dos usuários, nos períodos de chuva, são problemas enfrentados pelas populações de áreas rurais. Ao se reportarem sobre a desvalorização do cirurgião-dentista nas EqSB, muitos relatos apontam para o entendimento da odontologia como uma área de ‘segunda classe’.
A respeito da gestão estadual, as iniciativas foram percebidas apenas na rede hospitalar, no que diz respeito à traumatologia e à cirurgia bucomaxilofacial. Sobre a esfera federal, os relatos de desestímulo à PNSB são apontados como reflexo da gestão nacional vigente à época das entrevistas (quadro 5).
Discussão
A PSB enfrenta desafios na ESF, pois ainda há forte propensão à adoção de modelo de doença centrado nas ações curativistas3737 Scherer CI, Scherer MDA, Chaves SCL, et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? Saúde debate. 2018; 42(2):233-46.,3838 Leme PAT, Bastos RA, Turano ER, et al. A clínica do dentista na Estratégia Saúde da Família: entre a inovação e o conservadorismo. Physis. 2019; 29(1):1-19.,3939 Leme PAT, Vedovello SAS, Bastos RA, et al. How Brazilian dentists work within a new community care context? A qualitative study. PLoS One. 2019; 14(5):e0216640.. Se existe tensão quanto ao cuidado em saúde bucal direcionado às populações socioeconomicamente desfavorecidas, com foco nos determinantes primários das doenças e desprezo às causalidades sociais mais amplas3939 Leme PAT, Vedovello SAS, Bastos RA, et al. How Brazilian dentists work within a new community care context? A qualitative study. PLoS One. 2019; 14(5):e0216640., essas dificuldades podem ser ainda mais acentuadas quando se considera a atuação das EqSF em localidades rurais4040 Soares AN, Silva TC, Franco AAAM, et al. Cuidado em saúde às populações rurais: perspectivas e práticas de agentes comunitários de saúde. Physis. 2020; 30(3):e300332.. Nesse contexto, e sabendo-se que a responsabilidade pela PSB não é uma atribuição exclusiva dos profissionais da área da saúde bucal, os resultados deste estudo compreenderam a insipiência de ações de PSB, a partir dos pensamentos, sentimentos e das experiências de cirurgiões-dentistas que atuavam na ESF em áreas rurais, de diferentes municípios, considerando a amplitude geoespacial do estado da Paraíba.
Com relação à percepção de PSB, houve tendência a caracterizá-la como sinônimo de prevenção de doenças bucais. Nesse sentido, as ações de PSB foram entendidas como sendo, exclusivamente, informações direcionadas ao paciente e à realização de palestras educativas orientadoras para mudanças de comportamento. A dificuldade em conceituar PS também foi atribuída a outros profissionais da saúde2626 Silva NCC, Mekaro KS, Santos RIO, et al. Conhecimento e prática de promoção da saúde de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família. Rev. Bras. Enferm. 2020; 73(5):e20190362.,4040 Soares AN, Silva TC, Franco AAAM, et al. Cuidado em saúde às populações rurais: perspectivas e práticas de agentes comunitários de saúde. Physis. 2020; 30(3):e300332.,4242 Serradilha AFZ, Duartel MTC, Tonete VLP. Promoção da saúde por técnicos em enfermagem, na perspectiva de enfermeiros. Rev. Bras. Enfermagem. 2019; 72(4):1034-42..
Ao se relacionar PSB como prevenção aos agravos bucais, remete-se ao modelo de práticas prescritivas, curativistas, individuais e centradas no cirurgião-dentista. Contudo, esse entendimento não foi uma unanimidade entre os relatos deste estudo. Observaram-se, também, narrativas que abordaram a concepção ampliada na direção da autonomia e da qualidade de vida como princípio e objetivo das ações. Ao citar a 8ª Conferência Nacional de Saúde, a garantia de condições dignas de vida, com integração das políticas de saúde e socioeconômicas4343 Brasil. Ministério da Saúde. Relatório Final da 1ª Conferência Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 1986., foi compreendida por um dos participantes. O conceito mais ampliado, entendendo a PS como um processo dinâmico, envolvendo a forma de viver e o direito de cidadania, também foi evidenciado pelo cirurgião-dentista em outro estudo4444 Rodrigues CC, Ribeiro KSQS. Promoção da saúde: a concepção dos profissionais de uma unidade de saúde da família. Trab. Educ. Saúde. 2012; 10(2):235-55..
A humanização e a solidariedade foram valores que apareceram nos relatos de promoção da autoestima e da qualidade de vida. Segundo a PNPS, a humanização valoriza aptidões para promover melhores condições e mais humanas, construindo práticas pautadas na integralidade do cuidado e da saúde1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.. Considerando que as perdas dentárias são evidentes no contexto rural1919 Santillo PM, Gusmão ES, Moura C, et al. Fatores associados às perdas dentárias entre adultos em áreas rurais do estado de Pernambuco, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):581-90.,2323 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Oral health of elderly people living in a rural community of slave descendants in Brazil. Cad. saúde coletiva. 2018; 26(4):425-431., a reabilitação como forma de devolver estética e função foi considerada, neste estudo, para além dos princípios da integralidade e da resolutividade. Além disso, a solidariedade é um valor de solicitude para com o próximo1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014., observado nas narrativas que abrangem o sentido de se colocar no lugar do outro, a tentativa de resolver o máximo de problemas identificados e a vontade de ofertar procedimentos básicos excludentes às populações rurais.
As falas revelaram iniquidades referentes à cobertura das áreas e ao acesso pelos usuários. Em alguns municípios, o cirurgião-dentista atuava em apenas uma unidade de referência, localizada na zona rural ou na zona urbana do município, mas, nesse caso, era responsável por cobrir apenas populações rurais a ela adscritas. Em outras situações, os profissionais eram responsáveis pela cobertura de áreas muito extensas, com até nove unidades de apoio, as quais possuíam ou não equipos odontológicos instalados. Em uma das narrativas observou-se que, além da unidade localizada da zona rural, uma sala emprestada de uma USF situada na zona urbana era usada por toda a equipe para atender, de forma improvisada, à demanda de algumas comunidades rurais, comprometendo o direito da privacidade no atendimento. A falta de privacidade foi mencionada, em outro estudo, como um dos obstáculos a serem superados na atenção à saúde em áreas rurais88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520..
Nas narrativas, pôde-se perceber que, quando não havia equipo odontológico nas unidades de apoio, o atendimento odontológico curativo era substituído por atividades coletivas, em sua maioria, realizadas em escolas. Essas atividades referiram-se às aplicações tópicas de flúor e às palestras educativas. Esse fato foi considerado uma problemática pelos usuários, corroborando a valorização mecanicista de procedimentos curativos no âmbito do consultório3939 Leme PAT, Vedovello SAS, Bastos RA, et al. How Brazilian dentists work within a new community care context? A qualitative study. PLoS One. 2019; 14(5):e0216640.. Sobre os tipos de serviço de primeiro contato em municípios rurais e remotos, outro estudo mostrou que as unidades satélites, vinculadas às USF rurais, dão suporte para as ações das equipes, entre elas, o atendimento em saúde bucal99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.. Nessas unidades e em outros espaços comunitários, os atendimentos são espontâneos e sem acompanhamento longitudinal99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020.. Há de se pensar, nas localidades rurais onde não há equipo odontológico, que o trabalho feito pelas Unidades Odontológicas Móveis4545 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.371, de 07 de outubro de 2009. Institui, no âmbito da Política Nacional de Atenção Básica, o Componente Móvel da Atenção à Saúde Bucal - Unidade Odontológica Móvel - UOM. Diário Oficial da União. 9 Out 2009. e a adoção de estratégias da odontologia de mínima intervenção, como o Tratamento Restaurador Atraumático, garantiriam o acesso e ampliariam as ações4545 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.371, de 07 de outubro de 2009. Institui, no âmbito da Política Nacional de Atenção Básica, o Componente Móvel da Atenção à Saúde Bucal - Unidade Odontológica Móvel - UOM. Diário Oficial da União. 9 Out 2009..
A respeito das ações de enfrentamento do câncer bucal, as palestras direcionadas foram reportadas, com recomendações à proteção solar dos agricultores, mas sem qualquer menção de apoio da gestão à doação de protetores solares ou labiais, por exemplo. No tocante aos grupos de fumantes, observou-se, em uma das localidades, incentivo ao combate ao tabagismo, por meio de reuniões periódicas e distribuição de adesivos. Existe a preocupação com a busca ativa das lesões, com rede de apoio para biópsias, na atenção especializada ou pactuação com instituição de ensino superior. Entretanto, existem populações rurais na Paraíba sem qualquer assistência aos serviços especializados de saúde bucal. Isso é preocupante, pois, nessas localidades, possivelmente, há inexistência de fluxos que orientem para o cuidado integral aos usuários com lesões suspeitas ou confirmadas.
Sobre as ações de enfrentamento ao câncer bucal, outro estudo reporta que a falta de serviços especializados, a insegurança no diagnóstico e o baixo envolvimento multiprofissional são as maiores objeções na ESF4646 Barros GIS, Casotti E, Gouvêa MV. Câncer de boca: o desafio da abordagem por dentistas. Rev. Enferm. UFPE. 2017; 11(11):4273-81.. Além disso, a PNSB ainda não consegue ofertar uma rede efetiva de cuidados integrais, sendo a média complexidade incapaz de absorver a demanda da ESF1818 Costa Junior SD, Araujo PG, Frichembruder K, et al. Brazilian Oral Health Policy: metasynthesis of studies on the Oral Health Network. Rev. Saude Publica. 2021; 17(55):105., comprometendo a integralidade e a resolutividade do cuidado em saúde bucal. A falta de oferta de serviços especializados e hospitalares é uma barreira de acesso para populações rurais88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520.,1313 Oliveira AR, Sousa YG, Silva DM, et al. A atenção primária à saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Rev. Gaúcha Enferm. 2020; 41:e20190328.. Algumas delas podem conseguir acesso mínimo em centro urbano próximo88 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520., e a dificuldade de estabelecer fluxo dentro da rede acaba isolando as EqSF rurais no cuidado à saúde1313 Oliveira AR, Sousa YG, Silva DM, et al. A atenção primária à saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Rev. Gaúcha Enferm. 2020; 41:e20190328..
Nas ações desenvolvidas pelos cirurgiões-dentistas e pelas equipes, enxergaram-se práticas de autonomia e estímulo ao empoderamento destinadas, principalmente, ao grupo de gestantes e fumantes/agricultores. A respeito das gestantes, o incentivo à adesão ao tratamento odontológico deve ser compreendido sob duas vertentes: o alcance das metas do Programa Previne Brasil4747 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Técnica nº 3/2022: Proporção de gestantes com atendimento odontológico realizado na Atenção Primária à Saúde. Brasília, DF: MS; 2022. [acesso em 2022 abr 26]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/financiamento/nota_tecnica_3_2022.pdf.
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab... e a sensibilização das mães na promoção de melhores condições bucais dos filhos.
Uma narrativa mostra a reivindicação da comunidade pela permanência do cirurgião-dentista no serviço, situação que denota importante expressão de empoderamento da comunidade ao reivindicar seus direitos de cidadania1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014.. Os propósitos do empoderamento social/comunitário devem capacitar os indivíduos e coletivos para atuarem sobre seus próprios problemas, dando voz aos grupos marginalizados, a partir de sujeitos reflexivos e autônomos4848 Carvalho SR, Gastaldo D. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social e pós-estruturalista. Ciênc. saúde coletiva. 2008; 13(supl2):2029-40.. No empoderamento das comunidades, os profissionais da saúde devem estimular os usuários considerando as condições socioeconômicas e culturais e os determinantes sociais das doenças55 Abreu MHNG, Cruz AJS, Borges-Oliveira AC, et al. Perspectives on Social and Environmental Determinants of Oral Health. Int. J. Environ. Res. Public. Health. 2021; 18(24):13429.,1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/ GM nº 687, de 30 de março de 2006. Revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde – PNAPS. Diário Oficial da União. 30 Mar 2014..
A respeito da intrassetorialidade, existe integração dos profissionais para atenção voltada aos grupos, no envolvimento em campanhas, na discussão dos casos, nas visitas domiciliares, com importante participação do ACS na identificação dos problemas de saúde da população e na comunicação com a equipe. As reuniões da equipe são necessárias ao planejamento, à organização das agendas e discussão de casos situacionais3737 Scherer CI, Scherer MDA, Chaves SCL, et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? Saúde debate. 2018; 42(2):233-46.. Além disso, o ACS e as visitas domiciliares são fundamentais para promoção de vínculo com a comunidade3737 Scherer CI, Scherer MDA, Chaves SCL, et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? Saúde debate. 2018; 42(2):233-46..
A cooperação interprofissional também foi mencionada na questão da saúde mental. Neste estudo, os discursos revelaram aumento do uso de psicotrópicos e casos de ansiedade nas áreas rurais. Seguindo esse pensamento, outro estudo indicou que o cuidado centrado em medicações para cuidar do sofrimento psíquico dos pacientes, em detrimento da escuta, acaba se naturalizando à demanda e ao fluxo nas USF4949 Santos JCGD, Cavalcante DS, Vieira CAL, et al. Medicalização do sofrimento psíquico na Atenção Primária à Saúde em um município do interior do Ceará. Physis. 2023; 33:e33010.. Além disso, os relatos desta pesquisa associaram o aumento de casos de bruxismo e de disfunção temporomandibular à ansiedade. Por isso, o envolvimento dos profissionais do Caps e dos Nasf (atualmente, denomina-se eMulti) faz-se necessário para promover o cuidado ampliado por meio de estratégias como consultas compartilhadas e discussão dos casos5050 Brito GEG, Forte FDS, Freire JCG, et al. Articulação entre a EqSF/AB e o NASF/AB e sua influência na produção do cuidado no contexto da Atenção Primária à Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(6):2495-2508..
Os relatos deste estudo mostraram que atividades com enfoque intersetorial são insipientes, ligadas ao setor da educação, como visto em outros estudos3737 Scherer CI, Scherer MDA, Chaves SCL, et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? Saúde debate. 2018; 42(2):233-46.,5151 Moretti AC, Teixeira FF, Suss FMB, et al. Intersetorialidade nas ações de promoção de saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal de Curitiba (PR). Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(supl1):1827-34.. Verificaram-se fragmentação das atividades, descontinuidade no planejamento e desrespeito ao princípio da universalidade, com a exclusão de crianças da mesma escola em função do turno em que estão matriculadas. Segundo Moretti et al.5151 Moretti AC, Teixeira FF, Suss FMB, et al. Intersetorialidade nas ações de promoção de saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal de Curitiba (PR). Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(supl1):1827-34., as ações desenvolvidas de forma isolada em escolas, como palestras, levantamentos epidemiológicos, escovação supervisionada, aplicação tópica de flúor, provocam efeitos positivos temporários na melhoria das condições de saúde bucal da população5151 Moretti AC, Teixeira FF, Suss FMB, et al. Intersetorialidade nas ações de promoção de saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal de Curitiba (PR). Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(supl1):1827-34..
Os discursos sobre infraestrutura fazem menção às dificuldades enfrentadas por equipes e usuários no período chuvoso, devido à falta de estradas ou pontes. As práticas intersetoriais (nesse caso, setores saúde/obras) são desafios a serem conquistados, mas possíveis, quando amparadas e estimuladas por gestões locais cuidadosas e eficientes5151 Moretti AC, Teixeira FF, Suss FMB, et al. Intersetorialidade nas ações de promoção de saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal de Curitiba (PR). Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(supl1):1827-34..
Os resultados deste estudo revelaram discrepâncias de apoio da gestão na manutenção, infraestrutura, condições de trabalho e valorização dos profissionais. Em duas localidades distintas, observou-se nos discursos o impacto social da fluorose dentária para as comunidades rurais. As condutas dos profissionais variaram desde o aconselhamento para o consumo de água mineral ou água de chuva filtrada à tentativa de resolver o problema junto à gestão. A conduta dos profissionais ultrapassa o papel de assistir e orientar o cidadão às boas práticas de saúde. Ela se reveste de postura ético-política ao se engajar na luta junto à gestão pública na reivindicação do fornecimento de água potável com concentrações adequadas de fluoretos.
O consumo de água sem tratamento e a falta de água são realidades das comunidades rurais da Paraíba a serem consideradas pelo poder público local5252 Cruz SS, Sousa FQ, Oliveira CJ, et al. Vulnerabilidade socioeconômica em comunidades rurais do município de Areia, Estado da Paraíba. Sci Plena. 2013; 9(5):1-10.. Sobre a imprecisão relacionada à etiologia da fluorose dentária, é preocupante o fato de o profissional ter paralisado as aplicações de flúor para fins preventivos ou terapêuticos, com receio de aumentar a prevalência ou severidade nas crianças, principalmente quando se observa um número significativo de cárie dentária na população infantil nos territórios rurais2020 Crouch E, Nelson J, Merrell MA, et al. The oral health status of America’s rural children: An opportunity for policy change. J Public Health Dent. 2021; 81(4):251-260..
Por fim, as outras fragilidades identificadas, como distâncias geográficas, dificuldades de transporte, carências socioeconômicas e pouca adesão dos usuários às práticas ofertadas aos grupos são reflexos das singularidades da ruralidade. Mesmo com comprometimento e motivação das EqSB nas ações de PSB, outro estudo expõe a participação dos usuários, geralmente ligada ao incentivo da gestão4141 Mattioni FC, Brochier LSB, Leão JGF, et al. A atenção primária em saúde como cenário de práticas de promoção da saúde: revisão integrativa. Rev. Context. Saúde. 2022; 22(45):1-16..
Considerações finais
Esta investigação aprofundou o conhecimento do promover saúde no trabalho de cirurgiões-dentistas que vivenciam diariamente as singularidades e os problemas das áreas rurais. Os discursos revelaram imprecisão sobre a concepção de PSB, restringindo-a a um sinônimo de prevenção aos agravos bucais. Há iniquidades em termos de oferta dos serviços odontológicos na ESF, como, também, de referência para a atenção especializada. Existem dificuldades de formação de grupos, descontinuidade das ações coletivas, desestímulos dos profissionais, ações intersetoriais insipientes e apoios diferenciados das gestões locais. Essas fragilidades são acentuadas pelas singularidades da ruralidade, com destaque para as distâncias geográficas, dificuldades de transporte, pouca acessibilidade no período chuvoso, falta de água e carências socioeconômicas. Apesar dessas adversidades, identificaram-se ações ligadas à PSB nas atividades coletivas, no trabalho em equipe, na integralidade e nas práticas para promover autonomia, empoderamento, autoestima e qualidade de vida.
Espera-se que as fragilidades identificadas possam sensibilizar gestores e servir de subsídios para reorientação dos serviços públicos de saúde bucal, a fim de assegurar melhorias nas condições de trabalho, bem como na qualidade de vida das populações rurais.
Este estudo, ao contemplar a temática PS à área da saúde bucal, buscou compreender a insipiência das ações, sob a ótica dos cirurgiões-dentistas. Na perspectiva de análises futuras voltadas à PSB, sugere-se que os ecos de gestores, usuários e outros partícipes de setores da saúde possam ser englobados na produção de novos conhecimentos.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Abr 2024 - Data do Fascículo
Jan-Mar 2024
Histórico
- Recebido
19 Maio 2023 - Aceito
19 Jan 2024