Promoção de territórios saudáveis: assessoria técnica à habitação social no Setor 1 da Colônia Juliano Moreira

Luís Carlos Soares Madeira Domingues Gilson Antunes da Silva Celia Beatriz Ravera Sobre os autores

RESUMO

O artigo propõe contribuir para a reflexão sobre princípios e estratégias promotoras de saúde em territórios vulnerabilizados, tendo como objetivo específico avaliar o papel que pode ser desempenhado por uma política e serviço público de base local, permanente e participativo, desenvolvido por meio de assessoria técnica com enfoque na requalificação do espaço da moradia e do habitat que favoreça a população mais vulnerabilizada e promova soluções positivas em sua qualidade de vida. O trabalho tem sua fundamentação teórico-metodológica no campo da saúde urbana, referenciada na perspectiva crítica da complexidade do fenômeno saúde-doença, mais especificamente quando relaciona a vulnerabilidade socioambiental e os condicionantes do ambiente construído à saúde coletiva. O artigo utiliza como caso referência a experiência desenvolvida pela Fiocruz Mata Atlântica, da Fundação Oswaldo Cruz, e busca verificar a identificação dos fatores determinantes e de processos de determinação social da saúde, bem como a apropriação de princípios e estratégias de ação desse campo disciplinar. Os resultados parciais dessa experiência em curso apresentam avanços não somente nas transformações objetivas dos fatores determinantes relacionados com o ambiente construído, mas também na organização social e na articulação intersetorial nesse contexto, assim como na construção de referências para políticas públicas.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde urbana; Determinação social da saúde; Desenvolvimento sustentável; Cidade saudável

Introdução

O contexto atual apresenta o enfrentamento de várias crises associadas: social, econômica e ambiental, com atenção para a crise sanitária evidenciada pela pandemia da covid-19, que definem riscos sistêmicos e crescentes vulnerabilidades que são desigualmente distribuídas no território em suas diversas escalas. Na atual conjuntura do sistema neoliberal, registra-se ainda a ausência do Estado na garantia dos direitos à cidade e à moradia digna, sendo substituído pelo mercado formal e informal, na oferta de alternativas de aquisição da terra e da moradia. Observam-se um crescente processo de financeirização da economia e retrocessos em direitos e políticas, dificultando as respostas a esse contexto. Após o início da pandemia da covid-19, as desigualdades sociais foram explicitadas e os riscos a que as populações estão expostas foram ampliados, incorporando novos desafios aos que já eram enfrentados, principalmente nos países periféricos11 Organização das Nações Unidas. Informe: El impacto del Covid en América Latina y el Caribe [Internet]. [local desconhecido]: ONU; 2020 [acesso em 2023 abril 17]. Disponível em: https://lac.unwomen.org/es/digiteca/publicaciones/2020/07/informe-el-impacto-de-covid-19-en-america-latina-y-el-caribe#view
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A finalização desse ciclo, com um novo projeto de desenvolvimento pautado pela inclusão social e pela ampliação da cidadania, não prescinde da inserção na política urbana de um modelo mais includente e democrático de cidade para todos. É nesse contexto que se propõe contribuir para a reflexão sobre princípios e estratégias promotoras de saúde em territórios vulnerabilizados, tendo como objetivo específico avaliar o papel que pode ser desempenhado por uma política e serviço público de base local, permanente e participativo, desenvolvido por meio de assessoria técnica com enfoque na requalificação do espaço da moradia e do habitat, que favoreça a população mais vulnerabilizada e promova soluções positivas sobre a sua qualidade de vida. O trabalho tem sua fundamentação teórico-metodológica no campo da saúde urbana, referenciada na perspectiva crítica da complexidade do fenômeno saúde-doença, mais especificamente quando relaciona a vulnerabilidade socioambiental e os condicionantes do ambiente construído à saúde coletiva.

O artigo utiliza como caso referência a experiência em assessoria técnica às comunidades que ocupam parcela do Setor 1 da Colônia Juliano Moreira, desenvolvida, desde 2007, pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz Mata Atlântica (PDCFMA) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição pública e estratégica de Estado para a saúde, comprometida com o enfrentamento das desigualdades e iniquidades em saúde. Nesta análise, verificamos a identificação dos fatores determinantes e de processos de determinação a partir da recuperação do processo histórico social e urbanístico no diagnóstico participativo realizado com e sobre as comunidades, bem como a apropriação de princípios e estratégias de ação pautadas por um trabalho interdisciplinar e interinstitucional que buscaram articular as várias dimensões da determinação da saúde mediante um enfoque sistêmico e interdisciplinar. Alguns resultados parciais dessa experiência são apresentados, assim como a inflexão da estratégia de ação a partir da mudança de elementos contextuais que impactaram os cenários originalmente definidos para o território.

O aprendizado acumulado nessa experiência, que permanece em desenvolvimento, tem oferecido contribuições relevantes como referência às políticas públicas, em especial, aquelas que visam à elaboração e à implementação de programas de assistência técnica no contexto da política habitacional e urbana municipal, tal como demonstrado em trabalho recente realizado com representantes da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e da sociedade civil organizada22 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Programa de Assessoria e Assistência Técnica e Melhorias Habitacionais em Habitação de Interesse Social - Diretrizes para elaboração. Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho, formalizado pelo Decreto Nº 48.408/2021. Rio de Janeiro: PCRJ; 2021.. Da mesma forma, essa experiência busca contribuir continuamente para o debate sobre princípios e estratégias promotoras de territórios saudáveis e sustentáveis que a Fiocruz tem promovido, principalmente após a aprovação de um programa institucional para se dedicar ao tema, cujo termo de referência apresenta a fundamentação teórico-metodológica e as convergências na abordagem institucional sobre o tema33 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis. Termo de Referência conceitual e metodológico e proposta de governança. Documento elaborado pelos membros do Grupo de Trabalho e Grupo Executivo instituídos pela Portaria 1284/2018-PR. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019..

Déficit, inadequação habitacional e risco

O déficit e a inadequação habitacional são retrato da profunda desigualdade urbana reforçada pela dinâmica histórica e contemporânea da urbanização, comum à América Latina, que concentra as iniquidades em saúde nas áreas de maior pobreza urbana, favelas e periferias44 Fundação João Pinheiro, Diretoria de Estatística e Informações. Déficit Habitacional e Inadequação de Moradias no Brasil. Principais resultados para o período de 2016 a 2019. Belo Horizonte: FJP; 2021.,55 UN-Habitat. Cities and Climate Change: Global Report on Human Settlements 2011. Washington: Earthscan; 2011.. O contexto da América Latina aponta que aproximadamente 85% da população é urbana, mais da metade da ocupação do território das cidades se reproduz sem ou com restrito investimento público, fazendo com que relevante parcela da população residente permaneça sem urbanização, nem saneamento e sem habitações adequadas, vulnerabilizada por um conjunto de condições desfavoráveis à saúde, a despeito da diversidade dessas condições e necessidades habitacionais, sendo esse um problema estrutural central de nossa realidade urbana66 Ezeh A, Oyebode O, Satterthwaite D, et al. The history, geography, and sociology of slums and the health problems of people who live in slums. Lancet. 2017;389(10068):547-558. DOI: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)31650-6
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O déficit e a inadequação habitacional devem ser compreendidos, respectivamente, como a necessidade de nova habitação e de superação das condições inadequadas oferecidas pelas moradias, ambas representando indicadores que oferecem uma noção mais ampla das necessidades habitacionais de um país, em seus diversos recortes territoriais, sendo indispensáveis como orientadores de políticas públicas que lidam com um direito fundamental da população. As informações sobre o déficit e as inadequações habitacionais para a realidade brasileira são ilustrativas desse quadro anteriormente apresentado. O déficit habitacional calculado para os anos recentes de 2016 a 2019 para o Brasil equivale a mais de 8% do estoque total nacional de domicílios particulares permanentes e improvisados do País, e merece destaque o componente referente ao ônus excessivo de aluguel, que representa mais de 50% do total. As informações referentes à inadequação habitacional em domicílios urbanos duráveis, também de 2016 a 2019, apontam a necessidade de oferecer especial atenção às restrições e aos limites enfrentados pela população mais pobre no acesso à terra, à moradia digna e às condições básicas de saneamento. Ressalta-se a inadequação de infraestrutura urbana que equivale a 23,5% dos domicílios brasileiros, em que o principal subcomponente apresenta o comprometimento do abastecimento regular e com qualidade de água, e a inadequação edilícia que é superior a 18% dos domicílios, na qual o principal subcomponente aponta a inexistência de reservatórios para armazenamento de água.

Com a pandemia da covid-19, os processos de vulnerabilização e os riscos à população se agravaram. A seguir, buscamos exemplificar alguns fatores presentes em três escalas de análise de vulnerabilidade e riscos que foram agravadas pela pandemia e que permanecem como complexa situação social na família, na moradia e no habitat.

Na escala da família, podemos citar o impacto devastador sobre o emprego formal e, principalmente, o informal; e, ainda, sobre a renda da população, situação que ampliou a exposição de parcela expressiva da população à fome e as dificuldades de acesso às condições mínimas para o enfrentamento da pandemia e de outras doenças infecciosas e crônicas, tanto em casa quanto fora dela.

Na escala da moradia, podemos citar a ausência de insolação, de ventilação, a presença de umidade e demais patologias da edificação que podem prejudicar as condições de imunidade dos residentes em longas permanências no espaço domiciliar. Além disso, a densidade intradomiciliar elevada e a coabitação de famílias no mesmo domicílio inviabilizam uma eventual necessidade de isolamento.

Na escala do habitat, podemos citar a insegurança quanto à posse da terra e da moradia como um problema que se agravou diante do risco de despejos e reintegrações de posse, que teve como resultado visível um aumento considerável da população em situação de rua, situação que ampliou de forma acentuada a exposição dessa população em um contexto em que permanecer em casa era considerada uma das principais medidas não farmacológicas de contenção da pandemia. A ausência de infraestrutura urbana adequada e de serviços públicos, com especial atenção ao saneamento básico, e a falta de qualidade e o acesso intermitente à água representam outro grave problema, pois são também condições essenciais para a realização das medidas de higiene e prevenção de doenças.

Saúde urbana, a determinação socioambiental da saúde e a assistência técnica à habitação de interesse social

Os campos da saúde urbana e da promoção da saúde apresentam uma concepção ampliada de saúde em que as condicionantes vivenciadas pelas famílias, suas moradias e o ambiente onde estão localizadas constituem-se em alguns dos determinantes socioambientais da saúde e resultam em maior prevalência de doenças infecciosas e doenças crônicas77 Buss PM, Pellegrini Filho AP. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Physis. 2007;17(1):77-93. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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. A corrente latino-americana no campo da saúde coletiva, apesar de reconhecer que houve um avanço na ampliação do conceito e na abordagem da saúde, considera que essa perspectiva, adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), continua atrelada a uma relação causal na qual os determinantes sociais são assumidos como fatores externamente conectados. Essa corrente enfatiza a necessidade de incorporar, como metodologia interpretativa da saúde coletiva, o questionamento sobre as relações de poder da sociedade de mercado, a reprodução das classes sociais e o papel desempenhado pelo Estado como processos de determinação social da saúde, dado que reproduzem as condições que geram desigualdades e iniquidades em saúde.

Breilh88 Breilh J. Las tres ‘S’ de la determinación de la vida. 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: Nogueira RP, organizador. Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária, Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 87-125. defende que o espaço social urbano comporta processos e fatores mediadores de reprodução social das classes sociais, os quais operam promovendo a saúde ou como forças destrutivas que negam a vida e promovem a deterioração da vida e a morte. Essa compreensão aponta que não bastaria reconhecer e atuar sobre os determinantes e as evidências dos impactos em saúde, mas seria necessário também reconhecer e atuar sobre os processos que definem a determinação socioambiental da saúde, orientada por uma prática integral de transformação, por meio de processos construídos de forma participativa e que visem fortalecer a autonomia e a capacidade de organização social da população, mediante o conhecimento de seus problemas e o domínio sobre as alternativas para enfrentá-los.

O contexto de emergência sanitária, dada a pandemia da covid-19, apontou para a necessidade de medidas excepcionais de apoio às populações vulnerabilizadas, associadas a medidas de curto e médio prazo de adequação na moradia e seu contexto urbano para a superação dessa histórica dívida social, que ameaça a saúde e a vida dessa população99 Ortiz C, Virgilio MM. Asentamientos precarios y vivienda social: impactos de la covid-19 y respuestas. [local desconhecido]: Laboratorios de Viviendas (LAVs); 2020.. Corburn e Riley1010 Corburn J, Riley L, editores. Slum health. From the cell to the street. Oakland, California: University of California Press; 2016. sustentam que a luta política pela equidade em saúde e justiça social nas cidades poderia ser fortalecida, com impacto mais significativo em territórios vulnerabilizados, caso os processos de determinação e os fatores que se destacam como determinantes socioambientais da saúde sejam utilizados como orientadores da formulação, monitoramento e avaliação da política urbana. É nesse sentido que se propõe refletir sobre o papel que a assistência técnica à habitação de interesse social pode assumir como política pública e estratégia promotora de territórios saudáveis.

A assistência técnica à habitação de interesse social propõe a atuação de profissionais no apoio a populações de baixa renda, na elaboração de projetos e no acompanhamento de obras visando à superação de inadequações habitacionais em seus diversos componentes. Em 2008, a assistência técnica foi estabelecida pela Lei federal nº 11.888, como direito e política pública a ser implementada pelas diversas esferas de gestão pública. Entretanto, desde as experiências pioneiras na década de 1970, ainda são raras as experiências verificadas. Muitas delas são realizadas isoladamente ou de maneira não integrada por organizações não governamentais, grupos sociais organizados, entidades profissionais e instituições acadêmicas e científicas, não se refletindo nas estruturas institucionais públicas.

No entanto, iniciativas recentes têm ampliado a abordagem sobre a assistência técnica, antes concentrada em superar as inadequações nas moradias, passando a considerar em seu escopo as inadequações habitacionais relacionadas com a segurança da posse da terra, portanto, com a regularização fundiária das famílias, bem como aquelas relativas à infraestrutura urbana e à demanda por nova moradia, fortalecendo a perspectiva da integralidade e da intersetorialidade na reflexão e na ação. Novas abordagens nesse tema sugerem também que a política de assistência técnica à habitação de interesse social deveria constituir um serviço público, permanente e considerar a oportunidade de articulação com outras políticas públicas setoriais, especialmente aquelas que apresentam uma ação territorializada, notadamente com as equipes de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF) e as equipes da rede de assistência social22 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Programa de Assessoria e Assistência Técnica e Melhorias Habitacionais em Habitação de Interesse Social - Diretrizes para elaboração. Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho, formalizado pelo Decreto Nº 48.408/2021. Rio de Janeiro: PCRJ; 2021..

O Sistema Único de Saúde (SUS), seus princípios doutrinários, a universalização, a equidade, a integralidade e seus princípios que dizem respeito à sua operacionalização, a regionalização, a descentralização e a participação social se apresentam como uma importante estratégia para a transformação social em defesa dos direitos e da saúde humana. A retomada do fortalecimento do SUS como política prioritária, nesse novo ciclo político iniciado em 2023, apresenta a oportunidade de articulação intersetorial com outras políticas que lidam com direitos universais e que tenham compromisso com a transformação da realidade nos territórios. Nesse sentido, o modelo de Atenção Primária à Saúde no Brasil, que define a atuação de equipes vinculadas a recortes territoriais e a um conjunto de famílias, tendo como unidade de análise e intervenção o território utilizado, considerando suas especificidades, oferece uma estratégia possível de estruturação de uma política de assistência técnica e de sua articulação intersetorial com a saúde e outros setores.

O Programa de assessoria técnica à habitação saudável da Fiocruz Mata Atlântica

O Programa de assessoria técnica à habitação saudável à população residente no Setor 1 da Colônia Juliano Moreira representa parte das atividades realizadas pela equipe da Fiocruz Mata Atlântica no eixo ‘saúde urbana’, propondo uma assessoria técnica integrada e interdisciplinar e o apoio aos processos de autoempreedimento pelos residentes. O programa busca atuar de forma prioritária sobre as iniquidades em saúde com atenção especial aos grupos mais vulneráveis e expostos a desastres, além da compreensão e da atuação de forma integral e sistêmica sobre as condicionantes do ambiente socialmente construído, considerando as relações entre determinantes sociais e saúde coletiva, tendo o território usado como base de participação social e intersetorialidade da ação e integração das políticas públicas pautadas em estratégias promotoras de saúde.

O denominado Setor 1 da Colônia Juliano Moreira está localizado na fronteira entre uma unidade de conservação ambiental, o Parque Estadual da Pedra Branca, e o tecido urbano da cidade que pertence aos bairros de Jacarepaguá, Taquara e Curicica, no município do Rio de Janeiro. O campus Fiocruz Mata Atlântica, contíguo à área das comunidades objeto deste estudo, também está inserido no Setor 1. Essa é uma área da União originalmente dedicada às atividades de um complexo de unidades voltadas à saúde mental que, desde 1999, iniciou um processo de reforma administrativa e fundiária, cedendo setores dessa área para outras instituições públicas. O Setor 1 foi cedido à Fiocruz com o compromisso de destinar a área às atividades presentes em sua missão institucional, buscando valorizar a relação saúde e ambiente na realização de pesquisas e desenvolvimento tecnológico, bem como apoiar a regularização fundiária das famílias residentes, cuja responsabilidade pela titulação é da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que permanece como proprietária da parcela da área ocupada pelas famílias.

Na figura 1, abaixo, é indicada a localização do campus da Fiocruz e do conjunto das comunidades onde o primeiro cadastro social indicou a existência de 220 famílias. O território onde estão assentadas apresenta acentuada vulnerabilidade socioambiental, com um quadro dominante de baixa renda familiar, insalubridade e precariedade sanitária e habitacional, ocupações em áreas de risco geológico e em margens de córregos e linhas de drenagem. O assentamento apresenta uma ocupação fragmentada, em baixa densidade, situada em zona de amortecimento do Parque Estadual da Pedra Branca, o que define condições de difícil implantação de infraestrutura.

Figura 1
Mapa de localização do campus Fiocruz Mata Atlântica e das comunidades localizadas no Setor 1 da Colônia Juliano Moreira

O programa compreende a habitação como o espaço essencial para a garantia dos direitos à cidadania que assegurem um padrão mínimo de equidade e qualidade de vida, tendo sua atuação orientada pela perspectiva de um habitat mais saudável. Ademais, tem como premissa que o acesso à terra e à moradia digna é o alicerce da política urbana e habitacional para a garantia do direito à cidade e o direito à saúde. As atividades são centradas no apoio ao processo de regularização fundiária e urbanística, à requalificação urbanística dos assentamentos, às melhorias habitacionais nas edificações mais precárias e ao processo de construção de novas habitações para reassentamento de famílias que se encontrem localizadas em áreas de preservação ambiental, em situações de risco geológico ou com condições precárias de habitabilidade, que não seriam passíveis de serem sanadas.

Ao considerar a centralidade que o saneamento ambiental impõe sobre os processos de determinação da saúde e as características específicas desses sistemas, a proposta da Fiocruz envolve a assessoria técnica na aplicação de soluções sociotécnicas não convencionais, que sejam apropriadas e autoempreendidas pela população e que priorizem o caráter ecológico das alternativas adotadas. Além das vantagens relativas aos custos comparativos com soluções que visam integrar as comunidades que apresentam baixa densidade populacional nos sistemas convencionais de infraestrutura, tais propostas apresentam características que permitem prevenir a contaminação e proteger os recursos hídricos pelo não lançamento e o tratamento de efluentes domésticos, a compostagem de resíduos orgânicos e a coleta seletiva de resíduos sólidos e óleo de cozinha. Algumas intervenções na drenagem pluvial são necessárias para garantir a funcionalidade e a eficiência dos sistemas. Para assegurar o acesso à água de boa qualidade, o programa prevê a instalação de sistemas de captação e aproveitamento de água de chuva, melhorias hidrossanitárias, quando necessárias, e a reforma e gestão compartilhada de um sistema de abastecimento de água local que conta com um reservatório natural, localizado no entorno da unidade de conservação, próximo às comunidades.

Essas ações são desenvolvidas de forma integrada a outras que buscam apoiar a agricultura urbana agroecológica, o uso produtivo dos quintais, com efeitos não somente sobre a qualidade e a segurança alimentar como também sobre a renda familiar. Considerando a localização das comunidades na zona de amortecimento do Parque Estadual da Pedra Branca, cujo bioma Mata Atlântica é considerado Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a relação harmônica e equilibrada entre as comunidades e o parque é também propósito do projeto que busca contribuir com referências para as políticas públicas na atuação na comunidades oriundas do processo de urbanização não planejado no entorno de unidades de conservação ambientais urbanas. Para tanto, são desenvolvidas, pela equipe de saúde ambiental, pesquisas e intervenções de fauna e flora, vigilância em zoonoses, ações de restauração vegetal e educação ambiental que se articulam às atividades de saúde urbana.

Uma característica que merece ser destacada nessa experiência se refere à relevância conferida à definição de um pacto territorial sobre o qual se dá a integração das ações que se desenvolvem no território e se estrutura a assessoria técnica nas comunidades. A segurança da posse e o pacto no ordenamento territorial com as comunidades são compreendidos como essenciais para a busca de soluções coletivas, a governança territorial e para uma estratégia intersetorial de ações promotoras de saúde no território, tendo como ponto central a qualificação da residência e do habitat. O plano de regularização fundiária e urbanística tem enfoque sistêmico e interdisciplinar, e adota, como premissa fundamental, consubstanciado na missão da Fiocruz, a construção de um território mais equilibrado, inclusivo, sustentável e saudável.

Resultados parciais da experiência em curso

O trabalho foi iniciado com um conjunto de levantamentos e diagnósticos que permitiram à equipe multidisciplinar reunir as principais características socioeconômicas, ambientais e físicas dos assentamentos, tais como a ocupação efetiva de cada família, a identificação de situações de risco ambiental, sanitário e estrutural presentes nas condições das moradias, em sua localização e considerando outros aspectos presentes nos processos de vulnerabilização que impactam as famílias. O plano foi elaborado por meio de um processo de construção participativa que contou com um conjunto de oficinas, em que todas as famílias eram convidadas, desde o início do recadastramento, até a elaboração dos estudos de urbanização e reordenamento do assentamento, incluindo a identificação de unidades a serem reassentadas e aquelas que seriam indicadas para receber melhorias habitacionais.

As especificidades locais orientaram o gradiente de ocupação sugerido, a proposta de titulação aos moradores e o redesenho urbanístico cuja proposta apresentou dimensões de lotes superiores aos recomendados pela legislação federal para projetos de habitação de interesse social, justificado pela necessidade de controle do adensamento e expansão da ocupação. Já a proposta para o título de posse da terra que deverá ser outorgado às famílias residentes busca evitar os efeitos perversos da especulação imobiliária, oferecendo a segurança jurídica da posse mediante o instrumento da concessão de direito real de uso para fins de moradia. Esse instrumento legal preserva a destinação social dos lotes e possibilita a inserção de cláusulas resolutórias, de caráter ambiental, que preservam o uso adequado da terra.

O Plano de regularização fundiária e urbanística foi aprovado, em 2011, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e pelo órgão público federal responsável pelo financiamento de obras públicas, a Caixa Econômica Federal. Em 2013, essa prefeitura aprovou o projeto de urbanização integrada que incluiu os projetos que permitiam a licitação de obras para implementação do sistema viário, da iluminação pública, da infraestrutura de abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem de águas pluviais, todos aprovados também pelas respectivas concessionárias públicas. O projeto contém os lotes para todas as famílias cadastradas, incluindo os lotes de reassentamento, bem como os projetos das novas casas para essas famílias a serem reassentadas. Define ainda os limites de áreas privadas e públicas, as medidas dos lotes e o alinhamento dos logradouros públicos, assim como as áreas destinadas ao uso público.

O processo de planejamento participativo se deu em um contexto de articulação institucional com o governo federal e o governo municipal que, desde 2006, buscavam viabilizar a implementação da regularização fundiária e urbanística das comunidades localizadas nos diversos setores da Colônia Juliano Moreira. Desse esforço, resultou a aprovação de financiamento público à Prefeitura pelo programa federal de urbanização de assentamentos precários. O Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) foi criado pelo governo federal, em 2007, para planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana e logística energética do País. O PAC Urbanização de Assentamentos Precários, também conhecido como PAC UAP ou PAC Favelas, tratou do investimento em obras de urbanização em assentamentos precários no Brasil.

O PAC UAP na Colônia Juliano Moreira foi implementado entre os anos de 2007 e 2015, quando foram elaborados os projetos básicos de urbanização e de novas moradias, mas nem todas as comunidades foram contempladas com investimentos em urbanização, provisão de unidades habitacionais para reassentamento e melhorias habitacionais, entre elas, as famílias do Setor 1. Uma das justificativas para a ausência de investimentos nesse setor se refere ao alto custo que representa integrar, no sistema convencional de saneamento básico, comunidades localizadas na periferia dos sistemas de infraestrutura que apresentam baixa densidade, lotes de dimensões maiores que a média e proximidade a uma unidade ambiental. Essas condições de localização e densidade se expressam em numerosas comunidades periféricas do município e do estado do Rio de Janeiro, também negligenciadas pelos investimentos públicos.

Com o encerramento dos investimentos previstos pela Prefeitura no PAC Colônia Juliano Moreira, as ações da Fiocruz no Setor 1 que estavam antes ancoradas na perspectiva do investimento público a ser realizado pela municipalidade passaram a estar também orientadas a processos de assessoria técnica por intermédio de diálogos sociotécnicos, centrada em processos de autoempreedimento coletivos e individuais. A assessoria é realizada por meio de processos participativos com oficinas teóricas e práticas, ampliando a importância do espaço de acolhimento, escuta, mediação de conflitos e troca de saberes e informações com famílias moradoras do Setor 1. As ações desenvolvidas são coerentes com os planos e projetos já definidos pelo poder público responsável e orientadas pela superação das inadequações habitacionais já identificadas no Plano de regularização fundiária e urbanística.

Apontamentos preliminares que visam contribuir para políticas promotoras de saúde em territórios vulnerabilizados

Ao estabelecer a participação comunitária como princípio organizativo, o projeto utilizou as assembleias públicas e as reuniões locais como espaços estratégicos na reivindicação, na formulação, na execução, no controle e na avaliação das intervenções. Juntamente com essa instância de participação, o desafio que atualmente se coloca ao projeto é a construção da cogestão com o poder público nas intervenções de saneamento e a autogestão na realização de melhorias habitacionais e na construção de novas moradias destinadas ao reassentamento de famílias.

A reaplicação de tecnologias sociais que possibilitam a implantação, a gestão e a sustentabilidade na operacionalização de sistemas não convencionais, por meio da cogestão pública/comunitária, oferece alternativas ao vácuo institucional no que se refere a formas particulares de intervenção sobre as necessidades habitacionais, fundiárias e ao saneamento ambiental. O modelo de operação dessas ações tem como condição o envolvimento da população em sua implementação e operação, que incluem a utilização de informações e conhecimento local para articular as relações entre determinantes socioambientais e a saúde coletiva. Ademais, busca viabilizar o conhecimento e o controle da população sobre seus problemas e direitos, assim como a definição de estratégias de atuação, na organização social e na relação com o poder público, contribuindo para fortalecer a autonomia e uma perspectiva emancipatória de indivíduos, grupos e comunidades.

Recentemente, nos últimos anos, foi possível recuperar a articulação institucional consolidada na assinatura, em dezembro de 2022, de um novo acordo de cooperação interinstitucional entre a Fiocruz, a Superintendência de Patrimônio da União e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro visando à regularização fundiária e urbanística desses assentamentos. Mesmo considerando a responsabilidade assumida pela Prefeitura para desenvolver o processo de titulação e investimentos na requalificação urbanística, verifica-se o potencial de que esse processo fortaleça a experiência objeto deste trabalho como uma referência para a política municipal na atuação em assentamentos precários e, de forma específica, em contextos similares na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades - portanto, em assentamentos de baixa densidade, em franjas urbanas e em áreas de transição com áreas ambientalmente frágeis, oferecendo benefícios à saúde da população e melhores condições de preservação de importantes ecossistemas naturais.

Com relação ao enfrentamento das consequências da recente emergência sanitária e demais desafios epidemiológicos que permanecem, além da necessária ação emergencial de apoio às famílias em territórios vulneráveis, é fundamental implementar estratégias de médio e longo prazo que possam lidar com os condicionantes habitacionais e urbanísticos que afetam a saúde e a qualidade de vida. Esse é um caminho que busca alterar qualitativamente as condições de enfrentamento dessa e de futuras emergências sanitárias e climáticas por essas populações, fortalecendo sua resiliência e sua capacidade de adaptação para condições cada vez mais adversas a serem enfrentadas.

A experiência apresentada reforça a perspectiva acima e ressalta a importância de que haja um processo participativo efetivo que compreenda um pacto territorial e possua definições claras em relação à segurança da posse da terra, que devem ser resultado de ações efetivas de regularização fundiária e urbanística, condicionantes para um processo sustentável e com potencial transformador sobre os processos de determinação social da saúde e, portanto, sobre seus determinantes. Da mesma forma, valoriza a perspectiva de uma assessoria técnica que integre os determinantes sociais da saúde na escala da família, da moradia e do habitat, e que esteja orientada em priorizar os grupos sociais mais vulnerabilizados, o que demonstra a relevância de equipes multidisciplinares afins ao campo da saúde urbana em ações territorializadas e intersetoriais e justificaria o emprego de recursos públicos humanos e materiais para esse fim. A gestão das soluções pelos próprios moradores de assentamentos populares, associada a assessorias técnicas de caráter público, apresenta o potencial de constituir iniciativas que unam a superação de vulnerabilidades socioambientais à capacitação profissional e geração de trabalho e renda, contribuindo para uma perspectiva emancipatória da população.

A articulação intersetorial nesses processos de assessoria técnica orientados por princípios promotores de territórios sustentáveis e saudáveis sugere a articulação de diversos setores das políticas municipais, com atenção para as políticas habitacionais, urbanas, socioambientais e de saúde. As reflexões e as estratégias que foram apresentadas neste artigo evidenciam a oportunidade de implementar políticas públicas para assistência e assessoria técnica para habitação de interesse social, como serviço público, permanente e acessível a todos, na escala local, em uma abordagem territorializada. Nesse sentido, deve ser considerado o aprendizado com programas como a ESF do SUS, observadas as especificidades dos demais campos disciplinares, assim como o potencial de articulação intersetorial dessas políticas nos territórios.

A abordagem integrada em relação a escalas territoriais, aspectos da realidade, processos e fatores de determinação demanda a integração das ações de planejamento, gestão e de intervenção no território, de fortalecimento da resiliência e da capacidade de adaptação da população a desastres e na gestão de riscos, ampliando o compromisso da gestão pública com sua responsabilidade socioambiental. Outrossim, apresenta coerência e potencial de contribuir de forma efetiva para a agenda de construção de territórios potencialmente saudáveis e sustentáveis, a Nova Agenda Urbana (Habitat III - Quito 2016), a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a agenda de saúde urbana da OMS.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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    Organização das Nações Unidas. Informe: El impacto del Covid en América Latina y el Caribe [Internet]. [local desconhecido]: ONU; 2020 [acesso em 2023 abril 17]. Disponível em: https://lac.unwomen.org/es/digiteca/publicaciones/2020/07/informe-el-impacto-de-covid-19-en-america-latina-y-el-caribe#view
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    Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Programa de Assessoria e Assistência Técnica e Melhorias Habitacionais em Habitação de Interesse Social - Diretrizes para elaboração. Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho, formalizado pelo Decreto Nº 48.408/2021. Rio de Janeiro: PCRJ; 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2023
  • Aceito
    26 Abr 2024
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