Prescrição de benzodiazepínicos em Unidades Básicas de Saúde em uma comunidade com alta vulnerabilidade social

Prescription of benzodiazepines in Health Centers in a community with high social vulnerability

André Luiz Bigal Solange Aparecida Nappo Sobre os autores

RESUMO

Os benzodiazepínicos, medicamentos mais prescritos no mundo, são extremamente úteis no manejo de patologias relativas ao sistema nervoso central, porém, nem sempre sua prescrição está relacionada com uma patologia. Este estudo buscou identificar os fatores influenciadores na prescrição de benzodiazepínicos na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde e suas consequências, em uma região com alta vulnerabilidade social. Foram utilizados os princípios de um estudo qualitativo com amostra intencional de médicos prescritores construída com a ajuda dos Informantes-Chave e com tamanho (n = 10) definido pelo princípio da saturação teórica. A coleta de dados ocorreu mediante entrevistas semiestruturadas nas unidades básicas onde os profissionais atuavam. Os temas identificados relativos aos motivos da prescrição foram: relativos ao paciente (demanda do paciente; problemas sociais); relativos ao medicamento (dependência); relativos ao prescritor (uso irracional). A prescrição do benzodiazepínico deu-se devido às baixas condições sociais dos usuários nessa região e as consequências dessa conjuntura (vulnerabilidade social, problemas angustiantes de difícil resolução). Educação permanente para profissionais, ações interprofissionais e integralidade do cuidado foram demandas dos profissionais. O problema extrapola a ação do médico, e são sugeridas políticas públicas que garantam, às populações com essas características, acesso a saúde, trabalho e educação.

PALAVRAS-CHAVES
Psicotrópicos; Atenção Primária à Saúde; Uso de medicamentos; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Vulnerabilidade social

ABSTRACT

Benzodiazepines, the most prescribed medications in the world, are extremely useful in managing conditions related to the central nervous system, however, their prescription is not always related to a pathology. This study sought to identify the factors influencing the prescription of benzodiazepines in Primary Care of the Unified Health System and their consequences, in a region with high social vulnerability. The principles of a qualitative study with intentional sampling of prescribing physicians were used, constructed with the help of Key Informants and with a size (N=10) defined by the principle of theoretical saturation. Collection took place through semi-structured interviews in the basic units where the professionals worked. The themes identified regarding the reasons for prescription were Patient-related (patient demand; social problems); Relating to medication (dependence); Relative to the prescriber (irrational use). The prescription of benzodiazepine was due to the low social conditions of users in this region and the consequences of this situation (social vulnerability, distressing problems with difficult resolution). Continuous education for professionals, interprofessional actions, and comprehensive care were demands of the professionals. The problem goes beyond the doctor’s scope of action, and public policies that guarantee such populations access to health, work, and education are suggested.

KEYWORDS
Psychotropic drugs; Primary Health Care; Drug utilization; Substance-related disorders; Social vulnerability

Introdução

Os Benzodiazepínicos (BZD) estão entre as drogas mais prescritas no mundo11 Votaw VR, Geyer R, Rieselbach MM, et al. The epidemiology of benzodiazepine misuse: a systematic review. Drug Alcohol Depend. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 200(1):95-114. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2019.02.033.
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. São drogas psicoativas extremamente úteis no gerenciamento de várias patologias, mas a sua utilização se dá principalmente pelas suas propriedades como ansiolíticos e hipnóticos22 Freire MBO, Silva BGC, Bertoldi AD, et al. Utilização de benzodiazepínicos em idosos brasileiros: um estudo de base populacional. Rev Saude Publica. 2022 [acesso em 2023 fev 1]; 56(1):10. Disponível em: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003740.
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O aumento do uso de BZD nos Estados Unidos da América é considerado alarmante e resulta em uma constante crescente de morte por overdose nos últimos 20 anos33 Liang D, Shi Y. Prescription Drug Monitoring Programs and Drug Overdose Deaths Involving Benzodiazepines and Prescription Opioids. Drug Alcohol Rev. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 38(5):494-502. Disponível em: https://doi.org/10.1111/dar.12959.
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. Ainda, o Annual Report of the Spanish National Health Services registrou, em 2022, um aumento de 22% no consumo dessa classe de drogas – 35,1 Doses Diárias Definidas (DDI) por mil habitantes/dia (71% maior que o consumo da União Europeia)44 Espanha. Ministério da Saúde. Reports Sar 2023. Annual Report on the National Health System of Spain 2020-2021. Madrid: MS; 2023. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: https://www.sanidad.gob.es/estadEstudios/estadisticas/sisInfSanSNS/tablasEstadisticas/InfAnualSNS2020_21/Annual_Report_2020_21.pdf.
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O Brasil também aparece como grande consumidor dessa classe de medicamentos, com cerca de 13 milhões de pessoas consumindo BZD todos os dias55 Zorzanelli RT, Giordani F, Guaraldo L, et al. Consumo do benzodiazepínico clonazepam (Rivotril®) no estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2009-2013: estudo ecológico. Ciênc. saúde coletiva. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 24(8):3129-40. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018248.23232017.
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, tendo o clonazepam como o BZD mais consumido no País66 Madruga CS, Paim TL, Palhares HN, et al. Prevalence of and pathways to benzodiazepine use in Brazil: the role of depression, sleep, and sedentary lifestyle. Braz. J. Psychiatry. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 41(1):44-50. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2018-0088.
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O uso para fins não médicos também deve ser considerado quando se trata dessas drogas. O relatório do ‘Global Synthetics Drugs Assessment’77 United Nations Office on Drugs and Crime. Global Synthetic Drugs Assessment 2020. Vienna: United Nation; 2020. de 2020 aponta o abuso de BZD como crescente, principalmente entre países emergentes.

Esses fatos levam à necessidade de uma prescrição criteriosa. Nesse sentido, há guias para a prescrição de BZD, as quais orientam o tratamento não farmacológico antes de iniciar um tratamento medicamentoso com essa droga, assim como recomendam o uso de BZD por curtos períodos88 Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists. Guidance for Use of Benzodiazepines in Psychiatric Practice. Melbourne: Ranzcp; 2019.. Porém, há estudos que comprovam que essas recomendações não são seguidas e que, muitas vezes, os BZD são prescritos além do necessário durante longos períodos99 Preuss CV, Kalava A, King KC. Prescription of Controlled Substances: Benefits and Risks. Treasure Island: StatPearls Publishing; 2024.. Esse fato não parece ser raro, uma vez que estudo no Brasil identificou que dos 870 pacientes entrevistados, 40% utilizavam BZD por tempo muito maior do que o recomendado1010 Fulone I, Silva MT, Lopes LC. Long-term benzodiazepine use in patients taking antidepressants in a public health setting in Brazil: a cross-sectional study. BMJ Open. 2018 [acesso em 2023 fev 1]; 8(4):e018956. Disponível em: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-018956.
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No entanto, nem sempre o consumo de BZD está associado a um diagnóstico médico. Silveira et al.1111 Silveira LC, Almeida AN, Carrilho C. Os benzodiazepínicos na ordem dos discursos: de objeto da ciência a objeto gadget do capitalismo. Saúde soc. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 28(1):107-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s010412902019180615.
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afirmam que, na atualidade, há um aumento da medicalização para tratar desconfortos psíquicos, porém, ao mesmo tempo, essa medicalização aumenta o limiar de tolerância aos sofrimentos habituais, ao mal-estar existencial, ou seja, silencia a escuta da existência e da história do ser humano. Acrescenta, ainda, que esses medicamentos colocam o indivíduo em um estado de alienação ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana1111 Silveira LC, Almeida AN, Carrilho C. Os benzodiazepínicos na ordem dos discursos: de objeto da ciência a objeto gadget do capitalismo. Saúde soc. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 28(1):107-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s010412902019180615.
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. Trata-se de uma forma preocupante de utilização de um medicamento, cujo uso, nessa conjuntura, destina-se à ‘resolução’ de problemas psicossociais1212 Tesser CD. Cuidado clínico e sobremedicalização na atenção primária à saúde. Trab. Educ. Saúde. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 17(2):e0020537. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746so100205.
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Quando se analisam as características sociais do Brasil, sobressai um país marcado pelas diferenças e vulnerabilidades sociais, nas quais se encontram indivíduos com dificuldades para lidar com as circunstâncias do cotidiano da vida em sociedade1313 Silva JJ, Bruno MAP, Silva DBDN. Pobreza multidimensional no Brasil: uma análise do período 2004-2015. Brazil. J. Polit. Econ. 2020 [acesso em 2023 fev 1]; 40(1):138-60. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-31572020-2924.
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. Essas condições sociais podem favorecer o consumo de medicamentos como os BZD1212 Tesser CD. Cuidado clínico e sobremedicalização na atenção primária à saúde. Trab. Educ. Saúde. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 17(2):e0020537. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746so100205.
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Ao considerar que a vulnerabilidade social pode ser um fator importante no consumo de BZD, o presente estudo foi desenvolvido em uma região do município de São Paulo que é caracterizada por índice alto de vulnerabilidade social e, ainda, classificada como predominantemente pobre1414 Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados. Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. 2017. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: http://www.seade.gov.br.
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Dessa forma, considerando este contexto introdutório, surge a pergunta: quais fatores, não relacionados com um diagnóstico médico, poderiam influenciar na prescrição de BZD nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) dessa região? O objetivo deste trabalho foi identificar os fatores que influenciam a prescrição de BZD em UBS no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e suas consequências em uma localidade com alta vulnerabilidade social.

Material e métodos

O entendimento do fenômeno, objeto deste estudo, depende do relato dos profissionais médicos, para conhecimento das razões que os levaram a prescrever os BZD e em que circunstâncias essa prescrição ocorreu. Nesse sentido, a metodologia qualitativa foi a mais adequada devido às suas características que permitem levar em consideração a compreensão do problema por meio de conceitos, crenças, opiniões e significados daqueles que vivenciaram o problema1515 Creswell JW. Research Design: Qualitative, Quantitative, and Mixed Methods Approaches. Los Angeles: Sage Publications; 2013.,1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002..

Construção da amostra

Inicialmente, foram selecionados dez Informantes-Chave – IC (três agentes comunitários de saúde, quatro farmacêuticos, dois gerentes, e um médico) com conhecimento do tema da pesquisa e da população em estudo1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002.. Esses IC foram convidados para uma entrevista informal, sem preparação prévia de roteiro1515 Creswell JW. Research Design: Qualitative, Quantitative, and Mixed Methods Approaches. Los Angeles: Sage Publications; 2013.. Assim, questões relevantes para o entendimento do tema emergiram durante a entrevista informal.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas, e os dados gerados foram a base para preparação do roteiro utilizado na entrevista com os participantes da pesquisa (médicos prescritores de BZD das UBS)1515 Creswell JW. Research Design: Qualitative, Quantitative, and Mixed Methods Approaches. Los Angeles: Sage Publications; 2013..

Os IC também fizeram o papel de Gatekeepers – GK (isto é, eles ajudaram a acessar a população do estudo). Os GK eram conhecidos dessa população, o que facilitou a participação dos médicos neste estudo1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002.. Cada GK identificou participantes em potencial, explicou a cada um deles o objetivo da pesquisa; e, se aceitassem o convite, eram apresentados aos pesquisadores.

Entrevistas em profundidade com os participantes da amostra foram conduzidas utilizando-se uma amostra intencional, selecionada por critérios1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002.: a) os profissionais médicos deveriam atuar na UBS há mais de seis meses (esse critério foi estabelecido para evitar profissionais recém-entrados na UBS; b) e na sua prática clínica, deveriam prescrever BZD.

A coleta de dados levou aproximadamente seis meses para ser concluída, a qual se deu nas UBS de uma região do município de São Paulo.

Tamanho da amostra

A amostra foi desenhada a partir do conceito da saturação teórica. Nela, as entrevistas ocorreram até que as informações se tornaram repetitivas. Nesse momento, denominado ‘ponto de saturação teórica’, nenhuma nova informação foi identificada1515 Creswell JW. Research Design: Qualitative, Quantitative, and Mixed Methods Approaches. Los Angeles: Sage Publications; 2013.. A ‘saturação teórica’ é uma ferramenta utilizada em investigações qualitativas a fim de estabelecer o tamanho amostral final do estudo1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002..

Na prática, o ponto de ‘saturação teórica’ é definido como a interrupção de inclusão de novos participantes quando os dados passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma redundância ou repetição, sendo irrelevante continuar com a coleta de dados1717 Weller SC, Vickers B, Bernard HR, et al. Open-ended interview questions and saturation. PLoS One. 2018 [acesso em 2023 fev 1]; 13(6):e0198606. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0198606.
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. Nesse caso, novos entrevistados da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo para o aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo coletados1717 Weller SC, Vickers B, Bernard HR, et al. Open-ended interview questions and saturation. PLoS One. 2018 [acesso em 2023 fev 1]; 13(6):e0198606. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0198606.
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Neste estudo, o ‘ponto de saturação teórica’ foi alcançado com uma amostra de dez participantes.

Instrumentos utilizados

Entrevistas semiestruturadas foram conduzidas usando um roteiro de tópicos que foi elaborado baseado na informação proveniente das entrevistas com os IC1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002.. Questões adicionais emergiram para clarificar tópicos específicos durante cada entrevista, permitindo um aumento do entendimento1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002..

O conteúdo do roteiro foi composto dos seguintes grandes temas: dados sociodemográficos, formação acadêmica, prescrição de BZD e opinião do médico sobre o uso de BZD. Após a obtenção do consentimento do entrevistado, a entrevista foi gravada com uma duração média de 30 min.

Análise de conteúdo

Cada entrevistado foi identificado por um código alfanumérico no qual o primeiro médico entrevistado foi codificado com M1, o segundo, com M2 e sequencialmente até o entrevistado M10. As entrevistas foram transcritas e lidas pelos pesquisadores e, depois, analisadas com base nos princípios da análise de conteúdo1818 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011..

Preparação do material

Procedeu-se ao desmembramento e ao reagrupamento das respostas de acordo com o tópico e a questão. Esse material deu origem a arquivos independentes para cada item do roteiro, cada um deles compreendendo respostas que corresponderam a cada integrante da amostra1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002.,1818 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.. A partir dessa informação, as categorias, em relação aos diferentes comportamentos identificados, foram construídas.

Tratamento dos resultados

Neste estudo, utilizou-se a técnica de triangulação na análise dos resultados1616 Patton Q. Qualitative Research and Evaluation Methods. London: Sage Publications; 2002., ou seja, os dois pesquisadores, de forma independente, analisaram os resultados decorrentes das entrevistas dos participantes do estudo. A técnica visou identificar a convergência das interpretações reduzindo a probabilidade de má interpretação e, dessa forma, gerar resultados mais adequados.

Partes das narrativas dos participantes são apresentadas em itálico no texto, identificadas pelo código alfanumérico explicado anteriormente.

Características do local do estudo

O presente estudo foi desenvolvido na região do extremo leste da cidade de São Paulo, na área de abrangência de uma subprefeitura pertencente à Coordenadoria Regional de Saúde (CRS) Leste da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da cidade de São Paulo.

A CRS Leste caracteriza-se por apresentar a maior proporção de idosos analfabetos, possuir o mais alto percentual de pessoas jovens (15 anos e mais) com apenas o ensino fundamental completo e o menor de adultos jovens (25 anos e mais) com ensino superior completo. Exibe a maior proporção de moradores com alguma deficiência mental ou intelectual na cidade de São Paulo e é a área com as maiores proporções de deficiência visual completa e severa, além de ser o local que tem maior dependência de programas sociais1919 São Paulo. Boletim CEInfo - Saúde em Dados. 2022. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/epidemiologia_e_informacao/index.php?p=258529.
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.

A região que foi local deste estudo foi planejada como um grande conjunto periférico e monofuncional do tipo ‘bairro-dormitório’ para deslocamento de populações atingidas pelas obras públicas.

Além dos conjuntos habitacionais que compõem a chamada ‘Cidade Formal’, existe também a ‘Cidade Informal’, construída por moradias popularmente chamadas de favelas e pelos loteamentos habitacionais clandestinos e irregulares, instalados em áreas privadas.

A identidade dos moradores dessa região está diretamente ligada ao processo de constituição do bairro, do histórico de privação de acesso a direitos e serviços e da escassez econômica1414 Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados. Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. 2017. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: http://www.seade.gov.br.
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. A localidade possui uma alta concentração populacional – 16.309,67 hab/km2 – e abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina com mais de 40 mil unidades de habitação construídas pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) e pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).

Possui aproximadamente 240 mil habitantes e é uma área de alta vulnerabilidade social, classificada pelo Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) como ‘área predominantemente pobre’, e pelo Índice de Necessidade em Saúde (INS – SMS/SP), como região de ‘alta necessidade em saúde’.

Nessa localidade, o percentual da população que é exclusivamente usuária do SUS e que não possui plano de saúde privado ultrapassa a média do município (55,6%), chegando a 71,4%1414 Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados. Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. 2017. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: http://www.seade.gov.br.
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. Além disso, a principal porta de acesso e coordenadora do cuidado no âmbito do SUS é a Atenção Básica (AB) composta por 12 UBS.

Considerações éticas

A pesquisa segue os princípios da Declaração de Helsinki2020 World Medical Association. Declaration of Helsinki – Ethical Principles for Medical Research Involving Human Subjects. Fortaleza: WMA; 2013., as diretrizes e normas da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/20122121 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 Jun 13; Seção I:59. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
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e foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (CAAE 40722714.0.0000.5505) por meio do parecer 945.240 e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SMS-SP (CAAE 40722714.0.3001.0086) por intermédio do parecer 969.509. Todas as entrevistas foram realizadas com a concordância prévia do entrevistado, após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados

Caracterização da amostra

A tabela 1 apresenta a caracterização da amostra quanto a sexo, idade, especialização médica, tempo de atuação nas UBS da região de estudo.

Tabela 1.
Caracterização da amostra de médicos prescritores de BZD no SUS da região do estudo. São Paulo, SP, Brasil

A maioria dos entrevistados era do sexo masculino (70%) e com idade entre 30 e 40 anos (60%). Os médicos generalistas representaram 40% da amostra, enquanto 30% foram de médicos especializados em medicina de família e comunidade; e o restante (30%) possuía especialização em diversas áreas (oftalmologia, ginecologia, gastrenterologia).

A maioria dos médicos entrevistados declarou trabalhar na mesma UBS por período maior que um ano. O tempo de trabalho na unidade foi considerado para garantir que os médicos da amostra tivessem conhecimento das principais queixas apresentadas pelos usuários do serviço de saúde, as quais os levaram à prescrição de BZD.

O quadro 1 apresenta as Unidades temáticas e as respectivas categorias resultantes da Análise de Conteúdo.

Quadro 1.
Análise de conteúdo com unidades temáticas e respectivas categorias

Motivos da prescrição

Observou-se que os motivos que levaram à prescrição de BZD nem sempre se relacionaram com uma patologia diagnosticada, mas a fatores diversos, dentre os quais, destacam-se aqueles provocados pelas condições de vida a que a população do local estudado está sujeita.

Demanda do paciente

Em alguns casos, a prescrição do BZD ocorreu para atender a uma solicitação do usuário da UBS. O uso crônico e abusivo, provavelmente uma dependência já instalada, levava o paciente a buscar o médico com a intenção de renovar a sua prescrição. Isso parecia ser uma situação comum na qual o médico era convencido pelo paciente a emitir nova prescrição de BZD, perpetuando o uso incorreto do medicamento.

Muitas vezes não precisam do medicamento. Tem gente que não é feliz sem o diazepam ou clonazepam. Muitos pacientes já vêm com a prescrição e quando se tenta retirar o BZD desses pacientes, eles dizem que não conseguem dormir. Existe o abuso e a necessidade, mas aqui o uso é mais abuso que necessidade. (M9).

Os profissionais entrevistados comentaram sobre a nítida insatisfação do paciente diante da negativa do médico em prescrever o BZD. Esse descontentamento provocava uma intimidação sobre o profissional que se sentia pressionado a receitar o BZD.

Tem paciente que chega na gente e diz que precisa do remédio porque tem problema ‘nos nervos’. Se a gente se nega a prescrever, ele sai batendo o pé. Algumas vezes chegam a ser agressivos. (M1).

Problemas sociais

As questões sociais e não biológicas a que a população dessa região está submetida apareceu nos discursos dos médicos como um fator recorrente para o consumo de BZD. O medicamento, nesses casos, extrapolou a sua condição de agente farmacológico, assumindo o papel de ‘bálsamo’ que amenizaria as inequidades da vida. O entorpecimento provocado pelo medicamento ajudaria a mascarar problemas.

Muitos não são problemas médicos... não é só o biológico, é também o social. Se eles têm problemas econômicos, sociais, familiares eles usam BZD para dormir e esquecer os problemas. (M3).

Os depoimentos trouxeram à tona problemas cotidianos sofridos por essa população, os quais sensibilizaram os médicos que, em função disso, excederam ao seu papel profissional. Ou seja, tentaram ‘resolver’ essas dificuldades relatadas pelo paciente, as quais fugiam à sua atuação como médicos, além de que a solução desses problemas tampouco residia na assistência médica ou no medicamento. Contudo, diante da impotência em diminuir o sofrimento daqueles que os procuravam, a prescrição de um medicamento com as características dos BZD podia ajudar a ‘amenizar’ a angústia desses pacientes.

Na grande maioria das vezes, essa medicação é prescrita tentando-se resolver um problema que é muito maior... Devido à vulnerabilidade social dessa população, inúmeros problemas acontecem dentro da família, na comunidade, isso acaba criando um sofrimento, e a gente tenta resolver o problema com a prescrição de um BZD, quando na verdade isso não vai resolver o problema, e a gente acaba tapando o sol com a peneira... mascarando a situação porque existem vários fatores que contribuem para a situação os quais fogem à nossa governabilidade. (M4).

Dependência

A dependência também despontou como causa de prescrição desses medicamentos. Os entrevistados relataram que a busca do BZD estava ligada a uma dependência decorrente do uso abusivo feito ao longo de muitos anos. Eles declararam que o medicamento, nesses casos, não visava ao tratamento de uma patologia, mas à manutenção de uma dependência a BZD claramente percebida.

O uso é preocupante. Existem muitos casos de dependência. Eu entendo que esses usuários deveriam ter acompanhamento psiquiátrico. É muita gente que usa e usa há muito tempo e acabam ficando dependentes desse remédio. (M8).

Os profissionais referiram que, diante de um caso de dependência, não se sentiam confortáveis em não prescrever o medicamento, pois, se agissem dessa forma, poderiam causar um problema imediato pela remoção do BZD. Para evitar sintomas de retirada, emitiam a prescrição devido ao quadro de dependência identificado.

Percebo com frequência nos pacientes que solicitam a receita que se trata de dependência ao BZD, mas não tem um meio de tratar isso no atendimento pontual, com consulta de poucos minutos. O paciente pode apresentar sintomas de abstinência caso eu não prescreva o BZD. Às vezes não há escolha, tem que prescrever o BZD mais uma vez. (M10).

Os médicos com especialização em medicina de família e comunidade, apesar de não estarem ligados diretamente à saúde mental, possuíam em seu discurso um conteúdo mais crítico em relação à dependência de BZD.

Não adianta esses pacientes terem somente o acompanhamento de um profissional médico, mas é necessário um acompanhamento multidisciplinar com assistente social, psicólogo e também um acompanhamento psiquiátrico rigoroso com consultas marcadas para o paciente tentar o desmame. (M6).

Esses médicos demonstraram preocupação com os pacientes que iniciavam o uso de BZD, para que não houvesse prescrição inapropriada por longos períodos, embora as ações para que essa situação não ocorresse, na prática, não foram informadas a esses pacientes.

Para pacientes com uso crônico e dependência instalada, talvez seja difícil corrigir, mas para aqueles que têm indicação e estão iniciando o uso, o tratamento precisa de uma prescrição racional seguida de muita orientação sobre a duração do tratamento e as consequências do uso indiscriminado desses medicamentos. (M5).

Uso irracional

Nos discursos, foram identificados relatos característicos de uso irracional dos BZD, de um longo período de consumo, seguidos de comentários que revelaram a limitação dos profissionais prescritores em impedir a situação. Responsabilizaram a dificuldade do serviço em fazer um acompanhamento longitudinal e contínuo, o que impossibilitou processos de educação em saúde que levariam informações ao usuário sobre as consequências do uso prolongado de BZD.

Eu sei que o uso de BZD por essa população não é racional, mas também, por uma questão da dinâmica do serviço, muitas vezes eu não consigo fazer acompanhamento do paciente... um retorno num período adequado. (M9).

Relataram que seria possível racionalizar esse uso de BZD na população da região, porém, as soluções apontadas eram remetidas a outros profissionais. Queixaram-se, ainda, da falta de profissionais especializados em saúde mental nas UBS. Devido a essa deficiência do serviço, alegaram que tiveram que absorver funções que não eram deles e para as quais não estavam preparados, por exemplo, tratar pessoas com transtornos mentais. Em função desse quadro, os médicos entrevistados, apesar de claramente terem contribuído para a manutenção do problema, não se enxergavam nesse papel.

Como saídas para esse problema, apontaram a Educação Permanente em Saúde (EPS) para os profissionais de saúde, a mudança na dinâmica do serviço e o esclarecimento para a população sobre as implicações dos BZD.

Eu acredito que se tivesse uma educação permanente dos profissionais existiria uma prescrição mais racional. O clínico entenderia que existem outras medicações que também podem ajudar no sono e que não têm esse perfil de dependência ou esse risco de provocar quedas em idosos. (M1).

Intervir na população, explicar os efeitos secundários. Promover ações educativas. (M3).

Discussão

O trabalho trouxe à tona um evento pouco explorado no Brasil, que é a prescrição de BZD em situações que se destacam pela grande vulnerabilidade social envolvida, acarretando um uso prolongado, abusivo e irracional que pode ter como desfecho a instalação de uma dependência.

Os profissionais médicos entrevistados admitiram que, diante da impotência em diminuir o sofrimento daqueles que os procuravam, entendiam que a prescrição de um medicamento com as características dos BZD poderia ajudar a ‘amenizar’ a angústia desses pacientes.

A região onde o estudo foi realizado, pelas condições que sua população apresenta – analfabetismo, pobreza e outros fatores sociais negativos –, tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano da cidade de São Paulo, com vulnerabilidades de várias naturezas2222 Baratto R. Os 20 Distritos Com Os IDH Mais Altos e Mais Baixos de São Paulo. ArchDaily Brasil. 2016 maio 2. [acesso em 2023 fevereiro 1]. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/786534/os-20-distritos-com-os-idh-mais-altos-e-mais-baixos-de-sao-paulo.
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Essas características se alinham às constatações de alguns autores, as quais ajudam a entender os motivos que levam à prescrição de BZD nessa localidade. Segundo esses autores, parece existir uma associação positiva entre analfabetismo e baixa renda, com maior consumo de BZD, constituindo-se em uma correlação perigosa, em que pessoas menos informadas e com menor poder aquisitivo acabam recorrendo ao uso de um medicamento para, muitas vezes, resolver problemas psicossociais que deveriam ser solucionados de outra forma, levando a um uso irracional preocupante2323 Maximino VS, Liberman F, Frutuoso MF, et al. Profissionais como produtores de redes: tramas e conexões no cuidado em saúde. Saúde soc. 2017 [acesso em 2023 fev 1]; 26(2):435-47. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0104-12902017170017.
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A pobreza e a falta de perspectiva de um projeto existencial que vislumbre a melhoria da qualidade de vida impõem uma luta desigual e desumana pela sobrevivência2424 Gomes MA, Pereira MLD. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Ciênc. saúde coletiva. 2005 [acesso em 2023 fev 1]; 10(2):357-63. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000200013.
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. Esse contexto nem sempre chega ao conhecimento médico, mas sim os sintomas provocados por ele, como insônia, tristeza, ansiedade, nervosismo, levando o médico à prescrição de um BZD2525 Silveira LC, Almeida AN, Carrilho C. Os benzodiazepínicos na ordem dos discursos: de objeto da ciência a objeto gadget do capitalismo. Saúde soc. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 28(1):107-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s010412902019180615.
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Nesse cenário, o BZD parece ter um papel fundamental em ‘amenizar’ o sofrimento psíquico causado. Afirmação comprovada pelo estudo de Murphy2626 Murphy KD, Lambert S, McCarthy S, et al. “You Don’t Feel”: The Experience of Youth Benzodiazepine Misuse in Ireland. J Psychoactive Drugs. 2018 [acesso em 2023 fev 1]; 50(2):121-8. Disponível em: https://doi.org/10.1080/02791072.2017.1371365.
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, o qual demonstrou que o consumo desses medicamentos pode se constituir em um método efetivo para lidar com emoções negativas, pois provoca um estado de torpor que neutraliza os sentimentos angustiantes.

No entanto, o risco de dependência desses medicamentos, nessas condições de consumo irracional, não deve ser subestimado. O uso de BZD por longo tempo está associado a várias consequências negativas, entre elas, o abuso, a tolerância e a dependência2727 Liebrenz M, Gehring M-T, Buadze A, et al. High-dose benzodiazepine dependence: a qualitative study of patients’ perception on cessation and withdrawal. BMC Psychiatry. 2015 [acesso em 2023 fev 1]; 15(1):116. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12888-015-0493-y.
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O quadro se agrava quando este estudo revela que médicos com diferentes especializações prescreviam BZD, não existindo a preponderância da atuação de especialistas nos cuidados em saúde mental (tabela 1).

Alguns autores apontam a dificuldade de profissionais, sem especialização em saúde mental, em aplicar estratégias de controle de início, continuação e retirada ou suspensão do uso de BZD2828 Sirdifield C, Anthierens S, Creupelandt H, et al. General practitioners’ experiences and perceptions of benzodiazepine prescribing: systematic review and meta-synthesis. BMC Fam Pract. 2013 [acesso em 2023 fev 1]; 14(1):191. Disponível em: https://doi.org/10.1186/1471-2296-14-191.
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, podendo se supor, nesses casos, que os BZD são prescritos para situações que não necessariamente seriam as mais indicadas e por tempos muito maiores que os recomendados.

De acordo com alguns autores, os médicos sem formação para o cuidado em saúde mental não se sentem confortáveis em prescrever medicamentos que atuam no sistema nervoso central, encontrando dificuldades na abordagem de doenças mentais2929 Neves IT, Oliveira JSS, Fernandes MCC, et al. Physicians’ beliefs and attitudes about Benzodiazepines: A cross-sectional study. BMC Fam Pract. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 20(1):71. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12875-019-0965-0.
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. Entretanto, diante da dinâmica do serviço das UBS, da limitação em estabelecer um diagnóstico e da dificuldade de encaminhar o paciente para um atendimento especializado, os médicos da amostra deste trabalho tenderam a instituir o tratamento com BZD e a prolongá-lo, muitas vezes, desnecessariamente.

Este resultado merece uma reflexão, pois não é de hoje que se detectam inconsistências na prescrição de BZD feita por profissionais não especializados em saúde mental. A integralidade do cuidado3030 Kalichman AO, Ayres JRCM. Integralidade e tecnologias de atenção à saúde: uma narrativa sobre contribuições conceituais à construção do princípio da integralidade no SUS. Cad. Saúde Pública. 2016 [acesso em 2023 fev 1]; 32(8):e00183415. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00183415.
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,3131 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017. [acesso em 2023 fev 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html.
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é um componente desafiador e inerente da AB. Para além da integração entre os serviços de saúde, ela pressupõe ações internas das unidades de saúde que extrapolam a intervenção farmacológica, como a terapia comunitária, a escuta qualificada, o emprego das práticas integrativas e complementares e a consulta compartilhada com outros profissionais de saúde. Neste estudo, os entrevistados visivelmente apresentaram dificuldades ao integrar o olhar ampliado às suas atividades clínicas, corroborando a característica desafiadora da integralidade do cuidado.

Os entrevistados também comentaram sobre a nítida insatisfação do paciente diante da negativa, por parte do médico, de prescrever o BZD. Os usuários das UBS alegavam uma imperiosa necessidade do medicamento, em geral, devido a um uso abusivo detectado pelo médico. Contudo, a pressão sobre o médico feita pelo paciente parece ter tido efeito, pois, apesar da constatação de um uso irracional, o BZD era prescrito, contribuindo para um quadro de dependência.

Neves et al.2929 Neves IT, Oliveira JSS, Fernandes MCC, et al. Physicians’ beliefs and attitudes about Benzodiazepines: A cross-sectional study. BMC Fam Pract. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 20(1):71. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12875-019-0965-0.
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identificaram em seu estudo que 55% dos médicos entrevistados referiram ter sofrido pressão de pacientes para emitir prescrição de BZD e destacaram que, entre os motivos para essa forte necessidade, estavam os problemas sociais e financeiros sofridos por esses pacientes.

Os médicos participantes desse estudo reconheceram as dificuldades que eles tinham em convencer esses pacientes em cessar o uso de BZD. Fegadolli et al.3232 Fegadolli C, Varela NMD, Carlini ELA. Uso e abuso de benzodiazepínicos na atenção primária à saúde: práticas profissionais no Brasil e em Cuba. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2023 fev 1]; 35(6):e00097718. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311x00097718.
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consideram que ceder às pressões do paciente para prescrição do medicamento revela o pouco empoderamento do profissional médico e atribuem como causas dessa situação ‘a falta de acesso a processos de aprendizagem e a formas de trabalho que permitam a tomada de decisões’.

Os entrevistados queixaram-se da dificuldade do serviço em fazer um acompanhamento longitudinal e contínuo do paciente, impedindo processos de educação em saúde que levariam informações ao usuário sobre as consequências do uso prolongado de BZD. Pohontsch et al.3333 Pohontsch NJ, Heser K, Löffler A, et al. General practitioners’ views on (long-term) prescription and use of problematic and potentially inappropriate medication for oldest-old patients–A qualitative interview study with GPs (CIM-TRIAD study). BMC Fam Pract. 2017 [acesso em 2023 fev 1]; 18(1):22. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12875-017-0595-3.
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conduziram estudo no qual avaliaram a percepção de médicos e pacientes sobre BZD, constatando que existiam pacientes com consumo de BZD há mais de 20 anos, o que revela falta de cuidado ou desconhecimento, por parte de profissionais e pacientes, em relação às consequências do uso prolongado desses medicamentos.

Schallemberger e Colet3434 Schallemberger JB, Colet CF. Assessment of dependence and anxiety among benzodiazepine users in a provincial municipality in Rio Grande do Sul, Brazil. Trends Psychiatry Psychother. 2016 [acesso em 2023 fev 1]; 38(2):63-70. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-6089-2015-0041.
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acrescentam que a falta de psiquiatras na AB pode ser uma das razões do grande número de prescrições feitas por médicos com especialidades diversas. Todavia, esses autores fazem uma crítica a essa situação quando afirmam que a AB tem como objetivo resolver casos menos complexos, e não aqueles que dependem de especialistas, ou seja, pacientes com algum transtorno mental deveriam ser encaminhados aos Centro de Atenção Psicossocial (Caps).

No presente estudo, esse encaminhamento parece não ter ocorrido, reforçando o discurso de vários profissionais entrevistados que expuseram que absorviam funções que não lhes pertenciam e, ainda, para as quais não estavam preparados. Uma alternativa ao encaminhamento seria a incorporação do cuidado por equipe multiprofissional a partir da ótica da interdisciplinaridade3535 Gonçalves GMS, Santos MOS, Gurgel AM, et al. Experiências pedagógicas para a construção da interdisciplinaridade em saúde coletiva. Saúde debate. 2022 [acesso em 2023 fev 1]; 46(135):1238-48. Disponível em: https://doi.org/10.1590/01031104202213520.
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. Uma equipe composta por diferentes profissionais, com expertises que se complementam, resulta em uma potente forma de cuidado, sendo uma alternativa a encaminhamentos ou prescrições farmacológicas identificadas como de uso não racional, ou com risco de uso abusivo e farmacodependência.

Na sociedade atual, o BZD representa, erroneamente, uma opção para lidar com os problemas cotidianos, com a garantia do alívio rápido e de alcançar no sono o esquecimento3636 Alvarenga JM, Loyola Filho AI, Giacomin KC, et al. Uso de benzodiazepínicos entre idosos: o alívio de jogar água no fogo, não pensar e dormir. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2015 [acesso em 2023 fev 1]; 18(2):249-58. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-9823.2015.14045.
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Certamente, essa não é a melhor forma, tampouco a mais correta e menos arriscada de ‘resolver’ esses problemas, mas para essa população estudada, parece ser a única possível.

Fornereto et al. exploram em seu estudo o cuidado em saúde mental por meio da EPS3737 Fornereto APN, Sousa DF, Martini LC. Educação Permanente em Saúde como estratégia para trabalho colaborativo na Rede de Atenção Psicossocial. Interface. 2023 [acesso em 2023 fev 1]; 27(1):e220221. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.220221.
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. Nesse estudo, concluem que a estratégia de articulação em rede entre serviços de saúde é uma opção para o cuidado do sofrimento mental no âmbito da AB. A EPS também pode se configurar como um dispositivo de atuação interdisciplinar, que permite a construção do conhecimento em equipe, contribuindo para a potência das ações conjuntas de cuidado em saúde3838 Figueiredo EBL, Souza ÂC, Abrahão A, et al. Educação Permanente em Saúde: uma política interprofissional e afetiva. Saúde debate. 2022 [acesso em 2023 fev 1]; 46(135):1164-73. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213515.
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Considerações finais

Os achados desta pesquisa trouxeram à tona um quadro bastante preocupante em relação à prescrição de BZD nas UBS, no âmbito do SUS, em uma região pobre com alto índice de vulnerabilidade social.

As indicações terapêuticas dessa classe de medicamentos, tão importantes e necessárias para o gerenciamento de várias patologias, são desvirtuadas a partir da constatação de que o que moveu a demanda e a prescrição de BZD foram as baixas condições sociais dos usuários do sistema público de saúde e as consequências advindas dessa conjuntura (vulnerabilidade social, problemas angustiantes com pouca possibilidade de resolução).

Essa razão da prescrição de BZD leva a crer que a situação decorrente (uso irracional, uso prolongado e dependência) tende a se perpetuar em comunidades com as mesmas características dessa localidade, sendo difícil impedi-la.

As propostas para alteração desse quadro apresentadas pelos entrevistados (aumento do número de profissionais de saúde mental, ações educativas aos pacientes e médicos, construção de processos de educação permanente e atuação interdisciplinar) colaboram para a melhora desse cenário. Entretanto, a mudança efetiva dessa situação vai além da atuação médica, necessitando, para tal, de políticas públicas que fortaleçam a atuação interdisciplinar na AB e que visem a uma melhoria na qualidade de vida e à redução da exclusão social dessas pessoas, de forma a garantir o acesso às estruturas de oportunidades disponíveis nos campos da saúde, educação, trabalho e lazer.

Uma educação contínua aos médicos proporcionaria: atualizarem-se com novas pesquisas relacionadas com medicamentos BZD, incluindo novos usos e reações adversas; aprofundarem-se no conhecimento dos riscos e benefícios desses medicamentos, ajudando-os em uma tomada de decisão com mais subsídios ao prescrever BZD; atualizarem-se com as novas diretrizes de uso de BZD; desenvolverem estratégias adequadas no manejo da dependência e abuso de BZD; capacitarem-se na comunicação com os pacientes sobre o uso de BZD, seus riscos e benefícios3939 Seymour RB, Wally MK, Hsu JR, et al. Impact of clinical decision support on controlled substance prescribing. BMC Med Inform Decis Mak. 2023 [acesso em 2023 nov 1]; 23(1):234. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12911-023-02314-0.
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Ademais, o estudo teve por limitação a investigação do fenômeno em uma região do município de São Paulo, não sendo possível a generalização dos resultados para outras regiões. Dessa forma, novos estudos podem ser propostos a fim de identificar esse fenômeno em outras regiões com as mesmas características.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2023
  • Aceito
    22 Mar 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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