Barreiras de acesso: uma análise a partir da percepção das trabalhadoras do Consultório na Rua

Priscilla Victória Rodrigues Fraga Celina Maria Modena Paloma Ferreira Coelho Silva Sobre os autores

RESUMO

O presente artigo visa analisar as barreiras de acesso aos serviços de saúde da População em Situação de Rua (PSR) e as estratégias de cuidado na percepção das trabalhadoras das equipes de Consultório na Rua (eCR) de Belo Horizonte. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas com 10 trabalhadoras de duas eCR. A PSR possui barreiras de acesso discriminatórias, protocolares e simbólicas que impedem a efetivação do acesso ao direito à saúde, apesar da diretriz da equidade ser norteadora para o Sistema Único de Saúde (SUS). Essas barreiras se relacionam com o processo de exclusão social ao qual a PSR está submetida, marcado por múltiplas e sobrepostas violências, pelo acesso restrito aos direitos básicos e se agravam quando há relatos de uso de drogas. Dentre as estratégias de superação das barreiras de acesso estão a necessidade de qualificação de dados públicos sobre a PSR, alinhamentos institucionais sobre acesso da PSR ao SUS, ações de educação permanente para desmistificar mitos e preconceitos, elaboração de fluxos que considerem os modos de vida da PSR, atuação extramuros da atenção primária para vinculação da PSR do território e estratégias de fortalecimento da PSR com participação no controle social.

PALAVRAS-CHAVE
Pessoas mal alojadas; Acessibilidade aos serviços de saúde; Equidade em saúde; Populações vulneráveis; Pesquisa qualitativa.

Introdução

A População em Situação de Rua (PSR) é um grupo heterogêneo que possui em comum a extrema pobreza, a fragilização ou ruptura dos vínculos familiares, a inexistência de moradia convencional e a utilização de logradouros públicos como espaço de moradia e sustento11 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BR). Rua aprendendo a contar. Brasília, DF: MDS; 2009..

O grande número da PSR no Brasil é fruto do agravamento de questões sociais, com destaque para a rápida urbanização ocorrida no século 20, com a migração para grandes cidades, para a formação de grandes centros urbanos, para a desigualdade social, para a pobreza, entre outros22 Ministério da Saúde (BR). Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014.. A PSR vive em permanente estado de vulnerabilização, seja por não ter documentos (o que é indispensável à cidadania), seja por não possuir casa, dinheiro, emprego fixo, por não ter acesso à educação ou por encontrar dificuldades até mesmo para receber cuidados em saúde33 Sotero M. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética. Rev Bioética. 2011;19(3)799-817..

Há uma escassez de dados públicos atualizados que quantifiquem e caracterizem a PSR no Brasil, sendo que não é incluída nos dados censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por não se tratar de população domiciliada. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que, em 2022, existiam 281.472 pessoas em situação de rua no Brasil44 Natalino M. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022). Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2023.. Em maio de 2023, havia 204.244 pessoas em situação de rua cadastradas no Cadastro Único (Cecad)55 CECAD Tabulador do Cadastro Único [Internet]. Versão 2.0 [Brasília, DF]: CECAD; em data] [acesso em 2023 ago 1]. Disponível em: http://cecad.cidadania.gov.br
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.

Para obter um panorama nacional sobre a realidade da PSR no Brasil, foi realizada em 2009 uma pesquisa nacional sobre a PSR que identificou 31.992 pessoas maiores de 18 anos em situação de rua. De acordo com a pesquisa, as pessoas em situação de rua possuem dificuldades de acesso aos serviços de saúde, sendo que mais da metade dos entrevistados afirmou ter sofrido discriminação e maus tratos nos serviços de saúde, onde, por vezes, são considerados portadores de ‘patologia social’ evitando adentrar certos espaços por entenderem que provavelmente serão expulsos11 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BR). Rua aprendendo a contar. Brasília, DF: MDS; 2009..

As equipes multiprofissionais do Consultório na Rua (eCR) foram criadas para lidar com os diferentes problemas e necessidades de saúde da PSR, dado o reconhecimento acerca da dificuldade de acesso aos serviços de atenção básica66 Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das equipes de consultório na rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2011 jan 26; Seção 1.. As eCR correspondem a uma modalidade de atendimento extramuros, que busca construir o cuidado de forma integral, oferecendo assistência em saúde in loco para a garantia do cuidado à PSR. As equipes compõem a Atenção Primária à Saúde (APS) e circulam nos territórios em um veículo, com oferta de cuidados em saúde adaptados às especificidades de uma população com importante complexidade77 Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface - Comun Saúde Educ. 2014;18(49):251-60..⁠

O presente artigo tem como objetivo analisar as barreiras de acesso da PSR no SUS, bem como as possibilidades de construção de cuidado a partir da percepção das trabalhadoras das eCR. Os resultados apresentados são parte de uma dissertação de mestrado88 Fraga PVR. “Tá normal! tá normal! a saúde chegou”: etnografia da atuação do Consultório na Rua de Belo Horizonte nas cenas de uso [dissertação]. Belo Horizonte: Fundação Oswaldo Cruz. Instituto René Rachou; 2022. 141 p. que buscou compreender a atuação das eCR no espaço da rua e das cenas públicas de uso de drogas.

Material e métodos

Trata-se de um estudo qualitativo, considerando que esse formato de pesquisa possibilita uma compreensão mais aprofundada de certos fenômenos sociais, privilegiando o aspecto subjetivo da ação social face à configuração das estruturas da sociedade. Dessa forma, os métodos qualitativos enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser99 Haguette TMF. Metodologias qualitativas na sociologia. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2003..

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com trabalhadoras de duas eCR (optou-se por fazer referência ao conjunto de técnicos no feminino com base na constatação que o serviço é majoritariamente composto por mulheres). A pesquisadora realizou contato com cada equipe durante reuniões de trabalho onde apresentou a pesquisa e convidou-as para participarem. O critério de seleção das trabalhadoras foi integrar uma das equipes que atuam nos territórios das cenas de uso estudadas. Como critérios de exclusão foram definidas a recusa ou ausência do trabalho no período da coleta.

Foram realizadas 10 entrevistas, de outubro a dezembro de 2021, com duração média de quarenta minutos. Participaram duas profissionais de cada categoria (assistente social, enfermeira, redutora de danos, arte educadora e psicóloga) de duas eCR, que atuam nas cenas de uso estudadas. O áudio das entrevistas foi gravado, posteriormente transcrito, e o material foi arquivado nos servidores da instituição.

Os nomes utilizados neste artigo são fictícios para preservação do anonimato das participantes. Os dados obtidos foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo na modalidade temática1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 225 p.. A análise de conteúdo pode ser compreendida como uma ferramenta de análise das comunicações que faz uso de procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens.

Inicialmente, o conteúdo transcrito foi organizado por eixos temáticos; em seguida, foi realizada a análise de acordo com a frequência com que esses temas foram citados e, em um terceiro momento, foi realizada a análise transversal, em que o conteúdo transcrito é recortado e agrupado nos eixos temáticos inicialmente organizados. Dentre os eixos temáticos identificados, aqui pretende-se discutir um eixo que se apresentou como central: a percepção das trabalhadoras sobre o acesso da PSR à rede SUS.

As entrevistas tiveram como objetivo compreender a atuação do dispositivo com a PSR nas cenas de uso. Durante a análise, percebeu-se que as barreiras de acesso foram um tema recorrente nas entrevistas. Tema que se tornou um importante elemento de investigação, considerando o olhar privilegiado extramuros das eCR em relação à PSR com sua atuação in loco e sua capacidade de olhar intramuros dentro da política pública de saúde. Como trabalhadoras da saúde, elas possuem uma aproximação diferenciada com a PSR, a partir da sua prerrogativa de ser um serviço de baixa exigência e com atuação no espaço da rua, o que traz um olhar mais específico sobre essa realidade. Em contraponto, possuem também o olhar dentro da institucionalidade da rede SUS/BH, considerando que a compõem.

A pesquisa foi norteada pela Resolução nº 466/121111 Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:59., do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta as diretrizes e normas acerca de pesquisas que envolvem seres humanos, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas/Instituto René Rachou (CAAE 46888821.0.0000.5091) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura de Belo Horizonte (CAAE 46888821.0.3001.5140) sob registro 4.084.770.

Resultados e discussão

As eCR que fizeram parte da pesquisa são compostas, em sua maioria, por mulheres negras (pretas e pardas). Na época das entrevistas, 7 trabalhadoras possuíam de um a dois anos de atuação no serviço, conforme quadro 1 a seguir.

Quadro 1
Participantes da pesquisa

Para fins de análise, as barreiras foram categorizadas em três tipos, ainda que, por vezes, elas se entrecruzem: barreiras discriminatórias, barreiras protocolares e barreiras simbólicas, que são abordadas em cada seção respectivamente. Em seguida, são apresentados resultados que não se relacionam às categorias centrais, mas são importantes para se pensar nas possibilidades de cuidado encontradas no tópico construindo pontes.

Barreiras discriminatórias: ‘deixou lá e caiu, ninguém viu, só viu no final do plantão’

Butler demarca em sua obra ‘Vidas Precárias’ que algumas vidas são “altamente protegidas”, entretanto “outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como passíveis de serem enlutadas”1212 Butler J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica; 2019.(52); o enquadramento faz com que algumas vidas sejam mais ou menos passíveis de luto. Para a autora, toda vida é precária, entretanto ela distingue a precariedade intrínseca da vida, de outra que é produto de uma política, atingindo de forma desigual em algumas populações.

É o que se poderia chamar de distribuição diferencial da precariedade, que está ligada à distribuição diferenciada de saúde e bens, e que também está relacionada ao aspecto da vida humana exposta à fome, violência ou destruição1313 Córdoba D, Meloni C. A propósito de las vidas precarias. Entrevista a Judith Butler. La Torre Del Virrey. 2011;1(10):69-73.(69).

Pinheiro relaciona a ideia de enquadramento de Butler com a desumanização dos corpos das mulheres profissionais do sexo, com destaque à negação das dores vivenciadas por elas, pois “suas dores não são percebidas enquanto violências, e sim enquanto consequências do que elas propriamente são - mulheres trabalhadoras sexuais”1414 Pinheiro BO. Vidas precárias: estudo sobre a espiritualidade sem religião vivida por profissionais do sexo em Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; 2022.(75).

Sobre a noção de enquadramento a autora explica:

Quando tiramos uma fotografia, retiramos dela o que não é desejado que o outro veja, o que não deve ficar impresso. O ângulo também é uma escolha e determina a priori o que o fotógrafo quer realçar ou descartar do limite do quadro. Associando à ideia de enquadramento, o limite da moldura corresponde às suas margens, ou bordas. A moldura escolhida para uma fotografia - bem como sua produção -, ou para uma situação, carrega uma intenção discursiva e uma escolha do que cabe dentro do quadro e do que não existe diante daquele quadro, portanto não será visto1414 Pinheiro BO. Vidas precárias: estudo sobre a espiritualidade sem religião vivida por profissionais do sexo em Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; 2022.(80).

Sob a lógica do enquadramento, ao se deparar com a pessoa em situação de rua, o sujeito que a vê decide (por uma escolha consciente ou não) direcionar seu olhar a esses sujeitos colocando-os no ângulo do enquadramento ou à margem deste, para fora das bordas. Relacionando a realidade apresentada sobre as profissionais do sexo com a PSR, percebe-se um contexto similar de marginalização e discriminação quando a precariedade vivenciada é associada à vagabundagem, preguiça ou escolha, fazendo com que eles estejam fora do enquadramento dos seres que devem ser cuidados.

Destaca-se aqui, segundo Pinheiro1414 Pinheiro BO. Vidas precárias: estudo sobre a espiritualidade sem religião vivida por profissionais do sexo em Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; 2022.(80)

Que ver ‘esses sujeitos’ é muito mais que olhar, pois se trata de uma escolha política. Tudo que é visto é delimitado por bordas que excluem da imagem capturada o que não deve estar dentro do quadro. [grifo nosso].

A noção de discriminação racial utilizada por Almeida, como “a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados”1515 Almeida SL. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandira; 2021.(32), tem como “requisito fundamental o poder, sem o qual não é possível atribuir vantagens ou desvantagens por conta da raça”1515 Almeida SL. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandira; 2021.(32).

No presente texto, a palavra discriminação é representada como a ação de intolerância e preconceito que separa e segrega pessoas ou grupos, culminando em desvantagens ou privilégios para indivíduos a depender do grupo ao qual pertençam, seja por raça, etnia, gênero, orientação sexual, religião, situação social, deficiência, entre outros, reconhecendo que tais práticas nos serviços de saúde são sabidamente fatores dificultadores do acesso e do cuidado em saúde22 Ministério da Saúde (BR). Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014..

Nesse sentido, utilizou-se para definir como barreiras discriminatórias as ações desenvolvidas por atores públicos que impedem ou desqualificam as ofertas para a PSR movidas por preconceitos, como os relatos de recusa de atendimento; distanciamento na hora de examinar; atendimentos inadequados; não encostar no sujeito durante a avaliação clínica; demandar que o usuário retorne mais limpo; deixar de indicar uma terapêutica por desacreditar na adesão88 Fraga PVR. “Tá normal! tá normal! a saúde chegou”: etnografia da atuação do Consultório na Rua de Belo Horizonte nas cenas de uso [dissertação]. Belo Horizonte: Fundação Oswaldo Cruz. Instituto René Rachou; 2022. 141 p..

Nas entrevistas, foram relatados diversos casos que podem ser relacionados à noção de barreiras discriminatórias por se tratar de pessoa em situação de rua, entretanto uma situação desperta a atenção em função da gravidade e do desfecho negativo do quadro: na ocasião em que a eCR levou um usuário para a internação, posteriormente a equipe recebeu ligação de uma profissional da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), informando: “tem um moço que está aqui na porta que vocês trouxeram ontem, ele não quer ficar, ele está aqui na porta, mas ele não pode ficar aqui na porta”. E Amarilis, uma das entrevistadas, responde: “Não! Ele pode ficar onde ele quiser. Mas ele está bem? O que está acontecendo?”. A profissional da UPA informou que ele não conseguia andar, mas havia assinado um “termo de evasão”.

Quando a equipe chegou à unidade, o paciente já havia sido levado novamente para dentro porque teve piora importante do quadro. Após a reinternação, ele ficou em isolamento por suspeita de tuberculose e, passados dois dias, veio a óbito depois de uma queda da maca. Segundo a equipe da UPA, o paciente foi encontrado “caído… já estava com midríase, estava com a pupila dilatada, não tinha resposta cerebral”. E conclui: “a gente entende que foi [...] negligência mesmo, de cuidado. A galera não foi lá, deixou lá, e caiu, ninguém viu, só viu no final do plantão” (Amarilis).

As situações acima dialogam com os achados na literatura e revelam como essa população é enxergada socialmente por um viés estigmatizado1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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, carregado de preconceitos1717 Valle FAAL, Farah BF, Carneiro Junior N. As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde debate [Internet]. 2020;44(124):182-92. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413
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, com resistência de alguns profissionais de saúde em atendê-los1818 Andrade R, Costa AAS, Sousa ET, et al. O acesso aos serviços de saúde pela população em situação de rua: uma revisão integrativa. Saúde debate. 2022;46(132):227-39. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213216
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, revelando-se como o ‘paciente não desejado’ de muitos serviços de saúde, o que gera medo e desconfiança dos usuários1919 Abal YS. Mais que apenas pedras e pedradas. A produção de saúde em cenas abertas de uso de crack, pasta base de cocaína e similares [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva, UFMT; 2018. - que conhecem as limitações de acesso e se sentem discriminados2020 Filho G, Moura J. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicol USP. 1998;9:11-67. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
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. A liberação do paciente após a assinatura do suposto ‘termo de evasão’ indica uma desresponsabilização em relação ao paciente que está na unidade.

Corroborando a literatura, houve relatos de situações discriminatórias com a PSR agravadas quando relacionadas ao uso de drogas, como ocorrido em um atendimento de urgência ortopédica:

O médico fez um despautério com ele, começou falar que ele não pode usar antibiótico porque ele é usuário de crack, e falar alto. Ele [o usuário] é um senhor, estava com vergonha, abaixou a cabeça [...] falou [se referindo ao médico] que é porque ele usa crack, que ele não quer nada com a vida, que ele escolheu isso. Eu intervi, falei ‘desculpa, o que que isso tem a ver com a medicação? [...] Não é assim, ele é um sujeito direito, você está aqui para cuidar, não é sua função, ele está aqui pra receber cuidado, e a gente está aqui pra garantir que isso aconteça’. (Azalea).

A marginalização desses corpos se dá pela (re)produção do estigma a que a PSR está submetida, contribuindo para a construção de uma imagem negativa desses indivíduos. Em situações como a descrita, são atribuídas convicções morais carregadas de preconceitos, antes mesmo de haver uma escuta da história de vida ou das queixas diagnósticas do sujeito. O agravamento do estigma quando se trata de pessoas em uso prejudicial de drogas advém de uma noção de fragilidade do caráter, de vagabundagem ou periculosidade1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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,1717 Valle FAAL, Farah BF, Carneiro Junior N. As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde debate [Internet]. 2020;44(124):182-92. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413
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, movido por um ‘deslizamento conceitual’ entre pobreza, loucura e classes perigosas que precisa ser superado2121 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis. 2022;32(4):1-21. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312022320408
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Os profissionais de saúde também são influenciados por esse imaginário1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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e, muitas vezes, a partir do relato do paciente sobre uso de drogas há hostilidade na condução clínica no atendimento. Caso de uma gestante que procurou o centro de saúde e a profissional da unidade disse

Ah, mas eu não vou querer abrir esse SISPRENATAL [referindo-se ao cadastro do sistema de monitoramento e avaliação da atenção ao pré-natal e ao puerpério monitorado pelo Ministério da Saúde], depois se eu não encontrar ela, se eu tiver que responder por ela, eu não quero responder por isso, eu vou ser processada se o neném morrer, se essa mulher morrer na rua a responsabilidade vai ser minha.

Algumas barreiras discriminatórias identificadas nas entrevistas foram a falta de comprometimento com o cuidado das pessoas, “quando a gente vai acompanhar uma pessoa no consultório a pessoa [profissional do atendimento] fala olhando pra gente [trabalhadora eCR], não olha para a pessoa [paciente], como se a pessoa não estivesse ali” (Amarilis); recusa de atendimento, dizendo “volte com o Consultório de Rua” (Amarilis), determinando a presença da eCR como pré-condição para o atendimento.

Destaca-se que essas ações discriminatórias da PSR não dizem respeito a escolhas individuais dos profissionais de forma isolada, pelo contrário, elas correspondem ao imaginário social relativo às pessoas em situação de rua, resultado de um processo social de segregação e exclusão social. Tais ações estão desconectadas das diretrizes do SUS e seguem na contramão das normativas técnicas do Ministério da Saúde que preveem a equidade e garantia de acesso amplo, simplificado e seguro2222 Casa Civil (BR). Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2009 dez 24; Seção 1..

Barreiras protocolares: ‘Eles preferem ir com a gente, porque a gente chega quebrando algumas barreiras’

Dentre as situações de negativa de acesso identificadas nas entrevistas havia justificativas burocráticas e protocolares, como: falta de documento de identidade, cartão do SUS, comprovante de residência, ausência de residência fixa, horário de vaga na agenda da unidade para atendimento divergente dos modos de vida da PSR ou condição de atender apenas com a presença de uma eCR1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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,1818 Andrade R, Costa AAS, Sousa ET, et al. O acesso aos serviços de saúde pela população em situação de rua: uma revisão integrativa. Saúde debate. 2022;46(132):227-39. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213216
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,2121 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis. 2022;32(4):1-21. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312022320408
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,2323 Valle FAAL, Farah BF. A saúde de quem está em situação de rua: (in)visibilidades no acesso ao Sistema Único de Saúde. Physis. 2020;30(2):e300226. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300226
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Nomeamos como barreiras protocolares as ações de negativas de acesso da pessoa em situação de rua nos serviços públicos de saúde sob justificativas relacionadas à infraestrutura dos serviços, protocolos, fluxos, rotinas, cadastros, horários e demais motivações relacionadas à organização dos serviços. Não pretendemos aqui invalidar a necessidade de estabelecimento de fluxos e protocolos, entendendo, inclusive, a importância da sistematização de processos para a garantia de acesso ao SUS. Entretanto, questiona-se a dificuldade da rede em rever os processos protocolares para a garantia do direito de acesso da PSR numa perspectiva de equidade.

A legislação prevê a atenção integral à saúde para as famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, devendo se dar independentemente da apresentação de documentos2424 Casa Civil (BR). Lei Nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 1993 dez 8; Seção 1.. A recusa por atendimentos em saúde nesses casos configura-se como situação de violação de direitos, seja por desinformação ou de forma deliberada.

No município, há diretriz para a dispensação de medicação para PSR sem documentos, entretanto a PSR segue enfrentando barreiras protocolares justificadas por aspectos burocráticos que reforçam a violência institucional oriunda da burocracia dos serviços de saúde2525 Santos IT, Prado Júnior RR, Tajra FS, et al. Experiências de acesso à saúde bucal de mulheres em situação de rua. Saúde debate. 2023;47(136):83-95. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313605
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. Um aspecto importante apontado pelas trabalhadoras é a necessidade de um ‘cálculo’ diferenciado na condução clínica nos atendimentos à PSR, considerando seus modos de vida:

Essa rotina, que pra gente às vezes funciona tão bem, de acordar tal horário, de comer, de descansar, [...] a forma como as pessoas se organizam na rua é diferente mesmo. E se a gente trouxer os mesmos parâmetros sempre vai ‘dar ruim’ mesmo, sempre vai achar que a pessoa não está querendo cuidar da saúde. É diferente, porque ele tem vários outros problemas que a gente não consegue mensurar. (Íris).

A relação do profissional de saúde com o usuário dos serviços pode ser estabelecida como uma relação de poder, onde o saber técnico se sobrepõe ao saber do usuário, seja na relação com as eCR ou com as demais equipes da rede SUS. Por vezes, corre-se o risco de desconsiderar o imediatismo que permeia a lógica de vida da PSR2626 Engstrom EM, Lacerda A, Belmonte P, et al. A dimensão do cuidado pelas equipes de Consultório na Rua: desafios da clínica em defesa da vida. Saúde debate. 2019;43(esp7):50-61. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S704
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. Sobre essas condutas desalinhadas aos modos de vida dessa população, Amarilis relata:

Não dá para achar que ‘ah, fulano de tal vai chegar no centro de saúde às sete horas da manhã’. É uma galera que não dorme à noite porque está em uso o tempo inteiro, não dorme à noite porque é perigosa a rua à noite [...] então tem sempre que estar alerta. [...] Quando amanhece é quando tem um pouco mais de segurança, e ainda assim é perigoso, ele não vai chegar no centro de saúde às sete horas da manhã para colher sangue. (Amarilis).

Os modos de vida da PSR estão muitas vezes relacionados à busca pela sobrevivência diária (o que comer hoje, onde dormir hoje, como se proteger hoje). Logo, suas necessidades e seu cotidiano precisam ser orientadores na construção de protocolos de cuidado, pensando em uma rede de saúde que conheça as necessidades dessa população. A inflexibilidade de horários para consulta pode ser incompatível com a vivência na rua2525 Santos IT, Prado Júnior RR, Tajra FS, et al. Experiências de acesso à saúde bucal de mulheres em situação de rua. Saúde debate. 2023;47(136):83-95. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313605
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, inviabilizando o acesso.

No que se refere às barreiras protocolares, as eCR têm papel importante de mediação das relações entre a PSR e os serviços:

A gente tem que convencer o sujeito que ele é um sujeito de direito, e depois tem que convencer a ponta [se referindo aos serviços da rede] que é o direito que ele tem de ser cuidado. (Azalea).

Por mais que haja diferenças entre as barreiras protocolares e as barreiras discriminatórias, ambas resultam dos preconceitos e da desconsideração dos modos de vida da PSR.

Outro aspecto marcante das entrevistas são os ruídos encontrados na relação entre as eCR e os trabalhadores de outros serviços, seja por conduzirem o paciente considerado ‘indesejado’ - por gerar mais demandas de trabalho para a equipe que o recebe - seja pelas intervenções que as eCR precisam fazer em alguns momentos para conseguir garantir o acesso da PSR a outros cuidados.

Percebe-se que, mesmo compondo a rede assistencial do SUS/BH, muitas vezes os sujeitos acompanhados são vistos pelos demais serviços como ‘pacientes do Consultório na Rua’, havendo pouco engajamento na construção de um cuidado compartilhado. É necessário demarcar que

a garantia da integralidade do cuidado tem que ser responsabilidade do sistema de saúde e não fruto da batalha individual, muitas vezes desesperada, de cada usuário, [ou neste caso, das eCR]2727 Cecilio LRO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro RA, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4. ed. Rio de Janeiro: UERJ; 2006. p. 117-30.(122).

Barreiras simbólicas: ‘A gente estava te esperando’

No que refere aos processos de cuidados em saúde, apesar de não haver um distanciamento físico-espacial dos serviços de saúde, percebe-se que as pessoas em situação de rua, com destaque às que frequentam as cenas de uso, possuem grande resistência e evitam se aproximar dos serviços de saúde de base territorial, inclusive em situações de dor e padecimento agudo1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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Um aspecto que causa espanto é a recusa de busca pelos serviços de saúde, havendo vários relatos de situações em que os sujeitos esperam o retorno da eCR na segunda-feira.

Quando a gente chega as pessoas vão nos procurar e falam assim: ‘olha, fulano está desse jeito, a gente estava te esperando aqui’. A comunidade está muito próxima da UPA, do Cersam AD [Centro de Referência em Saúde Mental], do centro de saúde […] porque ali eu brinco que é como se fosse a área hospitalar. E ainda assim, às vezes você vai chegar numa segunda-feira e alguém vai falar que ficou te esperando desde sexta-feira. (Íris).

Situações como essa podem ser consideradas barreiras simbólicas de acesso, quando, antes mesmo de ter uma negativa de acesso em um serviço específico, a pessoa deduz que não será bem atendida e evita entrar em espaços públicos a partir de uma expectativa de expulsão11 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BR). Rua aprendendo a contar. Brasília, DF: MDS; 2009.. Na literatura, há registros de sentimentos de baixa autoestima por parte da PSR, sentimentos de vergonha, comparando-se a lixo1717 Valle FAAL, Farah BF, Carneiro Junior N. As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde debate [Internet]. 2020;44(124):182-92. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413
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, evidenciando a reprodução dos estigmas que são internalizados e contribuem para o distanciamento dos serviços de saúde.

Essas barreiras simbólicas podem facilmente ser percebidas na fala da Íris, que menciona um conjunto de equipamentos públicos de saúde no território, com amplo horário de atendimento ao público na modalidade porta aberta. O que inclui o Cersam AD (em Belo Horizonte corresponde ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas - Caps AD), o Centro de Saúde e a UPA, localizados entre 240m a 350m do espaço de permanência desses sujeitos que, mesmo assim, não conseguem acessá-los e ter seus direitos à saúde efetivados.

Foi relatada uma situação crítica apresentada com uma usuária que vivenciou um conflito com o tráfico. Ela estava no parque, com os dedos abertos por um corte de facão, havia rompimento do tecido e um ferimento profundo com exposição óssea. A usuária havia sido torturada após ser acusada de colocar sal na cocaína comercializada. A equipe tentou mobilizá-la para ser atendida na UPA a 350m do local, entretanto, mesmo diante de situação grave, a usuária não aceitou. Diante da recusa e da gravidade do ferimento, a eCR optou por realizar os curativos e o acompanhamento da ferida na rua, mesmo ciente de que a oferta de cuidado na situação estava distante da ideal, mas entendeu que era o cuidado possível na perspectiva da redução de danos. Entende-se que essa recusa também pode ser motivada pelo receio de acionar a polícia, por se tratar de um episódio de violência e de uma atividade ilícita.

As situações relatadas revelam semelhanças nas cenas de uso de Belo Horizonte/MG com a retratada em Cuiabá/MT, onde

o medo, o preconceito e a desconfiança estão na base das barreiras simbólicas (mas reais) que dificultam a chegada dos sujeitos nos serviços de saúde que funcionam em estabelecimentos fixos1919 Abal YS. Mais que apenas pedras e pedradas. A produção de saúde em cenas abertas de uso de crack, pasta base de cocaína e similares [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva, UFMT; 2018.(88).

Ressalta-se que essas barreiras simbólicas não têm relação com algo imaginário. Elas fazem alusão a uma recusa ou distanciamento dos indivíduos em situação de rua em relação aos serviços de saúde, expressão do preconceito real sofrido ao longo da vida ao acessar estabelecimentos públicos11 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BR). Rua aprendendo a contar. Brasília, DF: MDS; 2009.. As repetidas barreiras de acesso fomentam as barreiras simbólicas que resultam em falta de confiança, insatisfação com os serviços e, consequentemente, desistência e distanciamento dos serviços públicos de saúde.

As barreiras de acesso encontradas no contexto pesquisado se relacionam com a concepção de Filho e Moura2020 Filho G, Moura J. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicol USP. 1998;9:11-67. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
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sobre a humilhação social como modalidade de angústia, resultante do impacto traumático da desigualdade de classes. A humilhação para os pobres (aqui situada no contexto da PSR) é uma realidade sentida no cotidiano como iminente, sempre à espreita, sendo que o sentimento de não possuir direitos, de parecer desprezível e repugnante lhes é imposto, como seres que ninguém vê.

Sendo assim, as barreiras de acesso identificadas a partir da perspectiva das trabalhadoras, por vezes, se entrecruzam e se assemelham, pois os fatores que as geram estão fundados sob a mesma base, o processo de exclusão social.

Apesar de todos os impasses apresentados, não há pretensão neste artigo de recair em um fatalismo, como se não houvesse produção do cuidado em saúde em rede. Apesar do presente artigo se debruçar nos pontos críticos relacionados às barreiras de acesso, foram identificadas possíveis saídas construídas cotidianamente de forma coletiva, em rede, para a efetivação do direito à saúde da PSR.

Construindo pontes: ‘Assim é o nosso trabalho, fazer ponte’

As trabalhadoras apontaram o Consultório na Rua como “um serviço que chega com o corpo como nenhum serviço chega” (Tulipa), que chega em locais onde os outros serviços não chegam e essa chegada se torna possível a partir do vínculo construído pelo dispositivo com os territórios.

É chegar, entender, respeitar aquele espaço mesmo. Mas é isso, acho que a gente tem que estar lá mesmo, se a gente não está lá, não chega. Até a vacina, atualmente vamos vacinar porque tem vínculo, vão vacinar porque conhecem a equipe, vamos vacinar no Centro de Saúde porque a gente vai encaminhar, entendeu? A gente é uma franjinha mesmo, que vai chegar primeiro, a gente tem um olhar. Para o avanço dos outros profissionais [se referindo aos outros serviços] tem que apurar ainda na expertise do Consultório. (Camélia).

Relacionando o contexto da pesquisa com a literatura sobre a atuação das eCR no país como um dispositivo mais fluido, que se adapta à realidade dos sujeitos, torna-se evidente “o contraste da visão de quem vê a cena da rodovia, de dentro de um automóvel, e de quem entra na cena”2828 Brito C, Silva LN. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciênc saúde coletiva. 2022;27(1):151-60. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232022271.19662021
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O deslocamento dessas equipes e a abordagem direta ao usuário no local e da forma como ele se encontra, sem pré-julgamentos, permite uma aproximação da realidade que desmistifica estigmas e gera uma tendência ao apagamento dos desconfortos a partir do estabelecimento de vínculo1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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,1818 Andrade R, Costa AAS, Sousa ET, et al. O acesso aos serviços de saúde pela população em situação de rua: uma revisão integrativa. Saúde debate. 2022;46(132):227-39. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213216
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,2828 Brito C, Silva LN. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciênc saúde coletiva. 2022;27(1):151-60. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232022271.19662021
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Um dos termos utilizados para se referir às funções das eCR é o fato do serviço se estabelecer como ponte entre a rua e os demais dispositivos do SUS. Por mais que muitos usuários não acessem seus direitos nos serviços de saúde de base territorial, com a presença da eCR “[eles] têm a informação, eles vêem a blusinha branca ali passando, [sabem] que é um equipamento da prefeitura, da saúde e que, se precisar, eles vão” (Lírio). Situações como as descritas revelam a importância da atuação proposta pelo Ministério da Saúde de um dispositivo móvel que atende in loco nesses territórios historicamente negligenciados, com potencial para ampliação do acesso dos usuários à saúde e aos demais direitos sociais junto à rede de saúde e rede intersetorial.

O fato de se apresentar como um serviço de baixa exigência, com certa informalidade, que chega de forma amistosa com oferta de insumos de redução de danos, foge do imaginário em relação aos trabalhadores da saúde de jaleco branco, com linguagem formal, condutas prescritivas e, talvez, até frios do ponto de vista relacional. A possibilidade de transitar pelo território, a engenhosa habilidade de manejo dos técnicos e a oferta ampliada de cuidados que ultrapassam apenas a lógica curativa (com ações de redução de danos e arte educação), considerando a perspectiva de integralidade do SUS, possibilita o acesso e o cuidado na medida do que os usuários permitem.

As relações estabelecidas com a rede por vezes são complexas e geram a necessidade de diálogo cotidiano entre os dispositivos da rede SUS.

O Consultório na rua é um dispositivo importante, não apenas para garantir o acesso, mas para reduzir o estigma desse grupo vulnerável, haja vista as formas de acolhimento ampliadas, o fortalecimento da autoestima e o reconhecimento dos usuários como sujeitos de direitos1616 Teixeira MB, Belmonte P, Engstrom EM, et al. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. Saúde debate. 2019;43(esp7):92-101. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S707
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Tendo potencial para minimizar os efeitos deletérios da atuação dos serviços de saúde, até mesmo provocando constrangimentos para questionar a discriminação e desassitência da PSR2828 Brito C, Silva LN. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciênc saúde coletiva. 2022;27(1):151-60. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232022271.19662021
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O vínculo, diálogo e a escuta são ferramentas importantes para a atuação do serviço, utilizadas como estratégia de cuidado e vinculação:

Então, pra conseguir esse vínculo com o usuário a gente usa da escuta, sabe, a gente mostra a ele que a gente está disposto a ouvi-lo, que a gente não tá ali pra poder só entregar algo, para poder só ofertar algo, mas também para ouvi-lo, entendê-lo. Então, isso normalmente é a estratégia que a gente usa no parque, ouvir os usuários e explicar o serviço pra eles, sabe, explicar sobre a redução de danos também e pra que essa confiança e esse vínculo seja firmado, que nós acreditamos que tudo vem daí, do vínculo com o usuário, da confiança que ele tem na gente. (Lírio).

Goldblum2929 Goldblum AS. Acesso ao cuidado em saúde: a percepção de pessoas atendidas pelas equipes de Consultório na Rua no Município do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2020. discorre sobre a importância de as ações de cuidado usadas pelas eCR do Rio de Janeiro/RJ seguirem uma lógica inversa para promover acesso de acordo com as especificidades dos usuários, sem expectativa de que o usuário adeque suas características ao serviço. Atuar numa perspectiva de baixa exigência e alta disponibilidade envolve ser um serviço de acesso com ou sem agendamento, com a não exigência de documentação, bem como a disponibilidade de acolher o sujeito intoxicado, não exigir estar abstêmio, se apresentando como um serviço que facilita o acesso do usuário que, historicamente, encontra muita barreira ao procurar um serviço de saúde.

Percebe-se a potência do Consultório na Rua como um serviço de saúde articulador de rede, que propõe o cuidado numa perspectiva ampliada, considerando princípios como subjetividade e autonomia. O serviço tem uma possibilidade de adaptação à realidade da PSR devido sua infraestrutura móvel, muitas das vezes subvertendo os necessários, porém rígidos protocolos da saúde.

Considerações finais

A presente pesquisa, realizada no âmbito do SUS, corresponde a um instrumento de reflexão sobre o processo de trabalho, indicando possíveis melhorias para o sistema, com possibilidade de embasar políticas públicas que qualifiquem o acesso na perspectiva da equidade.

No que se refere à gestão municipal para redução das barreiras protocolares, é importante que haja alinhamentos institucionalizados para as situações já previstas em normativas nacionais e municipais, bem como o estabelecimento de fluxos e protocolos específicos para a PSR, considerando seus modos de vida para garantir o acesso e cuidado oportuno, com ampla divulgação para a rede.

Ações de educação permanente em saúde podem se revelar como estratégia para redução das barreiras discriminatórias, buscando desmistificar estigmas e nortear os trabalhadores. As ações precisam contemplar as diretrizes de redução de danos, do SUS (integralidade, universalidade e equidade), bem como reafirmar sobre a inegociabilidade da atuação profissional dos servidores alinhadas às diretrizes do Ministério da Saúde e da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

No que tange às barreiras simbólicas, a partir do reconhecimento da atenção primária como coordenadora do cuidado, especialmente em Belo Horizonte, que possui 81,2% de cobertura da Estratégia Saúde da Família3030 Secretaria Municipal de Saúde (BH). Relatório Anual de Gestão. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal; 2018., recomenda-se a construção de atuação extramuros para reconhecer essa população em seu território adscrito. Ainda, possibilitar a vinculação da PSR com os serviços, para além da atuação das eCR. Destaca-se também a importância do fortalecimento da participação social da PSR - a exemplo da criação do Movimento Nacional da População de Rua nos anos 2000, diante da crescente indignação com a violência e a negação de direitos22 Ministério da Saúde (BR). Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. - e da sua representação no controle social, nos Conselhos e Conferências de Saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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