Contribuições de Paulo Freire para a melhoria da relação médico-paciente

Braulino Alexandre Carmes Charles Dalcanale Tesser Luiz Roberto Agea Cutolo Sobre os autores

RESUMO

Uma ‘boa’ relação médico-paciente é fundamental para uma prática clínica efetiva no Sistema Único de Saúde. São comuns, na prática clínica, os problemas de comunicação, o autoritarismo e certa desconsideração da situação existencial e da agenda dos usuários. Paulo Freire tratou de temas similares na educação, sendo menos aproveitado para ensino e prática da condução dos atendimentos médicos. O objetivo deste ensaio foi sintetizar contribuições das ideias freirianas para construção/melhoria da relação médico-paciente em contexto clínico ambulatorial. Metodologicamente, foi realizada uma análise de literatura articulando aspectos da relação médico-paciente e ideias de Freire. A análise consistiu em leitura e síntese livre de obras selecionadas sobre a relação clínica e das ideias contidas nos principais livros de Freire, consideradas pertinentes a essa temática (primeiro e segundo tópicos do artigo). Seguiuse uma síntese das contribuições freirianas, organizadas em cinco temas: reforço ao desafio de desviar da objetificação do usuário; concepção emancipadora, crítica e participativa da relação médico-paciente e dos seus aspectos educativos; importância do mundo da vida dos usuários; importância de abrir e manter o diálogo; ‘bem’ manejar as dinâmicas de poder. As ideias de Freire continuam muito relevantes e contribuem para o ensino e a melhoria da prática clínica ambulatorial.

PALAVRAS-CHAVE:
Relações médico-paciente; Educação em saúde; Educação médica; Medicina de família e comunidade; Atenção Primária à; Saúde.

Introdução

A qualidade do cuidado médico ambulatorial e do seu ensino é relevante para a saúde pública, na medida em que a Atenção Primária à Saúde (APS), via Estratégia Saúde da Família, deve ser o primeiro contato (não emergencial) do cidadão com o Sistema Único de Saúde (SUS), além de estruturante e coordenadora dos seus serviços. Entretanto, a abordagem da relação médico-paciente na educação médica é frequentemente marginalizada e colocada em matérias de psicologia, sociologia ou antropologia médica11 Sucupira AC. A importância do ensino da relação médico-paciente e das habilidades de comunicação na formação do profissional de saúde. Interface (Botucatu). 2007;11(23):624-627. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832007000300016
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Há certo consenso sobre a necessidade de deslocar o ‘holofote’ do médico e da doença para o usuário e sua relação com o profissional22 Caprara A, Franco A. Relação médico-paciente e humanização dos cuidados em saúde: limites, possibilidades, falácias. In: Deslandes SF, organizadora. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 85-108.. Foi reconhecida a relevância do vínculo terapêutico e de uma comunicação mais horizontalizada, e foram elaboradas técnicas para isso33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Todavia, na prática clínica e no seu ensino, há resistências a mudanças, perpetuando-se posturas paternalistas que veem o usuário como passivo44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. Há necessidade de mudar o significado de ser médico33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010., pois mesmo um ótimo plano de manejo é inútil se o usuário não se compromete com ele55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004.. São comuns críticas à objetificação do usuário33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010., ao autoritarismo44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013., à desconsideração da perspectiva do usuário55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004. e clamores sobre a importância do diálogo66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Questões similares foram abordadas por Paulo Freire (1921-1997), educador que ressignificou a prática pedagógica77 Lima PG. Uma leitura sobre Paulo Freire em três eixos articulados: o homem, a educação e uma janela para o mundo. Pro-Posições. 2014;25(3):63-81. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-7307201407504
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ao criar um método de alfabetização de adultos reconhecido no Brasil e no mundo88 Silva FCD, Sampaio MN. Cinquentenário das “40 horas de Angicos”: memória presente na educação de jovens e adultos. Rev Bras Educ. 2015;20(63):925-947. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-24782015206307
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9 Germano JW. As quarenta horas de Angicos. Educ Soc. 1997;18(59):391-395. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73301997000200009
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-1010 Gadotti M, organizador. Paulo Freire: uma bibliografia. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire; 1996.
. Seus escritos abordam vários temas: diálogo, reflexão crítica, conscientização, liberdade, emancipação e autonomia1111 Saul AM. Paulo Freire na atualidade: legado e reinvenção. e-Curriculum [Internet]. 2016 [acesso em 2023 fev 10];14(1)9-34. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/27365/19377
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.

No Brasil, a obra freiriana influenciou a área da saúde1212 Brandão CR. A educação popular na área da Saúde. Interface (Botucatu). 2001;5(8):127-131. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100010
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, principalmente iniciativas ainda hoje inovadoras de educação em saúde1313 Alves VS. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface (Botucatu). 2005;9(16):39-52. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832005000100004
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. Destacou-se o movimento da Educação Popular em Saúde (EPS)1313 Alves VS. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface (Botucatu). 2005;9(16):39-52. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832005000100004
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14 Vasconcelos EM. Educação Popular nos serviços de saúde. 3. ed. São Paulo: Hucitec; 1997.
-1515 Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec; 1999.
, iniciado nos anos 1970 e cujo propósito era “trazer, para o campo da saúde, a contribuição do pensamento freiriano”1616 Stotz EM, David HSL, Wong-Un JA. Educação popular e saúde: trajetória, expressões e desafios de um movimento social. Rev APS. 2005;8:49-60.(53). A partir de 1991, a Rede de Educação Popular e Saúde (RedePop) articulou nacionalmente profissionais de saúde e lideranças populares. Desde 2000, existe o Grupo Temático de Educação Popular em Saúde, na Associação Brasileira de Saúde Coletiva1717 Lima LO, Silva MRF, Cruz PJSC, et al. Perspectivas da Educação Popular em Saúde e de seu Grupo Temático na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Ciênc saúde coletiva. 2020;25(7):2737. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020257.26122020
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. Em 2003, a RedePop tornou-se Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (Aneps), e nesse ano, foi criada, no Ministério da Saúde, a Coordenação Geral de Ações Populares de Educação na Saúde1818 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re) conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021;25:e200190. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.200190
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. Em 2013, foi promulgada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), com os princípios: diálogo, amorosidade, problematização, construção compartilhada do conhecimento, emancipação e compromisso com a construção do projeto democrático e popular1919 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 nov 20; Seção I:62-63..

As ideias freirianas e da EPS são mais discutidas nas ações especificamente de educação em saúde2020 Acioli S. Radicalizar as práticas de Educação Popular e Saúde. Interface (Botucatu). 2021;25:e200536. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.200536
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,2121 Correa ST, Castelo-Branco S. Amandaba no Caeté: círculos de cultura como prática educativa no autocuidado de portadores de diabetes. Saúde debate. 2019;43(123):1106-1119. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912310
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. Quando discutidas na clínica, são em sentido bem genérico ou voltado para ‘fortalecer as práticas populares de cuidado’1919 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 nov 20; Seção I:62-63.. Por exemplo, para Alves1313 Alves VS. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface (Botucatu). 2005;9(16):39-52. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832005000100004
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, a EPS busca reorientar o trabalho, sobretudo na atenção primária, quanto às práticas de gestão, controle social, educação e cuidado. A EPS ajuda a “problematizar a realidade [...] nos consultórios [...] nas ações educativas nos territórios, nos espaços comunitários, escolares”2222 Nespoli G, Paro CA, Lima LO, et al. Por uma pedagogia do cuidado: reflexões e apontamentos com base na Educação Popular em Saúde. Interface (Botucatu). 2020;24:e200149. DOI: https://doi.org/10.1590/interface.200149
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(11)
. Vasconcelos2323 Vasconcelos EM. Redefinindo as práticas de Saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface (Botucatu). 2001;5(8):121-126. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100009
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considera que a EPS é

[...] fundamental na construção histórica de uma medicina integral, na [...] ampliação da inter-relação entre as diversas profissões, especialidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e organizações sociais [...]. Esta redefinição da prática médica se dá [...] pela articulação de múltiplas, diferentes e até contraditórias iniciativas [...] em um processo que valoriza principalmente os saberes e práticas [populares].

A EPS permite a

emergência de novos padrões de enfrentamento dos problemas de saúde marcados pela integração entre o saber técnico e o saber popular e pela mútua colaboração1515 Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec; 1999.(30).

Em revisão de literatura sobre a EPS2424 Gomes LB, Merhy EE. Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira. Cad Saúde Pública. 2011;27(1):7-18. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2011000100002
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, não se encontra nenhuma discussão específica sobre como ou em que o ideário freiriano pode influenciar/melhorar as consultas médicas e as relações médico-paciente intraconsultório. Há pouca discussão sobre suas contribuições ao ensino/melhoria da condução dos atendimentos médicos, cujo aprendizado técnico é geralmente relegado ao ensino da semiologia e ao aprendizado tácito realizado comumente em hospitais (enfermarias e ambulatórios). O aproveitamento das ideias freirianas parece ter sido algo maior em outras profissões, sobretudo a enfermagem2525 Miranda KCL, Barroso MGT. A contribuição de Paulo Freire à prática e educação crítica em enfermagem. Rev Lat-Am Enfermagem. 2004;12(4):631-635. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-11692004000400008
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26 Araújo BBMI, Machado ACC, Rossi CS, et al. Referencial teórico-metodológico de Paulo Freire: contribuições no campo da enfermagem. Rev Enferm UERJ (Rio de Janeiro). 2018;26:e27310. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2018.27310
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-2727 Ceolin S, González JS, Ruiz MCS, et al. Bases teóricas de pensamento crítico na enfermagem ibero-americana: revisão integrativa da literatura. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e3830016. DOI: https://doi.org/10.1590/0104-07072017003830016
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. Apesar de haver alguns estudos com foco clínico, em geral restrito - por exemplo: Borges e Porto2828 Borges SAC, Porto PN. Por que os pacientes não aderem ao tratamento? Dispositivos metodológicos para a educação em saúde. Saúde debate. 2014;38(101):338-346. DOI: https://doi.org/10.5935/0103-1104.20140031
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-, percebe-se uma escassez de exploração das contribuições freirianas ao ensino e técnica da clínica ambulatorial e à construção de uma boa relação médico-paciente. Neste estudo, tenta-se reduzir essa lacuna, fazendo uma imersão ou zoom no potencial específico de contribuições de Freire ao interior da condução das consultas médicas ambulatoriais comunitárias.

O objetivo deste trabalho é sintetizar as principais contribuições das ideias freirianas para a construção e melhoria da relação médico-paciente no atendimento individual de um ponto de vista da prática clínica ambulatorial. Metodologicamente, foi realizada uma análise de obras sobre a relação médico-paciente e de Paulo Freire selecionadas. Os textos de Freire analisados, por serem considerados essenciais para o entendimento das suas ideias, foram: ‘Educação como prática de liberdade’2929 Freire P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967.; ‘Pedagogia do oprimido’3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.; ‘Extensão ou comunicação’3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.; ‘Educação e mudança’3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.; e ‘Pedagogia da autonomia’3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997..

Sobre a relação médico-paciente, foram selecionados alguns livros de referência usados no ensino de medicina de família e comunidade, pela sua relevância e por essa especialidade médica ter avançado mais em propostas de melhoria da performance clínica: ‘Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde’66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012., ‘Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico’33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010., ‘The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style’55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004., e ‘Skills for communicating with patients’44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013., além de artigos referenciados.

A análise dos dois conjuntos de textos consistiu em leitura e síntese livre dos conteúdos considerados mais relevantes para os objetivos. Na sequência, realizou-se uma análise visando detectar e sintetizar as principais contribuições de Freire à melhoria da performance médica nos atendimentos ambulatoriais, a partir da experiência clínica na atenção primária à saúde dos autores. Não foram adotados procedimentos sistemáticos de análise, e sim leitura e discussão livres das ideias e sua síntese, de modo a permitir sua formatação em artigo. Não foram discutidas questões teóricas e filosóficas além de sua breve menção quando indispensáveis, devido ao foco na prática clínica.

Sobre a relação médico-paciente

A relação médico-paciente tem sido estudada há décadas. Nos anos 1950, Parson3434 Parsons T. The social system. Glencoe: The Free Press; 1951. abordou-a enfatizando o ‘papel de doente’, incapacitado de exercer atividades sociais. A doença seria um desvio ameaçador da ordem social, e ao médico, caberia regular/controlar os doentes, para que retornem às suas atividades3535 Jaisson M. O estudo de práticas médicas: o cenário da sociologia das profissões. Saúde Soc. 2018;27(3):704-714. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180842
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. O psicanalista Balint3636 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., em 1950-1960, analisou relatos de generalistas ingleses enfatizando desencontros e dificuldades relacionais a partir de uma perspectiva psicodinâmica. Sociólogos como Luc Boltanski (1940-…)3737 Boltanski L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. abordaram essa relação, e seus aspectos antropológicos foram discutidos por médicos antropólogos (por exemplo: Kleinman3838 Kleinman AM. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980. [1941-…] e Helmann3939 Helman CG. Cultura, saúde e doença. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. [1944-2009]). Mais recentemente, tal relação é estudada abrangendo a personalização da assistência, a humanização do atendimento, o direito à informação4040 Caprara A, Franco ALS. A Relação paciente-médico: para uma humanização da prática médica. Cad Saúde Pública. 1999;15(3):647-654. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1999000300023
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, o centramento da abordagem na pessoa33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010. e as habilidades de comunicação necessárias para uma boa relação66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012..

A relação médico-paciente foi modelizada. Em 1956, Szazs4141 Szasz TS, Hollender MH. A Contribution to the Philosophy of medicine: the basic models of the doctor-patient relationship. AMA Arch Intern Med. 1956;97(5):585-592. DOI: https://doi.org/10.1001/archinte.1956.00250230079008
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propôs três modelos básicos: atividade-passividade, cooperação-orientação e participação mútua. Este último, baseado na relação entre dois adultos (médico ajuda o usuário a se ajudar), foi considerado mais adequado. Outra proposta viu quatro padrões: paternalista, informativo, interpretativo e deliberativo. No último, mais desejável, o médico seria um amigo ou professor que oferece informações, ajuda o usuário a se conhecer e sugere o que considera melhor4242 Emanuel EJ, Emanuel LL. Four models of the physician-patient relationship. JAMA. 1992;267(16):2221-2226. DOI: https://doi.org/10.1001/jama.268.11.1410b
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Quando o usuário procura o médico, visa diminuir dores e sofrimentos, mas também dar nome e significado ao sofrimento e melhorar seu controle sobre a situação66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Ao procurar assistência, a pessoa está vulnerável, uma posição ‘um abaixo’, com um problema que não consegue resolver sozinha e com autoestima afetada. Ela não deve sair do atendimento ‘dois abaixo’55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004..

Uma consulta inicia-se com a acolhida das demandas do usuário, continua com a anamnese e o exame físico para coletar informações e elaborar hipóteses diagnósticas, e, por fim, gera um plano de manejo a ser pactuado. Para o médico ser efetivo, precisa entender algo do significado, aspirações, crenças, ideias, expectativas e sofrimentos do doente33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Se o médico evita ou inibe as ideias dos usuários, é mais provável haver falhas de entendimento44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

O apoio empático e a cordialidade geram uma resposta positiva, já que o profissional deve ser a ponte para que o medo, comum nos adoecimentos, seja direcionado para uma conta racional66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. É importante, na consulta, que se reconheça e se valorize o ponto de vista do usuário e não se despreze suas ideias e emoções. O reconhecimento das crenças, perspectivas e sentimentos e o incentivo a que sejam expressos permitem uma abordagem mais efetiva ao facilitar um lugar comum entre médico e usuário44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Por vezes, o médico ignora quando o usuário dá voz à sua visão de mundo, e isso é associado nas pesquisas a piores desfechos33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Pode ocorrer que usuário e médico divirjam sobre o adoecimento, ou que este último se sinta receoso de não controlar a consulta: ao deixar o primeiro falar, é incerto para onde irá a conversa. Comumente, os médicos interrompem precocemente e fazem perguntas fechadas, mantendo os usuários passivos e a situação sob controle44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.,4343 Ospina NS, Phillips KA, Rodriguez-Gutierrez R, et al. Eliciting the patient’s agendasecondary analysis of recorded clinical encounters. J Gen Intern Med. 2019;34(1):36-40. DOI: https://doi.org/10.1007/s11606-018-4540-5
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Isso também acontece por barreiras de comunicação decorrentes das diferenças entre médico e usuário (idade, gênero, raça, classe, escolaridade, particularidades culturais)66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Contudo, não é necessário ter compartilhado a experiência de vida da outra pessoa. Basta se aproximar e tentar enxergar a problemática na perspectiva de quem a está vivendo e comunicar seu entendimento, sem pena ou preocupação44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Há duas vozes em uma consulta: a voz da medicina (científica) e a voz do usuário sobre o mundo4444 Mishler EG. The discourse of medicine. The dialectics of medical interviews. Norwood, NJ: Ablex; 1984.. Barry et al.4545 Barry CA, Stevenson FA, Britten N, et al. Giving voice to the lifeworld: more humane, more effective medical care? Soc Sci Med. 2001;53(4):487-505. DOI: https://doi.org/10.1016/S0277-9536(00)00351-8
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notaram que os melhores desfechos ocorriam quando havia um mundo da vida mútuo, em que profissional e usuário utilizam a voz do mundo da vida para salientar a experiência individual. Os médicos precisam ser sensibilizados para dar atenção às preocupações da vida trazidas a eles33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Para coletar informações e raciocinar clinicamente, há que se aproximar da perspectiva da pessoa, das suas crenças e expectativas66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Há algumas estratégias para isso: uma pergunta aberta sobre como o sofrimento afeta a vida induz expressar sentimentos e pensamentos44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. Outra é tentar entender a diferença entre saúde e experiência da doença para a pessoa33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010. e perguntar sobre o seu conhecimento prévio44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Quando os usuários fazem perguntas, expressam suas preocupações, preferências e opiniões, o médico consegue ter melhor entendimento sobre suas crenças33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Se há falha de entendimento e visões divergentes, comumente o profissional não descobriu a visão do usuário nem dialogou com ela44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. Ao final do atendimento, é recomendado ao médico expressar-se com segurança, não caindo na agressividade nem na passividade66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012., bem como evitar o jargão médico, gerador de problemas de comunicação e de inibição em perguntar44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Quando o tratamento não é cumprido, é comum se falar de ‘não adesão’. Em usuários de precária situação socioeconômica ou idosos, isso pode criar estereótipos66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. A má adesão pode ser uma discordância em que houve inibição de falar abertamente33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Colocar a culpa da não adesão ou mal entendimento no usuário é, muitas vezes, um equívoco já que é responsabilidade médica pactuar o plano terapêutico55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004..

O usuário só pode entender claramente o tratamento se o médico tiver claro o que cabe ao primeiro55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004.. O plano de manejo pensado deve se ajustar ao mundo da vida da pessoa atendida33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Os usuários não pegam os dados recebidos em consulta e os processam como um computador, usuários e médicos são seres sociáveis vivendo em comunidade66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. A sua relação não é um teste de força. O médico não precisa concordar com o usuário, mas deve propor sua explicação e tratamento de forma minimamente consistente com a visão da pessoa, e isso deve fazer sentido na sua perspectiva33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010..

O profissional é apenas mais uma influência na vida do usuário, como as mídias, os amigos, a família; e o influenciará na medida em que ele permitir. Logo, não é eficaz ordenar unilateralmente medidas66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. É necessário construir comprometimento com a terapêutica. Esse é o desafio da parte final da consulta. Abre-se um processo de negociação em que, quanto maior o entendimento e a concordância, maior o compromisso. Essa negociação deve ser um diálogo não deixado na mão do usuário nem ordenado unilateralmente pelo médico. O objetivo não é transmitir a verdade, e sim procurar de forma conjunta e responsável o melhor plano de ação66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012..

Na decisão compartilhada, amplamente defendida na literatura, médico e usuário compartilham todos as decisões em mão dupla de informações, preocupações e expectativas44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. O médico não faz tudo o que lhe é solicitado; ele coloca seu conhecimento para discussão do manejo do sofrimento/adoecimento33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. O usuário tem direito de discordar, e quando isso acontece, deve ativar a curiosidade genuína do profissional e o diálogo, tornando a relação mais proveitosa66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012..

Ideias de Paulo Freire

“A liberdade [...] é uma conquista e exige permanente busca”3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.(22), pois quem luta por ela é quem não a tem. Não obstante, Freire pontuava a necessidade de equilíbrio entre liberdade e autoridade, porque “uma ruptura desse equilíbrio poderia gerar autoritarismo ou licenciosidade”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(89). Destacou que o desafio da autoridade é a necessidade da generosidade. Quando um educador usa de arrogância e mandonismos, inferioriza sua autoridade, pois a autoridade democrática entende que “a disciplina verdadeira não existe [...] no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(56). Para não degenerar em autoritarismo, a autoridade deve procurar uma relação simpática e respeitosa3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987..

A autonomia é algo que se constrói conforme a pessoa adquire experiências. Ninguém é responsável pela autonomia de ninguém. A prática educativa deve ser centrada em promover experiências estimuladoras das decisões e da responsabilidade, respeitosas da liberdade. A prática de um profissional crítico que lida com gente é criar essa responsabilidade na capacitação, sem “estimular os sonhos impossíveis... [e sem] negar a quem sonha o direito de sonhar”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(144). Por meio do equilíbrio entre autoridade e liberdade, o educando pode construir uma autonomia com materiais elaborados por ele mesmo ou emprestados pelo educador. Assim, a autonomia vai se construindo por meio da liberdade, que “vai preenchendo o espaço antes habitado por sua dependência”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(94), e se funda na sua responsabilidade.

Freire fazia oposição à educação verbosa e palavresca, que apenas faz comunicados ao invés de comunicar. Colocava que só o diálogo comunica. Quando os dois polos do diálogo se ligam, fazem-se críticos na busca de algo2929 Freire P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967.. O diálogo é um encontro em que se solidariza o refletir e o agir. Isso não é um ato de depositar ideias em um outro supostamente ignorante; ao que chamou de ‘educação bancária’3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979..

Não há diálogo quando alguém se aliena da própria ignorância, enxergando-a apenas no outro e nunca em si, e quando um se fecha à contribuição do outro. O “educador ensina e aprende de forma dialógica com o educando, pois não há ignorantes absolutos nem tampouco sábios. Há homens que, em comunhão, buscam saber mais”3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.(33). Por isso, Freire era opositor do antidiálogo, uma relação de A sobre B, de uma forma desamorosa, arrogante, que rompe a relação de empatia que o diálogo produz3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979..

Freire aborda a interação de educandos e educadores como cointencionados em um diálogo entre sujeitos que, de forma crítica, conhecem a realidade para, assim, recriar o conhecimento a partir da reflexão. Quanto mais criticamente a capacidade de ensinar/aprender é exercida, maior é a construção de uma curiosidade epistemológica3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. O autor defendia uma educação que propicia reflexão sobre o próprio refletir, desenvolvendo essa potencialidade do educando. Tal educação crítica recria a relação do sujeito com a realidade e resulta em estar na realidade e com ela por atos de criação, recriação e decisão. Via como sintoma da desumanização uma pessoa acomodada ao que lhe é imposto em forma de receita, sem oportunidade de discutir. Isso afoga a pessoa na massificação e sacrifica sua capacidade criadora, rebaixando-a a um objeto2929 Freire P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967..

Para Freire, o trabalhador social que opta pela mudança deve ‘desmitificar’ a realidade, ver nas pessoas com quem trabalha (no caso dos médicos, os usuários) sujeitos, e contribuir para a superação da estrutura que os rebaixa à condição de objetos. Deve atuar e refletir com quem trabalha, para conscientizar-se com eles sobre a sua realidade. Necessita cada vez mais ampliar seus conhecimentos técnicos e saberes sobre os limites objetivos que enfrenta no seu ‘que fazer’3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. Quando um profissional ignora os obstáculos, experiências históricas, políticas e sociais que obstruem o processo de autoconhecimento, está trabalhando em favor desses obstáculos. Por isso, não pode defender uma humanidade em abstrato. Há de lutar constantemente contra qualquer forma de opressão3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997..

Se a tomada de consciência coloca a pessoa de forma crítica em um sistema de relações e superando a si mesma, aprofunda-se e se torna conscientização. Contrapondo-se à desumanização, a conscientização resulta na pessoa se defrontando com o mundo, na sua realidade concreta3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.. Compreendendo sua realidade, pode procurar soluções ela mesma e, assim, transformar sua realidade, seu eu e suas circunstâncias. O trabalho educativo envolve, para Freire, intensificar e dialogicizar a relação da pessoa com sua realidade vivida. O educador deve ir em direção a ela e ali perceber aspectos relevantes e significativos para os educandos, para, a partir deles, construir, em diálogo, novos conhecimentos, visando à conscientização crítica.

Em ‘Pedagogia do oprimido’, Freire defende a dialogicidade do seu método como “essência da educação como prática da liberdade”4646 Saviani D. Paulo Freire, centésimo ano: mais que um método, uma concepção crítica de educação. Educ Soc. 2021;42:e254988. DOI: https://doi.org/10.1590/ES.254988
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(9)
. Esse método usa o diálogo para identificar as relações homem-mundo, os ‘temas geradores’, que são palavras e expressões do universo do alfabetizando usados como ponto de partida, ao permitirem conhecer o seu contexto para retirar da vida cotidiana o vocabulário usado na alfabetização e o conteúdo programático da educação4747 Tozoni-Reis MFC. Temas ambientais como “temas geradores”: contribuições para uma metodologia educativa ambiental crítica, transformadora e emancipatória. Educ Rev. 2006;(27):93-110. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-40602006000100007
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. Assim, sua metodologia se dirige ao mundo vivido das pessoas para dele partir, conforme sua experiência e perspectiva, via trabalho dialógico, e chegar aos objetivos educacionais pretendidos.

Contribuições de Paulo Freire

Foram identificados cinco temas centrais em torno dos quais as ideias freirianas contribuem para a melhoria de relacionamentos nos atendimentos clínicos, tornando-os mais efetivos e emancipatórios (quadro 1).

Quadro 1
Contribuições principais de Freire para a melhoria da relação clínica

Reforço ao desafio de desviar da objetificação do usuário

Um problema da relação médico-paciente é a tendência de abordar o usuário como um objeto, derivada do centramento do saber e técnica médicos na dimensão biológica do indivíduo e seu adoecimento (ou riscos). Isso fragmenta o sujeito e o induz a negligenciar as suas demais dimensões, afastando sua complexidade e reduzindo-o a objeto. Há quem justifique isso alegando ser necessário um distanciamento crítico para melhor juízo diagnóstico, um eufemismo para uma suposta neutralidade4848 Aciole GG. O lugar, a teoria e a prática profissional do médico: elementos para uma abordagem crítica da relação médico-paciente no consultório. Interface (Botucatu). 2004;8(14):95-112. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100006
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.

Ademais, barreiras sociais (diferenças culturais e de classe ou grupo social) facilitam que o profissional transforme sua competência em preconceito e arrogância, ignorando a complexidade da vida da pessoa, colocando-a como passiva66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Isso induz o usuário a se sentir suspenso, levando-o a julgar seu mundo de uma forma diferente2929 Freire P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967.. De tanto ouvir que é incapaz, termina por se convencer disso. “Fala de si como aquele que não sabe e dos ‘doutores’ como os que sabem”3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.(28).

Se o profissional impõe um objetivo prescrevendo tratamentos (curativos e/ou preventivos), coisificará o usuário em uma relação de domesticação3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.. Ao agir como ‘doutor’, não explorando no usuário suas complexidades e singularidades contextuais e pessoais, o profissional se torna menos sensível à sua humanidade, compromete-se com sua desumanização e desumaniza-se também3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. Freire reforça esse antigo desafio da formação e prática médicas. Para exercer uma relação baseada na humanização, é necessária uma aceitação do usuário, suas crenças, conhecimentos, emoções e subjetividade. Aceitação não significa concordar com ele, mas ouvir e reconhecer suas emoções e saberes, sua subjetividade, apreciar sua perspectiva e construir uma relação dialogal e participativa44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Concepção emancipadora, crítica e participativa da relação clínica

Freire se colocava contra a educação bancária, fundada na opressão, em que o não saber se encontra apenas no outro3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.. Se o profissional se julga membro de uma elite de especialistas salvadores, donos de um saber a ser doado aos ignorantes, diminui-se como profissional e humano, alienando-se da sua função3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. Para se opor a isso, o profissional deve construir uma relação em que ambos são sujeitos do processo, superando o autoritarismo do método bancário.

Um profissional crítico não pode ser um memorizador mecânico, que não percebe quando não existe relação do que leu e o que ocorre na realidade de seu país, cidade, bairro ou usuário. É necessário perceber melhor as leituras de mundo que os grupos sociais com quem trabalha fazem do seu contexto, e não desconsiderar seu saber. A “leitura de mundo” precede a “leitura da palavra”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(27). Não há técnicas neutras que possam ser transferidas de um contexto ao outro; e a alienação do profissional, por vezes, não permite que perceba isso3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. A comunicação exige sujeitos que incidem sua ‘admiração’ sobre o mesmo objeto. Sendo comuns a ambos as palavras que expressam essa admiração, nasce uma compreensão semelhante do objeto, cujo processo não é isento de condicionantes socioculturais3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992..

Para Freire, o respeito pela leitura de mundo do educando (usuário) não visa gerar simpatia. É a maneira de atuar com o educando (não sobre ele) na tentativa de superação de uma maneira mais ingênua para um modo mais crítico de se relacionar com o mundo. Quando se respeita tal leitura, ela pode ser tomada como ponto de partida do papel da curiosidade como impulsionadora da construção de conhecimento. Quando se desrespeita essa leitura, denotando um gosto elitista, não se escuta o outro nem se fala com ele3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997..

Não se deve pensar pelos outros ou para os outros. A investigação de como o povo (o usuário) pensa deve ser feita com ele como sujeito do seu pensar. Se tiver um pensamento ingênuo, será refletindo o seu pensar que ele mesmo o superará. Tal superação não é consumo de ideias, e sim ato de produzi-las e transformá-las na ação e comunicação3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987., o que se constrói pela curiosidade epistemológica, fomentada pelo aprender criticamente3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997..

Para isso, educador e educando precisam estar co-intencionados à realidade como sujeitos, não apenas para conhecê-la de forma crítica, mas também para recriar este conhecimento3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.(31).

Essa mensagem de Freire reforça que o desafio da relação clínica é oferecer em diálogo informações claras que despertem interesse, confiança e reflexão crítica3232 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. A comunicação é um processo interativo e dialogal, envolve feedback sobre como a mensagem foi interpretada, se foi entendida e qual seu impacto44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. O diálogo é incontornável, viabiliza um encontro em que o profissional estimula o refletir dos sujeitos. Contudo, não é possível dialogar quando se fica fechado para a contribuição da perspectiva do outro3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987..

Assim, a tarefa do profissional é a prática da construção do conhecimento: desafiar gentilmente e dialogalmente a pessoa a produzir seu conhecimento. Não existe a inteligibilidade que não se funde na dialogicidade3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.. O profissional e o usuário cointencionados ao adoecimento/sofrimento contextualizado no mundo da vida se encontram como sujeitos para conhecer criticamente e recriar tal conhecimento3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987., visando ao cuidado.

A importância do mundo da vida do usuário

Barry et al.4545 Barry CA, Stevenson FA, Britten N, et al. Giving voice to the lifeworld: more humane, more effective medical care? Soc Sci Med. 2001;53(4):487-505. DOI: https://doi.org/10.1016/S0277-9536(00)00351-8
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conduziram uma análise qualitativa de consultas médicas e observaram três tipos de relação: a) mundo da vida ignorado, em que a perspectiva das pessoas era ignorada pelo médico; b) mundo da vida bloqueado, na qual essa perspectiva era suprimida pela perspectiva médica; e c) mundo da vida mútuo, em que o usuário e o médico usam a perspectiva de vida do primeiro para salientar o aspecto único da vivência da pessoa. Nessas análises, os piores desfechos ocorreram nos dois primeiros tipos, e os melhores, no último. Os autores concluíram que os médicos precisam ser sensibilizados para dar atenção às preocupações do mundo da vida que a pessoa traz.

O mundo da vida varia para cada pessoa e em diferentes momentos. A explicação e o tratamento devem ser consistentes com o ponto de vista do usuário e fazer sentido em seu mundo33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010.. Para uma atuação democrática na relação, o médico deve colocar seus conhecimentos à disposição, e a pessoa os usa em seu benefício66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012..

Freire defendeu que o trabalho educativo necessita partir do mundo da vida vivida das pessoas para com elas reinterpretar tal mundo criticamente, e nele agir. Isso é amplamente convergente com as diretrizes que conclamam, há décadas, que a abordagem clínica seja centrada nas pessoas. No método clínico clássico, influenciado pelo ambiente hospitalar, rapidamente se abandona o mundo vivido do doente. Isso sacrifica em grande parte a dialogicidade, afasta sua perspectiva, seus valores, preocupações e modelos explicativos, e inibe o diálogo que permite maior compreensão crítica da situação e mais engajamento e participação no tratamento. Assim, a relação tende a reproduzir hierarquia e dominação.

A qualidade da ação clínica e de seu componente educativo depende essencialmente da dialogicidade e do seu centramento na pessoa em contexto familiar, ocupacional e psicossocial. Por outro lado, a perspectiva superficial de melhorar a ‘humanização’ da relação médico-paciente (empatia, confiança, vínculo) visando apenas a uma maior adesão, via treinamento de técnicas de entrevista, é muito limitada diante da complexidade da construção de maior consciência crítica; da dificuldade de se abrir e manter um diálogo genuíno com maior horizontalidade e empatia no contexto do atendimento médico; e das armadilhas das dinâmicas de poder envolvidas nas relações clínicas. Isso fica em destaque ao se considerar a (progressivamente maior) necessidade de participação dos usuários no seu cuidado devido aos adoecimentos crônicos e à maior longevidade.

A centralidade de abrir e manter o diálogo

“O diálogo é uma exigência existencial, [...] educação é comunicação e diálogo, um encontro de sujeitos que buscam a significação dos significados”3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.(42). Essa centralidade do diálogo deve ser percebida na relação médico-paciente. Enquanto a atuação médica for “verbosa, palavresca, assistencializadora e tutelar não comunicará e sim fará comunicados”2929 Freire P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967.(94).

Há estratégias e dicas para facilitar o diálogo. Uma delas é a diminuição e a evitação do uso do jargão médico, pois quando se usa linguagem técnica, a pessoa pode não entender e se sentir inibida em perguntar44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. Porém, a principal estratégia de comunicação é ficar atento à perspectiva do usuário quando ele transmitir seu sistema de crenças, sua percepção do problema e seu contexto. Reconhecendo essa perspectiva, o médico pode trazer de forma mais adequada o seu próprio sistema de crenças e oferecê-lo como possibilidade de beneficiar o usuário. O objetivo da consulta, assim, é trazer essas duas porções de sistemas de crenças para interagirem dialogicamente, para que, quando os sujeitos se separarem, cada uma tenha mudado um pouco: o médico tenha adquirido novas informações sobre a pessoa e esta última tenha avançado algo na resolução/manejo do seu problema de saúde55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004..

O protagonista principal da consulta é o usuário, e o profissional deve agir como um facilitador, a oferecer recomendações e orientações. Por isso, é importante usar a negociação, que difere da persuasão, já que em uma negociação as duas partes desejam algo por meio do diálogo. Quase sempre, os acordos feitos com diálogo honesto são mais efetivos do que as propostas iniciais, se há escuta sincera e aceitação de que o usuário pode acrescentar algo para a condução do quadro66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Um indicador do espaço que o usuário tem na consulta é a porcentagem de tempo ocupado pela fala do usuário no atendimento.

Aceitar as ideias do usuário, principalmente as discordantes, sem um julgamento, pode não ser fácil inicialmente. No entanto, isso estabelece um lugar comum, via entendimento compartilhado da perspectiva do usuário. O profissional reconhece para o usuário que ter ideias e emoções em relação a seu quadro é importante, usufrui delas para o aperfeiçoamento da sua proposta diagnóstica e terapêutica e, adicionalmente, cria uma sensação no usuário de acolhimento das suas necessidades44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013..

Para um diálogo efetivo, é importante o silêncio. O ato de escutar deve ser realizado procurando entrar no movimento interno do pensamento do usuário. A verdadeira escuta não impossibilita que o profissional discorde. Pelo contrário, é escutando que se pode acessar o ponto de vista do usuário3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.. Faz parte da construção do diálogo estimular a pergunta e a reflexão crítica dessa pergunta. O fundamental é que a postura seja dialógica e indagadora, com um respeito pelo saber da pessoa, e que pode ser superado, se for o caso, por meio da curiosidade epistemológica3131 Freire P. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992. despertada/reforçada via diálogo interessado pelo seu quadro de forma crítica3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987..

O profissional de saúde não parte do zero. Há uma confiança depositada nele pelo prestígio social, pelo saber técnico que domina ou pela assertividade que opera. Esta última depende da habilidade comunicacional em expressar-se com segurança. Contudo, é preciso equilibrar a confiança que o usuário deposita no profissional. Não se deve deixar que ela crie uma dinâmica de poder que ofusque o objetivo do bem-estar e do crescimento da autonomia do usuário.

Cuidado no manejo das dinâmicas de poder

Nas dinâmicas de poder em uma consulta, por vezes, o usuário não distingue entre pedir e exigir. Isso pode ocorrer por falta de educação da pessoa, mas também pode ser derivado de experiências prévias autoritárias com médicos, nas quais aprendeu que sua opinião só é avaliada quando a impõe agressivamente66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Não sendo a consulta um teste de força, a habilidade médica consiste em apresentar uma sugestão que faça sentido no conjunto de hábitos e crenças do usuário, para que, assim, ele se torne um aliado na busca do bem-estar55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004..

Durante a consulta, o usuário fornece diversas ‘dicas’ sobre a complexidade de seu sistema de crenças de modo verbal e não verbal. Entretanto, os profissionais, muitas vezes, falham em captá-las, o que é alimentado pela sua tendência de prestar atenção somente nas partes da fala dos usuários que podem ser relacionadas à(s) sua(s) doença(s) ou riscos (doença(s) na acepção biomédica, ou disease), ignorando sua relação com ela(e)(s). Isso pode ocorrer por busca de controle pelo profissional, via perguntas fechadas limitantes das contribuições do usuário44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. Outra forma é não informar sobre a situação diagnóstica em sua completude, a não ser que o usuário o solicite, o que reforça a hierarquia de poder e sacrifica a oportunidade de educação sanitária66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.. Se a diferença de patamar do conhecimento do médico para o do usuário é algo reforçado pelo profissional, ocorre uma mistificação do conhecimento técnico e a desvalorização do saber do usuário, dificultando a criação de usuários autônomos e informados44 Silverman J, Kurtz S, Draper J. Skills for communicating with patients. 3. ed. London: CRC Press; 2013.. É importante romper com essa dinâmica de poder e não dominar a consulta33 Stewart M, Brown JB, Weston WW, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2010..

O que marca a consulta de um profissional, porém, não é tanto o seu uso do poder, mas o seu comprometimento com o sofrimento da pessoa. Esses aspectos emocionais são os mais valorizados pelos usuários. Assim, o objetivo da consulta é criar um ambiente em que ambas as partes se mantenham confortáveis e que a autonomia do usuário seja respeitada, para que se tenha sempre em mente que o profissional só influencia o paciente até onde ele permitir, sem necessidade de sermões. É difícil dialogar em um clima de relação antagônica, em que o profissional só impõe ou cede e não dialoga com ideias ou crenças, logo, não as transforma. Adequar os conhecimentos científicos às crenças do usuário não significa relativizar o saber técnico, que deve ser oferecido da melhor forma possível. A autonomia do usuário não pode ser desculpa para que o médico não trabalhe para a construção do conhecimento sanitário55 Neighbour R. The inner consultation: how to develop an effective and intuitive consulting style. London: Radcliffe Publishing; 2004.,66 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012..

O profissional que busca sair da ideologia da opressão deve romper com a (suposta) neutralidade na sua atuação. O discurso da neutralidade é uma maneira cômoda de esconder a opção de denunciar uma injustiça; ‘lavar as mãos’ em face da opressão é reforçar o lado opressor. O que se coloca ao profissional democrático, ciente da impossibilidade da neutralidade, é saber que a sua prática não é a chave para transformações sociais nem é reprodutora da ideologia dominante. Assim, deve saber que quando uma pessoa inserida em um contexto de carência e ou injustiça se adapta à dor, à fome, ao desconforto, essa adaptação toma forma de resistência ao descaso ofensivo a que é submetida. Tais adaptações são resistências necessárias para a sobrevivência física. Entretanto, na resistência que a mantém viva, é preciso que se coloque o futuro como um problema (com possibilidade de resolução), não como inevitável.

Na vocação para o ‘ser mais’ como expressão da natureza humana, há que se fundamentar na rebeldia, e não na resignação para galgar as mudanças perante as ofensas que destroem ou oprimem o ser. A rebeldia em si é um ponto de partida indispensável para buscar a mudança, mas ela não é o suficiente. A mudança implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, o que é fundamental: mudar é difícil, mas é possível. Esse mote pode orientar as ações do profissional democrático e crítico, cuja tarefa ao se relacionar com o outro (usuário) é apoiá-lo para que ele mesmo vença suas dificuldades na compreensão do problema3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997..

Deve haver um equilíbrio entre autoridade e liberdade: quando em harmonia, há disciplina; quando há desequilíbrio, a relação se degenera para a licenciosidade ou para o autoritarismo. Um indício de desequilíbrio é a “sofreguidão pelo mando”3333 Freire P. Pedagogia da autonomia; saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997.(89), que se poderia contextualizar na medicina como mania de sermão e prescrição. Uma relação que incorpore a perspectiva, o mundo da vida e a agenda do usuário, baseada em estímulo para ele participar e se expressar em diálogo na construção de uma interpretação diagnóstica comum e de uma decisão compartilhada da terapêutica, é um antídoto aos comuns desequilíbrios autoritários na relação clínica.

Considerações finais

Há consenso sobre haver necessidade de atitudes e domínio pelo médico de habilidades importantes na relação médico-paciente para uma consulta efetiva: busca de humanização da consulta, maior compartilhamento de ideias e decisões e melhor entendimento da perspectiva do usuário, para que o plano terapêutico seja pactuado e adaptado às suas crenças, expectativas e situação de vida. As ideias de Paulo Freire dialogam, enriquecem e intensificam tais atitudes e habilidades ao aprofundarem a crítica à objetificação do usuário, destacarem a importância do diálogo e de investir nele do começo ao final dos atendimentos, enfatizarem a necessidade de partir da perspectiva do usuário em seu mundo da vida para construir com ele saber crítico e ampliar sua autonomia, sem reproduzir dinâmicas de poder autoritárias e apassivadoras.

O referencial freiriano traz conceitos e ideias pouco abordados na teoria, na prática e no ensino da clínica ambulatorial, que fazem sentido nesse contexto e lhe são pertinentes. Tal referencial traz uma perspectiva de ‘profissional democrático’, questionando conceitos de neutralidade e autoridade na relação clínica. Além disso, reforça a necessidade do entendimento do contexto socioeconômico, familiar e psicossocial em que o usuário está inserido para o fomento da autonomia, da conscientização crítica e do seu envolvimento no cuidado. No Brasil, cuja população é multicultural, exposta a intensas desigualdades, violências e iniquidades e rica em práticas/saberes diversos em saúde, isso implica maior conhecimento e aproveitamento dos recursos de cuidado das pessoas, suas comunidades e seus saberes, comumente ignorados pelos profissionais em suas propostas terapêuticas. Tais ideias contribuem para ressignificar a atuação do médico e melhorar sua performance clínica, podendo também orientar estrategicamente sua formação.

  • Suporte financeiro: Tesser CD recebeu bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) - processo nº 313822/2021-2

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Aceito
    07 Jun 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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