Itinerário terapêutico da pessoa com Artrite Reumatoide e sua repercussão na produção do cuidado

Therapeutic itinerary for people with Rheumatoid Arthritis and its impact on the production of care

Graciano Almeida Sudré Silvia Matumoto Sobre os autores

RESUMO

A falta de intervenção em momento oportuno para pessoas com Artrite Reumatoide pode acarretar dores, processos inflamatórios e incapacidades, fato que motivou a investigação, cujo objetivo foi analisar o itinerário terapêutico da pessoa com Artrite Reumatoide e sua repercussão para produção do cuidado. Abordagem qualitativa, com deslocamento in-mundo para construção de uma pesquisa-interferência, apoiada em alguns conceitos da análise institucional. A produção dos dados ocorreu por meio de entrevista com uma pessoa acometida pela Artrite Reumatoide para construção de seu itinerário terapêutico, posteriormente apresentado a grupos de trabalhadores da Atenção Primária à Saúde. Como resultado, o itinerário terapêutico concentrou-se no percurso assistencial, busca pelo diagnóstico e possíveis soluções para controle da dor. Nos grupos, os profissionais da Atenção Primária à Saúde manifestaram perda de autonomia e repasse da responsabilidade do acompanhamento e do cuidado longitudinal para a atenção especializada. Dessa forma, a não banalização da dor, a necessidade de debate acerca das garantias para o acesso aos serviços com acompanhamento adequado e a existência de novos investimentos para resgate das ações de matriciamento, além de elaboração de protocolos para melhoria do acesso são pistas para o combate à insuficiência dos serviços públicos na garantia do direito universal à saúde.

PALAVRAS-CHAVE:
Artrite Reumatoide; Itinerário terapêutico; Análise institucional; Necessidades e demandas de serviços de saúde; Integralidade em saúde.

ABSTRACT

The lack of timely intervention for people with Rheumatoid Arthritis can lead to pain, inflammatory processes and disabilities, a fact that motivated the investigation, whose objective was to analyze the therapeutic itinerary of people with Rheumatoid Arthritis and its impact on the production of care. Qualitative approach, with in-world travel to construct interference research, supported by some concepts of institutional analysis. Data production occurred through an interview with a person affected by Rheumatoid Arthritis, to construct their therapeutic itinerary, later presented to groups of Primary Health Care workers. As a result, the therapeutic itinerary focused on the care pathway, search for diagnosis and possible solutions for pain control. In the groups, Primary Health Care professionals expressed a loss of autonomy and transferred responsibility for monitoring and longitudinal care to specialized care. In this way, the non-trivialization of pain, the need for debate about guarantees for access to services with adequate monitoring and the existence of new investments to rescue matrix support actions, in addition to the development of protocols to improve access are clues for the combating the insufficiency of public services in guaranteeing the universal right to health.

KEYWORDS:
Arthritis; rheumatoid; Therapeutic itinerary; Institutional analysis; Health services needs and demand; Integrality in health.

Introdução

A Artrite Reumatóide (AR) constitui-se como uma doença de longa duração, autoimune, que ocupa a quadragésima segunda colocação na lista das condições que causam deficiência global. Incide até três vezes mais em mulheres com mais de 40 anos e atinge, aproximadamente, 1% da população mundial11 Nagayoshi BA, Lourenção LG, Kobayase YNS, et al. Rheumatoid arthritis: profile of patients and burden of caregivers. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2018;21(1):44-52. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-22562018021.170103
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,22 Kiyomoto HD, Kiyiomoto HD. Drogas modificadoras do curso da doença no tratamento da Artrite Reumatoide: sintéticos combinados versus agentes biológicos: revisão sistemática e estudo econômico [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.
.

Para a pessoa acometida pela AR, a busca por cuidados no início da doença é motivada principalmente pela necessidade de diminuição da dor e descoberta do diagnóstico. Nessa busca, o encontro entre o trabalhador da saúde e a pessoa com AR é permeado por ações disparadoras de distintos caminhos que interferem no contexto e vida dessas pessoas.

O atraso em estabelecer o diagnóstico precocemente e o uso do medicamento adequado em tempo oportuno para impactar no curso da doença acarreta danos, com sintomas mais frequentes e necessidade maior de acesso33 Oliveira SC. Itinerário terapêutico de pacientes com artrite reumatoide em uso de medicamentos modificadores do curso da doença biológicos [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.

4 Mota LMH, Cruz BA, Brenol CV, et al. Safe use of biological therapies for the treatment of rheumatoid arthritisand spondyloarthritides. Rev Bras Reumatol. 2015;55(3):281-309. DOI: https://doi.org/10.1016/j.rbr.2014.06.006
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-55 Suter LG, Fraenkel L, Holmboe ES. What factors account for referral delays for patients with suspected rheumatoid arthritis? Arthritis Rheum. 2006;55(2):300-305. DOI: https://doi.org/10.1002/art.21855
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. Durante esse período, os problemas e as dificuldades para o acompanhamento da pessoa com AR relacionam-se à ausência de informações para entender sobre a doença, seu impacto e cronicidade33 Oliveira SC. Itinerário terapêutico de pacientes com artrite reumatoide em uso de medicamentos modificadores do curso da doença biológicos [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017..

Desenvolver estudos com pessoas acometidas pela AR e observar a produção de cuidado possibilita colocar em análise as ações profissionais, as relações entre trabalhador e a pessoa acometida pela AR, os múltiplos e diversos processos que permeiam o manejo dessa doença que causa dor, dependência e sofrimento, além de possibilitar um debate sobre direito, acesso universal e mercantilização da saúde.

Nesse último, o enfoque da biomedicalização ganha espaço66 Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico. Interface (Botucatu). 2017;21(63):1005-1016. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0808
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, visto que pessoas passam a colocar o medicamento como objeto central e único nas práticas de produção de cuidado, como também os profissionais: a enfermagem centra-se, assim, na manutenção dessa máquina ao controlar a agenda, o acesso e as questões burocráticas; a medicina produz prescrições, pedidos de exame e laudos técnicos; e a farmácia garante as ações protocolares conforme as normativas técnicas definidas pelos gestores.

Todos com foco na aquisição do medicamento e com pouca projeção do olhar para outras práticas criativas que poderiam surgir, mesmo que complementares a todo esse processo. Práticas que, por sua vez, poderiam alcançar formas mais significativas e eficazes de produzir cuidado, com projeções de olhares para vida e para as singularidades apresentadas a cada encontro - isento das normativas mercadológicas e centradas no medicamento.

No Brasil, pesquisas direcionadas à gestão do cuidado e fluxo da pessoa com AR pelos diferentes serviços são incipientes. No entanto, um estudo problematiza o fluxo da pessoa pelos serviços de saúde e aponta que as fragilidades estão presentes, naquele mesmo processo de aquisição de medicamentos e nos gastos públicos para manutenção do tratamento33 Oliveira SC. Itinerário terapêutico de pacientes com artrite reumatoide em uso de medicamentos modificadores do curso da doença biológicos [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017., uma vez que pessoas se tornaram consumidoras e não produtoras de suas próprias estratégias de cuidado66 Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico. Interface (Botucatu). 2017;21(63):1005-1016. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0808
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. Nessa vertente, pessoas com AR bem acompanhadas passaram a ser aquelas que conseguiram entrar no circuito de aquisição do medicamento de ‘alto custo’, cumprindo todos os padrões estabelecidos pelo Estado para aquisição do medicamento.

Ao considerar o cenário de análise, cabe particularizar o contexto das pessoas vinculadas à regional de saúde sul, do estado de Mato Grosso, que tem como polo o município de Rondonópolis, MT, cidade que possui 203.080 mil habitantes77 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BR). Mapas: população residente [Internet]. [Rio de Janeiro]: IBGE; 2023 [acesso em 2020 nov 30]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/
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e que congrega, ao todo, 19 municípios.

Rondonópolis é referência para alta e média complexidade e atualmente está subdividido administrativamente em cinco distritos de saúde. Compreende o Hospital Regional Irmã Elza Giovanella, o Hospital e Maternidade Santa Casa de Rondonópolis e o Centro de Nefrologia e Serviço de Atendimento Especializado88 Pereira PS, Monteiro JLG. A consolidação da cidade de Rondonópolis como um polo de saúde na região geográfica intermediária de Rondonópolis - MT. Rev InterEspaço. 2020;5(19):1-28. DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2446-6549.e202023
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, além de contar com 54 Unidades de Saúde da Família (USF)99 Ministério da Saúde (BR), Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Consulta Estabelecimento. Identificação [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde, CNES; 2023 [acesso em 2023 jul 4]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/pages/estabelecimentos/consulta.jsp
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Em Rondonópolis, as pessoas com AR são inseridas no cenário das pessoas com condições crônicas, acompanhadas pelo médico reumatologista. Os serviços com maiores fluxos para essa condição de saúde, sem linhas de cuidado estabelecidas, são: Centro de Especialidades e Apoio Diagnóstico Albert Sabin - ambulatório de reumatologia; Unidade de Pronto Atendimento (momentos de agudização); Farmácia Central (protocolo de aquisição de medicamento). No sistema municipal de saúde em destaque, as unidades da Atenção Primária à Saúde (APS) transferem a vinculação, a responsabilização e a função de organização do cuidado para o serviço especializado.

Após particularizar os serviços desse sistema, considerando a produção do cuidado, as ações são influenciadas pela concepção de saúde dos envolvidos e pela finalidade que se deseja alcançar, o que por sua vez, determina a escolha das tecnologias de saúde a serem empregadas no processo de cuidar.

A lógica centrada no medicamento sugere uma linha de investimento (aquisição do medicamento) e diminui outras estratégias que advêm de outros saberes, não farmacológicos, ofertados por diferentes profissionais não prescritores e até mesmo pelo saber popular. A engrenagem da manutenção do corpo medicado não é interrompida e repete-se trimestralmente, com protocolos e práticas muito bem definidos, burocratizantes, mas que ceifam qualquer outro tipo de investimento.

A vida não caminha por linhas pré-definidas ou pré-determinadas; os protocolos existem, mas o caminhar depende muito das dificuldades e facilidades que surgem durante a trajetória, posto que o cuidado é produzido no encontro. No entanto, a influência para as ações prescritivas agora se faz via usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) que têm no medicamento a única alternativa terapêutica. Assim, emerge uma nova subjetividade para o processo saúde-adoecimento-cuidado, em que se imprime a lógica do mercado66 Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico. Interface (Botucatu). 2017;21(63):1005-1016. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0808
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, na qual novas linhas, ações e serviços passam a figurar como requisitos mínimos para funcionamento de toda engrenagem.

Diante do cenário exposto, um efeito colateral surge: a transferência de responsabilidade. No município em questão, as linhas de cuidado às pessoas com condições crônicas, em especial da reumatologia, não estão definidas fazendo com que o especialista detentor dos mecanismos de superação dos obstáculos para o alcance do medicamento ganhe destaque, valendo-se para tanto de tecnologias duras e leve-duras, que passam a ser as mais empregadas, com baixíssimo investimento nas tecnologias leves.

As tecnologias em saúde podem ser caracterizadas como duras, sendo aquelas que utilizam instrumentos do tipo material; tecnologias leve-duras, aquelas que se configuram como saberes e todo conjunto de conhecimentos que operam o processo de trabalho; e tecnologias leves, aquelas que são produzidas no encontro entre trabalhador e sujeito sob cuidados, no âmbito das relações1010 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

As distintas formas de manejar esse conjunto de tecnologias do trabalho em saúde são orientadas por intencionalidades e finalidades, que na produção em ato, conformam diferentes modelos tecnoassistenciais1010 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

Nesse caminho, é possível identificar um processo de busca de satisfação das necessidades de saúde, principalmente por meio de um conceito ampliado desse termo que permite uma aproximação da realidade e a contraposição com as distintas formas de acesso aos serviços de saúde que estão estabelecidas.

Nos processos de busca por cuidado, à pessoa interessa o atendimento de suas necessidades de saúde, tais como: garantia de boas condições de vida, acesso irrestrito, produção de uma relação de vínculo e responsabilização, geradora de autonomia e de múltiplas estratégias de cuidado1111 Cecílio LCO, Matsumoto NT. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, editores. Gestão em Redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: EdUCS/UFRJ: IMS/UERJ: CEPESC; 2006. p. 112.,1212 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saúde Pública. 2014;30(7):1502-1514. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00055913
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Aos profissionais, cabe particularizar as distintas necessidades de saúde que são apresentadas, sendo necessário para tanto reformular as próprias práticas para fortalecer e reorganizar os serviços de saúde. Neste momento, como possibilidade revolucionária, cabe considerar, em especial, duas políticas transversais: Política Nacional de Humanização (PNH) e Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), por influenciarem historicamente, de forma positiva, o processo de trabalho de diferentes equipes1313 Lopes MTSR, Labegalini CMG, Silva MEK, et al. Continuing education and humanization in the transformation of primary health care practices. REME. 2019;23:e-1161. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20190009
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Sob essa ótica, olhar para a produção do cuidado oportuniza um debate que possibilita compreender objeto, instrumentos, agentes e finalidade do trabalho em saúde, assim como desafios presentes nas diferentes formas de acesso e estratégias utilizadas no processo de gestão do cuidado1414 Peduzzi M, Schraiber LB. Processo de trabalho em saúde. In: Pereira IB, Lima JCF, editores. Dicionário de Educação Profissional em Saúde [Internet]. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/FIOCRUZ; 2008 [acesso em 2023 jul 4]. p. 320-328. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l43.pdf
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,1515 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019;43(esp6):70-83. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606
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. Não obstante, possibilita a adoção de mudanças com ferramentas e práticas históricas de transformação da realidade1313 Lopes MTSR, Labegalini CMG, Silva MEK, et al. Continuing education and humanization in the transformation of primary health care practices. REME. 2019;23:e-1161. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20190009
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Diante dessa realidade, emerge o seguinte questionamento: como ocorre o processo de busca por cuidados da pessoa com AR e quais as repercussões da apresentação desse itinerário às equipes da APS?

O itinerário terapêutico possibilita compreender as experiências de cuidado no dia a dia e as diferentes formas de gestão do autocuidado, nuances importantes para (res)significação da busca por ações e serviços de saúde, sua produção e impactos individuais e coletivos1616 Bellato R, Araújo LFS, Maruyama SAT, et al. História de vida como abordagem privilegiada para compor itinerários terapêuticos. In: Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al., editores. Itinerários terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro, RJ: Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco; 2016. p. 203-222..

Nesse processo de busca pelo cuidado, o traçado das diferentes trajetórias não assume um padrão de repetição, mas uma singularidade, por expressar contradições não generalizáveis1717 Alves PCB, Souza IMA. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz; 1999. 264 p.. Cada percurso eleito é permeado pela criatividade, improvisação e está em constante modificação, permeável por escolhas e circunstâncias únicas, com imprevisibilidade de fluxos e trajetos, sendo tecidas de forma processual.

Torna-se prudente olhar para o itinerário como um emaranhado de múltiplas possibilidades para manejar o processo de produção de cuidado. Na perspectiva da reinvenção e transformação em cada percurso, surge o desafio de pensar o itinerário como um processo aberto, em permanente construção1818 Bonet O. Itinerações e malhas para pensar os itinerários de cuidado. a propósito de Tim Ingold. Sociol Antropol. 2014;4(2):327-350. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752014v422
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A produção do cuidado expõe as dimensões das práticas de saúde, a centralidade (na pessoa, medicamento ou no procedimento), os estímulos à biomedicalização e investimentos para aquisição do melhor produto e droga capaz de controlar ou modificar o curso da doença - situação imperativa, que não deve ser objetivo final e sim meio do processo terapêutico. O modo de operar o trabalho vivo e as disputas que se fazem presentes na tessitura de diferentes modelos de atenção1919 Santos DS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(3):861-870. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018233.03102016
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particularizam a produção do cuidado. Projetar o olhar para o itinerário terapêutico, no contexto da pessoa com AR, permite identificar como as diferentes linhas se articulam em direção a essas produções ‘vivas’ no cotidiano.

A utilização do itinerário terapêutico como ferramenta para fazer pensar a realidade propõe importantes deslocamentos que estimulam a capacidade reflexiva e possibilitam processos de autoanálise e autogestão. Diante desses aspectos, essa pesquisa objetivou analisar o itinerário terapêutico da pessoa com AR e sua repercussão para produção do cuidado.

Material e métodos

Pesquisa de abordagem qualitativa em que foi possível o deslocamento do pesquisador in-mundo para construção de uma pesquisa-interferência, apoiada em alguns conceitos da análise institucional. Sobre esse último, adotou-se um referencial com diferentes intersecções com a saúde coletiva no SUS, inscrito como base que fundamenta a PNH e a PNEPS2020 Kasper M, Fortuna CM, Braghetto GT, et al. Institutional analysis in scientific health production: an integrative literature review. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03587. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018046203587
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A abordagem qualitativa possui como característica a interpretação e a investigação com pessoas em seu contexto, considerando os significados que elas produzem2121 Gil AC. Como fazer pesquisa qualitativa. Barueri, SP: Atlas; 2021.. A pesquisa-interferência2222 Schiffler ÂCR, Abrahão AL. Interferindo nos microprocessos de cuidar em saúde mental. In: Gomes MPC, Merhy EE, editores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. p. 89-104.,2323 Figueiredo EBL, Andrade EO, Muniz MP, et al. Research-interference: a nomad mode for researching in health. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):571-576. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0553
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possibilita ao pesquisador in-mundo se emaranhar, implicado com a realidade e agentes do campo, sujar-se de mundo e se diluir com objeto2424 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, et al. O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, et al., editores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 20-22.. Ou seja, não há separação entre pesquisador e objeto, não existe neutralidade.

Pesquisa interferência é uma forma de deslizar pelos trajetos que dominam a produção de pesquisa, ativar alternativas inventivas para aproximar os participantes e potencializar seus encontros com pesquisador2323 Figueiredo EBL, Andrade EO, Muniz MP, et al. Research-interference: a nomad mode for researching in health. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):571-576. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0553
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. Essas possibilidades, neste estudo, ocorreram em Rondonópolis, município do estado de Mato Grosso, e envolveram o ambulatório de reumatologia e os profissionais integrantes das equipes de saúde da família do mesmo município, ou seja, cenários do SUS.

Nessa trama, o município está organizado com uma estrutura híbrida entre o público e o privado, com uma gama de serviços públicos de APS, especializada e de média e alta complexidade; grandes operadoras de planos de saúde; rede privada e filantrópica, essa última com atendimento SUS.

Mesmo figurando como cidade polo de uma regional de saúde, Rondonópolis consiste em um município pequeno. Assim, o profissional SUS eventualmente também trabalha ou é próximo de alguém que trabalha em planos de saúde, filantropia ou iniciativa privada, situação que favorece deslizes como: solicitação do medicamento via plano e aquisição via SUS; consulta via consultório privado e receituário e exames via SUS.

Duas etapas compuseram a investigação: uma individual, em que se construiu o itinerário terapêutico de uma pessoa com AR e uma etapa coletiva, que envolveu a composição de grupos de trabalhadores da APS para análise e reflexão sobre o itinerário terapêutico produzido anteriormente.

Na primeira etapa de produção dos dados, o próprio pesquisador conduziu as entrevistas. A técnica escolhida foi entrevista aberta individual. Nessa modalidade, o investigador explica o propósito da conversa e entremeia perguntas considerando o que é dito pelo participante2525 Minayo MCS, Costa AP. Fundamentos teóricos das técnicas de investigação qualitativa. Rev Lus Educ. 2018;40(40):139-153..

A entrevista foi audiogravada, transcrita e teve duração de 90 minutos. A seleção da participante foi intencional, como critério de inclusão: ser adulta, com diagnóstico de AR, acompanhada em ambulatório de reumatologia e receber indicação da equipe para que participasse da pesquisa.

A abordagem inicial à participante foi realizada em sala de espera, pelo pesquisador, e antecedeu a consulta médica. Após o aceite e o cumprimento de todos os aspectos éticos da pesquisa, realizou-se a entrevista.

A entrevista foi realizada em uma sala reservada do ambulatório de reumatologia, indicada pela equipe, climatizada, com poucos ruídos, com porta, mesa e cadeiras. Para preservar o sigilo da participante, seu nome foi substituído por outro, baseado na relação nacional de plantas medicinais de interesse ao SUS2626 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos, Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse para o SUS. Brasília, DF: MS/DAF; 2019. p. 2. - Vernônia, inspirado na planta Vernonia condensata.

Os grupos com os trabalhadores (G1, G2, G3 e G4) foram realizados em dois dias de outubro de 2022, no auditório do prédio da Secretaria Municipal de Saúde, ambiente climatizado, com projetor, boa acústica e cadeiras não fixas.

Os profissionais foram convidados e indicados por meio do Departamento de Atenção à Saúde. A proposta do pesquisador foi compor grupos de até 12 pessoas de distintas unidades de saúde. Assim, 48 pessoas foram convidadas, das quais 34 compareceram. Aqueles que não compareceram não compunham o mesmo grupo e, embora não tenham exposto os motivos, a gestão justificou tais ausências devido a férias, dificuldade na realocação da agenda, banco de horas ou outros compromissos com a gestão ou equipamentos sociais.

As características relacionadas ao tempo de formação e categoria profissional dos integrantes dos grupos estão apresentadas no quadro 1.

Quadro 1
Apresentação dos grupos de trabalhadores da Atenção Primária à Saúde segundo tempo de formação e categoria profissional. Rondonópolis, MT, 2022

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 50063221.4.0000.0126, Parecer nº 4.909.870, observando princípios e diretrizes para pesquisas com seres humanos2727 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:549.,2828 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44.. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Itinerário terapêutico de Vernônia

Vernônia - 55 anos, mulher preta, casada, heterossexual, autônoma, ensino superior completo em tecnologia em design de interiores, escolheu não ser mãe, é a filha mais nova de uma família numerosa; seu esposo é jardineiro (pretendem abrir uma pequena empresa de jardinagem e design de interiores), residem juntos em casa própria e possuem um carro e uma moto.

No período de produção dos dados referiu pouca dor, sem perdas da capacidade funcional e remissão da atividade da doença. Durante a entrevista foi possível reconhecer elementos importantes do itinerário terapêutico da Vernônia (figura 1). O percurso abarcou três dimensões da gestão do cuidado: individual, profissional e familiar.

Figura 1
Itinerário terapêutico Vernônia

Na dimensão individual da gestão do cuidado, foi ressaltada por Vernônia a tentativa de manutenção do seu vínculo empregatício, visto que com o trabalho podia se sustentar e subsidiar a manutenção do tratamento (pagamento de atendimentos na rede privada e plano de saúde), seu estado de saúde produziu o medo de perder o emprego, e por consequência o plano de saúde. Quando não foi mais possível acompanhar a elevação dos gastos, para garantir o mínimo de acesso aos serviços de saúde de que precisava, necessitou redefinir a carreira para lidar com o desemprego e o alto custo do tratamento.

Ainda ao descrever a dimensão individual da gestão do cuidado, apresentou a relação que havia construído com o trabalho, lugar em que conseguia experienciar uma outra função, além daquela de filha, irmã e depois esposa que vivenciava na sua rotina, demonstrando assim sua satisfação com seu vínculo funcional, evidenciada durante a entrevista quando deixou transparecer sentimento de pesar ao se referir ao período em que foi demitida.

Atualmente, conseguiu modificar seus hábitos alimentares e tem feito escolhas mais saudáveis, demonstrando satisfação em poder cuidar de si. Apesar desses investimentos, seu percurso assistencial demonstra captura por um modelo de atenção com foco na doença, medicalização do corpo, objetificação, dependência da figura do médico especialista com seus pedidos de exames, laudos e encaminhamentos (dimensão profissional da gestão do cuidado).

Por sua vez, a dimensão familiar da gestão do cuidado foi demarcada por dificuldades com os cuidados da mãe, que a afastou do tratamento da AR. Além disso, o realinhamento de papéis na família, marcado por seu casamento, morte da mãe e rompimento das relações com alguns irmãos também repercutiram em abandono ao tratamento da AR. No entanto, foi na família que conseguiu apoio para lidar com algumas restrições causadas pela doença e por outras situações de adoecimento.

Relata que, por ser a filha mais nova, permaneceu em casa após a saída dos irmãos, durante o envelhecimento da mãe. Cronologicamente destacou alguns acontecimentos, relatou a morte de sua mãe no ano 2008 e a função de cuidadora familiar da mesma. Nessa época, enfrentou divergências com seus irmãos para inserir seu esposo na família. Relata que seus irmãos, na tentativa de protegê-la, não aceitavam seu relacionamento.

Vernônia foi vítima de um acidente automobilístico grave e no período em que ficou acamada foi cuidada por suas irmãs que faziam os cuidados no leito de higiene, hidratação, alimentação e cuidados com a pele. Refere que foi um período difícil, porque já estava casada, e ficou distante do marido, pois era mais fácil ficar sozinha na casa de uma de suas irmãs para evitar constrangimentos familiares, em decorrência da presença do marido.

Interessante destacar que, em seu itinerário, passou por períodos de não procura por serviços de saúde (dimensão profissional) em decorrência dos acontecimentos na dimensão familiar e que a afastaram do acompanhamento da AR.

Atualmente, sua autonomia de locomoção ficou limitada por ter habilitação apenas para pilotar motocicleta e não poder mais fazê-lo devido aos impactos do veículo e do peso do capacete, que podem prejudicar suas articulações (joelho, quadril, coluna cervical, ombros, cotovelos, punhos e mãos).

A família e os amigos produziram cuidado no sentido de ofertar o suporte necessário para controle da dor. Esse suporte envolveu auxílio na manutenção da limpeza da moradia, transporte, estímulo para busca de alternativas terapêuticas, acompanhamento em consultas e discussão de casos semelhantes para entender melhor o problema.

Meu esposo e minhas irmãs sempre me ajudaram naquilo que eu precisei em decorrência da AR, por exemplo, os cuidados com a casa [...] minha sogra [...] quando ela está disponível, ela também me ajuda. (Vernônia).

Ao retomar a dimensão profissional, os médicos foram mais acessados em relação aos demais trabalhadores da saúde, primeiro para investigação diagnóstica e depois para obtenção do medicamento para controle da dor, receita, laudo, pedidos de exame e encaminhamentos.

A motivação não era ter o diagnóstico médico, e sim controlar as dores. A gestão do autocuidado era produzida na medida em que buscava alternativas para cessar suas dores:

[...] procurei atendimento desde que começaram as dores, [...] eu comecei a sentir muitas dores, principalmente nos ombros, não conseguia quase movimentar o braço e isso me incomodou, começou a me incomodar muito, foram dias de dores. (Vernônia).

Em relação à AR, iniciou a busca por cuidados em 2006, devido às fortes dores que sentia nos ombros, o que mobilizou a procura por atendimento médico. Foi atendida por um clínico geral que diagnosticou anemia grave e a encaminhou ao hematologista. No final de 2006 e início de 2007, o hematologista tratou a anemia e diagnosticou lúpus. Estava em tratamento de lúpus quando voltou a sentir dores.

Devido à persistência das dores, procurou um reumatologista que atendia em consultório particular em Rondonópolis, o mesmo descartou o diagnóstico de lúpus e retirou aos poucos os medicamentos. Quando iniciaria um processo de investigação diagnóstica no setor privado, ficou desempregada e perdeu a capacidade de arcar financeiramente com o tratamento.

Nessa época suas expectativas de atendimento foram ceifadas pela inexistência de especialistas vinculados ao SUS. Em 2009, Vernônia ficou acamada por três meses em decorrência de acidente automobilístico grave, precisou fazer cirurgias e no pós-operatório apresentou uma parada cardiorrespiratória que resultou em vinte dias na unidade de terapia intensiva.

Entre 2008-2011, houve uma lacuna terapêutica para as dores que sentia em decorrência da AR ainda não diagnosticada. Ao olhar para esse período, algumas situações estão demarcadas: morte da mãe; inserção do cônjuge na família; casamento; acidente grave e as complicações decorrentes; endometriose (fatores que precederam o diagnóstico de AR); e não acesso ao serviço que precisava em decorrência da perda de renda (após o diagnóstico). Situações da dimensão familiar que atravessaram a dimensão profissional e acabaram por redirecionar sua trajetória assistencial.

Em 2011, conseguiu retomar o atendimento com reumatologista, no entanto as dores articulares eram insuportáveis e não melhoravam. Ao retornar ao consultório e realizar outros exames, recebeu o diagnóstico de AR; desde então, nunca mais parou o tratamento.

Em 2013, retomou a regularidade das consultas médicas. Nesse período, em avaliação ginecológica descobriu miomatose. Como na ocasião estava com 47 anos e a gravidez não era mais uma prioridade, resolveu retirar o útero.

Dedicou-se ao trabalho, aos estudos e, no ano de 2017, perdeu o emprego e precisou realinhar o tratamento com acompanhamento bimestral para AR. Por intermédio da central de regulação municipal, conseguiu uma vaga para ser atendida pelo SUS e, devido à rapidez, foi possível continuar o tratamento com os medicamentos de alto custo.

Ter acompanhamento prévio no serviço privado, com diagnóstico e linha terapêutica estabelecida, facilitou o acesso ao atendimento no SUS, como um atalho. Desde então, engajou-se em uma rotina de acompanhamento trimestral pelo SUS. Esse formato de acompanhamento é um reflexo das atividades de consumo em que foi inserida - agora como cliente de um fluxo pré-estabelecido para acesso a medicamentos caros que produzem extrema vinculação ao serviço e ao especialista, fomentando o modelo de atenção centrado na doença, medicamento e na figura do especialista, visto que não ocorrem outros investimentos terapêuticos.

Ao transitar em busca de cuidado, a submissão à medicalização foi o principal investimento do setor de saúde, situação que diminuiu o grau de autonomia e de valorização de estratégias individuais e coletivas de existir, apesar das limitações impostas pela condição crônica.

No âmbito da saúde da família, no território onde reside, mantém contato com uma agente comunitária de saúde que lhe informa sobre as ações da USF, vacinas e questiona com frequência sobre seu estado de saúde, tudo pelo celular, com uso de aplicativo de mensagem. Nessa mesma unidade de saúde, acompanhou o cônjuge em consulta médica e foram orientados, após encaminhamento e atendimento com nutricionista, a adotarem hábitos alimentares saudáveis, situação que a fez modificar o preparo e o consumo dos alimentos.

Desde a primeira consulta com clínico geral, em 2006, até o diagnóstico de AR, foram cinco anos em que mesclaram acessos entre consultas particulares, plano de saúde e SUS, situação que reforça o entendimento de uma estrutura mista e com poucas garantias de continuidade terapêutica via SUS para essa condição de longa duração.

Durante a entrevista, relatou descontentamento em seu atendimento no ambulatório de reumatologia: forma de agendamento com abertura da agenda somente no dia 25 do mês que antecede o da consulta, situação que gera fila na madrugada para disputa de vagas; longo tempo de espera para ser atendida; e dispersão dos locais para realização de exames, agendamento e requisição do medicamento.

Grupos com trabalhadores da Atenção Primária à Saúde

No período do encontro, os trabalhadores foram liberados das suas atividades nas unidades de saúde. Como situação disparadora do processo reflexivo, foi apresentado pelo pesquisador, aos quatro grupos da APS (G1, G2, G3 e G4), o itinerário terapêutico da Vernônia que, após ter sido exposto, foi analisado por cada um dos grupos. Ao confrontarem o itinerário terapêutico com a prática, em processo reflexivo, os trabalhadores da saúde dos diferentes grupos avançaram em termos de autoanálise e autogestão.

No G1, surgiram debates acerca dos temas relacionados ao acesso e ao afunilamento causados pela perda da autonomia dos profissionais em decorrência da impossibilidade de investir de forma adequada e pretendida em busca do diagnóstico.

Os participantes referem que, para potencializar as intervenções, é necessário gerenciar o número de vagas, a escassez de vagas em outros dispositivos do sistema municipal de saúde e a fila de espera para atendimento especializado, implementar ações para continuidade na investigação diagnóstica devido às restrições que impedem o pedido de alguns exames no âmbito da APS.

Uma iniciativa que minimizou o problema foi a adoção, mesmo que por tempo limitado, de estratégias de matriciamento da atenção especializada para as equipes de saúde da família, com foco na reumatologia. A descontinuidade dessa estratégia causou impacto negativo para potencialização das ações da APS e minimização de investimentos para gerenciar e otimizar a fila de espera.

O debate do G2 foi demarcado por três linhas: responsabilização e acompanhamento; acesso aos diferentes serviços; e gestão e comunicação. Foi debatida a necessidade de novas possibilidades de investigação na APS como algo imprescindível para gerar autonomia profissional e melhorar os processos de investigação diagnóstica.

O grupo percebeu a necessidade de olhar para o próprio território e para além das situações de saúde que estão estabelecidas, bem como dialogar com o serviço especializado para melhorar a comunicação e investir em autonomia para investigação diagnóstica.

Destoando dos demais grupos, no G3 imperou o medo como produto da relação entre ‘profissionais sobrecarregados’ e ‘população intolerante’, situação que tem afastado os profissionais da comunidade, dificultando assim a construção de vínculos, situação reveladora da ideia de transferência de responsabilidade. Estão presentes a mecanização das prescrições e encaminhamentos, ausentes outros investimentos terapêuticos - farmacológicos e não farmacológicos.

Por sua vez, o G4 demonstrou preocupação com a remodelação do agendamento para evitar filas e os atendimentos por ordem de chegada. O grupo refletiu sobre o acesso dificultado devido à fila de espera para agendamento com especialista e a desmotivação do atendimento por ordem de chegada nas USF e no serviço especializado, com críticas a modelos em que a pessoa necessita chegar muito cedo na unidade para conseguir uma vaga.

Os participantes demonstraram a necessidade de investimentos em processos de Educação Permanente em Saúde (EPS) para abordar com a equipe novas ferramentas de planejamento, gestão do território, gestão do acesso e acompanhamento.

Nos quatro grupos, foi unânime a necessidade de acompanhamento das unidades da APS pela equipe de gestão de forma participativa e no território para redirecionamento das ações da APS e da atenção especializada. Situação proporcionada pela pesquisa e avaliada como positiva pela possibilidade de diálogo frente às demandas e situações do cotidiano.

Discussão

Na busca da satisfação em outros planos da vida, além do controle da doença, a dimensão individual presente no itinerário terapêutico articulou o manejo das diferentes possibilidades de lidar com as adversidades ao utilizar a inventividade na demarcação das diferentes estratégias de gestão do autocuidado2929 Cecilio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011;15(37):589-599. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832011000200021
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Considerar esse movimento em que o usuário define suas próprias escolhas, pressionado, de certa forma, por um processo macro de financeirização da saúde, provoca uma forte interferência em sua realidade, capaz de reorientar a busca pelo cuidado em saúde. Nesse processo, destacam-se as tentativas de redução do tempo de sofrimento por parte da pessoa com AR no encontro com o tempo do fazer profissional, na busca pelo bom atendimento e construção de uma rotina estável de cuidados1212 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saúde Pública. 2014;30(7):1502-1514. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00055913
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O modelo médico hegemônico, sustentado por uma base vinculada ao capital, tem suas apostas fortalecidas pela complexa indústria farmacêutica. As influências para as ações prescritivas constituem-se via usuários do SUS, que têm no medicamento a única alternativa terapêutica em decorrência da falta de outras estratégias não medicamentosas. Cria-se, dessa forma, uma nova subjetividade para o processo saúde-adoecimento-cuidado e o medicamento surge como biotecnologia de consumo massivo com consumidores passivos e reféns de insumos hipercomercializados66 Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico. Interface (Botucatu). 2017;21(63):1005-1016. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0808
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O itinerário terapêutico é carregado de potencial analítico para desvelar a realidade e as relações estabelecidas no cotidiano3030 Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al. Itinerários Terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 2016. 27-98 p.. Essa ferramenta também está inserida no campo das práticas avaliativas com foco no usuário, na integralidade e como uma forma privilegiada de dar voz às pessoas nos seus processos de questionar os setores e a relação público e privado3131 Silva Junior AG, Pinheiro R, Ricardo MGMA, et al. Práticas avaliativas centradas no usuário e suas aproximações com os estudos de itinerários terapêuticos. In: Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al., editores. Itinerários terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro, RJ: Cepesc/IMS/Uerj-Abrasco; 2016. p. 99-124..

Olhar para as diferentes dimensões da gestão do cuidado permitiu identificar que o itinerário terapêutico ilustra as diferentes trajetórias assistenciais que revelam a imagem atual do SUS, fortemente delineada pelo avanço do capital e por influências biomedicalizantes, muitas vezes pela ausência de investimentos complementares que sugiram outras formas de viver.

Vernônia foi em busca de satisfazer suas necessidades de saúde, nos diferentes processos de itineração. As necessidades de boas condições de vida1111 Cecílio LCO, Matsumoto NT. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, editores. Gestão em Redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: EdUCS/UFRJ: IMS/UERJ: CEPESC; 2006. p. 112. refletiram na busca de uma melhor condição de saúde ao mobilizar pessoas que a auxiliaram nos afazeres de casa, inclusive por não conseguir manusear as ferramentas de limpeza pela repercussão da doença nas articulações das mãos.

Além de questões relacionadas à manutenção de um ambiente saudável e da aptidão ao mercado de trabalho, as necessidades de saúde também perpassaram pela garantia de acesso a todas as tecnologias para melhorar e prolongar a vida1111 Cecílio LCO, Matsumoto NT. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, editores. Gestão em Redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: EdUCS/UFRJ: IMS/UERJ: CEPESC; 2006. p. 112..

Pela inexistência de responsabilização por parte da APS, assim como em outras ações de busca pelo cuidado no contexto das mulheres, ocorre uma fragmentação da mesma por diferentes programas, inclusive com fortes estratégias para medicalização e controle do corpo feminino. Faltam investimentos para alcance da integralidade que, por sua vez, deveria nortear as ações e os serviços disponíveis, uma vez que privilegiaria a singularidade, a complexidade e as múltiplas e distintas demandas e necessidades de saúde que são próprias das mulheres3232 Costa AM, Lobato LVC. O que querem as mulheres? Saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Saúde debate. 2024;48(140):e140ED. DOI: https://doi.org/10.1590/2358-28982024140140ED-P
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No contexto da AR, por estar demarcada tão fortemente a presença do especialista na condução do acompanhamento das pessoas com AR, a necessidade de ter vínculo com um profissional ou equipe1111 Cecílio LCO, Matsumoto NT. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, editores. Gestão em Redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: EdUCS/UFRJ: IMS/UERJ: CEPESC; 2006. p. 112. se estabeleceu na relação com o médico especialista e com a rotina do ambulatório, situação que acarretou uma peregrinação intensa para tentar achar respostas e justificativas para as dores e outras repercussões físicas da doença.

Ao se deparar com o especialista, foi estabelecida uma relação assimétrica, sem horizontalidade entre os envolvidos no processo de produção do cuidado, situação que prejudicou a possibilidade de atingir a necessidade de graus crescentes de autonomia e autocuidado em suas escolhas terapêuticas1111 Cecílio LCO, Matsumoto NT. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, editores. Gestão em Redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: EdUCS/UFRJ: IMS/UERJ: CEPESC; 2006. p. 112.. A autonomia perdeu espaço para a rotina de aquisição de medicamentos de alto custo, situação que reforçou a objetivação do sujeito, a medicalização do corpo e a centralidade das ações no médico e na doença.

Cabe aos profissionais de saúde instigar e demonstrar que existem outras possibilidades além da medicalização para alcance de resultados efetivos1919 Santos DS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(3):861-870. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018233.03102016
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. Vernônia, após múltiplos investimentos no tratamento, conseguiu olhar para sua formação profissional para redefinição de carreira com objetivo de se inserir novamente no mercado de trabalho e passou a repensar a alimentação e fazer escolhas mais saudáveis.

O encontro entre trabalhadores da saúde com a pessoa acometida por alguma condição de saúde precisa possibilitar a construção da autonomia, com intervenções não só de reabilitação ou terapêuticas, mas com apoio para criação de projetos de vida1919 Santos DS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(3):861-870. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018233.03102016
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A dimensão familiar nesse contexto esteve presente na produção de cuidados personalíssimos, uma vez que as necessidades de saúde, quando reconhecidas por cuidadores familiares, ganham outros contornos; por estarem imersos na mesma realidade, torna-se possível o reconhecimento de aspectos ímpares para pessoa em situação de adoecimento3434 Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Diferentes modos da família cuidar de pessoa idosa em situação crônica. Ciênc Cuid Saúde. 2015;14(1):796-804. DOI: https://doi.org/10.4025/ciencuidsaude.v14i1.16421
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Na dimensão familiar, o itinerário terapêutico demonstra que a maioria das ações de cuidado geridas com a família motivou a procura por serviços de saúde, acompanhamento ou envolvimento nas atividades cotidianas. A pessoa estabelece conexões que refletem significativamente na sua busca e obtenção do cuidado que precisa.

O itinerário terapêutico da pessoa reflete a efetiva busca por cuidados, mas engloba dimensões espaciais, temporais e relacionais, ao mesmo tempo em que pode conter a trajetória assistencial, embora não se restrinja a ela3535 Gerhardt TE. Itinerário terapêutico versus trajetória assistencial. Rio Grande do Sul: GESC; 2018..

Com isso, no contexto do SUS, o sucesso na busca por cuidado será maior ou menor a depender da capacidade de resposta às dificuldades de acesso - cada vez maiores em decorrência do subfinanciamento, da diminuição crescente dos recursos para o setor saúde e da mercantilização do princípio da universalidade como direito social3636 Pessoa LS. O SUS e a crescente mercantilização dos serviços de saúde no Brasil nos anos 2010. Rev Econ Contemp. 2023;27:e232709. DOI: https://doi.org/10.1590/198055272709
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Na dimensão profissional, a maior utilização das tecnologias leve-duras, em detrimento das tecnologias leves, acarreta em um empobrecimento dos aspectos intersubjetivos, reforçando o modelo de atenção e o trabalho com foco no procedimento3737 Feuerwerker LCM, Cecílio LCO. O hospital e a formação em saúde: desafios atuais. Ciênc saúde coletiva. 2007;12(4):965-971. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000400018
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Defende-se que as equipes de saúde, além das ações individuais, possam indicar fluxos seguros para as pessoas em investigação ou em tratamento, com isso incentivar a responsabilização e ocupar-se de um cuidado coletivo para mapear e indicar as novas possibilidades de intervenção3333 Silva JPV, Batistella CEC. Problemas, necessidades e situação de saúde: uma revisão de abordagens para a reflexão e ação da equipe de saúde da família. In: Fonseca AF, Corbo AD, editores. O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007. p. 159-176..

Além disso, para fortalecer as equipes diante das possibilidades de acompanhamento, estratégias de matriciamento podem beneficiar o itinerário terapêutico, visto que reformulam a organização dos serviços, com o potencial de redirecionar o processo de trabalho em saúde e fortalecer a produção do cuidado interdisciplinar para lançar novos olhares ao cotidiano dos serviços3838 Barbosa LA, De Sá NM. Linhas de Cuidado e Itinerários Terapêuticos para Doenças Raras no Distrito Federal. Tempus. 2016;10(3):69-80. DOI: https://doi.org/10.18569/tempus.v10i3.1907
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Deflagrar o potencial de criticidade das equipes e apostar em estratégias da EPS pode ser um caminho que, além de possibilitar o reordenamento das ações e serviços, propicie estimular a produção do cuidado pela linha da humanização na saúde - com outras estratégias que, em vez de descontinuidade, proporcionem acolhimento, vínculo e responsabilização1313 Lopes MTSR, Labegalini CMG, Silva MEK, et al. Continuing education and humanization in the transformation of primary health care practices. REME. 2019;23:e-1161. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20190009
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Entende-se que a transformação coletiva do trabalho deva acontecer por meio de processos participativos de gestão via EPS, em que se estimule a ampliação da autonomia e o empoderamento dos profissionais para que consigam transformar a realidade de forma singular e criativa, nessa relação com o outro e a partir do outro1313 Lopes MTSR, Labegalini CMG, Silva MEK, et al. Continuing education and humanization in the transformation of primary health care practices. REME. 2019;23:e-1161. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20190009
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Nesse cenário, a EPS coloca-se como ferramenta potente, inclusive para mobilizar a implantação nos serviços das premissas de outras políticas, como ocorre, por exemplo, com a PNH1313 Lopes MTSR, Labegalini CMG, Silva MEK, et al. Continuing education and humanization in the transformation of primary health care practices. REME. 2019;23:e-1161. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20190009
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As unidades de saúde poderiam compor espaços de produção de vida e de cuidado de forma múltipla e compartilhada, potencializando o viver, retirando de cena a produção de insatisfação e a medicalização1515 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019;43(esp6):70-83. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606
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. O ato de questionar possibilitado pelo itinerário, sua força mobilizadora e promotora de reflexões, provocou movimentos de autoanálise e autogestão nos grupos de trabalhadores da APS, reforçando assim sua singularidade como ferramenta para EPS.

É preciso expor na cena coletiva os modelos de atenção e causar rupturas nos direcionamentos que não centralizam as práticas nos usuários e suas necessidades. Provocar interferências permeáveis à mudança para prevalecer os interesses dos usuários são investimentos atuais que precisam ser levados em consideração para reorganização das práticas nos diferentes âmbitos da gestão do cuidado1515 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019;43(esp6):70-83. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606
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No contexto da pesquisa, assim como em outros estudos2020 Kasper M, Fortuna CM, Braghetto GT, et al. Institutional analysis in scientific health production: an integrative literature review. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03587. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018046203587
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, o referencial teórico permitiu interrogar as práticas para melhor conhecê-las e dialogar com o campo da saúde coletiva.

Considerações finais

No contexto de Vernônia, o extenso percurso assistencial representou o manejo da gestão do cuidado profissional, vinculado à possibilidade de ter o atendimento das suas necessidades. Imersa em um sistema de saúde insuficiente e com disparidades de acesso, o foco permanece no medicamento e na doença - situação que dificulta assegurar o direito à saúde, restringe as possibilidades de gestão do cuidado e autocuidado, além de fomentar a mercantilização.

No contexto dos diferentes grupos da APS, os distintos problemas que permeiam o acesso e o acompanhamento acarretam na ausência de estratégias que favoreçam o exercício da responsabilização por meio da construção de vínculos. Apostar em processos de educação permanente para resgatar atitudes provenientes da PNH torna-se fundamental, inclusive para instituir novos fluxos e modificar o processo de trabalho das equipes.

No contexto da atenção especializada, é preciso ampliar o olhar para além da fila, diagnóstico, medicamento e buscar novas formas de se fazer saúde por meio de um diálogo com a APS, de maneira a garantir um apoio robusto na intervenção às diferentes condições que surgem no território. Com isso, é fundamental responsabilizar os diferentes trabalhadores para produção de um cuidado longitudinal e com múltiplos investimentos, tendo como orientação premissas da integralidade, construção de vínculo, dialogia e atenção em rede.

Em suma, é preciso viabilizar processos de reflexão sobre a prática, em movimentos de autoanálise e autogestão para que grupos de trabalhadores, imersos em processos reflexivos, consigam repensar as ações para reorganizar o processo de trabalho com foco central na pessoa a ser cuidada e, com isso, resgatar e aplicar as premissas históricas da PNEPS e a PNH para transformação da realidade.

Dessa forma, a não banalização da dor, a necessidade de debate acerca das garantias para o acesso aos serviços com acompanhamento adequado e a existência de novos investimentos para resgate das ações de matriciamento - além de elaboração de protocolos para melhoria do acesso - são pistas para o combate à insuficiência dos serviços públicos na garantia do direito universal à saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    09 Maio 2024
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