Os Determinantes Sociais da Saúde no planejamento da testagem à covid-19 no Amazonas, Brasil

Raylson Nóbrega Stéphanie Medeiros Kate Zinszer Lara Gautier Valéry Ridde Sydia Oliveira Sobre os autores

RESUMO

A sindemia da covid-19 afetou desproporcionalmente populações mais vulneráveis do ponto de vista social, como pessoas de baixa renda, populações indígenas e ribeirinhas. No estado do Amazonas, onde a geografia única e as disparidades sociais apresentam desafios significativos para o acesso e a equidade em saúde, os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) desempenham um papel crucial. Este artigo analisa se e como os DSS foram considerados durante o planejamento de testes para a covid-19 no Amazonas. Para tal análise, realizou-se um estudo de caso qualitativo por meio de análise documental e entrevistas semiestruturadas com atores-chave envolvidos no planejamento e na implementação da testagem. Os documentos oficiais foram sistematizados usando TIDieR-PHP. Os dados foram analisados empregando a ferramenta REFLEX-ISS. Os DSS não foram considerados no planejamento de testes no Amazonas. Não houve consenso entre os entrevistados sobre a importância de considerar os DSS no planejamento da intervenção. Os testes foram restritos a pacientes com sintomas graves e a algumas categorias de trabalhadores em serviços considerados essenciais. Faz-se necessário, aos gestores de políticas de saúde, conhecimento sobre a importância de considerar os DSS no planejamento em intervenções populacionais para realizar uma política equânime.

PALAVRAS-CHAVES
Covid-19; Planejamento em saúde; Política de saúde; Determinantes Sociais da Saúde

Introdução

Devido à rápida disseminação da covid-19 em todos os continentes, várias medidas preventivas em saúde pública foram aplicadas11 Ortelan N, Ferreira AJF, Leite L, et al. Máscaras de tecido em locais públicos: intervenção essencial na prevenção da COVID-19 no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(2):669-692.. Uma das principais medidas para conter a transmissão do Sars-CoV-2 foi a implementação de testes em massa, que permitem a detecção de casos e o consequente isolamento destes22 Yoo KJ, Kwon S, Choi Y, et al. Systematic assessment of South Korea’s capabilities to control COVID-19. Health Policy. 2021; 125(5):568-576.. As estratégias de testagem da população variaram entre os países e as fases da pandemia, sendo, de início, mais amplamente acessível nos países asiáticos devido à sua experiência anterior com outras epidemias respiratórias33 Red Argentina Pública de Evaluación de Tecnologias Sanitarias. Diferentes tipos de tests y estrategias diagnósticas en el contexto de pandemia por COVID-19. Red Argentina Pública de Evaluación de Tecnologias Sanitarias. [local desconhecido]: RedARETS; 2020., 44 Cohen J, Kupferschmidt K. Countries test tactics in ‘war’ against COVID-19. Science. 2020; 367(6484):1287-1288.. No entanto, em outros países, em função da novidade da situação, tamanho da população, falta de oferta de testes, e/ou prioridades governamentais, a testagem foi restrita: a pessoas com sintomas graves, àquelas que tiveram contato com caso confirmado e a pessoas pertencentes ao grupo de alto risco de exposição55 Pilecco FB, Coelho CG, Fernandes QHRF, et al. O efeito da testagem laboratorial nos indicadores de acompanhamento da COVID-19: uma análise dos 50 países com maior número de casos. Epidemiol. Serv. Saúde. 2021; 30(2):e2020722..

Semelhantemente a outros agravos, a covid-19 está associada aos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), ou seja, a fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população66 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007; 17(1):77-93.. Estudos apontam que as diferenças nos DSS são os fatores subjacentes às disparidades de disseminação da covid-1977 Yancy CW. COVID-19 and African Americans. JAMA. 2020; 323(19):1891., 88 Khalatbari-Soltani S, Cumming RG, Delpierre C, et al. Importance of collecting data on socioeconomic determinants from the early stage of the COVID-19 outbreak onwards. J. Epidemiol. Community Health. 2020; 74(8):620-623.. Além disso, diversas pesquisas em âmbito global têm avaliado a amplitude das desigualdades vinculadas à pandemia da covid-1999 Bekele BB, Alhaffar BA, Wasnik RN, et al. The effect of the COVID-19 Pandemic on the social inequalities of health care use in Hungary: a nationally representative cross-sectional study. IJERPH. 2022; 19(4):2258., 1010 Antonio-Villa NE, Fernandez-Chirino L, Pisanty-Alatorre J, et al. Comprehensive evaluation of the impact of sociodemographic inequalities on adverse outcomes and excess mortality during the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pandemic in Mexico City. Clin. Infect. Dis. 2022; 74(5):785-792., 1111 Dalsania AK, Fastiggi MJ, Kahlam A, et al. The relationship between social determinants of health and racial disparities in COVID-19 mortality. J. Racial and Ethnic Health Disparities. 2022; 9(1):288-295.. Diante dessas características de desigualdades, estudiosos vêm enquadrando a atual pandemia da covid-19 como uma sindemia ao considerar uma ligação entre os agentes determinantes da doença – como os contextos sociais, econômicos e culturais – somados à interação de duas ou mais doenças1212 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020; 396(10255):874., 1313 Bispo Júnior JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(10):e00119021..

Essa sindemia no Brasil ocorre em um contexto de fragilidades dos sistemas sociais, distribuição desigual da alta carga de comorbidades, crises político-econômicas, retrocessos nas políticas ambientais e descrédito na ciência1414 Hallal PC. SOS Brazil: science under attack. Lancet. 2021; 397(10272):373-374., o que fez exacerbar ainda mais as desigualdades existentes1515 Marmot M, Allen J. COVID-19: exposing and amplifying inequalities. J. Epidemiol. Community Health. 2020; 74(9):681-682.. Como resultado, continua sendo um desafio seguir as medidas básicas de saúde pública em virtude da diminuição do acesso a suprimentos básicos para saúde, higiene e proteção1616 Minayo MCS, Freire NP. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3555-3556.. Esse problema nacional foi agudizado no Amazonas, durante a primeira (maio a julho de 2020) e a segunda (janeiro a março de 2021) ondas da sindemia da covid-191717 Lavor A. Amazônia sem respirar: falta de oxigênio causa mortes e revela colapso em Manaus. RADIS. 2021; 221:20-23., 1818 Demenech LM, Dumith SC, Vieira MECD, et al. Desigualdade econômica e risco de infecção e morte por COVID-19 no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2020; 23:e200095.. Considerações relacionadas com o planejamento de intervenções em saúde pública e, particularmente, aquelas associadas ao enfrentamento das iniquidades em saúde são primordiais1919 Mathevet I, Ost K, Traverson L, et al. Accounting for health inequities in the design of contact tracing interventions: A rapid review. Int. J. Infect. Dis. 2021; 106:65-70.. Neste estudo, tem-se o planejamento como uma ferramenta que permite facilitar o alcance dos objetivos esperados, com enfoque no acesso aos serviços de saúde2020 Jesus WLAD, Assis MMA. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: con tribuições do planejamento. Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(1):161-170..

Diante desse contexto, é fundamental analisar como e se os DSS foram abordados no planejamento da testagem populacional para covid-19 no estado do Amazonas. Os dados deste estudo propiciam conhecimento que facilite o planejamento de políticas públicas futuras de forma racional, mais impactante e que tenha como principal resultado uma política baseada na universalidade proporcional. Dessa forma, reduzir-se-iam as desigualdades sociais em saúde2121 Francis-Oliviero F, Cambon L, Wittwer J, et al. Desafios teóricos y prácticos del universalismo proporcional: una revision. Rev. Panam. Salud Publica. 2021; 45:e102..

Material e métodos

Desenho do estudo

Este estudo de caso único2222 Yin R. Case study research: design and methods. 5. ed. Thousand Oaks: Sage; 2013. examina o planejamento da testagem populacional para covid-19 no Amazonas, usando uma abordagem qualitativa, por meio de pesquisa documental e entrevista semiestruturada. A presente pesquisa está inserida no componente de saúde pública do projeto de pesquisa internacional HoSPiCOVID, que explora a resiliência dos sistemas de saúde pública2323 Ridde V, Gautier L, Dagenais C, et al. Learning from public health and hospital resilience to the SARS-CoV-2 pandemic: protocol for a multiple case study (Brazil, Canada, China, France, Japan, and Mali). Health Res. Policy Sys. 2021; 19(1):76.. Utilizou-se o checklist SRQR para apresentação dos tópicos deste estudo.

Características da equipe de pesquisa e reflexividade

Para a realização desta pesquisa, houve a contribuição e a interação de uma equipe de pesquisadores que incluiu diversidade de gênero, nacionalidade, experiência (júnior e sênior) e disciplina (sociologia e saúde pública). Os pesquisadores responsáveis pelas entrevistas estão ativos na pesquisa em saúde no Brasil, o que facilitou o acesso às partes interessadas envolvidas na gestão dos esforços de resposta à sindemia. É importante ressaltar que nenhum dos autores participou da resposta de saúde pública à sindemia.

Contexto

O local deste estudo foi o estado do Amazonas, que está situado na região norte do Brasil, o maior dos estados brasileiros, apresentando um dos menores índices de densidade populacional do País. A maioria dos municípios do estado, por questões geográficas, possui acesso fluvial exclusivo2424 Medeiros LT, Sousa AM, Arinana LO, et al. Mortalidade materna no estado do Amazonas: estudo epidemiológico. Rev. Baiana Enferm. 2018; e26623.. A distância entre os municípios, a dispersão demográfica e o grande território com extensas bacias hidrográficas, associados à cobertura da maior floresta tropical do planeta, impõem grandes desigualdades no acesso à saúde em relação a outras regiões brasileiras2525 Nóbrega RED, Reis RS, Xavier FAS, et al. O desafio da Saúde Bucal ribeirinha: um relato de experiência na Amazônia. In: Schweickardt JC, organizador. A Atenção Básica num território em movimento: diálogos necessários sobre a politica. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021. p. 119-33.. Para este estudo, serão abordadas exclusivamente as ações do governo estadual por intermédio da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM) e da Fundação de Vigilância em Saúde do Estado do Amazonas (FVS-AM).

Estratégia de amostragem

A seleção dos participantes deste estudo ocorreu em duas etapas. O primeiro entrevistado foi escolhido por meio de amostragem proposital, que se baseou no critério de participação no processo de planejamento e ação direta na intervenção de testagem. A partir disso, por intermédio de uma estratégia bola de neve, direcionou-se a outros atores envolvidos na testagem. Ao final, a amostra se deu por saturação de dados, em que foram realizadas entrevistas individuais com 11 atores-chave (quadro 1) que atuaram na testagem rápida e na testagem de RT-PCR. Entre esses, 9 possuíam algum vínculo empregatício com o serviço público (universidades e fundação de vigilância) e 2 não possuíam nenhum vínculo remunerado.

Quadro 1
Perfil do entrevistado

Métodos de coleta de dados

As entrevistas em profundidade foram realizadas entre fevereiro e maio de 2021, por meio de um roteiro semiestruturado desenvolvido em colaboração com as equipes dos países envolvidos no componente de saúde pública do projeto HoSPiCOVID e testadas em entrevistas-piloto2626 Savard Lamothe A, Gabet M, Richard Z, et al. A descriptive comparison of mass testing during the COVID-19 Pandemic in Montreal, Paris, Bamako, and Recife. Int. J. Public Health. 2022; 67:1604992..

O guia de coleta de dados e a categorização dos resultados foram elaborados com base em componentes selecionados no REFLEXISS2626 Savard Lamothe A, Gabet M, Richard Z, et al. A descriptive comparison of mass testing during the COVID-19 Pandemic in Montreal, Paris, Bamako, and Recife. Int. J. Public Health. 2022; 67:1604992.. Trata-se de uma ferramenta que orienta a reflexão sobre a melhor forma de abordar a equidade em saúde, estabelecendo uma grade de análise com um conjunto de questões em relação a planejamento, implementação e avaliação de intervenções de saúde pública2727 Guichard A, Hébert C, Nour K, et al. Adaptation et conditions d’utilisation d’un outil d’analyse des interventions au regard des inégalités sociales de santé. Santé Publique. 2018; S1(HS1):121.. Nesse sentido, foram utilizados apenas os componentes relacionados com o planejamento (quadro 2).

Quadro 2
Categorias analíticas de planejamento (ferramenta REFLEX-ISS adaptada para o projeto de pesquisa HoSPiCOVID)

Três categorias contidas no componente de planejamento do REFLEX-ISS embasaram o roteiro e a análise. A primeira refere-se à análise de problemas e necessidades, ou seja, entender como se pensou na testagem, se os DSS foram levados em consideração e se diferentes subgrupos da população afetada foram descritos e definidos no planejamento. Nessa parte, também foi abordada a disponibilidade de recursos humanos e materiais para o planejamento da testagem. A segunda categoria é formada por objetivos, fundamentação e concepção da intervenção. Nessa parte, observou-se como o planejamento foi desenhado, que referências científicas fundamentaram a intervenção e se a intervenção propõe uma variedade de atividades para atender às diversas necessidades dos subgrupos da população afetada. A terceira categoria aborda as parcerias intersetoriais e a participação da população-alvo. Aqui as perguntas trataram de quem foram os principais parceiros intersetoriais, em que circunstâncias ocorreu a parceria, que contribuição trouxeram ao desenho do planejamento e questões afins. perguntou-se sobre a participação da população que usufruiria da testagem, para entender suas necessidades e desafios.

Além disso, no roteiro, também se buscou entender o histórico educacional e profissional dos entrevistados, visando identificar possíveis correlações entre sua formação, experiência profissional e perspectivas em relação aos DSS.

Por fim, o roteiro enfocou os desafios do planejamento e as sugestões de mudanças no caso da necessidade de planejar uma nova intervenção de testagem em condições análogas. As perguntas referiram-se ao ano de 2020, por ser o ano inicial da sindemia no Amazonas, momento em que foi declarada como uma emergência de saúde pública, e por ser quando se elaborou o planejamento da testagem. As entrevistas duraram, em média, 60 minutos, sendo gravadas e, posteriormente, transcritas.

A pesquisa documental foi realizada em documentos oficiais (portarias, notas técnicas, boletins, protocolos, plano de contingência e relatórios) emitidos entre janeiro e novembro de 2020, com o tema covid-19 nos sites oficiais da FVS-AM e da SES-AM. Após leitura, foram selecionados apenas os documentos que abordavam a testagem. Realizou-se a sistematização por meio da ferramenta TIDieR-PHP2828 Campbell M, Katikireddi SV, Hoffmann T, et al. TIDieR-PHP: a reporting guideline for population health and policy interventions. BMJ. 2018; k1079.. Tal ferramenta dispõe de diretrizes necessárias para entendimento e descrição detalhada de intervenções de saúde pública por meio de uma sistematização. Os dados obtidos nessa sistematização documental permitiram complementar informações necessárias e importantes sobre o processo do planejamento.

Análise dos dados

Foi realizada análise de conteúdo na perspectiva bardaniana2929 Bardin L. Análise de Conteúdo. Rio de Janeiro: Edições 70; 2015., com base também nas categorias estabelecidas no REFLEX-ISS explicadas anteriormente. Além disso, algumas categorizações emergiram a partir de análise indutiva. Utilizou-se o software Nvivo para a codificação e posterior identificação e classificação dos extratos de fala mais relevantes.

Questões éticas

Todas as questões éticas foram cuidadosamente respeitadas neste estudo. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ademais, foi obtida a carta de anuência da SES-AM e da FVS-AM. O estudo foi apreciado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e autorizada sua realização mediante o parecer nº 4.018.111, em 28 de outubro de 2020.

Resultados

Visões contrastantes em relação aos DSS

Em relação ao planejamento da testagem no estado do Amazonas, as falas foram consideradas contraditórias, pois não houve um consenso sobre a realização de um planejamento devido à demanda em caráter de urgência.

Não houve um planejamento de muita coisa era uma questão urgente que tinha aqui ser respondida [...] as ações de testagem elas não foram norteadas em nenhum momento [...] as ações, elas eram tomadas muito mais baseadas no que a gente estava vendo de urgência do que realmente embasamento científico. No sentido que, eu estou vendo isso, a com urgência é essa e vou fazer isso agora. (E1, Gestão de CTR).

Antes da chegada da covid-19 ao Amazonas, em fevereiro de 2020, com a criação do Comitê Interinstitucional de Gestão de Emergências em Saúde Pública, optou-se por destinar os testes apenas a pacientes internados com quadros graves devido à escassez. Os DSS não foram considerados pelas autoridades locais. Em 13 de março de 2020, foi confirmado o primeiro caso da covid-19 no Amazonas. Para comunicar esse caso, os órgãos competentes uniram esforços. Esse alinhamento refletiu a intenção do planejamento estadual do Amazonas de trabalhar em conjunto com todos os níveis de atuação (nacional, estadual e municipal). No entanto, no período estudado, a gestão estadual centralizou o processo de testagem na FVS-AM, abrangendo uma população restrita: trabalhadores de serviços considerados essenciais e pacientes internados em hospitais de referência, concentrando-se na capital.

Evidências apontam que o processo de testagem teve uma baixa capacidade de antecipar problemas. Suas primeiras ações já foram concebidas como reações aos problemas predominantes, notadamente para diagnosticar profissionais de saúde da linha de frente que estavam se contaminando rapidamente com a nova doença.

Não havia uma visão comum em relação aos DSS. Alguns participantes acreditavam que, devido à escassez de testes rápidos, os DSS não puderam ser levados em conta, sendo os profissionais de saúde uma prioridade para garantir a continuidade do cuidado.

Houve uma desigualdade, sim, mas foi por falta de material naquela época. Os testes eram muito escassos no início, era muito caro, quase ninguém podia pagar. [...] O governo preferiu começar pelos profissionais de saúde que estavam na linha de frente. (E2, Voluntário no CTR).

Alguns não têm certeza se as desigualdades sociais atuaram como determinantes da saúde na sindemia do novo coronavírus:

Eu não via essa questão de que [a covid-19] está afetando mais os pobres do que outra clientela ou faixa social. Eu acho que o acometimento está igual [...]. (E3, Gestão da FVS).

Outros entrevistados consideram que os DSS foram fatores de risco para exposição e que deveriam ter sido priorizados no planejamento:

Nem sei se você teve acesso a uma carta que eu assinei [...] apontando para as autoridades competentes que receber menos de três salários mínimos em uma cidade como Manaus é fator de risco para adquirir a infecção. Então, eu acho que esse olhar, é essencial para uma política ainda atual porque a pandemia não acabou. (E1, Gestão de CTR).

Apesar de visões contrastantes sobre os DSS, o planejamento dos Centros de Testagem Rápida (CTR) não considerou indivíduos socialmente vulneráveis ou mesmo aqueles com comorbidades. A escolha dos grupos prioritários para testagem foi baseada na exposição ocupacional ao vírus para as classes de trabalhadores. Assim, o acesso da população geral à testagem se deu apenas quando as pessoas foram internadas em hospitais de referência, o que exigia estar em estado grave.

Alguns atores afirmaram que não havia respaldo em dados epidemiológicos. Dessa forma, a priorização dos profissionais de saúde para a testagem se devia ao absenteísmo na jornada de trabalho. Em termos de literatura científica, o planejamento objetivou a adaptação dos protocolos de testes para outras infecções às circunstâncias da covid-19, além de não se considerar a literatura voltada aos DSS.

Operacionalização da crise

Devido à insuficiência de exames, a testagem ficou restrita a pacientes graves internados e a determinadas categorias de trabalhadores consideradas essenciais, que foram atendidas nos CTR implementados (quadro 3). Durante parte do período estudado (abril a novembro de 2020), não houve ações do governo estadual voltada à testagem da população geral.

Quadro 3
Centros de testagem e população-alvo

O primeiro CTR no Amazonas foi implementado em abril de 2020, exclusivamente para profissionais de saúde sintomáticos que atuavam no combate à covid-19. A implementação ocorreu em caráter de urgência para atender a alta quantidade de síndromes respiratórias entre profissionais de saúde que não foram testados.

Na questão da testagem rápida para profissionais de saúde, havia naquele momento uma necessidade muito grande de profissionais para testar. [...] Havia muitos profissionais de saúde já doentes, já com a covid-19, com sintomas e afastados do seu cargo. [...] Não foram nem três dias, que era tudo muito urgente, né? Eu creio que dentro de 24 a 48 horas no máximo aquele centro de testagem estava aberto. (E1, Gestão de CTR).

O CTR-1 foi inaugurado na Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com voluntariado de professores e alunos da área da saúde, principalmente da área de farmácia. O objetivo era testar profissionais de saúde sintomáticos que estivessem trabalhando na linha de frente no combate à covid-19. Visava

minimizar os danos [...] porque eram os profissionais de saúde que estavam atendendo as pessoas doentes, então precisávamos ter um olhar diferente para esses profissionais. (E3, Gestão da FVS).

O CTR-2 foi instalado no quartel do Corpo de Bombeiros para atender os profissionais de segurança pública. Em seguida, foi criado o CTR-3 no comando da Polícia Militar voltado para os militares. Ambos os centros foram justificados pela necessidade de testar esses trabalhadores que continuaram trabalhando durante a sindemia. Além disso, tais locais foram identificados como convenientes por possuírem uma estrutura: profissionais e equipamentos, para atuar como centro, necessitando apenas de materiais de testagem como recursos para a realização dos testes, o que foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde e pelo governo do Estado.

Devido à alta demanda e à aglomeração no CTR-1, a FVS-AM implantou o CTR-4, com apoio da Ufam, destinado aos profissionais de saúde. O acesso era por drive-through para diminuir o risco de contaminação.

Por fim, com o intuito de reabertura das escolas, em agosto de 2020, foi implantado o CTR-5 para testar profissionais da educação na rede pública estadual.

Percebe-se que os CTR não foram distribuídos geograficamente de forma equânime, pois todos estavam localizadas nos bairros centrais da cidade, de acordo com a disponibilidade desses espaços. No planejamento, não foram considerados territórios com populações mais vulneráveis, mais periféricos. Os CTR foram implementados de acordo com os recursos disponíveis nesses locais.

Colaborações e parcerias

A testagem no Amazonas ocorreu por meio de diversas parcerias desde o início da intervenção. Foi necessário estabelecer colaborações entre instituições públicas e privadas para fortalecer a vigilância laboratorial, em um planejamento participativo e descentralizado. Os testes rápidos ofertados a partir dos CTR e os testes de RT-PCR que foram gerenciados pelo Laboratório Central de Saúde Pública da Fundação de Vigilância em Saúde do Estado do Amazonas (Lacen/FVS-AM) foram disponibilizados para pacientes internados em hospitais.

Para ampliar a capacidade de testagem de RT-PCR no Amazonas, houve a descentralização do processamento e do diagnóstico de amostras biológicas. Isso foi realizado por meio da participação da rede privada de laboratórios e da rede pública por intermédio da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Amazônia). Além disso, foi firmada parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, por meio do fornecimento de equipamentos ao Lacen/FVS-AM, para processamento de exames. Também houve investimento por parte do governo do Estado na compra de equipamentos que permitiram a ampliação e acessibilidade do teste RT-PCR.

Entramos em contato com a Universidade Federal do Amazonas, e o professor lá ficava de escolher, encaminhando os doutorandos. Então vieram todos como voluntários, vieram doutorandos, mestrandos, que estava trabalhando exatamente na parte de biologia molecular em outros agravos, em outras situações, mas que vieram pra cá. Veio pessoal também da Fundação de Medicina Tropical, inclusive cederam até equipamento porque nós não tínhamos equipamento pra atender essa demanda [...] nós não tínhamos profissional pra isso. Veio o pessoal do Hemoam também e veio pessoal do Alfredo da Mata e da Secretária Municipal também que vieram. (E9, Gestão do Laboratório Central de Saúde Púbica do Amazonas).

Observou-se uma dinâmica de expansão em relação às organizações ‘parceiras’ da intervenção. Para a implantação dos CTR no Amazonas, foi fundamental a parceria com as universidades que disponibilizaram espaço físico, equipamentos e pessoal. Por serem de diferentes áreas técnicas e de pós-graduação em ciências da saúde, ocuparam diversos cargos, como coordenação de CTR, triagem, leitura de exames e divulgação de resultados. Os perfis dos atores envolvidos variaram de acordo com a expertise anterior. Nesse panorama, percebe-se a presença de profissionais com experiência anterior em testagem para infecções sexualmente transmissíveis e em campanhas de vacinação, principalmente aqueles ligados à universidade.

Os voluntários tiveram um papel de destaque nos CTR e no Lacen/FVS-AM. A implementação da intervenção foi possível graças à mobilização massiva de voluntários, incluindo várias centenas de estudantes e jovens profissionais. Além disso, a mobilização social foi relatada por meio de doações de alimentos de restaurantes e lanchonetes, para profissionais envolvidos na testagem.

Discussão

Neste estudo, observou-se que não houve um planejamento adequado para a testagem da covid-19 no estado do Amazonas em dois aspectos. O primeiro, central para esta pesquisa, é que os DSS não foram levados em consideração no desenho da testagem. A FVS-AM, responsável por coordenar o planejamento da testagem de covid-19 no estado, começou a desenhar o modelo dos primeiros CTR já respondendo ao desfalque de profissionais de saúde na linha de frente infectados com a doença. O planejamento foi pensado, então, para atender a essa urgência e se utilizou principalmente de documentos enfocados na logística dos CTR de forma a prevenir e controlar a difusão da covid-19 no espaço da testagem. A necessidade de uma resposta urgente a essa infecção não justifica, no entanto, não se recorrer à literatura científica, que mostra a importância de tratar dos DSS para um enfrentamento de doenças agudas altamente contagiosas que permitiria, assim, agir com maior eficácia3030 Silveira MC, Costa EA. Busca ativa ou testagem em massa? Cad. Ibero Am. Direito Sanit. 2020; 9(4):188-191..

O conhecimento de epidemias internacionais prévias, como as de H1N1, Sars, ebola, e as experiências brasileiras com a dengue, a tuberculose e o HIV/aids mostram a relação entre as taxas de incidência e mortalidade relacionadas com populações vulneráveis1818 Demenech LM, Dumith SC, Vieira MECD, et al. Desigualdade econômica e risco de infecção e morte por COVID-19 no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2020; 23:e200095.. Esses dados poderiam ter sido utilizados para o planejamento da testagem com olhar especial às populações mais vulneráveis, que, por terem maior risco de se contaminar, também têm maior risco de propagar a doença.

Dado que os DSS são fatores condicionantes do processo saúde-doença, as políticas de saúde consideradas universais devem adotar iniciativas voltadas para viabilizar o acesso de populações vulneráveis3131 Ost K, Duquesne L, Duguay C, et al. Large-scale infectious disease testing programs have little consideration for equity: findings from a scoping review. Journal of Clinical Epidemiology. J. Clin. Epidemiol. 2022; 143:30-60.. Dentro dessa lógica, por exemplo, o governo cubano implementou, desde o início da pandemia, uma cobertura universal e gratuita, em que os maiores recursos foram distribuídos às populações com piores situações socioeconômicas, garantindo uma política de saúde mais equitativa3232 Mas Bermejo P, Sánchez Valdés L, Somarriba López L, et al. Equity and the Cuban National Health System’s response to COVID-19. Rev. Panam. Salud Publica. 2021; 45:1..

Conforme observado, no Amazonas, os DSS não foram considerados no processo de planejamento para a testagem de covid-19. Ademais, foram desconsideradas as vulnerabilidades ligadas às dimensões econômicas e étnico-raciais. Esse dado se torna particularmente preocupante tendo em vista que o Amazonas é o estado com maior desigualdade econômica do País1818 Demenech LM, Dumith SC, Vieira MECD, et al. Desigualdade econômica e risco de infecção e morte por COVID-19 no Brasil. Rev. Bras. Epidemiol. 2020; 23:e200095. e que concentra populações tradicionais, como os indígenas e ribeirinhos, que são particularmente vulneráveis no tocante à covid-193333 Brito PL, Souza LSSD, Gomes PHC, et al. Infecção pela Covid-19 em populações indígenas no Amazonas. Acervo Saúde. 2023; 23(3):e12255., 3434 Mendes MF, Pereira LR, Lima TM, et al. COVID-19 pandemic evolution in the Brazilian Indigenous population. J. Racial and Ethnic Health Disparities. 2022; 9(3):921-937., 3535 Rodrigues EPS, Abreu IN, Lima CNC, et al. High prevalence of anti-SARS-CoV-2 IgG antibody in the Xikrin of Bacajá (Kayapó) indigenous population in the Brazilian Amazon. Int. J. Equity Health. 2021; 20(1):50..

Em 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a preocupação quanto ao impacto da sindemia da covid-19 em populações em risco, como os povos indígenas da Amazônia brasileira, baseado na vulnerabilidade dessa população a novos agentes infecciosos e pelas características de sua resposta imunológica, específica e heterogênea3333 Brito PL, Souza LSSD, Gomes PHC, et al. Infecção pela Covid-19 em populações indígenas no Amazonas. Acervo Saúde. 2023; 23(3):e12255.. Fora os aspectos imunológicos, o modo comunitário de vida e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde agravam a vulnerabilidade dessa população3434 Mendes MF, Pereira LR, Lima TM, et al. COVID-19 pandemic evolution in the Brazilian Indigenous population. J. Racial and Ethnic Health Disparities. 2022; 9(3):921-937.. Embora haja uma clara necessidade de ações voltadas para atender às especificidades das populações indígenas, essa preocupação não foi devidamente considerada.

Além da população indígena, o Amazonas tem como população específica os ribeirinhos, que também não foram considerados no planejamento da política de testagem. As comunidades ribeirinhas vivem em áreas próximas aos rios da região amazônica e, em grande medida, da pesca e da agricultura de subsistência3636 Moreira Domingos I, Miranda Gonçalves R. População ribeirinha no Amazonas e a desigualdade no acesso à saúde. RECHTD. 2019; 11(1):99-108.. Essa população é predominantemente de baixa escolaridade e renda, e sofre com falta de acesso rodoviário e problemas logísticos, além da falta de saneamento básico e de energia elétrica. Tais características dificultam o acesso aos serviços de saúde, fazendo-se necessário estratégias específicas para o acesso à saúde por parte dessa população3737 Guimarães AF, Barbosa VLM, Silva MP, et al. Acesso a serviços de saúde por ribeirinhos de um município no interior do estado do Amazonas, Brasil. Rev. Pan-Amaz. Saude. 2020; 11:e202000178..

Concentrados na capital, Manaus, os CTR ficaram indisponíveis aos demais municípios do estado durante o período estudado. Essa medida impõe dificuldade de acesso aos exames para a população residente no interior, atestando desigualdade ao comparar o acesso da capital com outros municípios do estado. O Amazonas é conhecido por sua vasta extensão territorial, coberta por extensas bacias hidrográficas, causando uma distância significativa entre os municípios do interior e a capital. Muitas vezes, esse deslocamento ocorre apenas por via fluvial ou aérea, fato que agrava o problema de acesso aos serviços de saúde e outras distorções sociais em relação a outras regiões brasileiras3737 Guimarães AF, Barbosa VLM, Silva MP, et al. Acesso a serviços de saúde por ribeirinhos de um município no interior do estado do Amazonas, Brasil. Rev. Pan-Amaz. Saude. 2020; 11:e202000178.,3838 Figueiredo Júnior AM, Lima GLOG, Vilela KAD, et al. O acesso aos serviços de saúde da população ribeirinha: um olhar sobre as dificuldades enfrentadas. REAC. 2020; 13:e4680..

O modelo de descentralização da testagem é uma estratégia fundamental para a prevenção do aumento de novos casos, por meio do vínculo com o cuidado adequado e a vigilância epidemiológica, porém, encontram-se barreiras nas desigualdades socioeconômicas e na distribuição de equipamentos e infraestrutura disponível para o diagnóstico3939 Magno L, Rossi TA, Mendonça-Lima FW, et al. Desafios e propostas para ampliação da testagem e diagnóstico para COVID-19 no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3355-3364..

Dentro da capital, os CTR também não tiveram uma distribuição pelos diversos pontos geográficos da cidade, ignorando as populações vulneráveis. Os testes poderiam ter sido descentralizados por intermédio das Unidades de Saúde da Família, destinadas a prestar atendimento em nível primário, geograficamente descentralizado, permitindo e facilitando o acesso das populações residentes em bairros mais vulneráveis aos testes - e, dessa forma, reduzindo a transmissão, como observado em outros países4040 Raffle AE, Pollock AM, Harding-Edgar L. Covid-19 mass testing programmes. BMJ. 2020; m3262., 4141 Burki T. Mass testing for COVID-19. Lancet Microbe. 2020; 1(8):e317..

O segundo aspecto inadequado no planejamento da testagem da covid-19 no Amazonas foi a falta de uma coordenação nacional. Em função de recomendações vistas como sem embasamento científico, como o uso amplo de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, o Ministério da Saúde brasileiro teve embate com os governadores de diversos estados, o que acarretou a decisão do Supremo Tribunal Federal para garantir autonomia aos Estados para tomar providências normativas e administrativas relacionadas com a covid-194242 Vieira FS, Servo LMS. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020; 44(esp4):100-113.. Entretanto, faltaram protocolos nacionais robustos que orientassem para vigilância, prevenção e controle da nova infecção.

A estratégia adotada pelo estado do Amazonas prioriza os trabalhadores de saúde que fazem parte da linha de frente ao enfrentamento da sindemia para a testagem, vendo-os como grupo particularmente vulnerável pela exposição ocupacional ao vírus. As classes de trabalhadores do setor público de serviços considerados essenciais continuaram trabalhando mesmo no pico da contaminação da sindemia, sendo privados de quarentena e distanciamento social, principal meio de proteção contra o vírus4343 Helioterio MC, Lopes FQRS, Sousa CC, et al. Covid-19: Por que a proteção de trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia? Trab. Educ. Saúde. 2020; 18(3):e00289121.. Essa exposição ocupacional ao Sars-CoV-2 gera um tipo de desigualdade contextual que foi priorizada na testagem para ajudar na continuidade da operação desses serviços essenciais4444 Gallasch CH, Cunha ML, Pereira LAS, et al. Prevenção relacionada à exposição ocupacional do profissional de saúde no cenário de COVID-19. Rev. Enferm. UERJ. 2020; 28:e49596.. A testagem desse grupo permite maior agilidade na recomposição da força de trabalho uma vez que os casos negativos para covid-19 retornariam mais rapidamente ao seu trabalho.

No que diz respeito aos trabalhadores de saúde, essa medida corrobora as recomendações da OMS que preconiza a investigação de casos da covid-19 em profissionais de saúde, bem como a detecção precoce e o controle de infecção nas equipes de saúde4545 Albuquerque NLS. Planejamento operacional durante a pandemia de COVID-19: comparação entre recomendações da Organização Mundial de Saúde e o Plano de Contingência Nacional. Cogit. Enferm. 2020; 25:e72659.. Tal medida também foi adotada em países como o Reino Unido, que, ao sofrer pressão dos sindicatos, passou a priorizar o teste de profissionais de saúde considerando sua exposição à contaminação4646 Churchill F. Unions call for essential workers to be given priority amid rapid test shortage. People Management. 2021 dez 10. [acesso em 2021 dez 21]. Disponível em: https://www.peoplemanagement.co.uk/news/articles/unions-call-essential-workers-given-priority-amid-rapid-test-shortage#gref.
https://www.peoplemanagement.co.uk/news/...
.

Entretanto, mesmo a testagem nos CTR enfocando os trabalhadores de serviços essenciais, no seu início, foi voltada somente àqueles que apresentassem sintomatologia. Nesse caso específico, nota-se que a testagem se apresenta apenas como a função de diagnóstico da doença, não cumprindo o papel fundamental de interrupção da cadeia de transmissão do vírus. Para esse fim, não haveria a necessidade de importação de uma grande quantidade de testes, mas, sim, fazer a utilização destes de forma adequada3030 Silveira MC, Costa EA. Busca ativa ou testagem em massa? Cad. Ibero Am. Direito Sanit. 2020; 9(4):188-191.. Faz-se necessário destacar as experiências exitosas observadas em países que adotaram a testagem massiva da população e que, por meio dessa medida, obtiveram maior êxito no controle da transmissão do Sars-CoV-24747 Freire-Silva J, Ferreira HS, Candeias ALB, et al. A utilização do planejamento territorial no combate da COVID-19: considerações sobre a situação dos leitos nos municípios de Pernambuco, Brasil. Visa em Debate. 2020; 8(2):16-27., 4848 Bittencourt RJ. Testagem de rastreio e busca ativa de infectados assintomáticos pelo SARS-COV-2: a visão do planejamento em saúde pública. Com. Ciências Saúde. 2020; 31:07-15..

Para a implementação dos CTR e a ampliação da capacidade técnica para a realização do RT-PCR, foi necessário estabelecer parcerias com instituições e universidades, bem como apoiar o trabalho voluntário e a mobilização social. Embora esses dados atestem a fragilidade do sistema de saúde e sua falta de recursos humanos para lidar com a covid-19, a expansão da capacidade tecnológica mediante o apoio de laboratórios privados e de universidades é defendida como uma boa alternativa de resposta à pandemia4545 Albuquerque NLS. Planejamento operacional durante a pandemia de COVID-19: comparação entre recomendações da Organização Mundial de Saúde e o Plano de Contingência Nacional. Cogit. Enferm. 2020; 25:e72659.. Além disso, o trabalho voluntariado foi uma solução encontrada como resposta rápida diante da demanda existente naquele momento4949 Kabad JF, Noal DS, Passos MFD, et al. A experiência do trabalho voluntário e colaborativo em saúde mental e atenção psicossocial na COVID-19. Cad. Saúde Pública. 2020; 36(9):e00132120., 5050 Lopes SC, Leite KFS, Pereira Jr RR, et al. Produção de máscaras cirúrgicas e aventais descartáveis para profissionais da saúde em cenário de restrição de recursos decorrentes da pandemia por SARS-COV-2. Braz. J. Infect. Dis. 2021; 25:101127..

Conclusões

Embora a sindemia da Covid-19 tenha como agravante a vulnerabilidade social, os DSS não foram considerados no planejamento da política de testagem no estado do Amazonas. Populações de baixa renda e tradicionais do estado, que vivem em situação de vulnerabilidade, como a população indígena e a ribeirinha, foram desconsideradas no planejamento da testagem, o que contribui para agravar as desigualdades sociais existentes.

Cabe lembrar que o estudo se limita à fase de planejamento da testagem no estado do Amazonas, ressaltando a necessidade de estudos futuros que abordem a implementação e a avaliação da intervenção. Além disso, a ênfase foi nas ações do governo estadual, sendo importante investigar as ações municipais posteriores. Outrossim, o agendamento de entrevistas com atores-chave foi difícil devido ao contexto de crise.

Durante a sindemia, observou-se uma seleção de grupos prioritários com base nos critérios de vulnerabilidade de exposição ao Sars-CoV-2 e aos que apresentavam quadro grave da doença. Esses critérios foram baseados em uma desigualdade contextual que se impõe pela impossibilidade de tomar algumas das medidas de proteção mais importantes para a época: quarentena e isolamento social. Dessa forma, aos gestores e planejadores de políticas de saúde, faz-se necessário o conhecimento sobre a importância de considerar as desigualdades e os DSS no planejamento dessas intervenções para conceder uma política equânime.

  • Suporte financeiro: para a realização desse estudo, houve apoio através do subsídio do Instituto Canadense de Pesquisa em Saúde, número DC0190GP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2023
  • Aceito
    26 Mar 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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