RESUMO
O encontro necessário - e pouco estimulado - entre geografia e saúde, na produção acadêmica contemporânea, revela que a ciência está, também, enferma. Todavia, quando se torna possível gerar aproximações, intersecções e diálogos entre, por exemplo, interpretação territorial da saúde-doença e interpretação da saúde-doença a partir das determinações territoriais, criam-se condições para estabelecer uma crítica à ciência e ao monopólio da saúde. Em decorrência disso, propõe-se a reflexão da saúde do trabalhador como elo entre território e saúde. Pesquisas de campo, orientações de dissertações e doutoramentos e participação do Fórum Intersindical Saúde-trabalho-direito/Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz-RJ) nutrem as reflexões elaboradas no presente artigo. O pressuposto teórico inscreve-se pelo seguinte princípio: a saúde do trabalhador, como um campo e uma questão social, ao defender a saúde pública, a saúde como direito e justiça, e, ao criticar todos os regimes de exploração do trabalho, sob uma leitura territorial, ganha um reforço na sua práxis, pois esclarece que o adoecimento está implicado na relação entre as esferas de poder que, na sociedade capitalista, ocupam-se em preservar e constituir a desigualdade social, o monopólio da riqueza, a pobreza e a violência. A luta pela saúde, um bem primordial, faz-se na luta pela emancipação territorial.
PALAVRAS-CHAVE
Saúde ocupacional; Território sociocultural; Processo saúde-doença.
Introdução
Quando se observa a sociabilidade contemporânea, uma constatação empírica é facilmente verificada: cada vez mais as pessoas dormem menos. A juventude vive uma transição no regime de sono: dorme mais tarde ou, notívaga, vive de cochilos ao dia11 BBC News Brasil. Brasileiros estão entre os que menos dormem, revela estudo sobre padrões de sono no mundo [Internet]. BBC News. 2016 maio 7 [acesso em 2022 dez 22]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160506_padrao_sono_mundo_rb
https://www.bbc.com/portuguese/geral/201... . Os índices da sociabilidade envenenada continuam: as pessoas falam mais alto, certamente porque os ruídos externos são maiores e porque aquele que ouve, com frequência, encontra-se desconcentrado. A alteração do regime de escuta é, ao mesmo tempo, um problema ético e político.
As constatações seguem. Houve um aumento nas taxas de consumo per capita de remédios. Do mesmo modo, houve um aumento da diversidade de tipos de medicamentos usados rotineiramente por grande parte da população brasileira. Dependência química, adoecimento e precarização do trabalho se aglutinam em torno de uma irrefreada patologização da vida social22 Stacciarini JHS, Chaveiro EF, Borges RE. Trabalho, medicalização e pilhagem: o negócio da vida. Rev Pegada. 2020;21(1):1-15. DOI: https://doi.org/10.12345/pegada.v21i1.2020
https://doi.org/10.12345/pegada.v21i1.20... .
A patologização, além de ser verificada pelo adoecimento em escala diversa, é municiada com a violência de vários tipos e escalas, as mais brutais. Adoecimento e violência encontram, no Estado, ecos numa resposta conservadora: a militarização da existência e a medicamentalização da vida social. Isso certifica o fracasso social do atual modelo econômico, pois dele surgem a morte e a covardia; o adoecimento e a exploração.
Dessas verificações, pode-se antever: o vício químico cria o sujeito hipocondríaco. Esse sujeito, inseguro, procura nos medicamentos a segurança que, em regime de vício, o faz mais inseguro. Tão mais inseguro quanto mais dependente. Doente e inseguro, esse sujeito está lançado em uma rede geopolítica: a dos poderes e dos negócios de laboratórios de fármacos. A indústria farmoquímica, beneficiada pelo adoecimento do trabalhador, conta com uma sociabilidade envenenada, própria de um mundo envenenado. Ela mesma envenena o mundo.
Ora, conceber a saúde como bem supremo e, portanto, como direito (a pessoa saudável dança, participa, age, brinca, dialoga, produz, colabora, vibra, luta pela liberdade, goza), requisita dos campos científicos a edificação de uma crítica ao modelo econômico, que envenena, e à indústria, que se beneficia do adoecimento. Mas estariam os campos científicos preocupados e balizados para efetivar essa crítica? Criticar apenas basta?
A proposição deste artigo parte de um pressuposto: do mesmo modo que há um modelo econômico que adoece e se beneficia do adoecimento, há uma ciência enferma. Cabe, pois, ver os limites do saber - e, também, as suas possibilidades. Quando o campo de saber da geografia e o campo de saber da saúde se interseccionam, pode surgir uma esperança: aclarar a compreensão da saúde-doença pela via do território e ler o território que adoece.
Apoiamo-nos na ideia de que a ciência, tal como organizada, situa-se, também, na enfermidade do mundo. Apoiamo-nos, também, na ideia de que os fundamentos de uma ciência enferma criam um trabalho enfermo evidenciado na precarização, na exploração, nas subcontratações, na desregulamentação, no desemprego estrutural, na terceirização e na profunda informalização.
Entretanto, a centralidade do trabalho como operador de vida, criador de mundos, como pressuposto da saúde-doença, implica o território. Daqui, surgem várias interrogações: como, nesse período, os trabalhadores concretos desenvolvem o trabalho a partir do território? Que implicações à saúde do trabalhador os tipos, os conteúdos, a morfologia e os sentidos do trabalho atual produzem? Quais são as relações entre o adoecimento e o desemprego?
Ademais, o ensinamento do espírito livre do campo e da questão da saúde do Trabalhador nos convida a elaborar uma escritura igualmente livre, todavia, comprometida com as experiências acadêmicas e de pesquisas realizadas em parceria. Contou-se, para a realização deste artigo, com atividades de orientações de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento; com organização de seminários temáticos envolvendo a participação no Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito, radicado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/RJ), juntamente com o grupo de pesquisa ‘Espaço, Sujeito e Existência’, sediado na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Além desta introdução, o texto divide-se em três partes. No primeiro momento, problematiza-se a relação entre geografia e saúde. Na segunda seção, debatem-se os elos necessários entre território e saúde. Na terceira parte da pesquisa, demonstra-se que, a partir do campo da saúde do trabalhador, dá-se o encontro necessário entre território e saúde.
Problematizando a relação entre geografia e saúde
Ao lermos o festejado texto ‘Quem dará o golpe no Brasil?’, escrito por Wanderley Guilherme dos Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... , morto em 25 de outubro de 2019, nós, pesquisadores acadêmicos, professores universitários, doutos em publicações recheadas de citações, modestos autores deste texto, espantamo-nos. Todos os demais, que, nas mesmas condições institucionais e profissionais em que nos situamos, não leram o citado texto, deveriam ter se, igualmente, espantado.
Havíamos lido, sim, o nobre cientista social que nos largou há pouco, em seu ensaio ‘Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira’44 Santos WG. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Campos; 1979., em que nos brinda com o conceito de ‘cidadania regulada’, ungido por uma epifania que nos serviu desde então.
Serviu-nos para um determinado propósito, o de entender a reforma sanitária e a não reforma agrária, pelo abandono dos territórios vazios de cidadãos regulados e, de quebra, o corporativismo sindical e outros. Se formos relê-lo com atenção acurada, por certo, descobriremos algo sobre a relação visceral e vicejante entre geografia e saúde.
Mas, sobre o seu texto de 1962, que, em 2022, completou seus sessenta anos de escrito - ‘Quem dará o golpe no Brasil?’33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... -, nós (ainda os mesmos autores desta conversa aqui) estranhamos a coincidência (coincidência? e muita) com os anos de 2019 a 2022.
Antes de qualquer reflexão epistêmico-acadêmica para concorrer a uma eventual publicação em revista indexada e superar olimpicamente as barreiras dos ilustres pareceristas que arbitram sobre o pensamento humano - Supremo Tribunal da Ciência -, insistimos, sessenta anos depois: quem dará o golpe no Brasil?
A relação entre as disciplinas geografia e saúde, apartadas por uma interdisciplinaridade, não sabemos se tímida, ingênua ou intencionalmente não interdisciplinarizada, é um golpe permanente no Brasil. Golpes de caráter político foram perpetrados antes. Cirurgicamente, um deles foi perpetrado em 1964, com o apoio da Agência Central de Inteligência, americana, conhecida como CIA, e ameaçou repetir-se no Brasil dos ‘novos tempos’, em 2022. Todavia, o golpe no Brasil dá-se, já, em várias frentes.
Dá-se na separação interdisciplinas acadêmicas, dá-se na separação entre povo e academia, dá-se no abaixamento de cabeças pensantes diante de golpes iminentes de outras ordens.
A relação entre geografia e saúde, dia a dia, praticamente inexiste. Poucas relações ou nexos de causalidades são, por exemplo, enxergados entre concentração de terras, desemprego e adoecimento; entre domínio de impérios agroalimentares, pobreza e epidemia; ou entre urbanização, mobilidade e morte no trânsito. Geografia e saúde não se relacionam, não por antipatia, ao contrário, não se relacionam porque disciplinas irmãs, quando enclausuradas nos feudos de uma ciência enclausurada, tornam-se distintas, diversas, dissociadas, berço de diásporas não consentidas e incompreensíveis. Se prêmios Nobel de Física, Medicina, Literatura, Economia e da Paz não conversam entre si e, pior, são laureados, muitas vezes, com argumentos contraditórios entre si, por que mortais pensadores acadêmicos sob as linhas abissais conversariam?
O território e o espaço que a geografia conduz como lactante (aquela que amamenta), tem na saúde um lactente (aquele que é amamentado).
E a saúde, pobre cria rejeitada da medicina, morde os seios da geografia, que não consegue alimentá-la. Quem rejeita? A ciência geográfica que (não) amamenta ou a ciência da saúde (não) amamentada. Difícil saber.
O golpe permanente da fragmentação da ciência, como sublinha Edgar Morin e Jean-Louis Le Moigne55 Morin E, Moigne JL. A inteligência da complexidade. São Paulo: Ed. Peirópolis; 2000., é mantra que deveria ser cantado pelos editores de revistas científicas: fica proibido escrever qualquer coisa em ciências sociais olhando para o seu próprio umbigo.
A interdisciplinaridade em ciências sociais não pode ser um evento fortuito da natureza ou palavra de ordem de doutos doutores marginais e contra-hegemônicos. Interdisciplinaridade deveria ser o passaporte de acesso das meninas e dos meninos que, ao ingressarem na academia, escolhem um campo das ciências sociais e vão bater na porta de outra para entenderem a sua própria.
Wanderley Guilherme dos Santos, o que tem a ver com isso? Tudo.
Vamos principiar, como norte dessa parolagem epistêmico-acadêmica, com uma questão de fundo, mais de conteúdo, pois. No momento em que este texto começou a ser planejado (outubro/novembro de 2019), o País vivia à beira de um golpe real, objetivo, concreto, de Estado, civil-militar, como sempre, aliás... basta ler Wanderley Guilherme dos Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... . Contudo, o golpe surreal, abstrato, subjetivo já foi dado.
Território, espaço e saúde já sangram golpeados. Como explicar, enquanto geógrafos e sanitaristas, a concretização das tentações de Satanás em pleno regime de ‘Brasil acima de tudo e Jesus acima de todos’, como foi no governo entre 2019-2022?
Vamos a elas (as tentações de Satanás): Brumadinho e o assassinato deliberado de trabalhadores (2019); queimadas na Amazônia (2019) e o assassinato deliberado da floresta e de seus guardiões, como foi o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips (2022); vazamento negligenciado de petróleo e o assassinato deliberado do mundo dependente do mar - flora, fauna, gente (2019); mais de 700 mil mortos por covid-19 (abril de 2023).
Uma simples aula de primeiro período, seja nas ciências da geografia ou da saúde, não resiste à Escola sem Partido. Falar de causas e responsabilidades humanas sobre esses folguedos de Satanás gerará selfies e gravações de professores. As redes sociais - de todos os matizes - serão povoadas de palavras nada científicas, tratados escatológicos e sabe-se lá que tipos mais de ameaças. E nós, os doutos doutores, estaremos por aqui escrevendo artigos para passarem por pareceristas (sabe-se lá partidários de que ideologia - sacra ou profana) para, quem saberá?, daqui a um ou dois anos, rejeitarem.
Quem vai interpretar? Mais de 60 mil trabalhadores morrem de acidentes de trânsito anualmente no Brasil66 Confederação Nacional do Transporte [Internet]. Brasília, DF: CNT; ©2023 [acesso em 2022 dez 22]. Disponível em: https://www.cnt.org.br/
https://www.cnt.org.br/... . As metrópoles brasileiras, segregadas, desiguais, barulhentas, são fábricas de mortes. Cerca de 700 mil ocorrências de acidentes no trabalho77 Centro Universitário de Barra Mansa. Segurança do trabalho: país registra mais de 700 mil casos de acidentes de trabalho por ano [Internet]. G1. 2020 mar 26 [acesso em 2022 dez 22]. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/especial-publicitario/ubm/conhecimento-transforma/noticia/2020/03/26/seguranca-do-trabalho-pais-registra-mais-de-700-mil-casos-de-acidentes-de-trabalho-por-ano.ghtml
https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa... , que se juntam ao aumento do desemprego, ao terror de não se empregar, à violência da competição no mercado informal.
O País também é implacável com as mulheres. Segundo dados da pesquisa ‘Visível e invisível: a vitimização das mulheres no Brasil’, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aproximadamente 18,6 milhões de mulheres foram vítimas de violência no Brasil em 2022, com situações extremas de violência física, sexual e psicológica. Estima-se
[...] que ocorram 822 mil casos de estupro no Brasil por ano. Desse total, apenas 8,5% deles chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde88 Atlas da violência [Internet]. Brasília, DF: IPEA; 2023. Atlas 2022: Policy brief, mar 2023. [acesso em 2023 abr 23]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes/242/atlas-2022-policy-brief
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/p... (4).
Pelos dados acima, pode-se afirmar: o golpe já foi dado no Brasil. Pois que, especialmente pela morte de Wanderley Guilherme dos Santos, mas fundamentalmente pelo conteúdo de seu texto e pela ameaça de um golpe no Brasil em 2022, lê-lo como se estivéssemos em 1962 é obrigatório. Ensaio que trata(rá) da relação entre geografia e saúde, na oportuna ocasião.
Ao ler Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... , não conseguimos, sob hipótese alguma, deixar de pensar no que estamos vivendo no Brasil. Atualidade perfeita, como não poderia deixar de ser para quem ouve permanentemente o rugir da história. Por estarmos tratando desse autor em um plano geográfico-sanitário, precisamos estar atentos aos sinais daqueles que ameaçaram dar o golpe no Brasil. Não que esse autor se refira ao vasto e complexo temário, mas os golpistas, sim. Mesmo que não saibamos, ainda, quais sejam, ainda que saibamos. Território, espaço, ambiente e todos os ingredientes que lhes dão vida - saúde, cultura, educação e trabalho - foram alvos preferenciais dos arautos golpeadores. E importa se militar, civil, civil-militar ou militar civil? Nossos filhos e netos classificarão como?
Atualmente, na produção acadêmica tradicional, em que revistas científicas poderíamos ter, com a urgência necessária, afirmações desse tipo? Publicar-se-iam?
A imprensa, mesmo com suas contradições sustentadas pelas elites econômicas, tem, notoriamente, na sua vertente investigativa e nas mídias abertas não sujeitas aos rituais de aprovação em textos ‘científicos’, a primazia de se constituir em fonte primária, original e primitiva de conhecimentos em ciências sociais, hoje, no Brasil. Ora, geografia e saúde aí incluídas. Aliás, se há muita coisa além de geografia e saúde, há pouco.
Um dos aspectos que mais chamam a atenção no texto de Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... é a ausência de referências bibliográficas. O livre pensamento, especialmente sobre matérias pouco trituradas em artigos científicos, tal como a iminência de um golpe no seu país, é matéria libertária, mais para beija-flor do que para voos acadêmicos. Embora Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... seja considerado um dos grandes pensadores das ciências sociais de seu tempo, ora vejamos, em sua premonição confirmada e inconformada, exilou-se voluntariamente de amarras acadêmicas no texto prenunciativo. Hoje, com certeza, teria algumas dificuldades para fazê-lo publicar em meios científicos.
Geografia e saúde e suas epistemes inexploradas não fogem à regra dos beija-flores. Tampouco fogem à ordem do golpe já vigente do apartheid interdisciplinar antes assinalado. Mesmo sabendo-se que, em 1962, os códigos canônicos da produção científica não eram tão fervorosos, Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... , ao não se submeter a citações de pensadores que lhe antecederam, ao longo da história do conhecimento humano, não lhes prestou qualquer demérito. Ao contrário, em sua complexa reflexão, está claramente embutida a síntese da aventura humana do pensar. Pensar como voam os beija-flores. Livres, libérrimos. Em seu texto, estão presentes os pré-socráticos, por certo, o próprio Sócrates e sua maiêutica, Platão, claro, o grande intérprete reflexivo, e Aristóteles, com sua ética da justiça. Sentir-se-iam desrespeitados? Sem dúvida, não. Sentir-se-iam orgulhosos de um seguidor dezenas de séculos depois.
Estão ali, também, no modesto ensaio premonitório de Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... sobre o próximo golpe da época (similar ao que se avizinha), os iluministas de primeira hora - Erasmo, Morus, Maquiavel - e os pensadores da objetivação da subjetividade do poder, subsequentes - Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau.
Dedicasse sua fluidez de ideias a citar cada um dos que irrigaram sua teia de vasos sanguíneos cerebrais, talvez não chegássemos ao prelúdio ensaístico de 1962, que, hoje, mais do que nunca, aplica-se a nosso país. Ensaio implicitamente enciclopédico que, fugindo das inscrições herméticas antecessoras, dedicou-se a exibir uma linguagem objetiva e direta ao povo ameaçado e seus intelectuais orgânicos. Coisa que a academia, atualmente, renega, por produzir textos sobre sujeitos que não têm acesso aos escritos dos que lhes estudam e pesquisam. Pesquisados das pesquisas acadêmicas são como maridos traídos: são os últimos a saber. Antes de perscrutarmos o manguezal interdisciplinar de geografia e saúde, é desnecessário assinalar, e por isso o fazemos, que ali no ensaio está Karl Marx99 Marx K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010., em carne viva. O sangue do poeta do Manifesto jorra.
O autor33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... dispensa, porquanto sabido, a presença bibliográfica de seus antecessores e dos seus contemporâneos dos anos de 1960 - Lukács, Sartre, Marcuse. Toda bibliografia é incompleta. Todos os doutos concordamos, mas, para pareceristas de textos científicos, ela sempre deverá ser completada por alguns de sua simpatia privativa. Talvez, por isso, benzido pela época menos rigorosa com essas agruras, dispensou-as todas. Quem o lê, vê todos ali embutidos, os de sua simpatia e também os de sua antipatia. Ficamos com Wanderley Guilherme dos Santos. Suas lições nos motivam a debater a ciência sem os cercamentos da fragmentação. Mobilizam-nos a integrar geografia e saúde; a interpretar os elos entre território e saúde.
Elos entre território e saúde
Quantos de nós, doutos doutores, nas universidades públicas, formadores de hordas sucessivas de meninas e meninos ingressos na geografia e nas inúmeras ciências da saúde, fizemos intercessões entre elas? Essas coisas sem respostas.
Não chegaremos ao abuso de dizer que em toda graduação de geografia, os alunos jamais ouviram falar de saúde, enquanto relacionada ao seu objeto geográfico do desejo. Mas é possível que esse nefasto fato tenha ocorrido. Do mesmo modo, quantos dos inúmeros alunos das ciências da saúde - Medicina, Enfermagem, Psicologia, Nutrição, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Biomedicina, Odontologia -, em algum momento, estudaram o espaço, o território onde a vida corre, e o chão de seus pés, que pisarão sua trajetória pós-faculdade?
Que menção fizeram a essa relação, em algum momento, por olharem além da paisagem e verem as pessoas que serão sujeitos de seu cuidado? Entender suas histórias, suas lágrimas e risos, seus cotidianos sofridos que lhes demandarão os cuidados técnicos para os quais (supõe-se) foram (ou serão) ‘bem’ preparados?
É evidente que não se pode dizer que está tudo errado, mas, em matéria de geografia e saúde, está tudo errado. Ciências que não conversam são como amantes que não se tocam.
Hoje, na área da saúde, até se fala em territórios1010 Torres-Tovar M. El territorio como categoría fundamental para el campo de la salud pública. Saúde debate. 2017;41(esp):264-75. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042017S20
https://doi.org/10.1590/0103-11042017S20... . A atenção básica em saúde (atenção primária) incorporou a categoria território para falar de exclusão, vulnerabilidade, violência e miséria, mas sem chegar próximo do sentido de espaço de construção da cidadania e seus atributos - cultura, economia local, ritos, saberes próprios e determinações sociais. A medicina privada, diante da incapacidade acelerada das classes médias de manterem a sustentação de seus padrões extorsivos de acumulação, aposta, atualmente, na medicina preventiva. Para isso, apropria-se, de forma surpreendente e insólita, do modelo nascido em países socialistas: a saúde da família, o mapeamento do território e a lógica da prevenção.
Ora, o modelo preventivista de saúde, explicitamente assinalado no artigo 198 da Constituição Federal de 1988, é a essência do modelo sanitário reformista contra-hegemônico ao complexo médico industrial da saúde e sua lógica mercantil. Ali estava a essência da criação do Sistema Único de Saúde (SUS): a defesa intransigente dos miseráveis e dos desprovidos contra a sua exploração pelo então crescente mercado da medicina do lucro alucinado, da negação de Hipócrates, da negação da humanidade. Inspirado em várias frentes anticapitalistas, com destaque para a Conferência Internacional de Cuidados Primários em Saúde (Alma-Ata, 1978)1111 Declaração de Alma-Ata sobre Cuidados Primários [Internet]. Alma-Ata: URSS; 1978 [acesso em 2022 dez 22]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_alma_ata.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco... , o SUS estendeu sua generosidade universalista aos bem-aventurados-endinheirados. E o fez bem, não há por que negar. Como diz a Carta Cidadã, antes do golpe vindouro: saúde é direito de todos e dever do Estado. Generosidade que as políticas de bem-estar social têm com aqueles que as destroçam. E a geografia com isso?
Ora, afinal, qual é, fundamentalmente, a relação unha-carne da geografia e da saúde? Se começarmos pela geografia, é fácil. Há 40, 50 anos, geografia era matéria amorfa, estática e estereotipada pela passividade narrativa de seus conteúdos. Aprendíamos nomes de montes, cascatas, cordilheiras jamais visitadas. Mapas-múndi e mapas-mudos. A geografia não tinha voz. A geografia era um ajuntamento.
A criança sanitária amamentada, da mesma idade da mãe geográfica que lhe amamenta, a partir do SUS, ensinou à mamãe que o sistema de saúde passaria a ser descentralizado. Sua lógica, organização, operacionalização, gestão, seria lá mesmo no seio da mãe. Essa foi a hora em que a mãe - a geografia - entendeu o seu papel. Entendeu mesmo?
Território saudável, jargão que a Carta de Ottawa (1986) de Promoção da Saúde vulgarizou, ao igualar coisas inigualáveis, como empresa saudável, edifício saudável, cidade saudável, município saudável, trabalho saudável, ambiente saudável, alimentação, vida, atitude etc. saudáveis... nem de longe dá conta de uma epistemologia da relação entre geografia e saúde.
A lactente saúde e a geografia lactante ainda não se entenderam muito bem.
É inevitável lembrar de Wanderley Guilherme dos Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... quando separa os dois tipos de golpe: aquele que vivemos na democracia com a hegemonia da classe burguesa sobre a classe dos desprovidos, em aparente harmonia, e aquele que eclode para garantir a situação anterior quando ela se encontra em risco.
Pois, no caso da ‘geografia saudável’, o capitalismo, a burguesia, o poder econômico, os grileiros do poder, os banqueiros, os herdeiros milionários, os ladrões de ‘alta densidade financista’, e os que sabemos tantos de tantas ordens que nem os classificamos - opressores, espoliadores e predadores sempre -, dirão que as disciplinas geografia e saúde precisam se estreitar na busca de um desenvolvimento sustentável.
Piada é sujeitável ao crivo de pares de uma revista científica?
Desenvolvimento sustentável é risível aos olhos de uma geografia crítica.
Saúde que se preza, então, calçada em uma crítica ao complexo médico-industrial, mais ainda. Desenvolvimento sustentável é um eufemismo para perpetuar a lógica predatória do capital em um cenário de insustentabilidade das necessidades humanas (e de seus direitos).
Espaço, território, saúde são elos. Elos de uma corrente que ainda não foi inventada. O SUS perdeu, pela destituição geográfica. A geografia perdeu, pela destituição sanitária. Como recuperar esse encontro? É possível?
Saúde do trabalhador: apostando no encontro entre território e saúde
Durante cerca de seis anos, com frequência amiúde, têm se estreitado as relações de estudo, pesquisa e militância entre geógrafos da Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Estadual de Goiás (UEG), Instituto Federal Goiano (IFGoiano) e profissionais da área de saúde do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (DIHS), da Fiocruz, no Rio de Janeiro. O elo aglutinador do encontro reside na reflexão e na militância em torno da saúde do trabalhador.
As reflexões, os estudos e as pesquisas, forjadas em parcerias, diálogos e amizade entre profissionais dos campos aludidos, ganharam força com a criação do Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito. As vozes presentes de sindicalistas, gente da gestão e dos serviços, como do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest), de representantes de movimentos sociais, de vários coletivos e de acadêmicos, da saúde, da geografia e de outros campos, no Fórum, esclarecem o destino aglutinador de saúde e território: tomar a saúde como bem principal do ser humano; combater processos de trabalhos que causam sofrimento, adoecimento, violência e morte do trabalhador; e perceber que o trabalho é a energia criadora e transformadora das dinâmicas territoriais e, também, da saúde.
Compreender a saúde do trabalhador como elo entre território e saúde requisita, inicialmente, esclarecer alguns princípios concernentes às temáticas em questão.
Do lado dos geógrafos, a fértil produção geográfica brasileira tem constituído um rico manancial de ideias sobre o território. Dessa produção, pode-se compreender que o território é a sustentação da produção e da reprodução social. Ao expressar as condições concretas da vida e as dimensões simbólicas das relações e da sociabilidade, vê-se que as determinações sociais da saúde-doença são impetradas nos conteúdos territoriais em diferentes escalas. A vida é territorialmente constituída, logo, o território é uma determinação da saúde-doença1212 Gonçalves RJAF, Chaveiro E. As margens das margens das margens: saúde do trabalhador em tempos de Pandemia da Covid-19. TI. 2020;10(1):227-39. DOI: https://doi.org/10.5216/teri.v10i1.66150
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Por ser constituído de relações sociais e em conflitos de poder, o território torna-se categoria, bússola, meio de se ler a saúde. A interpretação territorial exige a leitura das contradições sociais, das desigualdades e das lutas de classe, da produção da pobreza. Exige, também, perceber os atores que dominam a riqueza, controlam e se alimentam economicamente da doença; apropriam-se dos bens comuns como água, vento, solo, vegetação, subsolo, luz solar.
Com efeito, a leitura territorial da saúde-doença coloca as lentes geográficas e da saúde para pensar a estrutura do Estado, a força das corporações transnacionais; o enriquecimento de latifundiários, as estratégias das empresas e, também, as pautas dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos diferentes coletivos que lutam pela vida. Se o território é feito de relações, a vida humana também o é.
Ao estabelecer essa forma de leitura, descobre-se que a saúde de sujeitos de uma classe, o tratamento da doença, os condicionantes do adoecimento e também o descaso com a morte precoce de trabalhadores nos postos de trabalhos e no processo de mobilidade são atravessados pelas relações de poder. Assim, dominação se junta ao monopólio da riqueza; às estratégias de controle da riqueza portando-se como fonte de adoecimentos. O processo de dominação é visto, também, pelo controle de hospitais, inclusive, pelo monopólio do saber médico, feito por filhos da classe dominante, estendendo-se como violência social.
Ao dizer que o poder é a gravidade de qualquer leitura territorial, pode-se dizer, igualmente, que saúde-doença estão intimamente ligadas ao modo como o poder é configurado e exercido. Não à toa, há dispositivos ideológicos, normativos, legais que alienam os trabalhadores e os impedem de enxergar a trama do seu adoecimento e do controle de suas vidas. Poder e vida não se dissociam, como território e poder.
A leitura territorial de doença-saúde evidencia-se no princípio número um da saúde do trabalhador: toda espécie de trabalho move o corpo, estimula os órgãos, aglutina o organismo humano ao espaço. Contudo, a divisão de classes sociais e a exploração do trabalhador, num itinerário histórico marcado desde a revolução industrial (século XVIII) até o presente, demonstram que o capitalismo vive e sobrevive do adoecimento do trabalhador, pois a diferença de classe e os privilégios de quem se apropria dos meios de produção e das riquezas originadas do trabalho não são divididos igualmente. A desigualdade, expressão do território capitalista, é marca do adoecimento e da morte de trabalhadores1313 Oliveira AU, Lira ER, Cabrera JP, et al. Território em conflito, terra e poder. Goiânia: Kelps; 2014..
Quando a saúde-doença é vista por esse ângulo, elucida-se uma premissa central: a saúde do trabalhador decorre de uma leitura da luta de classe e de qualquer outra forma de dominação, seja de raça-etnia, gênero ou sexo, pois o trabalho é responsável por construir tudo que decorre da relação entre sociedade e natureza. Cabe, então, ao trabalhador defender a sua saúde, e ele só pode fazê-lo com um projeto de emancipação de classe. A emancipação de classe concretiza-se territorialmente, como a vida. Toda luta política e todo projeto de emancipação envolvem e são envolvidos nas tramas territoriais.
Tramas territoriais são desenhadas por novas morfologias e conteúdo do trabalho. Constata-se, hoje, a uberização, a inscrição da fábrica corporativa, da agricultura química, do mesmo modo que crescem os discursos em torno do empreendedorismo, do formato coach de solução pessoal do sofrimento. Gestores, analistas, administradores e managers ganham o púlpito da publicação de soluções liberais para as crises, para o desemprego, para a depressão, para a ansiedade e para o sofrimento. Esses discursos e ideologias agem no controle do desejo, da emoção e se evidenciam como estratégias capitalistas de sedução do trabalhador1414 Rolnik S. Esferas da Insurreição - notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 edições; 2018..
Os golpes da direita, a ação do fascismo, as truculências policiais que criminalizam a ação dos movimentos sociais, a pressão sobre os trabalhadores, a destituição dos seus direitos são a concretização da luta de classe. Ora, a saúde é a consecução plena da vida, que, por sua vez, depende da reprodução material e subjetiva do trabalhador. Quando o trabalhador deixa de controlar a sua ação no trabalho e o exerce sob domínio e alienação, essa realização, que deveria ser plena, torna-se adoecimento. O trabalhador luta nas suas agremiações porque defende a sua vida; a vida é tessitura da saúde, o código pictórico do encontro com o outro, não de sua exploração.
Por conseguinte, componentes como a profunda diferença entre a expectativa de vida, por exemplo, nos Estados Unidos da América (em torno de 80 anos) e em Moçambique (em torno de 50 anos); a diferença entre a pesquisa científica no campo da saúde feita pelos países ricos exploradores e pelos países pobres explorados da ordem capitalista; as dificuldades de aposentados empobrecidos comprarem seus medicamentos e a sua história de penúria no mundo do trabalho. Todos são exemplos da relação entre poder, trabalho e saúde. Em nível geopolítico, na escala interior dos países e das classes sociais, bem como da raça-etnia, diferenças de saúde são diferenças territoriais.
A ação de negócio feita por empreendedores, gestores de papéis, analistas financeiros, agentes da chamada gestão de oportunidades, investidores de risco curto, títulos públicos, Certificado de Depósito Bancário (CDB), Recibo de Depósito Financeiro (RDB), debêntures, mercado de ações, num raio profuso de alianças, competições, estratégias de coação de Estados dominantes, são responsáveis por um novo modelo de acumulação baseado na renda financeira. O geógrafo David Harvey11 BBC News Brasil. Brasileiros estão entre os que menos dormem, revela estudo sobre padrões de sono no mundo [Internet]. BBC News. 2016 maio 7 [acesso em 2022 dez 22]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160506_padrao_sono_mundo_rb
https://www.bbc.com/portuguese/geral/201... 55 Morin E, Moigne JL. A inteligência da complexidade. São Paulo: Ed. Peirópolis; 2000. defende que se desdobra desse ambiente um novo conteúdo territorial visto na paisagem geográfica da acumulação do capital. Esse ambiente é costurado por mecanismos de produção, especulação, negócio, conhecimento científico e uso da terra. Esse processo adoece a ciência - pode-se dizer.
A análise de David Harvey1515 Harvey D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo; 2011. demonstra que a intervenção na natureza, por intermédio de descobertas no campo da genética, da tecnologia e dos negócios, inspira o controle geopolítico da riqueza do mundo. Por isso, conforme o geógrafo, não se pode - nem se deve - separar a precarização das relações de trabalho das táticas do Estado, das disputas geopolíticas, do rentismo e do adoecimento do trabalhador. Há um processo global patológico, o sucessivo crescimento da paisagem enferma, inclusive da ciência. Isso sob ameaça de golpes.
Entretanto, a interpretação territorial da saúde, ou a leitura da saúde-doença pela via do território, na baliza do campo e da questão da saúde do trabalhador, mobiliza outros princípios. Pois bem, a leitura do território, como foi argumentado anteriormente, é para os militantes da saúde do trabalhador uma forma de clarear as suas formas de luta. Cabe, pois, aos membros desse campo interdisciplinar enxergar, por exemplo, as estratégias do Estado, os motivos pelos quais Ele beneficia médicos e a medicina capitalista. Cabe, também, sob a mesma ótica, ver que a estrutura territorial da economia tóxica causa adoecimento do trabalhador nas lavouras cinzas do agronegócio, na criação de frangos e bovinos e no processo de mobilidade nas cidades e de corpos expostos ao sol na esperança de salvar o almoço vendendo balas, biscoitos, frutas nas esquinas das metrópoles. Os sujeitos de lutas, ao interpretarem o território, leem as articulações das bancadas políticas, suas estratégias ideológicas, suas representações de classes, inclusive nas esferas normativas e no modo como o poder judiciário legitima a desigualdade social, mantém privilégios das corporações, dissimula a luta de classes1616 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record; 2008..
Em decorrência do que foi apresentado, os trabalhadores e os militantes da saúde do trabalhador devem perguntar: quais são as implicações, por exemplo, da colonização e do imperialismo na saúde e no adoecimento do trabalhador? Devem perguntar por que o enriquecimento, a concentração de terras e de capitais criam a pobreza? Devem perguntar se a pobreza é mais afeta às doenças ou não? Devem perguntar a quem se destina a medicina? Necessitam perguntar, também, sobre os sentidos da violência social, urbana, de classe?
Todas essas perguntas - e outras tão importantes como essas - ajudam a clarear que os processos destrutivos da vida, ou a predação ontológica do ser humano, da água, do solo, da biodiversidade e da sociobiodiversidade, ao se juntarem ao processo de segregação espacial, ao desemprego, à marginalização social, à fragmentação de classe, à guerra civil legal, fazem parte da essência contraditória do capitalismo.
A leitura das contradições pode ser luz para que o trabalhador enxergue por que os seus corpos são pressionados e estão sempre cansados e estressados. Podem encontrar explicação no fato de seus filhos não terem assistência médica adequada; sua alimentação não ser suficiente; assim como seu lazer restrito.
Quando o trabalhador reconhece a sua identidade, ou seja, lê o seu lugar no mundo, vê o modo pelo qual o território é disputado, apropriado e repartido entre as classes, ao reconhecer a sua identidade e valer-se dela para reconhecer-se no mundo, é possível combater as ideologias que querem tomar conta de seu pensamento, de suas crenças, de seus gostos e de suas ações. O trabalhador passa, então, a ver que há um mundo concreto - o da sua vida - e do território, no qual a sua vida é exercida1717 Santos M. O dinheiro e o território. GEOgraphia. 1999;1(1):7-13. DOI: https://doi.org/10.22409/GEOgraphia1999.v1i1.a13360
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Essa retomada de mundo, a partir da conquista de sua identidade, estimula-o a reconhecer que não há saúde do trabalhador sem práxis. Reconhece que saúde e doença se imbricam de um tal modo que os termos se conjugam; e que sem a ação emancipatória do trabalhador, não haverá solução para sanear o que lhe adoece: a exploração.
Por conseguinte, a saúde do trabalhador, além de interdisciplinar - por isso, não é propriedade de nenhum campo científico, de nenhum tipo isolado de sindicato, ou de religião, ou mesmo de partido político -, como práxis, deixa de ser apenas um campo para ser uma questão social. Ou um desafio de todos os trabalhadores. Se toda espécie de luta demanda uma identidade ou uma identificação social, a sua consecução é territorialmente concretizada.
Quando o lema - ‘saúde, não se delega, se defende’ - se estende como um princípio, o que está colocado é o chamamento para o trabalhador ler a dimensão territorial do trabalho em toda a sua dimensão, seja no chão de fábrica, nas oficinas industriais, nas imensas lavouras pulverizadas por agrotóxicos, nos sinais e nos semáforos onde se vendem balinhas e frutas a céu aberto; nos balcões, nos plantões médicos, nas salas de aula, nos andaimes dos prédios, ou no atendimento de telefonemas, como no telemarketing, dirigindo um automóvel alugado na prestação de serviços para a Uber Technologies Inc (Uber).
O trabalhador, ao se dispor como sujeito operante da sua saúde, não de maneira individual, mas a partir da identidade de classe, requisita a sua organização. É nos fóruns organizativos, nas associações, nos sindicatos, nos movimentos sociais ou nos partidos políticos interessados na causa total do trabalhador que se reconhece a saúde como direito de trabalhador; e, em reconhecendo, percebe que a saúde é um direito humano.
Por isso é que o conhecimento científico fraturado, dicotomizado, fragmentado, elevado apenas às cifras narcísicas de números de publicações, pouco ajuda a compor a luta pela saúde. Mas quando se juntam os vários campos de saber, especificamente, o da saúde e o da geografia, para mencionar dois campos apenas tratados neste texto, descobre-se que os saberes podem potencializar a leitura da vida.
O saber do trabalhador, assim como a sua vasta experiência no mundo do trabalho e o elo do trabalho com a família, com o lazer, com a escola, enfim, com o mundo concreto de sua vida, é uma demonstração de que saúde e território se abraçam nas lutas políticas. Essas lutas possuem como finalidade a luta pela vida.
Podemos considerar
Como se tem refletido desde algum tempo nos trabalhos efetivados a partir de ações de pesquisa, de organização de seminários temáticos, de participação em oficinas do DIHS/Fiocruz, saúde não é ausência de doença, pois a matéria do corpo tem longa história; e o corpo é uma memória da história do planeta, produto/produtor da cultura.
Assim, pode-se dizer que não há o sujeito totalmente sadio nem totalmente doente. Saúde e doença tornam-se saúde-doença. E, nessa esteira, convém explicitar a saúde do trabalhador. Esse é um campo de saber; de luta política; de intervenção; de participação social. Por isso, agrega sindicatos, movimentos sociais, universidades. E deve agregar o diálogo dos saberes.
Em função de sua amplitude, de sua decisiva posição e também de sua origem, a saúde do trabalhador não escolhe religião, partido político, idioma, cor, mas é uma questão ideológica. Por ler o trabalho numa esfera abrangente, a partir da classe social, agrega ação da subjetividade; ligação com os saberes, com a emoção, com o prazer; com o corpo; com a natureza; com a cultura; com as identidades; com o território; com o ambiente; com o tempo.
No caso específico das reflexões que foram desenvolvidas, a constatação do profundo adoecimento causado pelo modelo econômico vigente e pela exploração do trabalhador encontra eco, também, na organização da ciência. Percebeu-se que, de um lado, os denominados profissionais da saúde desconsideram a leitura das contradições do território como determinantes, ou condicionamentos do adoecimento; por outro lado, as interpretações geográficas, espaciais, territoriais, feitas pela geografia, tendem a desconsiderar as tramas da saúde-doença.
A enfermidade da ciência é, portanto, resultado da fragmentação do saber, de sua atomização. Essa fragmentação, com suas enunciações sofisticadas e acadêmicas, muito mais que enfrentar os problemas concretos que atingem os trabalhadores, motiva um irrefreável conflito interno entre pares. O próprio fazer científico adoece. É um índice da patologização global1818 Han BC. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes; 2015..
Por conseguinte, a dissolução da cooperação na elaboração dos saberes, na sua disseminação e na sua publicização, enfraquece a práxis, portanto, enfraquece a luta pela emancipação dos trabalhadores. Enfraquecidos, os golpes são mais fáceis de serem implementados.
No atual regime econômico, a ciência também é um território de disputa. Não à toa, países ricos desenvolvem pesquisas, tentam controlar a natureza, as patentes, os laboratórios e as fórmulas de medicamentos que prometem curar a angústia humana. Mas não atuam para eliminar a desigualdade social, a pobreza, a fome, o monopólio. Ao contrário, o adoecimento dos trabalhadores em grau de uma patologização global interessa à indústria farmacoquímica tanto quanto os minerais, a água e o solo para o processo produtivo. A desgraça humana do adoecimento é a fortuna dos laboratórios e das corporações. O triunfo do modelo hospitalocêntrico, a vitória geopolítica dos países dominantes.
A profunda mercantilização da natureza, a exploração do trabalho ou o crescimento da dependência de medicamentos são peças de uma engrenagem cujo resultado é a erosão genética, a predação ontológica e a intoxicação da vida. O planeta enfermo possui o beneplácito da ciência enferma. Mas a enfermidade é lucrativa, pois mobiliza forças que controlam a riqueza, as corporações e os monopólios.
A junção da rede hospitalocêntrica à rede de produção é, na escala geopolítica, uma forma de domínio territorial. Trata-se de uma efetiva ação de poder. A questão que se coloca é como o trabalhador vai ler esse controle interpretando as suas contradições. Ou como enfrentará as ideologias que o deslocam do plano concreto - da relação entre a sua vida e as determinações territoriais. Ora, o processo emancipatório, posto assim, requisita recuperar o quanto possível a saúde da ciência e dos seus vários campos de saber. Como aludiu dos Santos33 Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
https://www.marxists.org/portugues/temat... , em 1962, se não houver uma boa interpretação, não se saberá quem vai dar o golpe no Brasil.
Agradecimentos
O primeiro e o último autor agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ-2).
- Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ-2)
Referências
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» https://doi.org/10.12345/pegada.v21i1.2020 - 3Santos WG. Quem dará o golpe no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1962 [acesso em 2022 dez 22]. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf
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» https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/especial-publicitario/ubm/conhecimento-transforma/noticia/2020/03/26/seguranca-do-trabalho-pais-registra-mais-de-700-mil-casos-de-acidentes-de-trabalho-por-ano.ghtml - 8Atlas da violência [Internet]. Brasília, DF: IPEA; 2023. Atlas 2022: Policy brief, mar 2023. [acesso em 2023 abr 23]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes/242/atlas-2022-policy-brief
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 - Data do Fascículo
Oct-Dec 2024
Histórico
- Recebido
13 Jun 2023 - Aceito
24 Nov 2023