Participação social no ciberespaço: o caso da atenção primária no Twitter em contexto de pandemia

Social participation in cyberspace: the case of Primary Health Care on Twitter amid pandemics

Arthur Lopes Gabriela Lamego Sobre os autores

RESUMO

O estudo analisou postagens no Twitter sobre Atenção Primária à Saúde (APS) a fim de identificar os problemas e as potencialidades referidos pelos usuários. Trata-se de uma pesquisa exploratória, qualitativa e observacional não participante, em que foram coletados 135.855 tweets publicados entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021, analisados por meio da Mineração de Textos. Como resultado, do corpus analisado, foram identificadas quatro categorias temáticas não exclusivas, nomeadamente: Acessibilidade e Cobertura; Prestação de Serviços; Gestão e Recursos e Organização do SUS. Cinco modos de participação foram também identificados no debate sobre a APS: a denúncia, o compartilhamento de experiências positivas, a call for action, a accountability e a conscientização (awareness). Na especificidade da pandemia, críticas sistemáticas foram apresentadas relacionadas com as quatro dimensões analisadas. Apesar da existência dos problemas, a maior parte das denúncias não foram feitas de forma a explicitar um SUS-problema, mas um SUS-real. Reitera-se que o ciberespaço precisa ser devidamente apreendido enquanto lócus de investigação, pois ele é apropriado pelas pessoas para expressar suas opiniões e participar da vida cívica avaliando as políticas e os diversos componentes do sistema de serviços de saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Participação social; Atenção Primária à; Saúde; Mídias sociais; Comunicação em saúde.

ABSTRACT

The study analyzed Twitter posts about Primary Health Care (PHC) to identify the problems and strengths mentioned by users. It is a qualitative, non-participant observational, and exploratory research, in which 135.855 tweets published between January 2020 and December 2021 were collected and analyzed using Text Mining, a methodological procedure similar to Content Analysis. As a result, four non-exclusive thematic categories were identified from the analyzed corpus: Accessibility and Coverage, Service Delivery, Management and Resources, and SUS Organization (referring to the Brazilian Unified Health System). Five modes of participation in the debate on PHC were also identified: denunciation, sharing of positive experiences, call for action, accountability, and awareness. In the specificity of the pandemic, systematic criticisms were presented related to the four analyzed dimensions. Despite the problems, most of the complaints were not made in a way that explicitly highlighted a problematic SUS, but a real SUS. It is emphasized that cyberspace needs to be properly understood as a locus of investigation, as it is used by people to express their opinions and participate in civic life by evaluating policies and the various components of the health services system.

KEYWORDS
Social participation; Primary Health Care; Social media; Health communication.

Introdução

A participação social, em sua concepção mais ampla, está associada à ação política da população nas mais diversas questões da vida pública que lhe sejam de interesse11 Escorel S, Moreira MR. Participação social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 853-83.. No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), ela é regulada por intermédio da Lei nº 8.142/90 e se dá por meio das Conferências e Conselhos de Saúde. Contudo, a literatura aponta que as instâncias colegiadas formais e informais apresentam inúmeros desafios para sua efetiva realização, os quais repousam, sobretudo, na lógica representacional, no esvaziamento da sua importância e nas disputas políticas entre os atores envolvidos22 Gomes JFF, Orfão NH. Desafios para a efetiva participação popular e controle social na gestão do SUS: revisão integrativa. Saúde debate. 2021;45(131):1199-213. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202113118
https://doi.org/10.1590/0103-11042021131...
.

Ao partir de uma leitura fenomenológica33 Alves PC. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócio-antropológicos da doença: breve revisão crítica. Cad Saúde Pública. 2006;22(8):1547-54. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000800003
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
, se nas estruturas institucionais de participação social a população se depara com obstáculos no exercício da sua agência cívica, há de se esperar que meios alternativos, como aqueles advindos do ciberespaço, passem a ser usados para o controle social, particularmente diante de um contexto sócio-histórico no qual as mídias de massa afetam cada vez mais a vida cotidiana, tanto do ponto de vista político quanto sócio-cultural44 Dahlgren P, Alvares C. Political participation in an age of mediatisation. Javnost - The Public. 2013;20(2):47-65. DOI: https://doi.org/10.1080/13183222.2013.11009114
https://doi.org/10.1080/13183222.2013.11...
.

No senso comum, designações atribuídas à web como ‘terra de ninguém’ são frequentes e consequentes das disrupções provocadas nos meios de produção e regulação da distribuição de informações, as quais culminam em novos modos de comunicação. Apesar de também possuir desafios próprios relacionados com a lógica de plataforma e o capitalismo de big data55 Souza RBR. A comunicação contra-hegemônica no capitalismo digital: limites e contradições. Liinc rev. 2020;16(1):e5133. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v16i1.5133
https://doi.org/10.18617/liinc.v16i1.513...
, o ciberespaço propicia ambientes nos quais as pessoas podem não só estabelecer diálogo direto com diferentes atores sociais como também expor suas opiniões acerca dos mais variados temas.

Evidências nesse sentido já foram apontadas com relação ao Twitter66 Haman M. The use of Twitter by state leaders and its impact on the public during the COVID-19 pandemic. Heliyon. 2020;6(11):e05540. DOI: https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e05540
https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e...
, principalmente no que tange à pandemia da covid-19, quando essa plataforma foi apropriada para discutir sobre temas como as vacinas77 Penteado CLC, Ferreira MAS, Pereira MA, et al. #Vacinar ou não, eis a questão! As emoções na disputa discursiva sobre a aprovação das vacinas contra a Covid-19 no Twitter. Política Soc. 2021;20(49):104-33. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.85145
https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.8...
, a hidroxicloroquina88 Araújo RF, Oliveira TM. Desinformação e mensagens sobre a hidroxicloroquina no Twitter: da pressão política à disputa científica. AtoZ: novas práticas em informação e conhecimento. 2020;9(2):196-205. DOI: https://doi.org/10.5380/atoz.v9i2.75929
https://doi.org/10.5380/atoz.v9i2.75929...
, os distanciamento e o isolamento social99 Aquino ACLT, Santos AG, Dubugras MTB, et al. Estudo quali-quantitativo sobre a percepção de usuários do Twitter sobre a adoção das medidas de quarentena, de distanciamento e de isolamento sociais, durante a pandemia da COVID-19. BIS - Bol Inst Saúde [Internet]. 2020 [acesso em 2024 set 24];21(1):173-85. Disponível em: https://periodicos.saude.sp.gov.br/bis/article/view/36740
https://periodicos.saude.sp.gov.br/bis/a...
, o movimento em torno do ‘#fiqueemcasa’1010 Pessanha GRG, Fidelis, TO, Freire CD, et al. #Fiqueemcasa: análise de sentimento dos usuários do twitter em relação ao covid19. HOLOS. 2020;5:1-20. DOI: https://doi.org/10.15628/holos.2020.11147
https://doi.org/10.15628/holos.2020.1114...
e sobre o próprio SUS1111 Silva H, Andrade E, Araújo D, et al. Sentiment analysis of tweets related to sus before and during COVID-19 pandemic. IEEE Latin America Transactions. 2022;20(1):6-13. DOI: https://doi.org/:10.1109/TLA.2022.9662168
https://doi.org/:10.1109/TLA.2022.966216...
; criticando ou endossando as ações e omissões de agentes públicos, compartilhando (des)informações, dúvidas, opiniões e experiências vividas; ou defendendo/criticando a ciência e a saúde pública.

Por essa razão, tomou-se o Twitter (agora X) como lócus de análise desta investigação, que tem como objetivo analisar as opiniões compartilhadas na plataforma sobre a Atenção Primária à Saúde (APS) no âmbito da pandemia de covid-19 a fim de identificar os problemas e as potencialidades referidos pelos usuários. A plataforma será mencionada como Twitter, pois assim era denominada (em termos de funcionamento e governança) no período de realização desta pesquisa.

A escolha por analisar o tema da APS se dá em razão da sua importância, reiterada ante a pandemia da covid-19, por sua capacidade de desafogar o sistema de saúde em momentos de crise sanitária e de diminuir as iniquidades em saúde1212 Sousa AJM, Torres AA, Araújo MM, et al. Atenção primária à saúde e covid-19: uma revisão integrativa. Cad ESP [Internet]. 2020 [acesso em 29 out 2022];14(1):45-52. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/313
https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php...
. Vale destacar que esta é também uma das contribuições das investigações produzidas no ciberespaço: o que está sob análise é a opinião dos usuários produzida e compartilhada em linguagem e conteúdo que lhes pareceram mais adequados.

Material e métodos

Esta é uma pesquisa de caráter qualitativo, observacional não participante e exploratório. Como aponta Minayo1313 Minayo MCS, Sanches O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad Saúde Pública. 1993;9(3):237-48. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300002
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199300...
, há de se considerar que o objeto requer escolhas metodológicas que consigam dar conta de sua análise, que, neste caso, envolve grande quantidade de conteúdo textual. Por essa razão, o procedimento metodológico adotado foi a Mineração de Textos (MT), que é similar à análise de conteúdo1414 Yu CH, Jannasch-Pennell A, DiGangi S. Compatibility between text mining and qualitative research in the perspectives of grounded theory, content analysis, and reliability. The Qualitative Report. 2011;16(3):730-44. DOI: https://doi.org/10.46743/2160-3715/2011.1085
https://doi.org/10.46743/2160-3715/2011....
, mas assistida por algoritmos pertencentes ao Processamento de Linguagem Natural.

Coleta de dados

Realizada mediante o uso do módulo Snscrape, em linguagem de programação Python, do período compreendido entre 1º de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2021, utilizando múltiplos descritores: esf AND sus, aps AND saúde, atenção primária AND sus, posto AND saúde, postinho AND saúde, e unidade básica AND saúde.

Como resultado do procedimento de coleta, 142.815 tweets passaram a compor o corpus de análise. Ao remover as duplicatas com base em seu conteúdo textual - haja vista a ocorrência de retweets (reproduções literais) -, tem-se um total de 135.855 tweets.

Codificação dos dados

Esta etapa foi assistida por computador mediante a técnica conhecida como modelagem de tópicos, por meio do algoritmo BERTopic1515 Grootendorst M. BERTopic: Neural topic modeling with a class-based TF-IDF procedure. arXiv (Cornell University). 2022;1:arXiv:2203.05794v1. DOI: https://doi.org/10.48550/arXiv.2203.05794
https://doi.org/10.48550/arXiv.2203.0579...
. Ao identificar os padrões lexicais e semânticos de uma dada coleção de textos, o algoritmo consegue agrupar documentos textualmente similares em ‘tópicos’, de maneira a possibilitar compreender o conteúdo textual do corpus.

Como resultado da modelagem, 857 tópicos foram mapeados. A primeira avaliação foi screening-like, em nível dos termos mais frequentes, em que se constatou a ocorrência de diversos tópicos praticamente idênticos. Por essa razão, o módulo ‘reduce topics’ do modelo foi usado para agrupá-los, resultando em 123 tópicos (manteve-se a numeração original). Subsequente à identificação dos tópicos, tem-se a etapa da validação (interna e externa), cujo procedimento realizado refere-se a uma adaptação daquele proposto por Ylä-Anttila, Eranti e Kukkonen1616 Ylä-Anttila T, Eranti V, Kukkonen A. Topic modeling for frame analysis: A study of media debates on climate change in India and USA. Glob Media Commun. 2022;18(1):91-112. DOI: https://doi.org/10.1177/17427665211023984
https://doi.org/10.1177/1742766521102398...
.

Tal qual ilustrado na figura 1, a validação interna foi feita por meio da busca dos ‘termos mais frequentes’ de cada tópico ‘no texto dos tweets’ que a eles foram atribuídos, tendo apenas um tópico descartado. Finalmente, tem-se uma amostra com 22.083 tweets selecionados, codificados provisoriamente em 122 tópicos.

Figura 1
Fluxograma do procedimento metodológico da pesquisa

A etapa subsequente foi a da validação externa: os termos do tópico correspondem ao conteúdo dos documentos que lhe foram atribuídos? Todos os documentos etiquetados por seus respectivos tópicos são semelhantes e versam sobre o assunto comum subjacente aos termos que os descrevem?

Destarte, foi feita uma subamostra (n = 2.063 tweets) contendo aproximadamente 34% dos tweets mais representativos de cada tópico (indicados pelo BERTopic) e com probabilidade máxima de atribuição (100%), os quais foram sistematicamente analisados via leitura manual. Como resultado, a amostra foi codificada em 58 tópicos, apresentados no quadro 1. Nos casos em que os tópicos designavam tweets que tratavam de um mesmo assunto geral, houve agregação. As recomposições no tamanho do corpus e das amostragens estão sintetizadas na figura 2.

Quadro 1
Relação dos temas, tópicos e descrições

Figura 2
Esquematização das recomposições do corpus e das amostragens

Categorização temática

Todo o processo da modelagem de tópicos (codificação indutiva dos dados) culminou em códigos latentes do corpus (tópicos) e indicaram que a conversação se deu em torno de alguma dimensão da avaliação de políticas de saúde ou componentes de serviços de saúde. Por essa razão, a etapa da categorização temática (disposta no quadro 1) foi orientada pelo referencial teórico de Pinto, Vieira-da-Silva e Baptista1717 Pinto ICM, Vieira-da-Silva LM, Baptista TVF. Ciclo de uma política pública de saúde: problematização, construção da agenda, institucionalização, formulação, implementação e avaliação. In: Almeida-Filho N, Paim J, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 69-82. e Souza e Bahia1818 Souza LEPF, Bahia L. Componentes de um sistema de serviços de saúde: população, infra-estrutura, organização, prestação de serviços, financiamento e gestão. In: Almeida-Filho N, Paim J, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 49-68..

Desse modo, os termos que descrevem cada um dos 58 tópicos válidos foram usados para compor um dicionário, por meio do qual classificaram-se os tweets coletados em quatro categorias temáticas não exclusivas, nomeadamente: Acessibilidade e Cobertura; Prestação de Serviços; Gestão e Recursos; Organização do SUS.

É importante salientar que este artigo não se propõe a qualificar a veracidade daquilo que foi narrado pelos usuários, mas compreender suas opiniões e percepções vis-à-vis a APS. Os tweets são reconhecidos aqui como narrativas1919 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciênc saúde coletiva. 2014;19(4):1065-76. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.12052013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
, e como tais, é reconhecido seu caráter performático, relacional e interacional.

Considerações éticas

De acordo com os termos de privacidade, consentido e assinado por todos os usuários no momento do registro da plataforma estudada, “o Twitter é público e os Tweets são imediatamente visíveis e pesquisáveis por qualquer pessoa em todo o mundo”2020 Twitter [Internet]. São Francisco: X Corp; 2006. Política de Privacidade; 2018 maio 25 [acesso em 2023 abr 20]. Disponível em: https://twitter.com/pt/privacy/previous/version_14
https://twitter.com/pt/privacy/previous/...
. Contudo, é reconhecido que desigualdades em termos de literacia podem culminar na não observância dos termos pelos usuários.

Dessa forma, houve um cuidado ético expressado pela garantia do anonimato dos perfis dos usuários da plataforma, em que a coluna contendo esse dado foi excluída do dataset antes da análise, a qual voltou-se exclusivamente para o conteúdo textual dos tweets.

Resultados e discussão

A partir da análise da conversação feita pelos usuários em torno das experiências que foram compartilhadas no Twitter, vividas no ‘vai e vem’ desses atores nos serviços de APS, e dos próprios interesses e disposições associados ao contexto de produção de narrativas sobre o SUS em meio à pandemia, identificaram-se cinco modos de produção narrativa. São eles: a denúncia, o compartilhamento de experiências positivas, a call for action, a accountability e a conscientização (awareness). A seguir, as condições de ocorrência dos temas tratados pelos usuários serão apresentadas e discutidas.

Acessibilidade e Cobertura

Sobre o tema da Acessibilidade e Cobertura, os usuários compartilharam dificuldades associadas às longas filas para agendamento de consultas e atendimento, culminando em um tempo de espera injustificável. Tais críticas já são bem conhecidas e foram documentadas por estudos anteriores sobre a percepção/satisfação dos usuários em serviços da APS/Estratégia Saúde da Família2121 Marin MJS, Marchioli M, Moracvick MYAD. Fortalezas e fragilidades do atendimento nas Unidades Básicas de Saúde tradicionais e da Estratégia de Saúde da Família pela ótica dos usuários. Texto e Contexto Enferm. 2013;22(3):780-8. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000300026
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201300...
,2222 Moreira DC, Bispo Júnior JP, Nery AA, et al. Avaliação do trabalho dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) por usuários, segundo os atributos da atenção primária. Cad Saúde Pública. 2021;36(12):e00031420. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311XER031420
https://doi.org/10.1590/0102-311XER03142...
e pela literatura que se debruça sobre o noticiamento do SUS-problema2323 Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2013;21(1):61-76. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702013005000012
https://doi.org/10.1590/S0104-5970201300...
,2424 Rangel-S ML, Lamego G, Paim M, et al. SUS na mídia em contexto de pandemia. Saúde debate. 2022;46(134):599-612. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213401
https://doi.org/10.1590/0103-11042022134...
.

Como pontua Paim2525 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(6):1723-8. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
, a despeito dos desafios de ordem política e socioeconômica, as falhas relacionadas com acessibilidade, cobertura e prestação de serviços são a face mais visível dos problemas do SUS. Com efeito, é justamente esse SUS resumido à assistência e aos problemas de acesso que os usuários tentaram contrapor (awareness):

cara que isso o SUS não se resume à consulta e posto de saúde não [,] é um sistema que aplica todas as vacinas necessárias praticamente em toda a população [e] cobre o caríssimo tratamento de diabetes [,] de câncer [.] [N]ão fala isso pq sla a fila do upa demora não.

Outrossim, houve também relatos de situações de violência verbal e física vividas, sobretudo, por trabalhadoras da enfermagem, motivadas pela recusa ao uso da máscara nos serviços (que se tornaram obrigatórias) ou pela frustração de não poder escolher o imunizante de interesse e ter que se vacinar com aquele disponível na unidade (esses usuários foram nomeados de ‘sommelier das vacinas’).

Em face da dificuldade de encontrar na APS respostas às necessidades de saúde-doença-cuidado mais imediatas, alguns usuários buscaram setores não formais de cuidado, como neste relato que trata da disponibilidade de oferta de atendimento em saúde mental:

outra coisa: com [número] anos eu percebi sintomas de transtorno de ansiedade e depressão e fui num posto de saúde procurar psicólogo a próxima vaga era pra dali a meses imagina uma pessoa em sofrimento psíquico esperando meses por ajuda quem me ajudou foi meu centro espírita.

Além disso, com a pandemia, insurge um movimento transitório de êxodo urbano, das capitais para as regiões mais interioranas e rurais, como aponta um usuário: “tenho visto vários amigos queridos de salvador indo ‘quarentenar’ no vale do capão [...]”. Todavia, a resposta ao ‘pânico urbano’2626 Foucault M. O nascimento da medicina social. In: Foucault M. A Microfísica do poder. Rio: Graal; 1979. p. 79-98 responsável por esse deslocamento desconsiderou as desigualdades relacionadas com cobertura e acessibilidade, aumentando a demanda nessas regiões para além daquela da própria população residente. No esforço de conscientizar, ele afirma:

[...] vale do capão que não tem nem posto de saúde o mais próximo fica a [número] km de estrada de terra em palmeiras os dez leitos de uti mais próximos a [número] km em seabra respeitem a população nativa porra.

O acesso ao serviço de saúde foi interceptado também por problemas relacionados com o acolhimento prestado pelos trabalhadores de saúde e à organização do serviço. Ante a medicalização da vida, autoras como Lamego e Moreira2727 Lamego DTC, Moreira MCN. O diagnóstico como “passaporte” para reconhecimento e significação das experiências na dislexia. Physis. 2019;29(3):e290311. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290311
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201929...
pontuam que o diagnóstico médico atua como um ‘passaporte’ para reconhecimento e significação da enfermidade dos indivíduos perante o Estado. Ainda que colocados como prioritários na política, no serviço, desvelam-se as tensões advindas da atuação iatrogênica da instituição (unidade de saúde), como enunciado no relato de um usuário:

caso real: pessoa hipertensa se trata num posto de saúde onde todos a conhecem ela vai ao posto tomar vacina pfizer dizem que precisa de um atestado ela: ‘eu me trato aqui’ [...] ‘ok, mas precisa passar em consulta pra pegar o atestado’ [...] ‘e qdo tem consulta’ [...] ‘não tem tchau’.

Por outro lado, destacam-se aqui os tweets em que se evidenciam um SUS atuante2424 Rangel-S ML, Lamego G, Paim M, et al. SUS na mídia em contexto de pandemia. Saúde debate. 2022;46(134):599-612. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213401
https://doi.org/10.1590/0103-11042022134...
, uma APS resolutiva, orientada para a família e para a comunidade. Em posição de defesa ao SUS, uma usuária pontua: “quando o posto de saúde ficava próximo da rua onde moro o médico do sus vinha aqui em casa atender toda minha família entende a diferença”. Em movimento de antítese à construção do SUS-problema, outro usuário destaca o componente da disponibilidade:

Fui no postinho marcar um ginecologista fui hoje a tarde marquei pra amanhã cedo em plano de saúde normalmente eu esperava horrores [...] proibido falar mal do sus na minha frente sujeito à paulada.

Nesse sentido, mesmo diante dos efeitos da pandemia sobre a acessibilidade aos serviços de saúde, os esforços para a garantia do acesso foram evidenciados, mobilizando assim o sentido do ‘SUS que vai à luta’2424 Rangel-S ML, Lamego G, Paim M, et al. SUS na mídia em contexto de pandemia. Saúde debate. 2022;46(134):599-612. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213401
https://doi.org/10.1590/0103-11042022134...
em meio à crise. No que concerne à vacinação:

ontem a agente da saúde da minha mãe no interior de goiás pegou um carro emprestado e deu um jeito de buscar a vacina da minha mãe no posto e a vacinou pelo portão da nossa casa. Minha mãe é idosa e de risco. Mano esse povo do sus é foda a gente tem que glorificar mesmo

A expressão ‘viva o SUS’ se tornou popular no Twitter e passou a ser usada tanto para defesa quanto para tecer críticas ao SUS. No tocante ao tema Acessibilidade e Cobertura, os usuários explicitaram, em tom de indignação, as contradições observadas na mobilização feita em torno da hashtag #VivaoSUS, como em:

já vi alguns dizerem: ‘viva o sus’ mas na hora de consultar duvido que vão pra um posto de saúde vão pra uma fila pegar uma ficha e ser atendido por um médico do sus [...] hipocrisia: a gente vê por aqui.

A sátira/ironia também foi usada para esse fim, tal qual: “viva o sus hoje tivemos que ir no posto de saúde e se recusaram a atender pq estavam sem ficha”.

Prestação de Serviços

No que se refere ao tema Prestação de Serviços, o Twitter foi usado como meio de divulgação de campanhas de saúde voltadas à covid-19 e a outros agravos, explicitando o esforço de um SUS atuante para manutenção do cuidado em meio à pandemia. Ademais, usuários demonstraram gratidão pelo atendimento recebido por profissionais em postos e unidades básicas de saúde, destacando o princípio da integralidade da APS, tal como neste relato:

Recebi atendimento psiquiátrico por um médico tão atencioso no posto de saúderecebi todo o acolhimento que em dois anos de tratamento particular não consegui enfim viva o sus.

A expressão ‘viva o SUS’ também se fez presente na discussão sobre prestação de serviços ao explicitar o êxito da APS no que tange à testagem de infecções sexualmente transmissíveis; ao tratamento de hipertensão, diabetes e tabagismo; assim como ao pré-natal. Entretanto, foi também um recurso de contestação, por meio do qual usuários evidenciam a contradição de acionar um ‘viva o SUS’ mesmo com todos os problemas percebidos.

Com efeito, isso é observado por meio de tweets como aquele em que uma usuária denuncia o caráter dialético entre a APS que é vivida na prática e seus princípios finalísticos:

a cada pessoa que grita viva o sus um médico passa cloroquina inalatória uma enfermeira desvia uma dose de vacina e um prefeito recebe propina de um posto de saúde [...] o sus não corre risco de morrer festejá-lo termina por esconder suas mazelas.

Denunciam-se ainda casos de racismo institucional, em termos semelhantes àqueles presentes no trabalho de Bittencourt, Santana e Santos2828 Bittencourt LJ, Santana KSO, Santos DSM. Saúde da população negra na atenção primária: incompreensão que legitima iniquidade em tempos de Covid-19. Saúde debate. 2023;47(137):31-41. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313702
https://doi.org/10.1590/0103-11042023137...
sobre a saúde da população negra e a atenção primária. Essa realidade desvela não só as lógicas de desumanização inerentes à situação de colonialidade assistida no País como também o caráter interacional das situações em que são atuadas: não há sujeito neutro. Uma usuária aponta que é negra e pobre, e que: “[...] médicas riquinhas como a marcela olha a gente com cara de nojo no posto de saúde ou melhor nem olha na nossa cara enquanto faz a receita”.

Mesmo quando se evidencia uma APS capaz de fazer valer seus princípios finalísticos, sobretudo quando comparada às experiências no setor saúde privado, os efeitos deletérios do racismo e seu caráter desumanizador são explicitados:

o racismo na saúde tá tão normalizado que na minha cabeça ir ao dentista era ser destratada mesmo pagando e tava tudo ok não percebia o quão sofrido era até ontem porque ontem me senti bem e sai do posto de saúde muito informada [...] vida longa ao sus.

Da mesma maneira, usuários evidenciam os modos como a LGBTQIA+fobia encontra-se presente no seio dos serviços de saúde e é realizada no cotidiano da APS, de tal maneira que uma pessoa trans relata: “amanhã é dia de pegar bloqueador no posto de saúde = amanhã é dia de sofrer transfobia no posto de saúde”. Trata-se de casos de transfobia como os que foram descritos na pesquisa feita por Rocon e colaboradores2929 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, et al. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab Educ Saúde. 2020;18(1):e0023469. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002...
. Tais casos foram também noticiados por veículos jornalísticos, como o UOL: ‘Casal trans grávido relata transfobia em atendimento em posto de saúde’3030 Rodrigues E. Casal trans grávido relata transfobia em atendimento em posto de saúde. UOL [Internet]. 2021 jul 28 [acesso em 2024 jan 25]. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/06/28/casal-transdiz-ter-tido-vitima-de-transfobia-em-posto-de-saude-em-aracaju.htm?cmpid=copiaecola
https://www.uol.com.br/universa/noticias...
.

Tem-se também praticalidades que traduzem e produzem o estigma impingido a esses grupos sociais3131 Santos LES, Fontes WDS, Oliveira AKS, et al. Access to the Unified Health System in the perspective of male homosexuals. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180688. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0688
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
, tal como apontado por uma usuária:

minha colega que trabalha no posto de saúde disse que já cansou de ver o descarte de sangue de pessoas até que eles só suspeitavam que eram gays é uma nojeira.

Os efeitos da estigmatização se apresentam também no discurso produzido por um usuário sobre uma peça de comunicação exposta no serviço em que esteve presente: “inacreditável que o cartaz pra prep no posto de saúde tá escrito grupos chaves: gays e homens que fazem sexo com homens li com meus próprios olhos [...]”.

Para esse usuário, endereçar as políticas públicas sobre HIV/aids somente a essa população reforçaria o estigma, tratando-se, portanto, de uma “[...] lgbtfobia descarada [...]”, já que de acordo ele, “[...] faz anos que mais de [número] das transmissões hiv no br em especial no sul são por relações heterossexuais”.

Como aponta Knauth e colaboradoras3232 Knauth DR, Hentges B, Macedo JL, et al. O diagnóstico do HIV/aids em homens heterossexuais: a surpresa permanece mesmo após mais de 30 anos de epidemia. Cad Saúde Pública. 2020;36(6):e00170118. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00170118
https://doi.org/10.1590/0102-311X0017011...
, sob a égide da gramática do risco - e atualmente, das ‘populações-chave’ -, tem-se não só ações limitadas de controle epidemiológico, o que faz com que certos grupos não se identifiquem com o HIV/aids, incluindo-se os homens heterossexuais. Em 2022, o Ministério da Saúde publicou uma atualização no protocolo que tenta superar essas questões ampliando a profilaxia para todos os adultos e adolescentes sexualmente ativos sob maior risco de infecção por HIV no País.

Organização do SUS

Em suas postagens, os usuários empreenderam atividade de conscientização acerca de aspectos organizacionais do sistema:

é por isso que existem os níveis de atenção [...] não adianta ir com febre a um hospital ou ir com um braço quebrado a um posto de saúde [...] claro que o sus tem seus problemas mas é um sistema que funciona sim.

Esse movimento de awareness foi também observado em publicações produzidas por profissionais da saúde acerca da realidade da APS durante os dois primeiros anos de pandemia, como:

estou trabalhando aqui no posto de saúde não são nem [número]h da manhã ainda e pacientes já foram encaminhados com fortes suspeitas pelo coronavirus ontem alguns outros já foram encaminhados podem ter certeza coronavirus não é besteira estamos em calamidade de saúde.

Em contrapartida, a mobilização em torno do ‘#fiqueemcasa’ analisada por Pessanha et al.1010 Pessanha GRG, Fidelis, TO, Freire CD, et al. #Fiqueemcasa: análise de sentimento dos usuários do twitter em relação ao covid19. HOLOS. 2020;5:1-20. DOI: https://doi.org/10.15628/holos.2020.11147
https://doi.org/10.15628/holos.2020.1114...
foi vista como problema por alguns usuários, os quais explicitaram o caráter descontextualizado dessa recomendação, dado que não se levaram em conta as desigualdades sociais que acabaram por interpelar as necessidades de serviços de saúde. Assim, um usuário denuncia:

essa recomendação de não ir pra hospital/posto de saúde se não estiver com todos os sintomas só vale pra quem tem o privilégio de ficar em casa sem apresentar atestado médico no trabalho não é meu caso fui pro pronto atendimento sim.

Ao longo do transcurso da pandemia, notadamente no ano de 2021, os tópicos discutidos passaram a incluir o compartilhamento de situações e experiências que apontam para um deslocamento no que concerne ao papel da atenção primária, visto que esta passou a assumir as demandas dos outros níveis de atenção quando na falta de recursos materiais, físicos e de pessoal, como relatado: “leito improvisado e intubação precária: falta de vaga faz posto de saúde virar hospital”.

Gestão e Recursos

Os usuários que usaram o Twitter para discutir acerca da Gestão e Recursos da APS no âmbito do SUS o fizeram muito mais no sentido de explicitar um SUS-constitucional constrangido2525 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(6):1723-8. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
do que um SUS-problema essencialmente incapaz. Isso pôde ser observado em publicações, como:

eu fico triste ao perceber que o potencial da atenção primária à saúde não está sendo utilizado muitas vezes por falta de recursos falta sustento à base do sus imaginem a aps sendo valorizada como deveria ser quantas pessoas seriam alcançadas pelo direito à saúde.

O tema Gestão e Recursos também foi caracterizado por termos como ‘responsabilidade’ e ‘culpa’, por meio dos quais os usuários debateram a accountability acerca das falhas e problemas percebidos no que se refere à resposta dada por agentes públicos à pandemia de covid-19, como em:

Culpa de quem lá atrás mandou o povo ficar em casa e quando sentir febre ou falta de ar procure um posto de saúde e de quem desviou o dinheiro para comprar os respiradores e os epi vc sabem que foi quem desviou os recursos moro.

Nesse sentido, a gestão municipal foi criticada no que se refere a problemas associados à infraestrutura, à falta de recursos e ao fechamento de unidades. Um usuário entrou em diálogo direto (menção) com a Prefeitura do Rio de Janeiro ao criticar a gestão municipal por priorizar o Carnaval em detrimento das necessidades estruturais do serviço de saúde:

e o posto de saúde waldir franco em bangu está caindo o teto cheio de infiltrações paredes cheias de mofo tem água caindo em cima dos aparelhos médicos, mas o carnaval tá on vergonha.

Usuários também mencionaram o então prefeito da cidade de Porto Alegre em cenário de contestação das ações empreendidas para fechamento de unidades no âmbito da pandemia de covid-19, indo de encontro aos atributos da APS. Um usuário, por exemplo, pontua que:

marchezan decidiu fechar o posto de saúde da vila tronco que tipo de gestor faz isso no meio de uma pandemia deveríamos estar trabalhando para aumentar a estrutura de atendimento, mas o prefeito trata o povo como se fosse um aglomerado de números são vidas mais respeito.

O governo federal, por sua vez, foi duramente criticado pelos usuários. Um dos pontos de crítica foi o Programa Previne Brasil, explicitando seu caráter privatista e antidemocrático3333 Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc saúde coletiva. 2021;26(supl2):3781-6. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232021269.2.01072020
https://doi.org/10.1590/1413-81232021269...
. Na esteira da contestação aos empreendimentos que implicam a abertura do SUS ao capital privado, tem-se também um volume considerável de tweets-indignação do tipo ‘call for action’ acerca do Decreto nº 10.530/2020 publicados no contexto da hashtag ‘#DefendaoSUS’,

o governo quer privatizar o sus em plena pandemia e começando pelas unidades básicas a porta de entrada para a atenção primária surreal fere a constituição viola a lei do sus e coloca a saúde de milhões de pessoas à mercê da iniciativa privada não permitiremos defendaosus.

Além disso, a falta de trabalhadores da saúde e as mudanças nos processos de trabalho foram denunciadas em contextos de enunciação de clara ordem discursiva: a pandemia produz adoecimento nas trabalhadoras3434 Vedovato TG, Andrade CB, Santos DL, et al. Trabalhadores(as) da saúde e a COVID-19: condições de trabalho à deriva? Rev bras saúde ocup. 2021;46:e1., mas só se chegou a esse ponto em função da necropolítica sublinhada por Brandão, Mendonça e Souza3535 Brandão CC, Mendonça AVM, Sousa MF. O Ministério da Saúde e a gestão do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil. Saúde debate. 2023;47(137):58-75. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313704
https://doi.org/10.1590/0103-11042023137...
. Desse modo, um usuário diz que sua

[...] companheira enfermeira no posto de saúde está com pessoas a menos na equipe devido a covid e principalmente esgotamento mental diálogo hoje: [...] - sim é uma guerra de poucos soldados sem líder [...] - isso não é uma guerra [...] - é um massacre.

Outrossim, a morte do Cacique Yawalapiti Aritana repercutiu na conversação e suscitou movimentos de denúncia que muito desvelam o caráter necrobiopolítico do Estado, apontando-se como causa-morte a política do deixar e fazer morrer3636 Bento B. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cad Pagu. 2018;(53):e185305. DOI: https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
https://doi.org/10.1590/1809444920180053...
, tal qual denuncia a usuária:

o posto de saúde da aldeia onde o cacique aritana vivia estava sem pessoal sem oxigênio sem os instrumentos básicos para lutar pela vida do chefe das tribos do xingu.

Ao concernir os insumos, houve também narrativas propositivas que defendiam a necessidade de disponibilização de absorventes, máscaras e respiradores PFF2 nas unidades básicas de saúde, como em:

tinha que ter respirador pff de graça no posto igual tem camisinha [...] tinha que ter agente de saúde distribuindo e ensinando a usar igual tinha com camisinha no carnaval.

Também foram particularmente prevalentes denúncias e mobilizações em torno da presença/falta de vacinas nas unidades, de testes para covid-19 e outros agravos sensíveis à APS. Sobre esses últimos, inclui-se a presença/falta de medicamentos e tecnologias para seu tratamento nas unidades de saúde.

Considerações finais

Não obstante as contribuições, faz-se importante destacar algumas limitações. A primeira delas se refere ao fato de que a conversação analisada é um recorte amostral passível de ser coletado. Além disso, os descritores usados não traduzem todas as possíveis maneiras de se referir à APS. Por fim, a análise foi feita principalmente, mas não exclusivamente, com base nos documentos considerados representativos com relação a cada tópico mapeado, tratando-se, portanto, de uma limitação a ser considerada.

Independentemente disso, o trabalho contribui para o campo da saúde coletiva na medida em que apresenta os modos como o Twitter foi apropriado pelas pessoas para expressar suas opiniões e participar da vida cívica avaliando políticas, ações de agentes públicos e os diversos componentes do sistema de serviços de saúde. A despeito dos constrangimentos, os sujeitos agem, atuam e se mobilizam em espaços alternativos - e este trabalho buscou contribuir para o reconhecimento dessas novas configurações de controle social.

Apesar da existência dos problemas compartilhados em rede, os achados aqui apresentados indicam que a maior parte das denúncias não foram feitas de forma a explicitar um SUS-problema, mas um SUS-real, uma APS que apresenta inúmeros desafios, mas cuja importância não só é reconhecida pela maioria dos usuários como também é evidenciada na conversação.

Assim, os resultados apontam para a potencialidade das conversações públicas no Twitter como um palco de movimentações cívicas capazes de auxiliar no processo de conformação de novos atores para o ‘processo’ da Reforma Sanitária Brasileira, ou, como aponta Paim2525 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(6):1723-8. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
, ‘sujeitos da práxis’.

Pesquisas subsequentes podem melhor identificar esses sujeitos, como se articulam e de que forma as disputas discursivas inseridas entre SUS problema x SUS real se constroem e circulam no Twitter, mas também em outras plataformas, uma vez que se reconhece que os resultados desta pesquisa se inserem em um universo mais abrangente que é o ciberespaço.

  • Suporte financeiro:

    não houve

Referências

  • 1
    Escorel S, Moreira MR. Participação social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 853-83.
  • 2
    Gomes JFF, Orfão NH. Desafios para a efetiva participação popular e controle social na gestão do SUS: revisão integrativa. Saúde debate. 2021;45(131):1199-213. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202113118
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202113118
  • 3
    Alves PC. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócio-antropológicos da doença: breve revisão crítica. Cad Saúde Pública. 2006;22(8):1547-54. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000800003
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000800003
  • 4
    Dahlgren P, Alvares C. Political participation in an age of mediatisation. Javnost - The Public. 2013;20(2):47-65. DOI: https://doi.org/10.1080/13183222.2013.11009114
    » https://doi.org/10.1080/13183222.2013.11009114
  • 5
    Souza RBR. A comunicação contra-hegemônica no capitalismo digital: limites e contradições. Liinc rev. 2020;16(1):e5133. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v16i1.5133
    » https://doi.org/10.18617/liinc.v16i1.5133
  • 6
    Haman M. The use of Twitter by state leaders and its impact on the public during the COVID-19 pandemic. Heliyon. 2020;6(11):e05540. DOI: https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e05540
    » https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e05540
  • 7
    Penteado CLC, Ferreira MAS, Pereira MA, et al. #Vacinar ou não, eis a questão! As emoções na disputa discursiva sobre a aprovação das vacinas contra a Covid-19 no Twitter. Política Soc. 2021;20(49):104-33. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.85145
    » https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.85145
  • 8
    Araújo RF, Oliveira TM. Desinformação e mensagens sobre a hidroxicloroquina no Twitter: da pressão política à disputa científica. AtoZ: novas práticas em informação e conhecimento. 2020;9(2):196-205. DOI: https://doi.org/10.5380/atoz.v9i2.75929
    » https://doi.org/10.5380/atoz.v9i2.75929
  • 9
    Aquino ACLT, Santos AG, Dubugras MTB, et al. Estudo quali-quantitativo sobre a percepção de usuários do Twitter sobre a adoção das medidas de quarentena, de distanciamento e de isolamento sociais, durante a pandemia da COVID-19. BIS - Bol Inst Saúde [Internet]. 2020 [acesso em 2024 set 24];21(1):173-85. Disponível em: https://periodicos.saude.sp.gov.br/bis/article/view/36740
    » https://periodicos.saude.sp.gov.br/bis/article/view/36740
  • 10
    Pessanha GRG, Fidelis, TO, Freire CD, et al. #Fiqueemcasa: análise de sentimento dos usuários do twitter em relação ao covid19. HOLOS. 2020;5:1-20. DOI: https://doi.org/10.15628/holos.2020.11147
    » https://doi.org/10.15628/holos.2020.11147
  • 11
    Silva H, Andrade E, Araújo D, et al. Sentiment analysis of tweets related to sus before and during COVID-19 pandemic. IEEE Latin America Transactions. 2022;20(1):6-13. DOI: https://doi.org/:10.1109/TLA.2022.9662168
    » https://doi.org/:10.1109/TLA.2022.9662168
  • 12
    Sousa AJM, Torres AA, Araújo MM, et al. Atenção primária à saúde e covid-19: uma revisão integrativa. Cad ESP [Internet]. 2020 [acesso em 29 out 2022];14(1):45-52. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/313
    » https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/313
  • 13
    Minayo MCS, Sanches O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad Saúde Pública. 1993;9(3):237-48. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300002
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300002
  • 14
    Yu CH, Jannasch-Pennell A, DiGangi S. Compatibility between text mining and qualitative research in the perspectives of grounded theory, content analysis, and reliability. The Qualitative Report. 2011;16(3):730-44. DOI: https://doi.org/10.46743/2160-3715/2011.1085
    » https://doi.org/10.46743/2160-3715/2011.1085
  • 15
    Grootendorst M. BERTopic: Neural topic modeling with a class-based TF-IDF procedure. arXiv (Cornell University). 2022;1:arXiv:2203.05794v1. DOI: https://doi.org/10.48550/arXiv.2203.05794
    » https://doi.org/10.48550/arXiv.2203.05794
  • 16
    Ylä-Anttila T, Eranti V, Kukkonen A. Topic modeling for frame analysis: A study of media debates on climate change in India and USA. Glob Media Commun. 2022;18(1):91-112. DOI: https://doi.org/10.1177/17427665211023984
    » https://doi.org/10.1177/17427665211023984
  • 17
    Pinto ICM, Vieira-da-Silva LM, Baptista TVF. Ciclo de uma política pública de saúde: problematização, construção da agenda, institucionalização, formulação, implementação e avaliação. In: Almeida-Filho N, Paim J, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 69-82.
  • 18
    Souza LEPF, Bahia L. Componentes de um sistema de serviços de saúde: população, infra-estrutura, organização, prestação de serviços, financiamento e gestão. In: Almeida-Filho N, Paim J, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 49-68.
  • 19
    Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciênc saúde coletiva. 2014;19(4):1065-76. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.12052013
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.12052013
  • 20
    Twitter [Internet]. São Francisco: X Corp; 2006. Política de Privacidade; 2018 maio 25 [acesso em 2023 abr 20]. Disponível em: https://twitter.com/pt/privacy/previous/version_14
    » https://twitter.com/pt/privacy/previous/version_14
  • 21
    Marin MJS, Marchioli M, Moracvick MYAD. Fortalezas e fragilidades do atendimento nas Unidades Básicas de Saúde tradicionais e da Estratégia de Saúde da Família pela ótica dos usuários. Texto e Contexto Enferm. 2013;22(3):780-8. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000300026
    » https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000300026
  • 22
    Moreira DC, Bispo Júnior JP, Nery AA, et al. Avaliação do trabalho dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) por usuários, segundo os atributos da atenção primária. Cad Saúde Pública. 2021;36(12):e00031420. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311XER031420
    » https://doi.org/10.1590/0102-311XER031420
  • 23
    Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2013;21(1):61-76. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702013005000012
    » https://doi.org/10.1590/S0104-59702013005000012
  • 24
    Rangel-S ML, Lamego G, Paim M, et al. SUS na mídia em contexto de pandemia. Saúde debate. 2022;46(134):599-612. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213401
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202213401
  • 25
    Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(6):1723-8. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
  • 26
    Foucault M. O nascimento da medicina social. In: Foucault M. A Microfísica do poder. Rio: Graal; 1979. p. 79-98
  • 27
    Lamego DTC, Moreira MCN. O diagnóstico como “passaporte” para reconhecimento e significação das experiências na dislexia. Physis. 2019;29(3):e290311. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290311
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290311
  • 28
    Bittencourt LJ, Santana KSO, Santos DSM. Saúde da população negra na atenção primária: incompreensão que legitima iniquidade em tempos de Covid-19. Saúde debate. 2023;47(137):31-41. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313702
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202313702
  • 29
    Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, et al. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab Educ Saúde. 2020;18(1):e0023469. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234
  • 30
    Rodrigues E. Casal trans grávido relata transfobia em atendimento em posto de saúde. UOL [Internet]. 2021 jul 28 [acesso em 2024 jan 25]. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/06/28/casal-transdiz-ter-tido-vitima-de-transfobia-em-posto-de-saude-em-aracaju.htm?cmpid=copiaecola
    » https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/06/28/casal-transdiz-ter-tido-vitima-de-transfobia-em-posto-de-saude-em-aracaju.htm?cmpid=copiaecola
  • 31
    Santos LES, Fontes WDS, Oliveira AKS, et al. Access to the Unified Health System in the perspective of male homosexuals. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180688. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0688
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0688
  • 32
    Knauth DR, Hentges B, Macedo JL, et al. O diagnóstico do HIV/aids em homens heterossexuais: a surpresa permanece mesmo após mais de 30 anos de epidemia. Cad Saúde Pública. 2020;36(6):e00170118. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00170118
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00170118
  • 33
    Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc saúde coletiva. 2021;26(supl2):3781-6. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232021269.2.01072020
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232021269.2.01072020
  • 34
    Vedovato TG, Andrade CB, Santos DL, et al. Trabalhadores(as) da saúde e a COVID-19: condições de trabalho à deriva? Rev bras saúde ocup. 2021;46:e1.
  • 35
    Brandão CC, Mendonça AVM, Sousa MF. O Ministério da Saúde e a gestão do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil. Saúde debate. 2023;47(137):58-75. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202313704
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202313704
  • 36
    Bento B. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cad Pagu. 2018;(53):e185305. DOI: https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
    » https://doi.org/10.1590/18094449201800530005

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2023
  • Aceito
    13 Mar 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br