Contribuições do conceito de corpoterritório e dos feminismos comunitários para pensarmos na construção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis

Cristiane Coradin Simone Santos Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O presente texto constitui-se como uma revisão de literatura, na qual se apresenta o percurso de construção do conceito de corpo-território, suas conexões com o feminismo comunitário, o ecofeminismo e o feminismo decolonial, para discutir a construção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). Esse conceito proveio de mobilizações comunitárias de mulheres de povos originários de Abya Yala. Aos poucos, foi incorporado por mulheres indígenas, negras e camponesas brasileiras. O corpo-território consiste em dimensão biológica, mental, social e cosmogônica. A partir de seus corpos e territórios, elas questionam impactos de grandes empreendimentos, problematizam violências contra a mulheres e contra a Terra; problematizam desigualdades de sexo-gênero, classe e raça; e denunciam situações que constrangem a saúde e seus corpos e territórios. Por meio de práticas de cuidado, essas mulheres recuperam a saúde de si mesmas, de seus coletivos comunitários e territórios, ampliam a sua saúde e a saúde coletiva. Isso favorece a resiliência e a reparação da teia da vida. Esse protagonismo feminino tem sido invisibilizado em estudos sobre TSS. Assim, considera-se fundamental que essas contribuições feministas sejam interseccionais nas ações de promoção de TSS.

PALAVRAS-CHAVE
Feminismos comunitários; Ecofeminismo; Feminismo; Saúde coletiva; Descolonialidade.

Introdução

Vivemos em um contexto de sindemia global11 Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, et al. A Sindemia Global da Obesidade, da Desnutrição e das Mudanças Climáticas: relatório da Comissão The LANCET [Internet]. Organização e tradução do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC. São Paulo: Alimentando Políticas; 2019 [acesso em 2023 jan 31]. Disponível em: https://alimentandopoliticas.org.br/sindemiaglobal/
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. Esse processo conjuga situações de fome, subnutrição e obesidade com mudanças climáticas. Além disso, ele compõe um cenário de crise civilizatória ampliada, que conjuga dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas e ambientais. Na tentativa de buscarmos responder ao desafio que esse contexto nos coloca, buscamos reconhecer, analisar e discutir experiências emergentes com potencial para abordar de forma integrada a saúde das populações humanas e não humanas em variados contextos. Desde olhares feministas, procuramos compreender como múltiplas mulheres constroem e significam seus corpos e territórios, entramados com coletivos comunitários e bens naturais.

Identificamos em estudos feministas comunitários de Abya Yala como múltiplas mulheres constroem seus corpos em relação de ecodependência com as naturezas não humanas da Terra. Com a Natureza, elas constituem modos e meios de vida, que se relacionam com a construção contextualizada da determinação social da saúde. Essas relações são permeadas pela colonialidade de gênero e da Natureza, que coloniza seus corpos e territórios, como ser, saber e poder. Observamos como a colonialidade opera com base na violência, expropriação e exploração, e como afeta a saúde das mulheres e de seus territórios de vida. Além disso, pudemos reconhecer, em meio a cenários críticos, plenos de violações de direitos, como, por meio da sua agencia, as mulheres enfrentam as categorias constitutivas dessa dominação, ampliam sua capacidade de manifestação da vida, bem como em seus territórios de vida, restituem resiliência para si mesmas, seus coletivos comunitários e ambientes naturais, ampliando assim a saúde humana e ambiental.

A agencia, para Lugones22 Lugones M. Colonialidad y género. Tabula Rasa. 2008;(9):73-101., é compreendida como a capacidade de ação perante as representações sociais e os comportamentos constitutivos de relações de sexo-gênero patriarcais, sexistas, que tornam as mulheres passivas mediante situações de desigualdades e violências. Agenciamento é a capacidade de criar e liberar, portanto, subjetividade ativa, capaz de criar práticas e representações sociais que possibilitem a descolonização e a emancipação social das mulheres.

Esse protagonismo feminino tem sido invisibilizado em estudos sobre Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). Dessa forma, este texto propõe-se a visibilizar e valorizar esse protagonismo feminino, gerando contribuições para pensarmos de modo interseccional na contribuição das múltiplas mulheres na construção de TSS. Este ensaio é composto desta pequena introdução, seguida de um item de revisão sobre o tema e outro de reflexão propositiva, encerrando-se com as considerações finais.

Material e métodos

Este texto trata-se de um ensaio teórico, realizado a partir de revisão de literatura. Para isso, realizamos revisão de literatura sobre o tema no Portal da Capes e SciELO, buscando, pela chave “corpo-território”, textos que pudessem contribuir para essa discussão. Foram encontrados apenas oito artigos acadêmico científicos sobe esse tema, evidenciando a relevância de aprofundamentos sobre ele, bem como a importância da realização de mais estudos. Além disso, agregamos outros estudos, componentes de livros e capítulos de livros em português e espanhol que identificamos sobre o tema, com o fito de qualificar a revisão e a reflexão sobre o tema.

Resultados e discussão

Corpo-territórios, feminismos comunitários e ecofeminismos

A noção de corpo-território emerge a partir de mobilizações sociais de mulheres indígenas e camponesas de Abya Yala. Lorena Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89. nos explica como os corpos das mulheres guatemaltecas estão profundamente ligados aos meios, aos modos de vida e às identidades, bem como às florestas, aos campos, às águas e aos coletivos comunitários existentes nesses territórios. O território constitui o organismo físico, psicoemocional, mental e espiritual das mulheres, assim como as florestas, a fauna e a flora e as águas são mantidas pelos seus corpos. Ambos, corpo e território, vivem em profunda relação de codependência ecológica.

Essa correlação intrínseca entre corpo e território constitui chave da leitura para compreensão das explorações e espoliações colonialistas, capitalistas, racistas e patriarcais. Compreender essa interrelação nos auxilia a entender as motivações que as mulheres das florestas, dos campos e das águas acionam para construir a sua saúde, desde seus coletivos comunitários e territórios de vida.

Essa construção dialoga e, ao mesmo tempo, constrói uma perspectiva ecofeminista popular e comunitária. Warren55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996. argumenta que existem vínculos entre a dominação da mulher e a dominação da natureza. Tratar-se-ia de um conjunto de valores, crenças, práticas, socialmente construídas com base em binários hierarquizantes e que atuam em sobreposição entre si, compondo uma lente através da qual é possível vermos o mundo e legitimamos relações de dominação das mulheres e da natureza. Esse marco conceitual se torna opressivo quando - “[...] explica, justifica e mantém a subordinação das mulheres aos homens”55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996.(15). Dentre essas dicotomias hierarquizantes, ela destaca algumas frequentemente citadas: razão / emoção, mente / corpo, cultura / natureza, humano / animal e homem / mulher. Argumenta-se que o que tem sido (historicamente) associado com a emoção, o corpo, a natureza, o animal e a mulher se considera inferior àquilo que (historicamente) tem sido associado à razão, à mente, à cultura, ao humano (em seu sentido masculino) e ao homem55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996..

O pensamento ecofeminista está fundamentado na ideia do dimorfismo sexual, que justifica e naturaliza a existência de hierarquias de poder, valoração e diferentes papéis sociais para homens e mulheres a partir do sexo55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996.

6 Puleo A. Ecofemismo para otro mundo possible. Espanha: Kobo Editions; 2013.
-77 Mies M, Shiva V. Ecofeminismo. São Paulo: Epistemologia e Sociedade; 1993.
. Essa biologização de papéis sociais a partir dos sexos levou à naturalização de papéis sociais ditos - de mulheres e circunscritos no âmbito doméstico, tais como cuidado com a alimentação da família, a organização e a higiene do espaço doméstico, a educação e o cuidado com os filhos, os idosos, os doentes etc. Como atividades e papéis inferiorizados, essas práticas de cuidado foram relegadas às mulheres e circunscritas à reprodução social da família; enquanto para os homens, relegou-se o domínio da razão, da ciência, do público, papéis considerados superiores55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996.

6 Puleo A. Ecofemismo para otro mundo possible. Espanha: Kobo Editions; 2013.
-77 Mies M, Shiva V. Ecofeminismo. São Paulo: Epistemologia e Sociedade; 1993.
. Em ambos os casos, a natureza é vista como feminina, cuja representação está estreitamente vinculada às representações femininas das mulheres.

Então, o caminho para as feministas, ecologistas e éticoambientalistas, é transgredir as metáforas e modelos que feminizam a natureza e naturalizam a mulher para mútuo prejuízo55 Warren KJ. Filosofias ecofeministas. Espanha: Icaria Editorial; 1996.(17).

Svampa88 Svampa M. Feminismos del Sur y ecofeminismo. Nueva Sociedad. 2015;(256):127-131., a partir de um olhar ecofeminista, debruça-se sobre a formulação de experiências latino-americanas e destaca a relevância da interseccionalidade na construção dos ecofeminismos populares. Para ela, aqui é fundamental darmos ênfase “[...] sobre tierras, territorios, cuerpos y representaciones”88 Svampa M. Feminismos del Sur y ecofeminismo. Nueva Sociedad. 2015;(256):127-131.(129). Ela nos chama a atenção para entendermos como as mulheres, por meio da sua agencia, constroem-se como sujeitos, identidades, territorialidades, ao mesmo tempo que constroem noções éticas ecofeministas situadas de cuidado com a vida. A agencia, à luz dos estudos de Lugones88 Svampa M. Feminismos del Sur y ecofeminismo. Nueva Sociedad. 2015;(256):127-131., é aqui entendida como capacidade de liberação de subjetividade ativa, entendida enquanto capacidade de ação feminina ante a dominação colonialista de sexo-gênero. Ou seja, implica liberação de capacidade de falar, de se expressar, de agir, de se posicionar, de dar limite, de autovalorizar-se, de respeitar-se e amar-se, capacidade de transgredir desigualdades e iniquidades de sexo-gênero, e de ocupar espaços e comportamentos negados a elas pela dominação colonialista.

Nessa perspectiva, Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89. e Cruz et al.99 Cruz DT, Vásquez E, Ruales G, et. al. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017., em conjunto com outras autoras indígenas, assumem uma leitura ecofeminista popular latino-americana e sustentam a argumentação de que existe uma correlação retroativa entre dominação dos corpos das mulheres e o corpo da Terra. Dessa forma, explicitam como os feminismos comunitários1010 Miñoso YE, Correal DG, Muñhoz KO. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca; 2014. formulam perspectivas ecofeministas próprias, que evidenciam como essas mulheres se relacionam com as naturezas dos seus corpos e com as naturezas não humanas da Terra, produzem e reproduzem seus meios e modos de vida bem como identidades, conservando assim a biodiversidade e a sociobiodiversidade existente nas águas, campos e florestas.

Para entender essa relação, elas desenvolvem o conceito de corpo-território das mulheres e da Terra. Por meio desse conceito, buscam explicar como os processos de territorialização e desterritorialização de seus habitats perpassam pelo estabelecimento das relações de dominação, expropriação e violência dos seus corpos femininos de modo articulado. O corpo-território da Terra é entendido como a diversidade dos elementos biofísicos que constituem os ecossistemas locais, associados às dimensões simbólicas, cosmogônicas, culturais, sociais, econômicas e políticas que se engendram nesses espaços. Os corpos-territórios das mulheres são entendidos como a condição biológica, psicossocial, emocional e cosmogônica. Essa subjetividade e essa materialidade feminina se produzem com o corpo-território da Terra. São ecodependentes dos bens naturais, entendidos como solos, florestas, águas, ar, animais de caça, criação, entre outros bens e serviços oferecidos pela natureza.

Através dos sentidos nos conectamos com os territórios: ouvimos o que o rio nos diz, conversamos com as fazendas, os campos de milho e rimos com os pássaros; isto é, são os sentidos que nos conectam aos territórios99 Cruz DT, Vásquez E, Ruales G, et. al. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017.(7).

Como vivem em relação de ecodependência com o corpo-território da Terra, à medida que esses territórios são impactados pela ação de grandes empreendimentos capitalistas moderno-coloniais, essas mulheres argumentam que é nos corpos das mulheres que se somatizam as violências de sexo-gênero e as violências contra a Terra, por meio de longas gerações ancestrais. Elas entendem que violências contra o corpo-território da Terra produzem violências contra os corpos-territórios das mulheres. Compreendem também que violências contra seus corpo-territórios reverberam em violências contra o corpo-território da Terra:

pensamos no corpo como nosso primeiro território e reconhecemos o território em nossos corpos: quando os lugares em que habitamos são afetados, nossos corpos são afetados, quando nossos corpos são afetados, os lugares em que habitamos são violados99 Cruz DT, Vásquez E, Ruales G, et. al. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017.(7).

Dessa forma, os processos de territorialização e de desterritorialização de seus ambientes de vida são atravessados e atravessam as relações de sexo-gênero de modo interseccional, cujos impactos são inscritos nos corpos-territórios das mulheres e no corpo-território da Terra.

Na interseccionalidade de gênero, raça, saúde e território, por meio do feminismo comunitário, Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89. denuncia violências contra a Terra e contra as mulheres na América Central, a partir de processos de territorialização e desterritorialização dos povos originários, mediante investidas colonialistas de dominação dos seus territórios de vida. Ela explica como as mulheres camponesas indígenas guatemaltecas constroem práxis sociais de resistências perante essas investidas colonialistas, baseadas em práticas ecofeministas cosmogônicas, que promovem a sanação dos seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra. O conceito de interseccionalidade aqui utilizado diz respeito à sobreposição de opressões que conjugam sexo-gênero1111 Vigoya MV. La interseccionalidad: una aproximación situada a la dominación. Debate feminista. 2016;(52):01-17. DOI: https://doi.org/10.1016/j.df.2016.09.005
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, em especial, opressões de raça. A partir da perspectiva elaborada por Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89., flexionamos esse conceito, adotamos como interseccionalidade nesse texto a sobreposição de intersecções de classe, gênero e raça com a opressão da Natureza.

A perspectiva de saúde emergente mediante essas experiências corpóneo-territoriais internaliza uma perspectiva de autocuidado entre as mulheres, cuidado dos seus comuns comunitários e com a Terra, manifesta nas florestas, montanhas, águas e solos. Por intermédio dessas práticas, elas fortalecem a resiliência pessoal e coletiva, fortalecem-se como subjetividades ativas e fortalecem resistências populares coletivas diante da dominação interseccional de gênero, classe, raça e da natureza, ampliando sua capacidade de emancipação social. Resiliência é um termo proveniente da ecologia, amplamente utilizado em estudos do campo agroecológico. Para Holling1212 Holling CS. Resilience and stability of ecological systems. Annu Rev Ecol Syst. 1973;(4):1-23., resiliência trata-se da capacidade que um sistema tem de absorver perturbações e se reorganizar enquanto passa por modificações. Colocamos esse conceito da ecologia em diálogo com a perspectiva de Canguilhem1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. para pensarmos na saúde como capacidade de andar a vida.

Gago1414 Gago V. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante; 2020., em estudo sobre os feminismos latino-americanos, analisa como as mulheres são impactadas por diferentes empreendimentos colonialistas, relevando como elas assumem o protagonismo de lutas sociais coletivas ante os impactos desses empreendimentos. Em proximidade com perspectivas feministas decolonais, ela formula a hipótese de que a domesticação e a colonização são indissociáveis, pois formulam uma relação de subordinação que tem características próprias na exploração da mão de obra e na subordinação de territórios. Destaca a relevância da despatriarcalização dentro do processo de descolonização por meio do corpo-território, pois

[...] a imagem do corpo-território revela batalhas que estão ocorrendo aqui e agora, além de assinalar um campo de forças e torná-lo sensível e legível a partir da conflituosidade1414 Gago V. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante; 2020.(106-107).

De maneira análoga a Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89., também identifica o corpo das mulheres como essa fronteira que ‘acorpa’, ‘encarna’ a experiência de vida, seus territórios, suas identidades, coletivos comunitários, meios e modos de vida.

Corpo território supõe a ideia de que as mulheres e as corporalidades dissidentes organizadas em luta entendem o corpo como um território extenso, ou seja, não é palco exclusivo da individualidade, mas como matéria ampliada1414 Gago V. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante; 2020.(109).

A violência do processo colonizador se dá pela produção do não ser, não saber e não poder da expressão do seu corpo-território. Assim, pela violência, expropriação e exploração que subordinam, desumanizam e, ao desumanizar, colonizam. As resistências feministas se dão, portanto, no campo de batalha desse corpo-território - que irá acionar o que lhe produz como ser, saber e poder social em relação aos meios e modos de vida situados.

No Brasil, alguns estudos recentes têm buscado analisar a noção corpo-território, organizações de mulheres e feminismos comunitários. Apresentamos aqui algumas reflexões de estudos realizados, sobretudo com mulheres indígenas amazônicas e negras quilombolas brasileiras. Essas experiências podem nos auxiliar a refletir como podemos nos aproximar dessa noção do corpo-território e, colocando-o em diálogo com construções de mulheres e feministas outras, problematizar a construção de TSS.

Santos e Ferreira1515 Santos FVS, Ferreira MA. O corpo-território: feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas na Amazônia brasileira. [SYN]THESIS. 2022;15(1):30-44. DOI: https://doi.org/10.12957/synthesis.2022.69285
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, em estudo sobre corpo-território, feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas da Amazônia, descrevem a trajetória de organização social das mulheres indígenas amazônicas. Para elas, essa construção gera desafios para as próprias indígenas refletirem sobre os termos conceituais e especificidades de sua atuação. Elas descrevem as transformações que pautas políticas do movimento social dessas mulheres vão assumindo nessa jornada, passando desde restrições alimentares, próprias do resguardo feminino, direitos reprodutivos, formação de parteiras, valorização de seus saberes em medicina ancestral, passando à reivindicação de maior participação política, demarcação de terras indígenas; expulsão de invasores de suas terras, combate ao racismo e ao machismo, direito à alimentação adequada e saudável, direito à educação diferenciada, combate à violência contra a mulher indígena, maior empoderamento político das mulheres, combate às desigualdades de gênero no movimento indígena e equidade de gênero. Nessa construção, dialogam com a noção de corpo-território, oriunda de feminismos comunitários e de organizações de mulheres de Abya Yala.

Para as indígenas amazônicas brasileiras, o corpo é uma construção socioecológica que se constitui na sua relação com o habitat natural e com as sociabilidades comunitárias.

O corpo-território não é [...] apenas um marcador conceitual, mas também um manifesto de uma relação profunda que envolve o corpo da mulher e as outras teias ontológicas que permeiam o Universo1515 Santos FVS, Ferreira MA. O corpo-território: feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas na Amazônia brasileira. [SYN]THESIS. 2022;15(1):30-44. DOI: https://doi.org/10.12957/synthesis.2022.69285
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Falar do corpo-território da mulher indígena amazônica é a reivindicação de “[...] um lugar específico que até então negado ao agente mulher indígena, tanto no âmbito político, epistemológico, quanto no territorial”1515 Santos FVS, Ferreira MA. O corpo-território: feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas na Amazônia brasileira. [SYN]THESIS. 2022;15(1):30-44. DOI: https://doi.org/10.12957/synthesis.2022.69285
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. Esse conceito se insere nas bandeiras de luta das mulheres indígenas amazônicas a partir da formulação que recebe no Manifesto da Marcha das Mulheres Indígenas de 2019, “[...] como um conceito inegociável e inalienável”1515 Santos FVS, Ferreira MA. O corpo-território: feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas na Amazônia brasileira. [SYN]THESIS. 2022;15(1):30-44. DOI: https://doi.org/10.12957/synthesis.2022.69285
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No livro ‘Corpo-território mulher kalunga’ lançado em 2019, de autoria de Jaqueline Evangelista Dias, publicado pela Articulação Pacari, a autora descreve e visibiliza, em forma de imagens, o cotidiano, o habitar, o nutrir, o roçado, a existência da mulher Kalunga em seu território de vida. “A mulher Kalunga é uma caminhante. [...] O movimento das águas, da terra e dos céus está em seu corpo”1616 Dias JE. Corpo-território: mulher Kalunga. Goiás: Articulação Pacari; 2019.(1). Dias descreve os hábitos, os diferentes usos dos bens naturais e espaços do território no metabolismo socioecológico da reprodução social da vida.

A sabedoria e a força da mulher Kalunga são frutos do compromisso de vida que ela faz com o seu território. Ela sente o que o território oferece para a sua vida e como o seu corpo precisa agir para colher esse oferecimento. Ela coloca seu corpo em causa, em prontidão, para a sua existência e de suas filhas e filhos. A vitalidade do corpo da mulher Kalunga é sua expressão de confiança na vida, consciente de viver em um território provedor1616 Dias JE. Corpo-território: mulher Kalunga. Goiás: Articulação Pacari; 2019.(1).

É um corpo-território que se faz no coabitar, no caminhar e no beneficiar essa rica sociobiodiversidade que lhes constitui como corpo-território. A autora não expressa conflitos sociais, lutas e mobilizações coletivas por reconhecimento de uma identidade étnico-racial comum nem por direitos políticos. Em comum com os demais estudos, explicita a relação de codependência da existência dessas mulheres com os bens naturais que desfrutam por viverem nesses territórios e como componentes de sua identidade.

O estudo de Alves1717 Alves HVS. Contribuições decolonais e feministas ao debate geográfico sobre corpo e território: mulheres da Terra Indígena Kaxarari e Rio Guaporé e a defesa do corpo-território. Confins. 2023;53. DOI: https://doi.org/10.4000/confins.43017
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sobre a experiência das mulheres indígenas Kaxarari e Rio Gaporé na Amazônia problematiza o conceito geográfico de território à luz dos estudos decoloniais, problematiza violências colonialistas contra as mulheres indígenas e destaca a importância da organização do movimento das mulheres indígenas da Amazônia. Entre as principais demandas, listam ações relacionadas com o combate à violência, prevenção e combate ao uso de álcool e drogas e ações educativas.

[...] Pois diante da presença dos invasores de terras as mulheres costumam ser as vítimas preferenciais e sofrem todo tipo de violência (sexual, física e moral), havendo relatos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual1717 Alves HVS. Contribuições decolonais e feministas ao debate geográfico sobre corpo e território: mulheres da Terra Indígena Kaxarari e Rio Guaporé e a defesa do corpo-território. Confins. 2023;53. DOI: https://doi.org/10.4000/confins.43017
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O estudo de Oliva1818 Oliva VF. Do corpo-espaço ao corpo-território: o que a geografia feminista tem a dizer? Geoensaios. 2022;8(17):139-157. DOI: https://doi.org/10.22409/eg.v8i17.52313
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, intitulado ‘Do corpo-espaço ao corpo-território: o que a geografia feminista tem a dizer?’, problematiza o conceito de território construído pelo campo da geografia crítica, desde uma perspectiva feminista, bem como tece diálogos como os feminismos comunitários para abrir possibilidades de novos entendimentos no campo da geografia sobre como compreender a relação entre o corpo e o território por meio da noção emergente pelo feminismo comunitário e pela organização das mulheres de diferentes povos originários.

Haesbart1919 Haesbarth R. Do corpo-território ao território-corpo (da Terra): contribuições decoloniais. GEOgraphia. 2020;22(48). DOI: https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2020.v22i48.a43100
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, em ensaio intitulado ‘Do corpo-território ao território-corpo (da Terra): contribuições decoloniais’, faz uma sistematização do seu pensamento, em diálogo com estudos decoloniais, e sobre corpo-territórios, traz as trajetórias da construção dessa noção e reflete sobre a construção feminista decolonial da noção de corpo-território. É um texto que busca localizar e refletir sobre o tema dentro de uma perspectiva crítica e decolonial.

No âmbito do campo da sociologia rural, Coradin2020 Coradin C. Entre buvas e flores vermelhas: autorias das mulheres Sem Terra na ecologização da reforma Agrária no Paraná [tese]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2020. 239 p., em estudo sobre mulheres e agroecologia em territórios de reforma agrária, busca aproximações entre feminismos decoloniais, ecofeminismos e o feminismo camponês popular, para construir possibilidades de aproximações entre o conceito de corpo-território e a reprodução social da vida das mulheres camponesas agroecologistas. Ademais, analisa como as mulheres camponesas fortalecem, retecem e constroem a sua reconexão com seus corpos, coletivos comunitários e com as naturezas não humanas da Terra, por meio da agroecologia e promoção da segurança alimentar e nutricional.

O conjunto dessas experiências gera novas possibilidades para compreendermos diferentes expressões possíveis para a construção de corpos-territórios, sejam eles no campo, nas florestas, nas águas ou nas cidades - o que lhes caracteriza como semelhança, a sua estreita relação de reconexão com as naturezas não humanas da Terra e com coletivos comunitários, e o que lhes distancia, enquanto processos socioculturais heterogêneos.

Corpo-território, saúde e a construção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis

Com o que pudemos refletir até aqui, avançaremos agora na construção de possíveis relações entre construções de corpos-territórios e possíveis contribuições para pensarmos na construção de TSS. Para isso, refletimos sobre como essas experiências constroem a relação entre território, corpo e saúde. Nesse propósito, trazemos para o diálogo Haesbaert2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011., Cabnal1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89., Lugones2222 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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, Miñoso, Correal e Munhoz1010 Miñoso YE, Correal DG, Muñhoz KO. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca; 2014., entre outras autoras. Ao longo deste item, vamos tecendo conexões entre essas(es) autoras(es) com autoras(es) do campo da saúde1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. que podem nos auxiliar a compreender como essa noção do corpo-território pode nos ajudar na construção de TSS.

Haesbaert2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011. compreende que o território tem tanto um sentido material e funcional, de dominação e de apropriação, quanto um sentido simbólico, afetivo, ontológico cultural:

[...] o território, imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011.(21).

No âmbito da saúde, Machado, Martins, Souza e outros autores2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249. entendem que o território “[...] é a base sobre a qual as determinações sociais da saúde produzem efeitos transformadores”2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(244):

Verificamos, assim, a existência de um processo de reprodução social territorializado e condicionado por fatores determinantes ou pressupostos de sustentabilidade. Tais pressupostos conformam espaços sociotécnicos e determinam características do tecido social dos territórios que poderão ou não promover saúde, segundo a sua predominância, presença ou ausência2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(245).

É no território que a construção dos determinantes sociais da saúde2424 Garbois JA, Sodré F, Dalbello-araujo M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais em saúde. Saúde debate. 2017;41(112):63-76. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104201711206
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acontece, como processo dialógico e contextualizado, por meio dos agenciamentos sociais realizados pelos sujeitos que constroem esses espaços, articulando-se com os processos de territorialização e desterritorialização vivenciados nesses territórios.

Os territórios se fazem por meio de constituição de territorialidades. A territorialidade diz respeito a uma práxis social que os indivíduos e coletivos estabelecem em um dado território. A partir da sua interação social, econômica, política e cultural, a territorialidade está “intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar”2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011.(22). A territorialidade se constitui como uma imagem ou um símbolo acerca de um território, uma estratégia de poder e uma forma de dotar de significado a construção social de determinado território:

Ela é também uma dimensão imaterial, no sentido ontológico de que, enquanto ‘imagem’ ou símbolo de um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011.(22).

A partir de Deleuze e Guatarri, Haesbaert2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011. desenvolve o conceito de territorialização e desterritorialização no fluxo das entradas e saídas do território. Não há apenas um vetor de saída ou de entrada no território. Um processo de desterritorialização guarda em si um processo de reterritorialização. A territorialização implica um permanente processo de vir a ser e de um ente passado, movido por transformações constantes. O término de uma forma de territorialização inaugura a construção de uma nova territorialização. Nesse processo, é possível encontrar, portanto, continuidades e descontinuidades, sobreposições, hibridações e rupturas materiais e simbólicas. A velocidade e a direção desse vetor de transformação territorial dependerão das disputas de poder e dos agenciamentos coletivos e individuais dos atores que se inscrevem nesses espaços.

Todas essas relações são interseccionalizadas por desigualdades de gênero, como explicam Lugones2222 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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, Miñoso, Correal e Muñhoz1010 Miñoso YE, Correal DG, Muñhoz KO. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca; 2014., Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89.. Os processos de territorialização e desterritorialização implicam reproduções interseccionais, desigualdades e inequidades de gênero. O olhar feminista interseccional nos conduz à assunção da centralidade, conflitos de sexo-gênero, classe e raça como centralidade dos processos de territorialização e desterritorialização.

Na interseccionalidade de gênero, território e saúde, Cabnal33 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,44 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015;2(59):73-89. desenvolve o conceito de corpo-território das mulheres e de corpo-território da Terra para explicar como se dão processos de territorialização e desterritorialização de seus habitats e suas conexões com a saúde das mulheres e da Terra. Para elas, a violência é a categoria que opera o processo de colonização de seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra. É nos corpos das mulheres que se somatizam as violências de sexo-gênero e as violências contra a Terra por meio de longas gerações ancestrais. Elas entendem que violências contra o corpo-território da Terra produzem violências contra os corpos-territórios das mulheres; e que violências contra seus corpo-territórios reverberam em violências contra o corpo-território da Terra:

Pensamos no corpo como nosso primeiro território e reconhecemos o território em nossos corpos: quando os lugares em que habitamos são afetados, nossos corpos são afetados, quando nossos corpos são afetados, os lugares em que habitamos são violados99 Cruz DT, Vásquez E, Ruales G, et. al. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017.(7).

Dessa forma, entendem que os processos de territorialização e de desterritorialização, tais como compreendidos por Haesbaert2121 Haesbaert R. El mito de la desterritorialización: del fin del território a la multiterritorialidad. Tradução Marcelo Canossa. México: Siglo XXI; 2011., bem como a construção da determinação da saúde no plano territorial2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249., são atravessados por violências de sexo-gênero, inscritas nos corpos-territórios das mulheres e no corpo-território da Terra. A violência contra o corpo-território das mulheres e contra o corpo-território da Terra é a chave de leitura para entendemos processos de saúde a partir da perspectiva do corpo-território.

Por intermédio da conexão entre seus corpos, violências e a Terra, as mulheres indígenas manifestam adoecimentos de si mesmas e da Terra. Segundo elas, quando empreendimentos neoextrativistas colonialistas se instalam em seus territórios, eles intensificam violências, desigualdades e inequidades de sexo-gênero associadas à intensificação da expropriação e exploração da Terra. Isso impacta de forma violenta a vida das mulheres, assim como afeta o seu estado de saúde e a saúde desses ambientes.

Na busca por dialogar acerca da forma como essas mulheres entendem o processo de sua saúde e de seus ambientes, tecemos alguns diálogos com Canguilhem1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. para analisarmos como se dá o processo de construção da determinação social da saúde por meio dos corpos-territórios, para que, com isso, possamos tecer o diálogo com a construção dos TSS e com potenciais experiências de outras brasileiras, para além das experiências das mulheres indígenas de Abya Yala.

Canguilhem1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. discute a operacionalidade dos conceitos de corpo dado e corpo produzido, normalização e normatização, para pensarmos na saúde coletiva. Para refletir sobre essas construções, apoiaremo-nos no estudo desse autor para compreendermos os conceitos de corpo dado e produzido, corpo normalizado e normatizado, para refletirmos, na sequência, sobre a construção e a reconstrução desses corpos entendidos de forma extensa como corpos-territórios.

Em uma perspectiva crítico-social, a saúde é tematizada não como um estado de ausência de enfermidades ou ausência de fatores de vulnerabilização social mediante os condicionantes da determinação social da saúde. Como saúde, consideramos a capacidade de tolerar, recuperar-se, superar enfermidades e transformar condições adversas do meio1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009..

O organismo sadio, antes da conservação, procura realizar sua natureza em expansão, enfrentando os riscos que isso comporta. ‘Saúde é, pois, possuir uma capacidade de tolerância ou de seguridade que é mais do que adaptativa’2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(83).

Mais adiante, Canguilhem1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. refinará essa concepção de saúde, distinguindo a saúde como estado do corpo dado e a saúde como expressão do corpo produzido. O corpo dado está relacionado com o patrimônio genético, o ‘genótipo’; enquanto o corpo produzido diz respeito aos modos de vida de cada um, seja por escolha ou imposição, ou ainda, ao ‘fenótipo’2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.. Como corpo dado, o autor se refere à capacidade de o corpo adoecer e recuperar-se e, assim, tornar-se um corpo mais potente. Já a saúde do corpo produzido

[...] é uma garantia vivenciada duplamente como uma ‘garantia contra o risco e audácia para corrê-lo’. É o sentimento de poder, sempre mais, ultrapassar capacidades iniciais2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(84).

O corpo produzido é, portanto, essa capacidade de ação diante das situações da vida. Aqui é importante considerarmos a relação com a sociedade e com os determinantes sociais da saúde. Ou seja, a relação com as “[...] as condições de vida (falta de saneamento, alimentação etc.)”, sob as quais “[...] deveriam delinear-se estratégias de intervenção - políticas de transformação”2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(85).

A construção da saúde desse corpo produzido dialoga com a construção de agencia feminina, ou seja, a capacidade de ação das mulheres ante a dominação colonialista de gênero e da Natureza. Essa saúde se refere à capacidade de evocar aquelas representações sociais, espaços e práticas sociais que as tornam mais fortalecidas, autoconfiantes e emancipadas da dominação colonizadora patriarcal, como ser, saber e poder. A saúde do corpo-território produzido está associada à capacidade de resiliência e de resistência das mulheres com a Terra, já que ambos são codependentes e interagem entre si, por meio dos modos, meios de vida e subjetividades, que constituem a experiência dessas mulheres - modos de ser, conhecer e viver, que constituem e garantem um bem viver para elas, seus coletivos comunitários e a conservação dos bens naturais.

Para além do corpo dado e produzido, Canguilhem também diferencia a normalização e a normatização desses corpos, como relação com a saúde.

Canguilhem toma o conceito de norma enquanto norma biológica, entendendo a normatização enquanto possibilidade de criação de normas que, mais que adaptação, permita a expansão da vida2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(84):

A normalização, define ele, é a expressão de exigências coletivas cujo conjunto define, em determinada sociedade histórica, seu modo de relacionar sua estrutura, ou talvez suas estruturas, com aquilo que ela considera como sendo seu bem particular, mesmo que não haja uma tomada de consciência por parte dos indivíduos2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(85).

Dessa forma, normalizar a saúde das populações significa encaixá-las, fixá-las dentro de um normal pré-fixado por uma decisão normativa; do que é normal e do que é anormal ou patológico. Ao refletirmos sobre estudos decoloniais, podemos considerar a hegemonia do processo colonizador como processo de imposição de uma normalização eurocentrada, branca e patriarcal, que se impôs sobre as normas vividas pelos povos colonizados. Essa normalização colonialista determinou seus valores e práticas sociais ao colonizado, descaracterizando o grupo social dominado como ser, saber e poder social. Ao normalizar, portanto, coloniza e ao colonizar desumaniza.

De acordo com Ramminger2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97., Canguilhem questiona o processo de normalização, pois, para ele,

[...] a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(80).

Essa atividade normativa é compreendida como a capacidade dos sujeitos criarem normas:

Assim como a normalidade diz respeito tanto à racionalização das normas da sociedade como à maneira específica de cada sociedade se posicionar como sujeito de suas normas, a normatividade é entendida como a capacidade não só subjetiva, mas também social, de incorporação de novas normas2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(86).

Normatividade é, portanto, a capacidade não se deixar conduzir ou se encaixar em uma dada normalização que constrange a manifestação da vida. É a capacidade de refutar, adaptar, incorporar e/ou de criar outras normas, mais adaptadas e ajustadas à manifestação da vida. A normatização permite a incorporação, a rejeição, a adaptação e a transformação de normas, para que consigam melhor se ajustar e permitir a manifestação da vida. O corpo produzido, dessa forma, é entendido como aquele que se constrói como normatividade que se descoloniza, como ser, saber e poder. A saúde está ligada a essa capacidade de se construir, de se adaptar, bem como de criar e transformar as normas, tornando-as mais potentes na manifestação da vida.

Com relação ao tema em discussão deste texto, podemos considerar a normatividade como a capacidade de agenciamento individual e coletivo das mulheres perante a normalização colonialista. Esse agenciamento feminino cria e recria normas que remetem a modos de vida e subjetividades individuais e coletivas que transgridem e transformam o que lhes coloniza, como ser, saber e poder feminino múltiplo, e lhes possibilita maior expressão da manifestação da vida. Evocam aquilo que lhes caracteriza enquanto grupo social, grupo étnico-racial distinto, baseados em determinadas práticas sociais, meios e modos de vida, que cultivam um tipo de bem viver comum, ajustado à conservação dos ecossistemas locais. Com essas representações e práticas sociais, elas questionam desigualdades e iniquidades de sexo-gênero, classe e raça, acionam práticas sanadoras de seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra. Tecem assim a organização coletiva da teia da vida. Isso amplia sua capacidade de constituição de uma nova normatividade, com condições mais potentes para impulsionar a construção de resistências coletivas diante da normatização colonialista de seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra.

A perda de saúde de seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra pode, assim, possibilitar

[...] uma experiência de inovação positiva do ser vivo, e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo’, não é ‘uma variação da dimensão da saúde’, mas uma ‘nova dimensão da vida’2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(82).

A recuperação da saúde, para Canguilhem, acontece quando se consegue restabelecer uma nova normatividade, capaz de criar para si outras normas, por vezes superiores às antigas, no sentido de que tenham maior plasticidade ante a imprevisibilidade da vida. Essa restauração da normatividade não é anacrônica, “[...] um retorno ao que se era antes: ‘a vida não conhece a reversibilidade’, mas ‘admite reparações que são inovações fisiológicas’’’2525 Ramminger T. Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine. 2008;4(2):68-97.(82-83). Ademais, para além de reparações fisiológicas de seus corpos-territórios, também reparações culturais, políticas, jurídicas, econômicas, sociais e ambientais.

Refletimos que esse sentido de ‘capacidade de manifestação e de reparação de vida’, que está presente nas formulações feministas comunitárias, dialoga com os determinantes sociais da saúde, bem como com a formulação de saúde elaborada por Canguilhem1313 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009., que precisa ser levada em consideração na formulação de contribuições do conceito de corpo-território para pensarmos na construção de TSS.

Em revisão de literatura sobre estudos que abordem a temática de TSS, Machado, Martins, Souza e outros autores2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249., em estudo intitulado ‘Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial’, situam TSS como

[...] espaços relacionais e de pertencimento onde a vida saudável é viabilizada, por meio de ações comunitárias e de políticas públicas, que interagem entre si e se materializam, ao longo do tempo, em resultados que visam a atingir o desenvolvimento global, regional e local, em suas dimensões ambientais, culturais, econômicas, políticas e sociais2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(246).

Para isso, destacam a importância da construção de redes de governança territorial,

[...] de modo a assegurar mudanças no modo de produção e reprodução social, impulsionando o desenvolvimento sustentável e cooperativo local, regional e global2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(247).

Nesse entendimento, os TSS são, portanto, “[...] fruto de uma dialética entre mudanças nas relações de produção e de vida em suas diferentes escalas”2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(247).

O estudo sobre a experiência do Observatório dos Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina (OTSS)2626 Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019., realizado no litoral sul do estado do Rio de Janeiro e no litoral norte do estado de São Paulo, território de conservação da Mata Atlântica, evidencia as proposições acima referidas. O livro relata como os processos de organização social foram articulados com instituições públicas, em especial, com a Fundação Oswaldo Cruz, constituindo uma governança territorial em prol do desenvolvimento sustentável. Essa governança territorial definiu de forma participativa as estratégias e as prioridades de ação na perspectiva da materialização do desenvolvimento sustentável no plano territorial.

É o território e a territorialidade, que permitirão, a partir do diálogo entre saberes e práticas exercidas sobre eles, a reconstituição das categorias sustentável e saudável2626 Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019.(35).

Entre as prioridades de ação, listaram-se: o fortalecimento e a qualificação do Fórum das Comunidades Tradicionais; a defesa do território mediante assessoria jurídica; as mobilizações e articulações estratégicas; a produção de uma base de dados georreferenciada sobre o território, incluindo metodologias participativas e cartografia social; o saneamento ecológico; a educação diferenciada; a incubadora de tecnologias sociais; a agroecologia; o turismo de base comunitária; a avaliação e o monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 das Nações Unidas; e a articulação com redes de solidariedade internacional.

Para cada uma das prioridades listadas de forma participativa, foram construídas ações comuns, resultando em diferentes experiências que potencializam a construção dos TSS da Bocaina.

Construir territórios sustentáveis e saudáveis exige uma apropriação crítica pelos sujeitos, a partir da ecologia de saberes e por meio de uma pedagogia da autonomia, resultando em governança local solidária, produção sustentável e políticas efetivas de cidadania2323 Machado JMH, Martins VJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com Ciências Saúde. 2017;28(2):243-249.(144).

Para Gallo2727 Gallo E. Territórios sustentáveis e saudáveis da bocaina: desafios para agendas territorializadas de desenvolvimento sustentável. In: Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019. p. 31-43.(38-39)

o conceito de territórios sustentáveis, mais que apontar uma situação objeto, precisa se pautar pelo empoderamento e produção de autonomia, equidade e sustentabilidade, buscando construir cartografias epistemológicas contra-hegemônicas derivadas do cotidiano reiventado criticamente.

Como territórios saudáveis, conceitua os

[...] ‘modos de andar a vida’, que se constroem na relação com o outro, promovendo a capacidade dos indivíduos e coletividades tomar decisões sobre a saúde, as relações sociais e sobre a vida em três dimensões: clínica, sanitária e ético-moral2727 Gallo E. Territórios sustentáveis e saudáveis da bocaina: desafios para agendas territorializadas de desenvolvimento sustentável. In: Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019. p. 31-43.(40).

De acordo com esse autor, as respostas aos desafios das convergências entre saúde, ambiente e desenvolvimento

[...] vêm sendo buscadas por experiências que procuram adotar abordagens promotoras de justiça socioambiental, equidade, autonomia e sustentabilidade, a partir da governança local comunicativo-estratégica2727 Gallo E. Territórios sustentáveis e saudáveis da bocaina: desafios para agendas territorializadas de desenvolvimento sustentável. In: Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019. p. 31-43.(40).

Para isso, as agendas e os pactos territoriais devem atuar em três dimensões: inserção da economia local em um modo de desenvolvimento sustentável; garantia dos direitos à cidadania, que assegurem um padrão mínimo de equidade e qualidade de vida; e instituição de mecanismos de governança e gestão participativa e estratégica do território.

Neste estudo, questões de equidade de gênero, diversidades sexuais e étnico-raciais foram tematizadas em propostas metodológicas de avaliação da promoção da saúde e desenvolvimento sustentável2828 Setti F, Gallo E. Avaliação em promoção da saúde e desenvolvimento sustentável: proposta de abordagem e tecnologias de análise. In: Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty: Fiocruz; 2019. p. 44-58.. Contudo, ao analisar o conjunto das ações executadas, identificamos ações no âmbito da desconstrução de uma cultura racista, por meio da assessoria jurídica e do fortalecimento do Fórum das Comunidades Tradicionais, bem como por intermédio da educação indígena e quilombola. Entretanto, não foi possível identificar ações que tenham conseguido expressar, debater e analisar desigualdades e diversidades de sexo-gênero e suas intersecções com raça nas demais atividades realizadas. Isso que nos leva a refletir sobre possíveis invisibilizações e reproduções de desigualdades de sexo-gênero nessas experiências.

Mediante tais dados e relatos analíticos de experiências, considerando o que já foi exposto neste texto, ou seja, a importância e o protagonismo das mulheres na construção de experiências que promovem a saúde de seus corpos-territórios e do corpo-território da Terra, destacamos a importância de que estratégias, ações, programas e governanças que visem à promoção de TSS transversalizem sexo-gênero como categoria interseccional, e não específica, no conjunto das estratégias, ações e governança territorial.

As experiências do feminismo comunitário1010 Miñoso YE, Correal DG, Muñhoz KO. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca; 2014., dos ecofeminismos populares latino-americanos88 Svampa M. Feminismos del Sur y ecofeminismo. Nueva Sociedad. 2015;(256):127-131., da organização das mulheres indígenas amazônicas1515 Santos FVS, Ferreira MA. O corpo-território: feminismos decoloniais, saúde e estratégias dos movimentos de mulheres indígenas na Amazônia brasileira. [SYN]THESIS. 2022;15(1):30-44. DOI: https://doi.org/10.12957/synthesis.2022.69285
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, das mulheres rurais agroecologistas brasileiras2020 Coradin C. Entre buvas e flores vermelhas: autorias das mulheres Sem Terra na ecologização da reforma Agrária no Paraná [tese]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2020. 239 p.,3030 Siliprandi E. Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; 2015., das mulheres em situações de conflitos e injustiças socioambientais3131 Guevara MA, Moreira E. Conflictos socioambientales: la lucha por la tierra y el territorio en el sudeste del Pará. Ambient Soc. 2020;(23):2-23. DOI: https://doi.org/10.1590/1809-4422asoc20180252r1vu2020L6AO
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, ou ainda das mulheres que enfrentam desastres ambientais3232 Oliveira S, Portella S, Katona LL. Interseccionalidade e rupturas dos modos de vida pelos rompimentos de barragem: reflexões a partir de uma mídia em aderência. Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2021;(15):319-332. DOI: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i2.2326
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, evidenciam como elas assumem papel central na mobilização coletiva contra impactos, conflitos e injustiças socioambientais. Nesses processos, elas enfrentam inúmeras violências de sexo-gênero, sobrecarregam-se de trabalhos produtivos, sociopolíticos e domésticos e, ainda assim, constroem resistência coletiva, que fortalece a saúde de seus corpos-territórios, de seus coletivos comunitários, bem como a saúde do corpo-território da Terra. Por meio dessas ações, elas atuam diretamente na produção da resiliência cotidiana e coletiva no plano territorial. Mantêm e ampliam capacidades de andar a vida, de manifestar a vida, desde seus corpos-territórios e com o corpo-território da Terra.

Assim, destacamos a importância de visibilizar as ações realizadas pelas mulheres; fortalecer suas formas de organização social; educar para a descolonialidade, por meio da desconstrução interseccional de desigualdades, iniquidades de sexo-gênero, classe e raça; descontruir violências contra o corpo-território das mulheres e contra o corpo-território da Terra; promover maior igualdade na divisão sexual do trabalho, problematizando as duplas, triplas jornadas de trabalho feminino; entre outros temas. Isso é fundamental para avançarmos nos ODS, Agenda 2030 e com o bem viver desses coletivos comunitários. Quando conseguimos olhar para essas experiências dessa forma, podemos pensar em ações que fortaleçam a participação, a capacidade de agencia e organização sociopolítica das mulheres na governança territorial, potencializando assim a construção dos TSS.

Considerações finais

Experiências do feminismo comunitário demonstram como as mulheres constroem ações que rompem com o colonialismo patriarcalizado e, ao mesmo tempo, recuperam de violências contra seus corpos-territórios e contra o corpo-território da Terra. Pensadoras ecofeministas argumentam que existe um marco opressor comum que domina, por meio da violência, exploração e expropriação patriarcal, tanto os corpos das mulheres quanto o corpo da Terra. Para elas, a violência contra a Terra repercute em violência contra as mulheres e vice-versa.

A saúde, vista por esse olhar, está ligada à construção dos determinantes sociais e é entendida enquanto capacidade de andar a vida; está ligada à capacidade dar limite ao que constrange a manifestação da vida, bem como implica a capacidade de construir resiliência e resistência individual e coletiva. Ao ser transversalizada com gênero e raça, liga-se à capacidade das mulheres se descolonizarem como ser, saber e poder.

As experiências analisadas neste estudo evidenciam a relevância do protagonismo feminino na construção, manutenção e ampliação de experiências e redes que restituem, mantêm e ampliam a resiliência e a resistência individual e coletiva, que promovem a saúde humana e ambiental tanto dos corpos-territórios das mulheres quanto do corpo-território da Terra. Assim, consideramos importante visibilizar, valorizar e analisar de modo interseccional as contribuições que o protagonismo das mulheres assume na construção dos TSS.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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