Vigilância Popular em Saúde: luta emancipatória pela vida ante o agronegócio na Chapada do Apodi-CE

Fernando Ferreira Carneiro Saulo da Silva Diógenes Antônia Márcia Xavier Reginaldo Ferreira de Araújo Leandro Vieira Cavalcante Aline de Sousa Maia Ana Cláudia de Araújo Teixeira Sobre os autores

RESUMO

Este artigo discute a Vigilância Popular em Saúde (VPS) como estratégia emancipatória de luta e defesa da vida ante o agronegócio na Chapada do Apodi, no Ceará. Trata-se de uma pesquisa-ação com representantes da academia, dos movimentos sociais, de entidades, organizações comunitárias e trabalhadores do Sistema Único de Saúde. Foi realizada uma oficina territorial cujo material produzido foi avaliado pela análise de conteúdo auxiliado pelo software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ). A oficina destacou a necessidade de fortalecimento da luta comunitária no território pela vida, envolvendo o problema dos agrotóxicos e o papel das mulheres. A organização comunitária alia-se à atuação dos movimentos populares, evidenciando que as associações são pontos fundamentais e estratégicos nas articulações das comunidades para a reivindicação de direitos, por meio de quintais produtivos, por exemplo. Foram observados indicadores de VPS associados aos impactos do agronegócio, como a elevada mortandade de abelhas. Diante da expansão do agronegócio na região, a VPS pode continuar sendo uma importante ação na promoção de territórios mais saudáveis e sustentáveis na Chapada do Apodi.

PALAVRAS-CHAVE
Vigilância em saúde pública; Participação da comunidade; Saúde da população rural; Agrotóxicos; Pesquisa participativa baseada na comunidade

Introdução

Em contextos de conflitos ambientais, a luta pela saúde tem se tornado mobilizadora de comunidades na luta pelos seus direitos, sendo uma dessas estratégias a Vigilância Popular em Saúde (VPS)11 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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2 Silva LRC, Diógenes SS, Meneses MN, et al. Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT): uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2565-2582. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13142022
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-33 Meneses MN, Quadros JD, Marques GP, et al. Práticas de vigilância popular em saúde no Brasil: revisão de escopo. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2553-2564. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13542022
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. O avanço do agronegócio no Brasil fez com que o País se tornasse um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, o que tem resultado em impactos na saúde e ambiente em vários territórios, ameaçando o modo de vida e a produção agroecológica camponesa44 Carneiro FF, Augusto LGS, Rigotto RM, et al., organizadores. Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV/Fiocruz, Expressão Popular; 2015.. Esse processo tem sido estudado por vários pesquisadores na Chapada do Apodi, lugar de intensa reprodução e resistência camponesa diante da expansão do agronegócio.

O território da Chapada do Apodi, localizado na divisa dos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, apresenta solos naturalmente férteis e abundância de água subterrânea devido à presença dos aquíferos Jandaíra e Açu. Ocupada ao longo de décadas por camponeses com e sem terra, bem como por latifundiários, a partir dos anos 1990, a Chapada do Apodi passou a ser densamente explorada por empresas do agronegócio. Mediante uma atuação incisiva do Estado, corporações especializadas na produção e exportação de frutas se territorializaram na Chapada do Apodi55 Cavalcante LV. As firmas tomaram conta de tudo: território, agronegócio e questão agrária. Curitiba: Editora CRV; 2020.,66 Cavalcante LV. Entre fazendas e firmas: agronegócio da fruticultura e concentração fundiária no Baixo Jaguaribe/CE. RCT. 2023;18(49):216-240. DOI: https://doi.org/10.14393/RCT184967055
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, resultando em uma acelerada expansão do latifúndio, da monocultura, do uso intensivo de agrotóxicos e do acirramento da concentração hídrica e fundiária, agravando ainda mais os conflitos e as conflitualidades.

O pacote de maldades77 Rigotto RM, Leão FAF, Melo RD. A pedagogia do território: desobediências epistêmicas e insurgências acadêmicas na práxis do Núcleo Tramas. In: Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadores. Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018. p. 345-396. decorrente da atuação do agronegócio na Chapada do Apodi implicou: uma intensificação das disputas e dos conflitos por terra e por água; o desmatamento e a perda da biodiversidade; a exploração e a coerção de trabalhadoras e trabalhadores; o envenenamento do solo e da água; o esgotamento da capacidade produtiva da terra; a injustiça hídrica; o cercamento, a fragmentação e a expropriação das comunidades camponesas; o aumento da incidência de problemas de saúde, incluindo cânceres e malformação congênita; o assassinato do ambientalista e ativista Zé Maria do Tomé; as mortes por intoxicação, como nos casos Vanderlei Matos e Valderi Rodrigues, entre outras injustiças ambientais e violações de direitos humanos registradas em várias pesquisas55 Cavalcante LV. As firmas tomaram conta de tudo: território, agronegócio e questão agrária. Curitiba: Editora CRV; 2020.,88 Marinho AMCP. Contextos e contornos da modernização agrícola em municípios do Baixo Jaguaribe/CE - o espelho do (des)envolvimento e seus reflexos na saúde, trabalho e ambiente [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. 245 f.

9 Freitas BMC. Marcas da modernização da agricultura no território do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi: uma face da atual reestruturação socioespacial do Ceará [dissertação]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2010. 181 f.

10 Rigotto RM, organizadora. Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011.

11 Silva MLV. Gritos, silêncios e sementes: as repercussões do processo de des-reterritorialização empreendido pela modernização agrícola sobre o ambiente, o trabalho e a saúde de mulheres camponesas na Chapada do Apodi/CE [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2014. 364 f.

12 Diógenes SS. (In)visibilização das causas de câncer na zona rural do município de Limoeiro do Norte-CE: a vulnerabilização das comunidades rurais e os riscos dos usos dos agrotóxicos [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2017. 186 f.
-1313 Aguiar ACP. Malformações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE) [dissertação]. Fortaleza: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará; 2017. 199 f.
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Tais contextos de conflitos forjaram, nesse território, potentes articulações entre os movimentos sociais, como o Movimento 21 de Abril (M21), que traz no nome a data do assassinato de Zé Maria do Tomé, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); as organizações da sociedade civil, como Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte; e a academia, na figura de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação, vinculados, sobretudo, à Universidade Estadual do Ceará (Uece) e à Universidade Federal do Ceará (UFC). Fruto da atuação incisiva dessas articulações, por exemplo, houve a criação do primeiro Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente do Brasil, o Ceresta Zé Maria do Tomé, além do surgimento da proposta da primeira lei estadual que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos, a Lei nº 16.820/2019, conhecida como Lei Zé Maria do Tomé1414 Ceará (BR). Lei nº 16.820, de 8 de janeiro de 2019. Inclui dispositivo na Lei Estadual nº 12.228, de 9 de dezembro de 1993, que dispõe sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins bem como sobre a fiscalização do uso de consumo do comércio, do armazenamento e do transporte interno desses produtos. Diário Oficial do Estado do Ceará. 9 Jan 2019..

Especificamente ao sul da Chapada do Apodi, no município cearense de Tabuleiro do Norte, desde 2020, as comunidades camponesas denunciam os agravos à saúde e ao ambiente resultantes da atuação de uma empresa do agronegócio especializada na produção de algodão transgênico e, na entressafra, cultivos de soja, milho e sorgo. Trata-se de uma empresa que detém cerca de 30 mil hectares na Chapada do Apodi e que promove injustiça ambiental e violação de direitos humanos ao cercar as comunidades, desmatar áreas nativas de Caatinga, expandir a monocultura do algodão, concentrar terra e água, utilizar agrotóxicos intensivamente, disseminar sementes transgênicas, limitar as capacidades produtivas de camponesas e camponeses, que têm seu modo de vida centrado na produção agroecológica aliada à estratégias de convivência com o Semiárido1515 Cavalcante LV. Um novo mal anunciado: a territorialização do agronegócio do algodão transgênico no Ceará. Rev Pegada. 2021;22(3):145-169. DOI: https://doi.org/10.33026/peg.v22i3.8846
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Em vista disso, uma rede de resistência formou-se em torno das comunidades camponesas de Tabuleiro do Norte perante os impactos da expansão do agronegócio na região, a fim de fortalecer a mobilização e as denúncias de injustiça ambiental e violação de direitos humanos. Tal articulação deu-se mediante a participação ativa de associações comunitárias locais, as quais contam com o apoio de organizações da sociedade civil, como a Cáritas, a Fundação de Educação e Defesa do Meio Ambiente do Jaguaribe (Femaje) e a Associação Escola Família Agrícola Jaguaribana (Aefaja); movimentos sociais, como o M21; instituições jurídicas, representadas pelo Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar; e coletivos acadêmicos e de pesquisa-ação, vinculados à Fundação Oswaldo Cruz do Ceará - Fiocruz Ceará (Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes) e às universidades, como Uece, UFC e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tais coletivos acadêmicos referem-se a: Grupo de Pesquisa e Articulação Campo, Terra e Território (Naterra); Laboratório de Estudos da Educação do Campo (Lecampo); Grupo de Pesquisa Territórios do Semiárido (Semiar); Núcleo de Estudos sobre Memória e Conflitos Territoriais (Comter); Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas) e Núcleo Trabalho, Ambiente, Saúde e Subjetividades (Trassus).

Atuando a partir dessa rede, as comunidades de Tabuleiro do Norte produzem resistência e iluminam outros mundos possíveis1616 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2020. para a Chapada do Apodi, sendo a VPS relacionada com os agrotóxicos um forte instrumento de mobilização, articulação e resistência. A expressão ‘Vigilância Popular’ é de elaboração recente1717 Alves PA. Vigilância popular da saúde: cartografia dos riscos e vulnerabilidades socioambientais no contexto de implantação da mineração de urânio e fosfato no Ceará [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2013., embora parte de seus fundamentos estejam em experiências desenvolvidas nos anos 1980 pelo campo da saúde do trabalhador1818 Oddone I, Marri G, Gloria S. Ambiente de Trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec; 1986.,1919 Machado JMH. Alternativas e Processos de Vigilância em Saúde do Trabalhador: a heterogeneidade da intervenção [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 1996.. A sistematização teórico-metodológica desse processo mais contemporâneo tem visado contribuir para reorientar a ação dos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como seus processos formativos na direção de uma vigilância em saúde mais dialógica e efetiva na garantia do direito humano à saúde.

Segundo Porto2020 Porto MFS. Pode a Vigilância em Saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Ciênc saúde coletiva. 2017;22(10):3149-3159. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320172210.16612017.
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, os limites do modelo biomédico e produtivista na organização de um sistema de saúde verticalizado e pouco dialógico dificultou avanços na concepção de participação social na saúde coletiva além do controle social. Embora importante nas estratégias de participação e gestão democrática do SUS, no exercício da cidadania e no trabalho em redes com a sociedade, a saúde coletiva manteve, até recentemente, a discussão da produção de conhecimentos e das ações de vigilância como atributos dos profissionais especialistas. Uma importante exceção, além da saúde dos trabalhadores, tem sido a construção da educação popular em saúde, baseada principalmente nas contribuições de Freire2121 Freire P. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez; 2001., Brandão2222 Brandão CR, Streck DR, organizadores. Pesquisa Participante: o saber da partilha. São Paulo: Ideias & Letras; 2006. e Valla2323 Valla VV. Participação popular e saúde: a questão da capacitação técnica no Brasil. In: Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação Popular, Educação e Saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1993..

Existem algumas experiências no Brasil que utilizaram o termo vigilância popular da saúde para nominar suas práticas quando o protagonismo de comunidades e movimentos sociais é evidente, e que pode envolver diferentes graus de atuação do Estado, da academia e especialistas, desde que estes reconheçam os saberes populares e se impliquem nos processos participativos de natureza dialógica. Dentre numerosas experiências construídas nos últimos 20 anos que ajudaram na construção desse conceito, podem-se destacar os estudos que contribuíram para adiar as tentativas de exploração de urânio e fosfato na mina do município de Santa Quitéria, no Ceará1717 Alves PA. Vigilância popular da saúde: cartografia dos riscos e vulnerabilidades socioambientais no contexto de implantação da mineração de urânio e fosfato no Ceará [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2013.,2424 Rigotto RM. Contested Knowledges in the Environmental Conflict over Uranium and Phosphate Mining in Ceará - Brazil. Vibrant. 2017;14(2):e142184. DOI: https://doi.org/10.1590/1809-43412017v14n2p184
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; processos de monitoramento dos impactos da Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) em Santa Cruz, Rio de Janeiro2525 Porto MFS, Menezes MAC, Dias AP, et al. Avaliação dos Impactos Socioambientais e de Saúde em Santa Cruz Decorrentes da Instalação e Operação da Empresa TKCSA. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. e da mineração de urânio em Caetité, Bahia2626 Porto MFS, Finamore R, Chareyron B. Justiça ambiental e mineração de Urânio em Caetité/BA: avaliação crítica da gestão ambiental e dos impactos à saúde da população. Relatório. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2014.; pesquisas do Observatório de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas2727 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, Floresta e Águas: tecendo práticas e saberes de saúde. v. 1. Brasília, DF: Editora UnB; 2017. e do Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes vinculados à Fiocruz Ceará2828 Fundação Oswaldo Cruz. Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes [Internet]. Eusébio: Fiocruz Ceará [data desconhecida] [acesso em 2023 jun 14]. Disponível em https://ceara.fiocruz.br/participatorio/inicio/.
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O termo VPS também tem sido usado no contexto da discussão da pedagogia das águas pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fiocruz; da pedagogia do território77 Rigotto RM, Leão FAF, Melo RD. A pedagogia do território: desobediências epistêmicas e insurgências acadêmicas na práxis do Núcleo Tramas. In: Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadores. Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018. p. 345-396.; nos trabalhos desenvolvidos pelo Laboratório Territorial de Manguinhos Fiocruz em favelas no Rio de Janeiro2929 Porto MFS, Cunha MB, Pivetta F, et al. Comunidades ampliadas de pesquisa ação como dispositivos para uma promoção emancipatória da saúde: bases conceituais e metodológicas. Ciênc saúde coletiva. 2016;21(6):1747-1756. e, durante a pandemia da covid-19, em debates promovidos pela Fiocruz com movimentos populares e entidades da sociedade civil organizada, acadêmicos e SUS11 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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Enquanto prática, a VPS se anuncia em ações participativas que destacam o que promove e o que ameaça a vida nos territórios, apontando para novos espaços, lutas coletivas e perspectivas para transformar as condições de saúde. Enquanto um saber, desenvolve-se por meio dos diálogos e das vivências da população, produtora de conhecimentos e informações importantes que possibilitam os processos decisórios, o direcionamento das ações da territorialização da saúde33 Meneses MN, Quadros JD, Marques GP, et al. Práticas de vigilância popular em saúde no Brasil: revisão de escopo. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2553-2564. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13542022
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No período da pandemia da covid-19, a VPS ganhou notória visibilidade3030 Corrêa HR, Segall-Corrêa AM. Lockdown ou vigilância participativa em saúde? Lições da Covid-19. Saúde debate. 2020;44(124):5-10. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012400
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, especialmente quando se tornou a única ação efetiva de vigilância diante da insuficiência do Estado em executar as políticas públicas. Ela lança mão de estratégias inovadoras, como uso de redes sociais, para pôr em evidência cenários de violação de direitos, desenvolvimento de barreiras populares, observatórios populares e acadêmicos, comitês populares por iniciativa de indígenas, quilombolas, pescadores e camponeses na defesa de seus territórios e da vida11 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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. Mais recentemente, surgiu a proposta de Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT), em que há centralidade na saúde do trabalhador e na saúde e ambiente22 Silva LRC, Diógenes SS, Meneses MN, et al. Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT): uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2565-2582. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13142022
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Na América Latina, vêm sendo formuladas diversas propostas nos últimos 20 anos em busca de sistematizar conceitos, métodos e ações em torno da VPS. Dentre elas, destacam-se a vigilância popular1717 Alves PA. Vigilância popular da saúde: cartografia dos riscos e vulnerabilidades socioambientais no contexto de implantação da mineração de urânio e fosfato no Ceará [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2013., a vigilância civil3131 Sevalho G. Apontamentos críticos para o desenvolvimento da vigilância civil da saúde. Physis. 2016;26(2):611-632. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000200014
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, o monitoramento participativo3232 Breilh J. De la vigilancia convencional al monitoreo participativo. Ciênc saúde coletiva. 2003;8(4):937-951. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232003000400016
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, a vigilância articulada à concepção de uma promoção emancipatória da saúde2020 Porto MFS. Pode a Vigilância em Saúde ser emancipatória? Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Ciênc saúde coletiva. 2017;22(10):3149-3159. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320172210.16612017.
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,3333 Porto MFS. Crise das utopias e as quatro justiças: ecologias, epistemologias e emancipação social para reinventar a saúde coletiva. Ciênc saúde coletiva. 2019;24(9):4449-4458. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25292019.
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e a proposição de vigilância popular da saúde e do ambiente no contexto da covid-1911 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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. Todos esses esforços visam à incorporação de diversos referenciais teórico-metodológicos, atores, movimentos sociais e populações para permitir uma vigilância baseada no diálogo e na articulação de saberes em que permeie uma prática com valores democráticos rumo à sustentabilidade e à justiça social, sanitária, ambiental e cognitiva3333 Porto MFS. Crise das utopias e as quatro justiças: ecologias, epistemologias e emancipação social para reinventar a saúde coletiva. Ciênc saúde coletiva. 2019;24(9):4449-4458. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25292019.
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Em vista disso, este artigo busca apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o papel da VPS como estratégia emancipatória de luta e defesa da vida ante o agronegócio na Chapada do Apodi.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa-ação3434 Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. 16. ed. São Paulo: Cortez; 2008. integrada por academia, movimentos sociais, entidades, organizações comunitárias e trabalhadores do SUS que constituem uma teia de saberes e práticas liderada pelo Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes da Fiocruz Ceará2828 Fundação Oswaldo Cruz. Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes [Internet]. Eusébio: Fiocruz Ceará [data desconhecida] [acesso em 2023 jun 14]. Disponível em https://ceara.fiocruz.br/participatorio/inicio/.
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. Após a realização de uma revisão integrativa sobre VPSAT22 Silva LRC, Diógenes SS, Meneses MN, et al. Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT): uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2565-2582. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13142022
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, elaboraram-se critérios para definir uma experiência de vigilância popular, a saber: protagonismo popular na defesa da vida; uso de tecnologias sociais de monitoramento e produção de dados de forma participativa; articulação desejável entre a academia e o SUS.

Houve um cadastro nacional de experiências por meio de formulário eletrônico, sendo selecionadas dez experiências: cinco do Ceará e cinco contemplando outros estados de cada região do Brasil.

Cadastrada pela Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte e pelo M21, a experiência ‘Vigilância Popular da Saúde no Vale do Jaguaribe’ foi selecionada para análise e acompanhamento no território, em que comunidades da Chapada do Apodi, no município de Tabuleiro do Norte-CE, desenvolvem a VPS e, concomitantemente, a iniciativa ‘Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) - Meu Quintal em Sua Cesta’, com a assessoria da Cáritas.

Realizou-se a pesquisa de campo na Chapada do Apodi em junho de 2022, para reconhecimento do território e reflexão sobre aspectos relevantes da experiência (quadro 1). Por intermédio de oficina, discutiram-se os conceitos e práticas de VPS na visão dos sujeitos do território e elaborou-se um plano de ação a partir das questões do quadro 2, voltado para os problemas do território.

Quadro 1
Reflexão sobre a experiência de vigilância popular em saúde na oficina territorial nas comunidades rurais de Tabuleiro do Norte, Ceará, na Chapada do Apodi
Quadro 2
Questões-guia para a construção do plano de ação da experiência de vigilância popular em saúde na oficina territorial nas comunidades rurais de Tabuleiro do Norte, Ceará, na Chapada do Apodi

Os relatos e as discussões dos participantes na oficina foram sistematizados, gravados, transcritos e analisados.

Análise dos dados

Para dar suporte à análise de conteúdo de Bardin3535 Bardin L. Análise de conteúdo. Traduzido por Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70; 2011., foi utilizado o software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ) versão 0.7 alfa 2 desenvolvido por Ratinaud no ano de 2009. Trata-se de um programa livre, que se ancora no software R 3.5.1, permitindo processamento e análises estatísticas de textos produzidos. As informações transcritas foram submetidas ao IRaMuTeQ por meio de um arquivo único devidamente configurado em formato de texto (.txt), chamado de ‘corpus’. Neste estudo, como foi realizada uma pesquisa-ação com o uso da técnica de oficinas territoriais, o ‘corpus’ foi formado a partir da reflexão e de todas as informações escritas em tarjetas durante as trilhas (quadro 1) pelos participantes sobre a experiência de VPS da Chapada do Apodi.

Na análise dos conteúdos textuais, foram utilizadas duas técnicas fornecidas pelo IRaMuTeQ: árvore de similitudes e nuvem de palavras. Essa análise destaca em uma representação gráfica a quantidade de vezes que uma palavra é citada, bem como suas conexões de sentido.

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu os preceitos éticos referentes à pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde3636 Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. 13 Jun 2013., tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Distrital Gonzaga Mota Messejana com Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 47591021.9.0000.8145 e parecer n° 4.839.292.

Resultados e discussão

A VPS, que agricultores e camponeses realizam no território, permite antecipar sinais de ameaças do agronegócio, apontando caminhos para incidir efetivamente nas expressões dos conflitos ambientais nos corpos desses sujeitos, ou seja, no processo saúde-doença que leva a cânceres e malformações congênitas, por exemplo3737 Rigotto RM, Aguiar ACP, Pontes AGV, et al. Desvelando as tramas entre saúde, trabalho e ambiente nos conflitos ambientais: aportes epistemológicos, teóricos e metodológicos. In: Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadoras. Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018. p. 163-214.. Esses sinais sobre seu território são o que se tem denominado de indicadores de VPS, e alguns deles foram identificados na atividade de reconhecimento do território nas comunidades da Chapada do Apodi, Tabuleiro do Norte.

Tratava-se de mudanças no território reportadas pela comunidade associadas à velocidade de instalação dos empreendimentos do agronegócio que cercam as áreas antes utilizadas para apicultura e criação dos animais em terras soltas, como cercamento com arame novo e madeiras uniformes que avançam sobre a estrada, diminuindo a sua largura, depois realizam o desmatamento com uso de uma enorme corrente esticada entre dois tratores (esse método de desmatamento foi chamado de ‘correntão’ pela comunidade), em seguida trituram a mata nativa para servir de adubo, o que gera intensos ruídos ouvidos a distância. O uso intenso de agrotóxicos é identificado pelo forte odor de venenos em casas próximas às plantações e pelo aumento da mortandade de abelhas com redução da produção de mel. Tudo isso é realizado com mão de obra externa ao território, o que contribui para a diminuição da oferta de emprego. Como consequência disso, as famílias estão sendo desterritorializadas e induzidas a vender suas terras para empresas do agronegócio.

A produção agroecológica dessas comunidades é uma das principais propostas como alternativa ao agronegócio no seu território, pois é por meio dela que se alcança e se preserva a autonomia e a sustentabilidade ambiental, resistindo às formas de marginalização social e econômica3838 Silva MR. O modo de vida camponês e a agricultura familiar no Brasil: conceitos e debates contemporâneos. Rev Cient Multid Núcleo Conhecimento [Internet]. 2020 [acesso em 2023 jun 14];9(5):65-74. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/modo-de-vida.
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. Assim, enquanto as comunidades monitoram os impactos do agronegócio com tecnologias sociais contextualizadas pela vivência no território e, portanto, simplificadas para esses sujeitos, constroem estratégias de resistência, existência e afirmação do seu modo de vida expressas nos indicadores de anúncio ou bem viver, como a iniciativa dos quintais produtivos agroecológicos, exemplo de convivência com o semiárido.

A oficina territorial teve a presença de 51 participantes, 39 deles preencheram a ficha de identificação socioeconômica, sendo mais de 60% do sexo feminino e quase 70%, oriundos de Tabuleiro do Norte-CE. Mais de 40% deles tinham idade entre 25 e 45 anos, e 46%, entre 46 e 60 anos. Mais de 60% dos participantes eram casados; quase 70% disseram-se pardos ou pretos e aproximadamente 80% tinham filhos. Cerca de 44% haviam estudado até o ensino fundamental completo ou menos; 18%, até o ensino médio ou menos; e 36% possuíam nível superior ou pós-graduação. Em relação à ocupação, cerca de 44% eram agricultores e/ou apicultores; 21% eram de entidades que atuavam nos movimentos sociais; cerca de 23% eram profissionais do SUS, sendo a grande maioria Agentes Comunitárias de Saúde (ACS); e 10% eram da academia e/ou servidores públicos com pós-graduação. Por fim, mais de 40% faziam parte de associações ou sindicatos ou ainda da iniciativa CSA; além disso, a Cáritas, a Aefaja e movimentos sociais, como MST e M21, foram citados. Nessa oficina territorial nas comunidades da Chapada do Apodi, o destaque foi a necessidade de fortalecimento da luta comunitária pela vida no território, envolvendo o problema dos agrotóxicos e o papel das mulheres, como se pode ver na nuvem de palavras (figura 1).

Figura 1
Nuvem de palavras a partir da síntese da reflexão sobre a experiência de vigilância popular em saúde na oficina territorial nas comunidades rurais de Tabuleiro do Norte, Ceará, na Chapada do Apodi

A VPS é marcada pelo protagonismo popular na defesa da vida11 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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,22 Silva LRC, Diógenes SS, Meneses MN, et al. Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT): uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2565-2582. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13142022
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. Essa centralidade também pode ser observada na nuvem de palavras, em que o ‘comunitário’ é a palavra mais citada na reflexão sobre a experiência de VPS, articulada à necessidade de fortalecimento dessa luta pelo território em defesa da vida.

A VPS não visa substituir o papel do Estado, mas ser a expressão da necessidade de maior participação dos movimentos sociais e das comunidades na vigilância, como está destacado na Política Nacional de Vigilância da Saúde3939 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução MS/CNS nº 588, de 12 de julho de 2018. Fica instituída a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNSV), aprovada por meio desta resolução. Diário Oficial da União. 13 Ago 2018.. Todavia, desde 2016, em virtude de contextos políticos que ameaçaram indígenas, quilombolas, pescadores(as) ou moradores(as) de favelas, essa vigilância emergiu como um processo participativo de alerta e de chamado para a ação relativa à garantia do direito à saúde, ao meio ambiente equilibrado e à defesa da vida11 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saúde. 2020;18(3):e00298130. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00298
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.

Nesse contexto desigual de forças, em que o Estado usualmente alia-se aos interesses das corporações do agronegócio, a organização e a luta comunitária pelo território ganham uma centralidade que a estratégia da VPS busca potencializar. A árvore de similitude da reflexão da experiência de VPS, como a nuvem de palavras, mostra a centralidade da organização comunitária e sua relação direta com a defesa do território por meio da participação popular (figura 2).

Figura 2
Árvore de similitude a partir da síntese da reflexão sobre a experiência de vigilância popular em saúde na oficina territorial nas comunidades rurais de Tabuleiro do Norte, Ceará, na Chapada do Apodi

Identificam-se, a partir da árvore de similitude, duas categorias de análise: organização comunitária e defesa do território/modo de vida.

Inicialmente, destaca-se que a palavra ‘comunitário’, que aparece de forma central na figura 2, traz a ideia da organização comunitária, que se mostra como uma grande potência na defesa do território e no processo de VPS. A organização comunitária está aliada à atuação dos movimentos populares da região, evidenciando que as associações são pontos fundamentais e estratégicos nas articulações das comunidades para a reinvindicação dos seus direitos, em que iniciativas como a CSA são criadas com apoio de organizações sociais e movimentos, como a Cáritas e o M21, que têm atuado na Aefaja na construção da CSA.

A defesa do território e do modo de vida tem alicerce no fortalecimento que o protagonismo das mulheres demonstra ao se construírem enquanto grupo em defesa de uma vida saudável. O direito é conquistado pela luta em defesa da água e da terra, e a árvore de similitude aponta para a relevância das ‘redes sociais’ nesse processo, o que pode estar ampliando a ‘participação’ de diferentes atores, como os jovens desses territórios, e trazendo a comunicação como importante instrumento de luta e potencialização da VPS. Isso foi evidenciado de forma mais relevante a partir da pandemia da covid-19, em que houve necessidade de reinventar estratégias para denunciar o avanço do agronegócio na região. Nesse processo, a juventude foi extremamente relevante, pois ela costuma ter apropriação e aproximação com as ferramentas digitais, o que dialoga com a presença importante de jovens na oficina. Essas estratégias de visibilidade e comunicação têm sido fundamentais para mobilizar a opinião pública a se posicionar de forma favorável a demandas como a defesa da Lei Zé Maria do Tomé.

Em relação ao papel do Estado, identifica-se a materialização do SUS na assistência prestada em ‘visitas domiciliares’. Na oficina territorial, houve a presença importante de ACS, tendo influência relevante nessa resposta. A ausência de elementos que remetam à vigilância em saúde pode sugerir a precária atuação da vigilância institucional nesse território. A figura do Estado, trazida no termo ‘estadual’, enquanto instituição, surge no contexto da busca por apoio desse ente, como em audiências estaduais ou da necessidade de visibilidade nesse âmbito, mas também no contexto da relevância da luta pela defesa da Lei Estadual Zé Maria do Tomé que proíbe a pulverização aérea dos agrotóxicos no Ceará, a qual se tornou um importante conquista oriunda da luta do M21. Isso pode evidenciar a diferença entre o Estado, cooptado pelo agronegócio que se omite propositalmente e é evocado nos debates, e as políticas públicas em defesa da vida que são conquistas a partir da luta social.

Na construção do plano de ação, os participantes destacaram, como principais dificuldades enfrentadas, a falta de compromisso do poder público com políticas públicas para o território, evidenciando o acesso à água e a proteção em relação aos impactos do agronegócio. Outra dificuldade é envolver mais trabalhadores na luta, pois o medo e a descrença têm aumentado o desafio para promover maior organização popular.

De acordo com os participantes, essas dificuldades foram ou poderiam ser superadas com: oficinas de formação política para participação comunitária, denúncia e ação da comunidade por meio de informações.

Dentre as conquistas alcançadas até o momento da oficina, os participantes destacaram a organização da população, a existência mais pessoas sensíveis às lutas da Chapada do Apodi, a participação do povo nas manifestações e o apoio coletivo dos grupos, como M21, Cáritas, Aefaja, Ceresta, CSA, Acampamento Zé Maria do Tomé; e a conquista da Lei Zé Maria do Tomé e de moradia, energia, hortaliças e produção agroecológica. Ao final da oficina, foram definidas ações prioritárias para as comunidades de Tabuleiro do Norte sumarizadas no quadro 3.

Quadro 3
Ações prioritárias do plano de ação de vigilância popular em saúde da oficina territorial nas comunidades rurais de Tabuleiro do Norte, Ceará, na Chapada do Apodi

A academia, ao ser provocada pelos movimentos sociais e pelas comunidades atingidas a investigar a magnitude dos impactos do agronegócio, tem buscado contribuir para as lutas e a afirmação do modo de vida nesses territórios a exemplo das iniciativas de VPS22 Silva LRC, Diógenes SS, Meneses MN, et al. Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT): uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(9):2565-2582. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023289.13142022
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. Lançar mão da ecologia de saberes4040 Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina; 2009. possibilita a construção de uma ponte entre essas práticas de saúde que nascem nos territórios diante da insuficiência do Estado para incidir nas ações e nas compreensões convencionais da saúde institucional implementadas no SUS, buscando uma efetiva construção de saberes e práticas de vigilância em saúde que respeitem e estimulem a participação da comunidade. Assim, novas bases conceituais e metodológicas têm dado suporte a novas formas de fazer e pensar na vigilância, ao incorporar diferentes saberes e dimensões, tais como as econômicas, as sociais, as culturais, as éticas e as questões de gênero.

Esses desafios para a ciência ficaram claramente expressos no Plano de Ação proposto pela comunidade. O desafio apresentado também é intersetorial e interdisciplinar, o que coloca para a academia a necessidade de romper paradigmas da ciência moderna ainda baseada no positivismo4141 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Porto Alegre: Sulina; 2011. 120 p..

O processo de identificação do que se tem chamado de indicadores qualitativos de VPS busca possibilitar mais diálogo com o SUS e, ao mesmo tempo, mais engajamento, divulgação, ampliando para que tais informações possam ser transformadas em políticas públicas com forte protagonismo e inserção popular, a exemplo da Lei Zé Maria do Tomé, e em estratégias territorializadas e métodos participativos desenvolvidos pelos próprios processos autônomos de VPS nas comunidades.

Considerações finais

Historicamente, as populações do campo são vulnerabilizadas pelos projetos de desenvolvimento, a exemplo do agronegócio afetando sobremaneira a saúde dessas populações, seus modos de vida e o ambiente onde vivem e trabalham. Essas populações têm desenvolvido práticas de VPS sobre os impactos causados por esses empreendimentos. Uma das questões suscitadas a partir deste estudo é: como a vigilância popular pode contribuir para fortalecer os processos participativos na vigilância em saúde do SUS de modo que o conhecimento produzido por essas populações e suas necessidades sejam reconhecidos e valorizados para apontar quais ações poderiam ser mais efetivas em cada contexto em uma perspectiva mais democrática e dialógica?

A experiência de luta da vigilância popular na Chapada do Apodi representa um dos exemplos mais emblemáticos e potentes dessa modalidade de vigilância. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a Lei Zé Maria do Tomé. Essa conquista nascida nesses territórios agora inspira outras iniciativas pelo País. Essa luta comunitária conquistou uma importante política pública de proteção à saúde, pois essas comunidades poderiam ser atingidas pela pulverização aérea de agrotóxicos. Entretanto, diante da expansão do agronegócio na região, a VPS pode continuar sendo uma importante ação de defesa da saúde e da vida no território. A possibilidade de uma pedagogia do exemplo pode inspirar outras experiências que necessitam de estratégias inovadoras para o enfrentamento de processos produtivos que colocam o lucro acima da proteção da saúde e do meio ambiente. Nesse sentido, a VPS se mostrou uma importante estratégia de promoção de territórios mais saudáveis e sustentáveis na Chapada do Apodi.

  • Suporte financeiro: a pesquisa foi financiada pelo Edital Inova Fiocruz - Emergências em Saúde Pública

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    23 Fev 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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