Interseccionalidade, direitos humanos e justiça reprodutiva: avaliação crítica em saúde sexual e reprodutiva

Intersectionality, human rights and reproductive justice: critical assessment in sexual and reproductive health

Ana Maria Bourguignon Sobre o autor

RESUMO

No presente texto são discutidos os conceitos de interseccionalidade, direitos humanos e justiça reprodutiva, a partir de uma perspectiva crítica que possa contribuir com estudos e pesquisas no âmbito da avaliação de intervenções – políticas, programas, projetos, serviços – voltados à saúde sexual e reprodutiva das mulheres e demais pessoas com útero. A reflexão ora apresentada enfoca a questão dos direitos sexuais e reprodutivos, não obstante possa ser estendida a outras temáticas correlatas. Para tanto, propõe que a avaliação em saúde – entendida como espaço acadêmico e político – considere a interseccionalidade como ferramenta analítica para a identificação e enfrentamento das vulnerabilidades; estabeleça os direitos humanos como eixo transversal das análises, isto é, como um instrumento dos processos avaliativos de busca por dignidade na atenção em saúde; cultive a justiça reprodutiva como horizonte ético de reflexão e atuação nos espaços avaliativos.

PALAVRAS-CHAVES
Avaliação em saúde; Direitos humanos; Direitos reprodutivos; Enquadramento interseccional; Justiça social

ABSTRACT

In this text, the concepts of intersectionality, human rights and reproductive justice are discussed, from a critical perspective that can contribute to studies and research in the context of evaluating interventions – policies, programs, projects, services – aimed at sexual and reproductive health of the women and other people who have uterus. The reflection presented here focuses on the issue of sexual and reproductive rights, although it can be extended to other related themes. To this end, it proposes that health assessment – understood as an academic and political space – considers intersectionality as an analytical tool for identifying and confronting vulnerabilities; establish human rights as a transversal axis of analysis, that is, as an instrument of evaluative processes in the search for dignity in health care; cultivate reproductive justice as an ethical horizon for reflection and action in evaluative spaces.

KEYWORDS
Health evaluation; Human rights; Reproductive rights; Intersectional framework; Social justice

Introdução

O presente ensaio propõe uma abordagem crítica para investigações no âmbito da avaliação de intervenções (políticas, programas, projetos, serviços) com enfoque na saúde sexual e reprodutiva. A perspectiva crítica que embasa nossa reflexão deriva do alinhamento epistemológico com a teoria feminista e com a teoria crítica dos direitos humanos. A teoria feminista e a teoria crítica dos direitos humanos aproximam-se pelo posicionamento epistemológico, ético e político engajado com a justiça social. Conforme Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(57),

[...] o pensamento crítico surge em – e para – coletividades sociais determinadas, que dele necessitam para elaborarem uma visão alternativa de mundo e sentirem-se seguras ao lutar pela dignidade.

A atitude crítica – enquanto elemento da reflexão filosófica – caracteriza-se pela indagação sobre o que está estabelecido, no sentido de problematizar o que são, como funcionam e quais as razões que explicam os fenômenos que se apresentam na realidade22 Chauí M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática; 2000.. Segundo Ferreira33 Ferreira MLR. As Mulheres na Filosofia. Lisboa: Edições Colibri; 2009.(13), ainda que os feminismos sejam plurais, todo feminismo tem como disciplina basilar a filosofia, porque tem como objetivos fundamentais “reflectir sobre a situação das mulheres, compreender a condição feminina e lutar em prol de sua plena realização”. Assim, o feminismo configura-se como espaço de reflexão e elaboração teórica que se manifesta em ações e movimentos de luta, de modo que se posicionar como feminista pressupõe um engajamento intelectual, ético e político com a causa dos direitos humanos em suas múltiplas dimensões.

A assertiva de Spelman44 Spelman E. Inessential Woman: problems of exclusion in feminist thought. Boston: Beacon Press; 1988.(187), de que “embora toda mulher seja mulher, nem toda mulher é apenas uma mulher”, sintetiza a ideia de interseccionalidade. O cruzamento entre gênero, cor, classe social, orientação sexual, território, condição de cidadania constituem “eixos de subordinação”55 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002;10(1):171-188. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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(177) que distinguem as pessoas com útero em grupos com condições desiguais de acesso e utilização dos serviços de saúde o que, por conseguinte, afeta o exercício de direitos sexuais e reprodutivos66 Carneiro S. Mulheres em movimento: contribuições do feminismo negro. In: Hollanda HB. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 271-289..

Cabe destacar que a interseccionalidade é entendida neste texto de forma mais ampla do que o entrecruzamento de eixos de opressão. Compreende-se que a interseccionalidade é uma ferramenta conceitual que permite articular categorias muitas vezes analisadas separadamente, tais como raça e gênero77 Piscitelli A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Soc Cult. 2008;11(2):263-274. DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5247
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,88 Mello L, Gonçalves E. Diferença e interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Rev Prog Ciênc Soc UFRN [Internet]. 2010 [acesso em 2024 maio 21];11(2):163-173. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/download/2157/pdf
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. E que, como um construto teórico-metodológico crítico, pode ser útil para mobilizar as lutas por justiça reprodutiva99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. e por melhorias na prestação de serviços de saúde88 Mello L, Gonçalves E. Diferença e interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Rev Prog Ciênc Soc UFRN [Internet]. 2010 [acesso em 2024 maio 21];11(2):163-173. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/download/2157/pdf
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. Estabelecer a interseccionalidade como conceito fundamental para reflexão e investigação no campo da avaliação em saúde filia nosso pensamento às problemáticas levantadas pelo feminismo afro-latino-americano1010 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020..

O enfrentamento das iniquidades verificadas no contraste entre grupos de pessoas demanda uma abordagem crítica de direitos humanos, ou seja, que tenha como foco não o conteúdo abstrato dos direitos, mas o compromisso em desnudar as situações que reduzem a autonomia das mulheres e demais pessoas com útero ou que as tornam vulneráveis1111 Bourguignon AM. Justiça reprodutiva na atenção puerperal: avaliação crítica das condições de atenção à saúde da mulher no período pós-parto no Brasil (2000-2019) [tese]. Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa; 2022. 230 p.. Nessa abordagem, entendemos que os direitos humanos não são as palavras estáticas constantes em declarações e normas, mas processos constituintes das lutas por dignidade11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009..

Para Crenshaw55 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002;10(1):171-188. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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(178), é necessário “expandir os parâmetros conceituais dos discursos dos tratados internacionais existentes” sobre direitos humanos e combate às várias formas de discriminação. Isso porque a abordagem dominante para os direitos humanos geralmente não considera os nexos entre sexismo, racismo, opressão de classe, entre outras formas de produção da desigualdade. A autora do termo ‘interseccionalidade’ afirma:

[...] o problema interseccional não está simplesmente no fato de não abordar um único tipo de discriminação de forma completa, mas no fato de que uma gama de violações de direitos humanos fica obscurecida quando não se consideram as vulnerabilidades interseccionais de mulheres marginalizadas e, ocasionalmente, também de homens marginalizados55 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002;10(1):171-188. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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(178).

A intensidade com que as formas de opressão são sentidas pelas mulheres e demais pessoas com útero difere segundo sua condição de classe, cor/raça, orientação sexual, capacidade, faixa etária, local de residência, condição de cidadania, entre outras. Estabelecer a interseccionalidade como pressuposto analítico implica, portanto, em reconhecer que os direitos humanos não são garantidos naturalmente para todas as pessoas, mas são atravessados pelos eixos de poder/subordinação que condicionam o acesso a bens e serviços necessários para se viver com dignidade. A interseccionalidade como ‘ferramenta analítica crítica’ demarca um comprometimento com a justiça social99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021..

A justiça social pode se constituir em um marco ético unificador para a interseccionalidade, que possibilite o diálogo entre pessoas historicamente privadas de direitos99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Nesse aspecto, defende-se a ‘justiça reprodutiva’ como modelo ético-político nas práticas, estudos e pesquisas de avaliação de intervenções para saúde sexual e reprodutiva das mulheres e demais pessoas com útero. O arcabouço conceitual da justiça reprodutiva foi construído no âmbito das lutas e da produção intelectual das mulheres racializadas nos Estados Unidos, e pode ser aplicado para a compreensão dos problemas interseccionais que afetam as brasileiras.

The reproductive justice framework begins with the proposition that while every human being has the same human rights, not everyone is oppressed the same way, or at the same time, or by the same forces. Nevertheless, the experiences of oppression and struggling against oppression are constants in human experience. Most of us have had or will have experience of being unjustly degraded and rendered powerless by another individual or by an institution, often because of our personal characteristic such as gender, race, class, religion, or sexual orientation1212 Ross LJ, Solinger R. Reproductive Justice: an introduction. Oakland, California: University of California Press; 2017.(72).

Diante do exposto, no presente texto são discutidos os conceitos de interseccionalidade, direitos humanos e justiça reprodutiva, a partir de uma perspectiva crítica que possa contribuir com estudos e pesquisas no âmbito da avaliação de intervenções – políticas, programas, projetos, serviços – voltados à saúde sexual e reprodutiva. A reflexão ora apresentada foi construída a partir do trabalho de pesquisa sobre avaliação da atenção pós-parto no Brasil desenvolvida por Bourguignon1111 Bourguignon AM. Justiça reprodutiva na atenção puerperal: avaliação crítica das condições de atenção à saúde da mulher no período pós-parto no Brasil (2000-2019) [tese]. Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa; 2022. 230 p., por isso enfoca a questão dos direitos sexuais e reprodutivos, não obstante possa ser estendida a outras temáticas correlatas. Para tanto, propõe que a avaliação em saúde – entendida como espaço acadêmico e político1313 Furtado JP, Vieira-da-Silva LM. A avaliação de programas e serviços de saúde no Brasil enquanto espaço de saberes e práticas. Cad Saúde Pública. 2014;30(12):2643-2655. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00187113
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,1414 Cruz MM, Oliveira SRA, Campos RO. Grupos de pesquisa de avaliação em saúde no Brasil: um panorama das redes colaborativas. Saúde debate. 2019;43(122):657-667. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912201
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,1515 Bourguignon AM, Hartz Z, Moreira M. Avaliação de programas de atenção pós-parto no Brasil: perfil bibliométrico da produção científica (2000-2019). Saúde debate. 2021;45(130):915-931. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202113026
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– considere a interseccionalidade como ferramenta analítica para a identificação e enfrentamento das vulnerabilidades das mulheres e demais pessoas com útero; estabeleça os direitos humanos como eixo transversal das análises, isto é, como um instrumento dos processos avaliativos de busca por dignidade na atenção em saúde sexual e reprodutiva; e cultive a justiça reprodutiva como horizonte ético de reflexão e atuação nos espaços avaliativos.

Interseccionalidade como ferramenta analítica de avaliações críticas

A definição de interseccionalidade pressupõe compreender, primeiramente, que a vida em sociedade tem como característica a organização das relações sociais de acordo com padrões balizados na sexualidade biológica e na construção social do gênero. A cultura molda o biológico, define como as necessidades básicas para a reprodução devem ser satisfeitas, estabelece quem realiza as funções de cuidado e como cumpri-las, estratifica responsabilidades, enfim, delimita certas convenções que regulam a sexualidade e a procriação humana. Esta compreensão fundamenta-se no conceito de ‘sistema sexo/gênero’ da antropóloga Rubin1616 Rubin G. Políticas do sexo. São Paulo: UBU Editor; 2017..

Em seu texto intitulado ‘O tráfico de mulheres’, Rubin nos conduz a refletir sobre as relações entre a construção social de gênero e a opressão feminina:

O que é uma mulher domesticada? Uma fêmea da espécie. Uma explicação vale tanto quanto a outra. Uma mulher é uma mulher. Ela só se transforma em mulher do lar, em esposa, em escrava, em coelhinha da Playboy, em prostituta, em um ditafone humano, dentro de determinadas relações. Fora dessas relações, ela já não é mais auxiliar do homem, assim como o ouro em si não é dinheiro etc. Quais são, então, essas relações por meio das quais uma mulher se torna uma mulher oprimida?1616 Rubin G. Políticas do sexo. São Paulo: UBU Editor; 2017.(10).

Segundo a antropóloga, as causas da opressão da mulher podem ser analisadas ao se investigar o “sistema sexo/gênero” que estrutura as sociedades. O termo é empregado para indicar que a opressão é “produto das relações sociais específicas que as organizam”1616 Rubin G. Políticas do sexo. São Paulo: UBU Editor; 2017.(20) e, portanto, não é um dado natural ou inevitável.

A citação acima constitui uma paráfrase que Rubin fez de um trecho no qual Marx1717 Marx K. Trabalho Assalariado e Capital. Kindle Edition. São João del-Rei: Estudos Vermelhos; 2009.(481) questiona “o que é um escravo negro?” e afirma que só em determinadas relações um homem que tem a cor da pele negra torna-se uma pessoa escravizada. Nas reflexões de Rubin e de Marx, a opressão é o elemento comum entre a domesticação da mulher e a escravidão do homem de cor negra. Isso nos leva a problematizar se as formas de manifestação da opressão são comuns a todas as mulheres e demais pessoas com útero.

Lugones responde a essa questão defendendo que a modernidade colonial impôs um “sistema de gênero opressivo, racialmente diferenciado, hierárquico”1818 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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(940). O sistema colonial criou a subalternidade a partir do critério da diferença que negou a possibilidade de existência de outras formas de viver e se relacionar1818 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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. A diferença colonial separou os seres humanos em grupos dicotômicos e em posição social desigual. O padrão europeu de modernidade, o status de colonizador, o homem, a cor da pele branca, a heterosse-xualidade, a religião católica constituíram ‘ferramentas normativas’ de opressão que estão na base da formação social dos países latino-americanos1818 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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Quando se considera as categorias dominantes, entre elas ‘mulher’, ‘negro’ e ‘pobre’, vê-se que não estão articuladas de maneira que incluam pessoas que são mulheres, negras e pobres. A intersecção entre ‘mulher’ e ‘negro’ revela a ausência das mulheres negras em vez da sua presença. Isso porque a lógica categorial moderna constrói as categorias em termos homogêneos, atomizados, separáveis, e constituídos dicotomicamente. Essa construção procede a partir da presença generalizada de dicotomias hierárquicas na lógica da modernidade e das instituições modernas. A relação entre pureza categorial e dicotomias hierárquicas funciona assim: cada categoria homogênea, separável, atomizada caracteriza-se em referência ao membro superior da dicotomia. Assim, ‘mulheres’ refere-se a mulheres brancas. ‘Negro’ refere-se a homens negros. Quando se tenta entender as mulheres na intersecção entre raça, classe e gênero, mulheres não brancas, negras, mestizas, indígenas ou asiáticas são seres impossíveis1818 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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(942).

O termo opressão é mobilizado na literatura feminista para indicar a existência de estruturas de poder, socialmente edificadas, que colocam as mulheres em situação de inferioridade. Conforme hooks, ser oprimido significa não ter opções. A autora de ‘Teoria Feminista: da margem ao centro’ critica a noção de que todas as mulheres partilham a opressão da mesma forma e argumenta que o sexismo, como sistema de dominação institucionalizado, “nunca foi capaz de determinar de modo absoluto o destino das mulheres”1919 hooks b. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva; 2019.(32). Isso porque, fatores como classe social, cor/raça, identidade de gênero, orientação sexual e religião, por exemplo, fazem com que a ‘intensidade da força opressiva do sexismo’ seja diferente de mulher para mulher. hooks também pontua que o racismo não é sentido da mesma forma por homens e mulheres racializados, isso porque a opressão sexista, racista e de classe interagem de modo a condicionar o status social ocupado pelo homem e pela mulher1919 hooks b. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva; 2019..

No mesmo sentido, ao tratar da formação sócio-política do Brasil, Gonzalez assevera que o racismo e o sexismo interagem com o sistema de estratificação social, que posiciona mulheres e pessoas não brancas no ‘polo oposto da dominação’. As opressões geradas pela colonização e pela consolidação do capitalismo no país manifestam-se na ‘divisão racial do espaço’ e na ‘divisão racial e sexual do trabalho’. A autora feminista explica que o território brasileiro se caracteriza pela segregação da população pobre e negra nas periferias das cidades e nas regiões menos desenvolvidas do país. Ao passo que as regiões mais industrializadas, com maior concentração de renda e influência política, possuem maior proporção de população branca. A divisão racial e sexual do trabalho é observada na desigualdade de acesso à educação, na ‘concentração desproporcional’ de negros dentre os desempregados e nos empregos que exigem menor qualificação e pagam salários mais baixos, bem como nos serviços domésticos, realizados principalmente por mulheres negras1010 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020..

A sobreposição de opressões como questão social pode ser compreendida com base no conceito de ‘interseccionalidade’, cunhado por Crenshaw para nomear o fato de que as mulheres têm suas vidas condicionadas não apenas pela questão de gênero, mas também por outros fatores que as tornam mais vulneráveis, dentre os quais a cor da pele. O termo ‘interseccionalidade’ remete à metáfora do entrecruzamento de ruas, em que cada avenida representa um eixo de poder e, consequentemente, de subordinação. Nesta metáfora, as mulheres negras encontram-se na intersecção entre as várias avenidas que atravessam suas vidas. Mas, na hipótese de sofrerem alguma violação de direitos, muitas vezes o auxílio vem apenas de uma direção, isto é, percebe-se que a causa da violação é a discriminação de gênero ou de raça/cor, mas não ambas em simultâneo. Ao identificar que as instituições de justiça compreendiam os eixos de subordinação como distintos e mutuamente excludentes, Crenshaw criou o termo interseccionalidade, a fim de dar visibilidade aos nexos entre eixos de poder, especialmente gênero e cor/raça, que tornam certos grupos humanos subalternos, principalmente as mulheres55 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002;10(1):171-188. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento55 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002;10(1):171-188. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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(177).

A interseccionalidade é considerada uma das mais importantes contribuições das feministas negras para a teoria e prática feministas99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., ‘uma ferramenta teórica e política útil’ para o feminismo negro no Brasil no diálogo profícuo com o feminismo afro-americano2020 Figueiredo A. Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial. Temp Arg. 2020;12(29):e0102. DOI: http://dx.doi.org/10.5965/2175180312292020e0102
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. O feminismo interseccional constitui uma forma de resistência à ‘diferença colonial’ para reivindicar o reconhecimento das opressões interseccionais que tornam invisíveis as mulheres afrodescendentes, indígenas, asiáticas, latinas1515 Bourguignon AM, Hartz Z, Moreira M. Avaliação de programas de atenção pós-parto no Brasil: perfil bibliométrico da produção científica (2000-2019). Saúde debate. 2021;45(130):915-931. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202113026
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. A interseccionalidade entre cor/raça, classe e gênero está presente também na análise que a pensadora brasileira Lélia Gonzalez faz sobre a formação colonial da América Latina.

É importante insistir que, dentro da estrutura das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está inscrita e muito bem articulada. Trata-se da dupla discriminação de mulheres não brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O caráter duplo de sua condição biológica – racial e/ou sexual – as torna mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque esse sistema transforma diferenças em desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano1010 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020.(145-46).

A mortalidade materna, por exemplo, é uma expressão das opressões interseccionais que tornam as condições de saúde das mulheres e demais pessoas com útero profundamente heterogêneas e desiguais. A saúde, como produto de uma sociedade, reflete os processos de organização social e as estruturas que engendram as desigualdades entre indivíduos e populações2121 Barata R. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. Nesta perspectiva, compreende-se que os determinantes sociais da saúde condicionam os processos de manutenção da vida e de produção de saúde, entretanto, podem ser reforçados ou modificados por meio de políticas públicas.

Estimativas do Unicef indicam que a diferença entre o risco de morte materna entre países industrializados e regiões em desenvolvimento constitui a maior desigualdade evidenciada na área da saúde. Isso porque uma mulher vivendo em um país menos desenvolvido tem 300 vezes mais chance de morrer por complicações ocorridas na gestação e no parto do que uma mulher residente em um país industrializado. A morte materna impacta significativamente na vida das crianças, pois os bebês que perderam suas mães nos primeiros seis meses de vida têm maior probabilidade de morrer até completarem dois anos, na comparação com aqueles cujas mães sobrevivem2222 Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação Mundial da Infância 2009: saúde materna e neonatal. Brasília, DF: Unicef; 2008..

A saúde das crianças e a saúde das mulheres e demais pessoas com útero, bem como as suas chances de sobrevivência, estão relacionadas ao modo como os direitos básicos da população feminina são ou não garantidos em cada contexto social2323 Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação Mundial da Infância 2007. Mulheres e Crianças: o duplo dividendo da igualdade de gênero. Brasília, DF: Unicef; 2006.. Ter liberdade para relacionar-se sexualmente, procurar os serviços de saúde, decidir sobre e poder acessar métodos contraceptivos, proteger-se de doenças sexualmente transmissíveis e ter ou não filhos são direitos que demandam condições materiais e imateriais para que possam ser exercidos11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.,2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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Dentre as condições materiais, estão o acesso à alimentação suficiente e nutritiva, acesso à educação, oportunidades de trabalho e de autonomia financeira, possibilidade de participação e capacidade decisória na vida familiar e comunitária e proteção contra violência e injustiças. As condições imateriais referem-se às causas da discriminação baseada no gênero, na classe social, cor/raça, condição de cidadania. De acordo com Collins e Bilge99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.(137),

[...] a interseccionalidade proporciona um importante conjunto de ferramentas conceituais para analisar o poder do Estado, as políticas públicas de saúde e os resultados obtidos na saúde.

Para melhorar a saúde das mulheres e demais pessoas com útero, assim como das crianças, defende-se, portanto, uma abordagem crítica fundamentada nos direitos humanos, que articule a provisão de serviços e cuidados de saúde com o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento às discriminações e desigualdades interseccionais.

Direitos humanos como instrumento das lutas por dignidade

“Os direitos não podem reduzir-se às normas”, essas palavras de Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(17) demarcam uma importante premissa da teoria crítica dos direitos humanos. O direito constitui um entre outros instrumentos de disputa por reconhecimento de valores e interesses. Mas o direito, como técnica procedimental, não pode ser confundido com os direitos humanos, que são o objeto das normas nacionais e internacionais. A distinção entre forma e conteúdo é um pressuposto para contrapor o mito da universalidade abstrata, que orienta a concepção tradicional de direitos humanos. Na perspectiva tradicional e hegemônica, confunde-se o plano ideal – o objetivo de que todas as pessoas tenham acesso a bens e serviços indispensáveis à vida com dignidade – com o plano da realidade – onde grande parte da população não detém os recursos para satisfazer suas necessidades.

Estamos diante de uma lógica bastante simplista que, contudo, tem consequências muito importantes, pois conduz a uma concepção ‘a priori’ dos direitos humanos. Se estamos atentos, essa lógica faz pensar que temos os direitos antes de ter capacidades e as condições adequadas para exercê-los11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(27).

Ao designar que a corrente tradicional tem uma concepção a priori dos direitos humanos, Herrera Flores chama atenção para a falsa ideia de que direitos geram direitos, criticando o positivismo jurídico que enaltece a norma como um ideal abstrato apartado das dinâmicas sociais. O teórico espanhol argumenta que o reconhecimento jurídico é o resultado, sempre provisório, dos processos de conquista ou de resistência que ocorrem fora do campo do direito. Ele afirma:

[...] o conteúdo básico dos direitos humanos será o conjunto de lutas pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder necessário para isso, deverão ser garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(33).

O direito é um instrumento que pode ser utilizado para reproduzir ou para transformar os valores dominantes de uma sociedade e que, consequentemente, expressa o resultado das disputas por hegemonia. É nesse ponto que a interseccionalidade, como ferramenta analítica, possibilita identificar os eixos de poder/subordinação que determinam o potencial de luta dos diferentes segmentos populacionais. A posição que um indivíduo ou grupo populacional ocupa nos processos de divisão do fazer humano – social, sexual, territorial, cultural e econômica – pode privilegiar, subordinar ou até mesmo impedir o acesso à alimentação, educação, saúde, habitação, emprego, segurança11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.. Portanto, as normas jurídicas refletem os sistemas de valores hegemônicos e os processos de divisão do fazer humano (ou eixos de poder/subordinação), por conseguinte, excluem grupos humanos de dispor dos recursos para sobreviver dignamente e, inclusive, participar em condições de igualdade com os grupos dominantes das disputas por hegemonia.

Nem todos ‘temos’ por igual os direitos, ou seja, os instrumentos e meios para levar adiante nossas lutas pelo acesso aos bens necessários para afirmar nossa própria dignidade.

Entretanto – e aqui nos aproximando dos direitos humanos tal e como nos propomos –, todos os seres humanos deveriam ter esses meios e também outros de maior alcance (políticos e econômicos) que os dotassem do suficiente poder na hora de exercer suas práticas sociais em prol da dignidade11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(41).

O conceito de direitos humanos, tal como enunciado por Herrera Flores, corrobora com a abordagem feminista para os direitos sexuais e reprodutivos proposta por Corrêa e Petchesky. As autoras argumentam que o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos é mediado pela relação entre poder e recursos:

[...] poder de tomar decisões com base em informações seguras sobre a fecundidade, gravidez, educação dos filhos, saúde ginecológica e atividade sexual; e recursos para levar a cabo tais decisões de forma segura2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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(140).

Com esta definição, as autoras argumentam que a concepção tradicional – na qual os direitos sexuais e reprodutivos são entendidos como ‘escolhas’ ou ‘liberdades privadas’ que resultam do pensamento e ação individuais – não faz sentido para os grupos sociais que vivem em condições de vulnerabilidade e exclusão social.

Conforme Corrêa e Petchesky, a noção de que as mulheres deveriam ter capacidade para decidir se gostariam de filhos, como e quando, remonta os movimentos feministas ligados ao socialismo inglês da primeira metade do século XIX. Assim, embora o termo ‘direitos reprodutivos’ seja recente, a ideia de integridade corporal e autodeterminação sexual permeia o histórico das lutas das mulheres por transformar os instrumentos normativos e as políticas governamentais rumo à emancipação das mulheres e à melhoria das condições de vida das pessoas. As autoras pontuam que o nome ‘direitos reprodutivos’ foi cunhado por mulheres envolvidas com a criação, em 1979, da Rede Nacional pelos Direitos Reprodutivos nos Estados Unidos. A rede, ao desenvolver campanhas internacionais pelo direito ao aborto, pautou a Conferência Internacional sobre a Mulher e a Saúde ocorrida em Amsterdã no ano de 1984, alterando inclusive sua denominação para Rede Global de Mulheres por Direitos Reprodutivos. Dessa forma, os usos do termo ampliaram-se e a nomenclatura passou a ser reconhecida internacionalmente. No Brasil, sob a influência da conferência de Amsterdã, o Ministério da Saúde instituiu uma Comissão sobre os Direitos de Reprodução Humana em 19852424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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Como descrevem as autoras, o ativismo intelectual e político das mulheres negras nas sociedades do Norte e das mulheres do Sul global contribuíram para ampliar o significado dos direitos sexuais e reprodutivos no sentido de englobar as necessidades sociais que, ao não serem atendidas, impedem que as mulheres possam tomar decisões sobre seu corpo, sexualidade e reprodução. Nessa perspectiva, a teoria feminista posiciona-se criticamente ante o discurso tradicional dos direitos humanos – fundamentado na dicotomia entre esfera pública e privada – que subsidia a visão de que o Estado não deve intervir para romper com os sistemas de subordinação que posicionam segmentos populacionais em desvantagem social, econômica e cultural.

O objetivo é transformar o modelo liberal clássico dos direitos a fim de: (1) enfatizar a natureza social, não somente individual, dos direitos, deslocando o peso das obrigações correlativas da esfera dos agenciamentos individuais para o plano da responsabilidade pública; (2) reconhecer os contextos comunitários relacionais nos quais os indivíduos agem para exercer ou lutar por seus direitos; (3) colocar em primeiro plano a base substantiva dos direitos e necessidades humanas e a redistribuição dos recursos; e (4) reconhecer os portadores dos direitos em suas identidades múltiplas e autodefiníveis, incluindo gênero, classe, orientação sexual, raça e etnicidade2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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(155).

Ao desconstruir a dicotomia público/privado da corrente clássica dos direitos humanos, as feministas indicam que as responsabilidades e comportamentos femininos são internalizados como construtos sociais definidos com base no gênero e que as ‘decisões’ que as mulheres tomam ocorrem, muitas vezes, em contextos de pressão – e até mesmo de violência – familiar e comunitária. Corrêa e Petchesky argumentam que a implementação de direitos sociais, mediante atribuição de responsabilidades ao Estado e instituições mediadoras, é fundamental no sentido de garantir o substrato necessário para que as decisões reprodutivas possam ser livres de impedimentos ou constrangimentos2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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Esta visão dos direitos sexuais e reprodutivos postula um compromisso ético com a promoção da cidadania politicamente responsável, com base em quatro princípios complementares de direitos humanos. A integridade corporal, entendida como direito individual e social, que considera a inviolabilidade corporal um elemento constitutivo da dignidade humana. A autonomia pessoal ou direito à autodeterminação, que implica em viabilizar um contexto seguro para que as mulheres possam tomar decisões e expressar como se sentem. A igualdade de condições, princípio que se aplica tanto às relações entre homens e mulheres quanto às relações entre mulheres, conduz à ideia de redistribuição de poder e recursos rumo ao enfrentamento das iniquidades sociais, econômicas e culturais. E o princípio da diversidade, que denota o respeito às diferenças de valores relativas à identidade sexual, cultural, religiosa etc., a fim de que as características dos diversos segmentos sociais não sejam barreiras para o exercício dos direitos humanos2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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Portanto, a concepção crítica que nos orienta compreende que

[...] as dimensões de liberdade individual e justiça social não podem ser consideradas de maneira isolada enquanto os recursos e o poder permanecerem distribuídos desigualmente na maioria das sociedades2424 Corrêa S, Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis. 1996;6(1-2):147-177. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008
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(169).

É na relação de interdependência e complementaridade entre saúde reprodutiva, direitos humanos e justiça social que abordaremos no próximo item as contribuições do referencial teórico da justiça reprodutiva.

Justiça reprodutiva como pressuposto ético

Antes de adentrar no conceito de justiça reprodutiva, recuperamos o texto de Toni Leonard sobre como um movimento organizado construiu as bases para essa concepção feminista. A autora demarca que, no ano de 1994, houve uma conferência nacional na cidade de Chicago, nos Estados Unidos da América, para debater reformas no sistema de saúde daquele país. Um grupo organizado de afro-americanas participou da conferência com o propósito de defender que a atenção à saúde para as mulheres precisava ofertar, de maneira acessível, toda a gama de serviços para promoção da saúde reprodutiva, incluindo métodos contraceptivos, cobertura para o aborto, cuidados pré e pós-natais, assistência para prevenção de câncer e outras doenças e educação sexual. O movimento também argumentava que as mulheres racializadas e suas famílias constituíam o segmento populacional mais atingido pela morbidade e mortalidade materna e infantil, violência doméstica e doenças sexualmente transmissíveis. Foi nesse contexto de lutas que o grupo decidiu nomear o movimento como Women of African Descent for Reproductive Justice (WADRJ)2525 Leonard TMB. Laying the foundations for a Reproductive Justice Movement. In: Ross LJ, Roberts L, Derkas E, et al., organizadoras. Radical reproductive justice: foundations, theory, practice, critique. New York: Feminist Press; 2017. p. 39-49..

It was the name that spoke to the injustices of the current health system that denied women of color full services due to compounded issues of race, class, and gender. It also referenced that not all of us were African American, but from the African diaspora. We chose WADRJ because abortion access, while important, was but one of countless barriers to women and their families being healthy and living in healthy communities. Finally, the inclusion of ‘justice’ in our name spoke to issues of fairness and equitable distribution of resources. We recognized that ‘equality’ within the context of rights often times did not shift the imbalance of economic resources to favor the powerless, and that women of color, especially poor black woman, were still disenfranchised. In simplest terms, we spliced together the concept of reproductive rights and social justice to coin the neologism ‘reproductive justice’2525 Leonard TMB. Laying the foundations for a Reproductive Justice Movement. In: Ross LJ, Roberts L, Derkas E, et al., organizadoras. Radical reproductive justice: foundations, theory, practice, critique. New York: Feminist Press; 2017. p. 39-49.(40-41).

Em 1994, esse movimento por justiça reprodutiva também participou da Conferência Internacional para a População e Desenvolvimento, na cidade do Cairo – Egito, para enfatizar o entrelaçamento entre pobreza, subdesenvolvimento, reprodução e políticas de controle populacional. Desde então, a justiça reprodutiva notabilizou-se e ganhou força nos espaços de militância e no meio acadêmico, fortalecendo-se por meio da articulação com movimentos de mulheres do Sul global para consubstanciar uma ferramenta analítica que conecta organização política com trabalho intelectual2525 Leonard TMB. Laying the foundations for a Reproductive Justice Movement. In: Ross LJ, Roberts L, Derkas E, et al., organizadoras. Radical reproductive justice: foundations, theory, practice, critique. New York: Feminist Press; 2017. p. 39-49.. Como destacam Collins e Bilge, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos de parte significativa da população mundial são historicamente moldados pelas ideias e práticas geradas pela estrutura colonial.

O termo ‘Sul global’ é mais que uma localização geográfica, um local físico que abriga histórias de colonialismo, escravidão, racismo e imperialismo. Essas histórias moldam as relações de poder no interior dos Estados-nação do Sul global, onde vive a maioria das jovens, mas também as relações de poder dos Estadosnação no Norte global, que historicamente se beneficiaram desses sistemas99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.(138).

A concepção de justiça reprodutiva foi formulada como paradigma teórico e um modelo para movimentos ativistas, fundamentada no decolonialismo, numa perspectiva crítica dos direitos humanos e na justiça social como valor ético. A justiça reprodutiva alinha-se à epistemologia feminista, utilizando-se de abordagens disciplinares e interdisciplinares para contrapor teorias e ideologias racistas, sexistas, imperialistas, heteronormativas, entre outras, que subsidiam opressões interseccionais1212 Ross LJ, Solinger R. Reproductive Justice: an introduction. Oakland, California: University of California Press; 2017.. A justiça reprodutiva, como argumentam Ross e Solinger1212 Ross LJ, Solinger R. Reproductive Justice: an introduction. Oakland, California: University of California Press; 2017., oferece um enquadramento teórico, estratégico e prático que desafia narrativas dominantes sobre o poder e as experiências das pessoas marginalizadas. Com essa perspectiva crítica, a justiça reprodutiva é definida em contraposição à visão tradicional dos direitos humanos, que compreende a saúde sexual e reprodutiva como dimensões da esfera privada dos indivíduos. Ao pressupor que a abordagem de direitos deve estar atrelada a uma concepção de justiça social, o foco analítico passa da escolha individual para os recursos necessários para que os indivíduos, especialmente as mulheres e demais pessoas com útero, possam realizar escolhas com autonomia e liberdade. A satisfação das necessidades básicas e o empoderamento tornam-se elementos-chave nesse arcabouço conceitual.

Conforme Ross et al.2626 Ross LJ, Roberts L, Derkas E, et al. Radical reproductive justice: foundations, theory, practice, critique. New York: Feminist Press; 2017., o modelo de justiça reprodutiva pode ser definido a partir dos seguintes critérios: é interseccional; baseia-se em uma perspectiva crítica dos direitos humanos; relaciona o contexto local ao global; identifica as relações entre indivíduos e comunidades; combate todas as formas de controle populacional (eugenia); trata das responsabilidades de governos e corporações; compromete-se com a formação de lideranças individuais e comunitárias a fim de modificar as relações de poder; coloca os segmentos populacionais marginalizados no centro da análise; entende que a participação na arena democrática é necessária para se alcançar a justiça reprodutiva; pressupõe a interdependência entre teoria, estratégia e prática; aplica-se a todas as pessoas e contextos.

A justiça reprodutiva como arcabouço teórico cumpre com o que Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009. denomina de função social do conhecimento. Significa que não é possível se advogar neutralidade teórica, pois “todo conhecimento é produzido por alguém e para algo”11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(98), afirma o autor. Isso implica em reconhecer que o conhecimento é produzido em determinados contextos sociais, econômicos e culturais; teorias possuem consequências e têm o potencial de desvelar ou naturalizar relações de opressão e injustiça; assim, as teorias podem reforçar paradigmas dominantes que respondem a propósitos privatistas – como o neoliberalismo e o conservadorismo – ou podem subsidiar paradigmas emancipatórios.

Três princípios, segundo Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009. orientam a função social do conhecimento: a) adotar uma perspectiva crítica requer posicionar-se contra o colonialismo do saber e reconhecer que os outros são sujeitos de conhecimento assim como nós; b) considerar os seres humanos como sujeitos concretos, que procuram satisfazer diariamente suas necessidades na dinâmica da vida cotidiana; c) pensar e atuar no presente, reconhecendo a complexidade dos dilemas e desafios impostos pela realidade, a fim de criar condições teóricas e práticas que viabilizem o enfrentamento aos processos que dividem e hierarquizam indivíduos e grupos populacionais. Como assevera o autor, nem toda teoria tem como exigência que todas as pessoas vivam de forma digna. Teorias comprometidas com os direitos humanos e a justiça social procuram potencializar que seres humanos concretos se apropriem dos recursos materiais e imateriais para a satisfação de suas necessidades e, assim, possam desenvolver suas capacidades com autonomia e liberdade.

Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009. propõe um esquema visual para a compreensão da ética dos direitos humanos. O ‘diamante ético’ (figura 1) constitui uma imagem metodológica que possibilita identificar as relações de interdependência dos componentes que definem os direitos humanos. O diamante representa a complexidade do tema por ser uma figura tridimensional, com vários pontos em conexão e que, à medida que é movimentado, possibilita diferentes perspectivas. Assim como o diamante é produto do tempo e de forças geológicas, os direitos humanos são historicamente lapidados pelas lutas sociais em prol da dignidade humana, que constitui o centro para o qual convergem todos os eixos.

Figura 1
Diamante ético dos direitos humanos

Segundo Herrera Flores11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009., o eixo material congrega categorias práticas: as forças produtivas (o que produz bens/serviços); relação social de produção (aspectos que determinam o modo de acesso a bens/serviços); disposições (consciência do lugar ocupado no acesso a bens/serviços); historicidade (contextos, causas e atores que mobilizam a dinâmica social); desenvolvimento (processo atual de criação de condições sociais, culturais, econômicas); práticas sociais (formas de organizar a ação a favor ou contra uma situação). Esse eixo é entrecruzado pelo eixo conceitual, constituído por categorias teóricas: as teorias (formas de observar e explicar); os valores (preferências individuais ou coletivas que permitem as relações sociais); posição (lugar que ocupa na sociedade e determina o acesso a bens); espaço (físico e simbólico onde ocorrem as disputas por hegemonia); narrações (discursos que definem como participar das relações sociais); instituições (conjunto de normas que indicam como resolver conflitos e satisfazer expectativas). Ao prefaciar a obra de Herrera Flores, Piovesan2727 Piovesan F. Prefácio. In: Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(15) salienta a contribuição do autor para dimensão praxiológica dos direitos humanos:

A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de apropriar-se e desenvolver as potencialidades humanas de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção do sofrimento humano. Daí a importância do brilho convidativo do ‘diamante ético’ dos direitos humanos como marco pedagógico e de ação, como pretende o autor.

A concepção de justiça reprodutiva dialoga com a proposta crítica de Herrera Flores sobre os direitos humanos. Pois ambas as abordagens permitem conectar organização política e trabalho teórico em uma concepção que integra as necessidades individuais e a oferta de serviços básicos de saúde (saúde reprodutiva); as lutas por garantias jurídicas e a implementação de ações que viabilizem o exercício da sexualidade e da reprodução com autonomia e segurança (direitos reprodutivos); e o reconhecimento de que os sistemas de valores dominantes baseados no sexo, raça/cor, classe social, entre outros, interagem e geram opressões reprodutivas intersecionais ( justiça reprodutiva).

Esses eixos de poder/subordinação produzem diferentes experiências reprodutivas que variam conforme a posição social ocupada por cada pessoa com útero ou grupo no contexto social, econômico e cultural no qual vivem. As políticas de saúde e as práticas assistenciais podem contribuir para reduzir as desigualdades que afetam o acesso aos cuidados de saúde, especialmente ao alcançar aquelas pessoas que estão à margem e que mais sofrem com as opressões interseccionais. Desse modo, compreendemos que a avaliação em saúde, como espaço político e acadêmico, tem potencial para identificar as lacunas que podem gerar iniquidades nos programas e serviços, bem como recomendar ações eticamente comprometidas com a promoção da justiça reprodutiva.

Por uma avaliação crítica em saúde reprodutiva

Avaliar significa realizar um julgamento de valor sobre algo de acordo com certos parâmetros e em determinado contexto. Trata-se de uma atividade que perpassa a vida cotidiana como processo reflexivo inerente ao exame de decisões e atitudes tomadas. Como espaço acadêmico e profissional, a avaliação desenvolveu-se como área que congrega conceitos, métodos, técnicas e práticas específicas, mas que possui caráter transdisciplinar, pois ao mesmo tempo em que se alimenta de áreas como administração pública, economia, epidemiologia e direito, fornece ferramentas analíticas para outras áreas. Além de transversal a várias áreas do conhecimento, a avaliação desenvolve-se no entrelaçamento entre o campo acadêmico e campo burocrático, tendo em vista a dinâmica que se estabelece entre a produção de estudos e pesquisas sobre problemas sociais e a elaboração de intervenções pelo poder público e/ou por organizações da sociedade civil2828 Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, et al. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011.,2929 Hartz Z, Vieira-da-Silva LM. Avaliação em Saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programa e sistemas de saúde. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005.,3030 Samico I, Felisberto E, Figueiró AC, et al., organizadores. Avaliação em Saúde: bases conceituais e operacionais. Rio de Janeiro: MedBook; 2010..

A avaliação é entendida como um aspecto do processo mais amplo, que abrange desde o reconhecimento de um problema como parte da agenda pública, as disputas pela definição de objetivos e estratégias; execução das ações, monitoramento dos processos e resultados até o julgamento da intervenção, no sentido de melhorar seu desempenho. De acordo com Minayo,

[...] a avaliação não é um evento isolado, mas sim um processo, em que se integram avaliadores e avaliados em busca do comprometimento e do aperfeiçoamento dos indivíduos, grupos, programas e instituições3131 Minayo MCS. Introdução: conceito de avaliação por triangulação de métodos. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadoras. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 19-51.(24).

Um problema adquire relevância coletiva quando atores políticos reconhecem que uma situação pode ser modificada. Na perspectiva feminista, a busca por solucionar problemas mobiliza a práxis da interseccionalidade “e os tipos de problemas sociais gerados pelos sistemas interseccionais de poder prestam-se ao conhecimento desenvolvido pela práxis”99 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.(34), isto é, teoria e ação complementam-se um ao outro na definição de intervenções. Conforme Leonardo Secchi3232 Secchi L. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cencage Lerning; 2017., um problema é definido quando o status quo é considerado inadequado ante uma expectativa de que é possível melhorar a realidade observada. O enfrentamento a um problema público ocorre mediante ações interventivas conduzidas por agentes plurais – estatais ou não.

Uma intervenção pode ser concebida como um sistema organizado de ação que visa, em um determinado ambiente e durante um determinado período, a modificar o curso previsível de um fenômeno para corrigir uma situação problemática. Em todo sistema organizado de ação são encontrados cinco componentes: uma estrutura [física, organizacional, simbólica], atores individuais e coletivos e suas práticas, processos de ação, uma ou várias finalidades, e enfim, um ambiente3333 Champagne F, Contandriopoulos AP, Brousselle A, et al. Avaliação no campo da saúde: conceitos e métodos. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, et al., organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. p. 41-60.(45).

O conceito de intervenção social abarca situações complexas que demandam a atuação de diferentes níveis de organização social, tais como: organismos internacionais, instituições governamentais, associações, entidades e coletivos da sociedade civil. Como destacado por Minayo, “do ponto de vista ético, a avaliação das intervenções sociais se dirige para mudanças que precisam ser construídas no chão da realidade social”3131 Minayo MCS. Introdução: conceito de avaliação por triangulação de métodos. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadoras. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 19-51.(20). Nesse sentido, as avaliações são orientadas por anseios de enfrentamento de desigualdades e melhoria das condições de vida de grupos, comunidades e populações. Os processos avaliativos, quando comprometidos com valores democráticos, têm o potencial de fomentar espaços de diálogo e aprendizagem coletivos para subsidiar a tomada de decisão.

Diante disso, defende-se que a avaliação de intervenções sociais converge com os pressupostos da teoria feminista e da teoria crítica dos direitos humanos. Os conceitos de interseccionalidade, direitos humanos e justiça reprodutiva – trabalhados anteriormente – podem corroborar para que as avaliações possam identificar os grupos populacionais que sofrem mais obstáculos para acessar bens e serviços básicos, bem como propor recomendações para a redução das iniquidades constatadas. Nesse sentido, tanto a teoria feminista quanto a teoria crítica dos direitos humanos destacam que a produção de conhecimentos precisa começar ‘de baixo para cima’, ou seja, a partir da investigação sobre as necessidades que as pessoas têm e quais as barreiras concretas que elas enfrentam para satisfazê-las com dignidade. É o que se destaca nos trechos selecionados abaixo:

Intersectionality powerfully addresses human rights violations and helps us move away from single-issue and top-down approaches. It provides an avenue for cross-issue alliances to achieve systemic, institutional changes because systems of oppression interact with each other1212 Ross LJ, Solinger R. Reproductive Justice: an introduction. Oakland, California: University of California Press; 2017.(75).

[...] os direitos dos indivíduos não somente se reduzem às liberdades de pensamento, mas se estendem necessariamente às condições sociais, econômicas, políticas e culturais com as quais e nas quais nos relacionamos. Devemos, então, partir de uma reflexão que comece do ‘outro concreto’, dos seres humanos de carne e osso que lutam diariamente por satisfazer as suas necessidades e saciar as suas carências. Somente desde esse outro concreto se poderão ir construindo as bases para chegar ao ‘outro generalizado’, isto é, ao ser humano como entidade global – humanidade- e como ser dotado de capacidade abstrata para lutar por sua particular concepção de dignidade humana11 Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.(103).

Conceber o percurso do conhecimento de ‘baixo para cima’ dialoga com a pluralidade de técnicas metodológicas. A avaliação por triangulação de métodos é uma abordagem, segundo Minayo, que utiliza recursos mistos, quantitativos e qualitativos, para analisar como as estruturas, processos e produtos de uma intervenção interagem para atingir certos resultados em face dos objetivos delineados3131 Minayo MCS. Introdução: conceito de avaliação por triangulação de métodos. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadoras. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 19-51.. A triangulação aplicada aos processos avaliativos possibilita integrar o trabalho de profissionais de diferentes áreas de conhecimento, agregar aspectos objetivos e subjetivos, propiciar a participação e a interação entre as pessoas envolvidas com os diversos níveis da intervenção, empregar múltiplos procedimentos e técnicas de coleta e tratamento de dados3131 Minayo MCS. Introdução: conceito de avaliação por triangulação de métodos. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadoras. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 19-51.. A figura 2 traz um modelo de avaliação por triangulação, construído com base na discussão aqui proposta.

Figura 2
Esquema da pesquisa por triangulação aplicada à avaliação da atenção à saúde sexual e reprodutiva

A triangulação viabiliza a apreensão da complexidade da realidade, composta por elementos subjetivos (percepção, significados, representações etc.) e elementos objetivos (dados de frequências, proporções, indicadores etc.). Dessa forma, a avaliação por triangulação de teorias e métodos oferece perspectivas diferentes e complementares sobre uma intervenção social. Intervenções sociais – sejam elas políticas públicas, programas, projetos, serviços – que tenham como foco a saúde reprodutiva podem se beneficiar da avaliação por triangulação.

Considerações finais

A partir da triangulação teórica entre interseccionalidade, teoria crítica dos direitos humanos e justiça reprodutiva, propomos uma abordagem crítica para avaliação em saúde, tendo como elemento central, constante na figura 2, a atenção digna à saúde sexual e reprodutiva das mulheres e demais pessoas com útero. Defende-se esta perspectiva crítica na avaliação em saúde a partir das seguintes considerações anteriormente discutidas:

  • O reconhecimento de que gênero, cor/raça e classe social constituem eixos de poder/subordinação interseccionais que afetam a saúde sexual e reprodutiva;

  • A experiência das opressões interseccionais não é homogênea entre as pessoas com útero: cada pessoa ou grupo sente os efeitos dessas opressões de maneiras diferentes, de acordo com o contexto no qual elas vivem;

  • Intervenções sociais – tais como políticas, programas e projetos – podem reproduzir os mecanismos de opressão ou promover ações de enfrentamento às iniquidades no acesso e utilização de serviços básicos de saúde;

  • Os direitos sexuais e reprodutivos são uma dimensão dos direitos humanos, viabilizados por meio de intervenções sociais – comprometidas com a justiça reprodutiva – que propiciam o substrato necessário para o enfrentamento das desigualdades e o exercício da cidadania;

  • O entendimento de que as avaliações de intervenções voltadas para as pessoas com útero demandam um enquadramento específico, que considere a interseccionalidade como ferramenta analítica para identificar e enfrentar os mecanismos de subordinação que as afetam distintamente;

  • O arcabouço teórico da justiça reprodutiva pode corroborar o desenvolvimento de estudos e práticas de avaliação em saúde sexual e reprodutiva, comprometidos eticamente com um projeto de sociedade que almeja que as pessoas tenham autonomia e liberdade para exercerem o direito de decidir se querem ou não, quando e como ter filhos/as, bem como, para que tenham condições dignas para exercer o direito à parentalidade em ambientes seguros e saudáveis.

Esses pressupostos estão alinhados a uma concepção de avaliação pluralista, comprometida com o aprimoramento das intervenções sociais para a melhoria das condições de vida das pessoas com útero e a promoção da justiça social. Os conceitos e técnicas da avaliação em saúde são reconfigurados mediante o referencial do feminismo negro e da teoria crítica dos direitos humanos. As avaliações têm o potencial de reconhecer como os eixos de poder/subordinação interseccionais afetam o acesso e a utilização de serviços de saúde para pessoas grávidas e puérperas; se e como os serviços alcançam os segmentos populacionais mais vulneráveis; e se o contexto no qual o programa se desenvolve é favorável ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Essas e outras questões norteadoras, sustentadas pela teoria feminista e pela teoria crítica dos direitos humanos, podem contribuir com desenhos de avaliações comprometidas com o enfrentamento das iniquidades em saúde, para ampliação da proteção dos direitos humanos, rumo à justiça reprodutiva.

  • Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Bolsa de doutorado para a autora (Processo nº 88881.361796/2019-01)

Referências

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    Herrera Flores J. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux; 2009.
  • 2
    Chauí M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática; 2000.
  • 3
    Ferreira MLR. As Mulheres na Filosofia. Lisboa: Edições Colibri; 2009.
  • 4
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2023
  • Aceito
    09 Jun 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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