Institucionalização da avaliação e monitoramento da Atenção Primária à Saúde no SUS: contribuições para uma agenda estratégica de pesquisa

Ana Luiza Queiroz Vilasbôas Fúlvio Borges Nedel Rosana Aquino Sandro Rogério Rodrigues Batista Ana Paula Santana Coelho Almeida Geraldo Cunha Cury Maria Helena Magalhães de Mendonça Thiago Dias Sarti Luiz Augusto Facchini Lígia Giovanella Sobre os autores

RESUMO

A Atenção Primária à Saúde (APS) é a base do Sistema Único de Saúde (SUS). Fortalecê-la exige permanente avaliação de seus processos e resultados. A Rede de Pesquisa em APS (Rede APS) promove intenso debate sobre o fortalecimento do modelo de APS de base territorial, comunitária e ordenadora da Rede de Atenção à Saúde no SUS. Este ensaio tem o objetivo de apresentar um histórico das iniciativas de monitoramento e avaliação da APS brasileira e a proposição de uma agenda de pesquisa implicada com a consolidação do SUS e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF). É resultante da reflexão crítica acerca da produção de conhecimento sobre APS no Brasil, fruto do debate em torno da agenda política e estratégica da Rede APS com participação de atores setoriais. A agenda está estruturada em oito eixos centrais, considerando o modelo de APS a ser integrado às redes de atenção, gestão e financiamento, gestão do trabalho, saúde digital, infraestrutura, atenção integral à saúde, e monitoramento e avaliação. A Rede APS defende a universalização da cobertura por uma ESF qualificada e a construção de uma Política Nacional de Monitoramento e Avaliação para orientar a gestão e o cuidado da APS no SUS.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à; Saúde; Pesquisa; Sistema Único de Saúde; Brasil.

Introdução

A universalidade do direito à atenção à saúde integral e longitudinal exige a conformação de sistemas nacionais de saúde organizados por meio de Redes de Atenção à Saúde (RAS) ordenadas pela Atenção Primária à Saúde (APS) que deve orientar o percurso do paciente pelo sistema11 Fausto MCR, Almeida PF, Bousquat A. Organização da atenção primária à saúde no Brasil e os desafios para a integração em redes de atenção. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 51-72.. Desde sua criação, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem avançado notavelmente na cobertura, na qualidade e nos resultados da APS, assim como na organização de RAS11 Fausto MCR, Almeida PF, Bousquat A. Organização da atenção primária à saúde no Brasil e os desafios para a integração em redes de atenção. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 51-72.,22 Facchini LA, Tomasi E, Thumé E. Acesso e qualidade na atenção básica brasileira: análise comparativa dos três ciclos da avaliação externa do PMAQ-AB, 2012-2018. São Leopoldo: Oikos; 2021. p. 224.. Não obstante, gargalos importantes permanecem - relativos ao subfinanciamento do SUS, à escassa oferta pública de serviços nas RAS regionalizadas e à insuficiência de profissionais formados e valorizados para o trabalho em APS de orientação comunitária que alie a qualidade clínica do cuidado individual com o enfoque coletivo.

O trabalho em APS requer uma equipe multiprofissional de prática generalista que execute ações individuais e coletivas com cidadãos e usuários do serviço, residentes em determinado território definido geograficamente com base em critérios socioculturais, como aspectos históricos de formação do bairro, existência de associações comunitárias, esportivas, políticas ou recreativas, e uso desses e outros equipamentos e serviços pela população.

A APS no Brasil tem a Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo assistencial prioritário, e está capilarizada em todo o País. A ESF, ainda que sem conseguir exercer plenamente a coordenação do cuidado e oferecer uma cobertura integral, avança para um modelo de atenção vigilante da saúde da pessoa e da comunidade33 Teixeira M, Matta GC, Silva Junior AG. Modelos de gestão na Atenção Primária à Saúde: uma análise crítica sobre gestão do trabalho e produção de saúde. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 117-41..

A promoção da melhoria do acesso e da qualidade da APS no SUS requer a institucionalização de uma política nacional de avaliação e monitoramento. Ao longo do século XX, o campo da avaliação em saúde se expandiu significativamente, fornecendo conceitos e ferramentas essenciais para auxiliar no processo de planejamento e implementação de programas e serviços de saúde, analisando seus resultados em termos de efetividade, eficiência e equidade. Apesar de persistirem problemas relevantes na institucionalização desses processos no SUS, é impensável construir um SUS de qualidade para a população sem investimentos robustos em avaliação que municie gestores, profissionais e controle social de informações adequadas para a orientação de rumos das políticas de saúde44 Giovanella L, Mendonça MHM, Medina, et al. Contribuições dos estudos PMAQ-AB para a avaliação da APS no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610.,55 Felisberto E. Da teoria à formulação de uma Política Nacional de Avaliação em Saúde: reabrindo o debate. Ciênc saúde coletiva. 2006;11(3):553-63. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000300002
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Nesse âmbito, o registro, a transmissão e o uso da informação em saúde têm importância fundamental para a coordenação do cuidado, o planejamento local e o planejamento em rede, além de permitir o monitoramento de indicadores e facilitar os processos de monitoramento e avaliação em saúde.

A ESF beneficiou-se do uso da informação em saúde desde a implantação do Sistema de Informação da Atenção Básica (Siab), em 1998, até a implantação do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)66 Tomasi E, Nedel FB, Barbosa ACQ. Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade na APS. APS. 2021;3(2):131-43. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v3i2.208
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. Apesar disso, experimentou-se nos últimos anos uma série de dificuldades para seu monitoramento e avaliação, como o desestímulo financeiro, o fim do PMAQ-AB e, mais recentemente, a centralização da informação em torno dos sete indicadores do Previne Brasil77 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saúde Pública. 2020;36(8):e00040220. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00040220
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A superação das desigualdades de acesso e a oferta universal de uma APS resolutiva e de qualidade dependem também do estabelecimento de processos de monitoramento e pesquisas de avaliação. É necessário não apenas avaliar as ações da APS, mas também identificar os vazios assistenciais, conhecer os grupos populacionais com dificuldades de acesso, populações ‘ocultas’ ou ‘negligenciadas’ e compreender as razões dessas faltas e suas relações com os demais níveis assistenciais.

O desafio atual, portanto, não é apenas monitorar e avaliar as políticas de saúde, mas, sobretudo, institucionalizar a avaliação e torná-la um processo de caráter permanente, alinhado aos princípios constitucionais do SUS de universalidade, integralidade e participação social, com financiamento suficiente, para responder adequadamente às necessidades da população. Isso exige sensibilidade cultural, social e política no sentido de abordar criticamente distintas perspectivas e existências em um país de dimensão continental e profundamente desigual como o Brasil.

Ademais, pesquisas avaliativas da APS podem ser importantes indutoras de melhorias na qualidade da atenção, como bem demonstraram estudos decorrentes do PMAQ-AB em seus três ciclos22 Facchini LA, Tomasi E, Thumé E. Acesso e qualidade na atenção básica brasileira: análise comparativa dos três ciclos da avaliação externa do PMAQ-AB, 2012-2018. São Leopoldo: Oikos; 2021. p. 224.,44 Giovanella L, Mendonça MHM, Medina, et al. Contribuições dos estudos PMAQ-AB para a avaliação da APS no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610..

Assim, o objetivo deste artigo é, a partir de um breve histórico das iniciativas de avaliação e monitoramento na APS no SUS, apresentar uma Agenda Estratégica de Pesquisa em APS elaborada pela Rede de Pesquisa em APS (Rede APS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) para informar o debate sobre a institucionalização de uma política nacional de avaliação e monitoramento da APS e para o fomento da pesquisa em APS.

A agenda de pesquisa proposta foi delineada com base nos principais desafios da APS, apontando o papel da pesquisa na produção de conhecimento capaz de subsidiar a tomada de decisão para melhoria do cuidado com equidade. Foi elaborada em processo reiterativo a partir de análises críticas da política nacional de APS e de debates entre grupos de pesquisadores em APS e entidades representativas de profissionais que compõem o comitê gestor da Rede APS, incluindo Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (Abefaco), Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Associação Brasileira de Escolas Médicas (Abem), Associação Brasileira de Ensino Odontológico (Abeno), Associação Brasileira de Saúde Bucal Coletiva (Abrasbuco), Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias (Conacs) e representantes do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Antecedentes

O SUS é o maior sistema universal de saúde do mundo; e falar da APS no Brasil é falar de mais de 5.570 municípios diferentes responsáveis por garantir acesso aos serviços de APS e integrar-se nas RAS regionais para garantir acesso oportuno, cada qual com suas desigualdades internas e no âmbito do estado e da macrorregião. Macinko et al.88 Macinko J, Harris M. Brazil’s Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Engl J Med. 2015;372(23):2177-81. DOI: https://doi.org/10.1056/nejmp1501140
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destacam as condições sociodemográficas e a evolução dos investimentos em saúde desde a Constituição de 1988, quando se definiu o direito à saúde para implantação do SUS público, gratuito e universal, com financiamento fiscal e coparticipação dos três níveis de governo. Essa configuração deu ao sistema uma dimensão descentralizada e grande responsabilidade do nível local para instalar e manter os serviços primários de cuidado integral, articulados a uma rede de atenção. Os autores destacam o ritmo acelerado em que esse processo ocorreu e a prioridade dada à ESF com a composição multiprofissional das equipes e sua abordagem comunitária.

A APS brasileira é internacionalmente reconhecida por sua expansão e qualificação desde sua origem, ainda que se reconheça o subfinanciamento crônico, agravado nos governos de inspiração neoliberal. Ao longo da história da saúde da família, muitos relatos de experiência e estudos voltados às mais variadas questões locais e análises mais refinadas metodologicamente apontam a contribuição da saúde da família na melhoria do acesso, na redução de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária88 Macinko J, Harris M. Brazil’s Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Engl J Med. 2015;372(23):2177-81. DOI: https://doi.org/10.1056/nejmp1501140
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, redução das iniquidades étnico-raciais e sociais em saúde99 Hone T, Rasella D, Barreto ML, et al. Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: a national longitudinal analysis. PLoS Med. 2017;14(5):e1002306. DOI: https://doi.org/10.1371/JOURNAL.PMED.1002306
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, aumento da sobrevivência de idosos1010 Kessler M, Thumé E, Marmot M, et al. Family Health Strategy, Primary Health Care, and social inequalities in mortality among older adults in Bagé, Southern Brazil. Am J Public Health. 2021;111(5):927-36. DOI: https://doi.org/10.2105/AJPH.2020.306146
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, entre outros1111 Guanais FC. The combined effects of the expansion of primary health care and conditional cash transfers on infant mortality in Brazil, 1998-2010. Am J Public Health. 2015;105(11):S585-99. DOI: https://doi.org/10.2105/ajph.2013.301452
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. Ao mesmo tempo, políticas de envergadura nacional buscaram não só avaliar, mas também induzir melhoria nos padrões de qualidade da APS22 Facchini LA, Tomasi E, Thumé E. Acesso e qualidade na atenção básica brasileira: análise comparativa dos três ciclos da avaliação externa do PMAQ-AB, 2012-2018. São Leopoldo: Oikos; 2021. p. 224.,44 Giovanella L, Mendonça MHM, Medina, et al. Contribuições dos estudos PMAQ-AB para a avaliação da APS no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610..

O campo da avaliação da APS no Brasil acompanha a trajetória da própria constituição do SUS e gradualmente ganhou maior complexidade e destaque nacional e internacional, tanto em publicações acadêmicas quanto na sua influência sobre as políticas de saúde. Mesmo com retrocessos, como os desmontes de experiências avaliativas provocadas pelo governo Bolsonaro (que abandonou o PMAQ-AB e instituiu o Previne Brasil), observa-se um crescente corpo crítico produzindo rica reflexão sobre a experiência nacional de APS. Além disso, é notável o monitoramento de indicadores da ESF, pelo menos desde 1998, com a criação do Siab, que permitia algum grau de acompanhamento das informações geradas pelas equipes de Saúde da Família (eSF) em seu cotidiano de trabalho66 Tomasi E, Nedel FB, Barbosa ACQ. Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade na APS. APS. 2021;3(2):131-43. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v3i2.208
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. O Siab foi aprimorado em 1999 e 2002 e seguido por outras experiências, como aquela relacionada com o Pacto pela Saúde e, atualmente, pelo Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab) e pelo prontuário eletrônico do SUS (e-SUS)1212 Moreno AB. Muito além do básico: As bases de dados em saúde e a atenção básica à saúde no brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 265-89..

Em 2011, a Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) definiu a APS como

[...] responsável pela coordenação do cuidado, através da elaboração, acompanhamento e gestão de projetos terapêuticos singulares e do acompanhamento e organização dos fluxos dos usuários entre os pontos de atenção1313 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2011 out 24 [acesso em 2024 set 24]; Edição 203; Seção I:48. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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Isso a torna uma das políticas de saúde mais complexas do SUS, tanto em termos de estrutura dos serviços e processos de trabalho quanto em relação aos desafios para a gestão de seu financiamento e articulação nas redes de atenção. Uma política dessa natureza passou por inúmeros processos avaliativos, oscilando desde iniciativas normativas modestas de avaliação de estrutura e processo de caráter local até pesquisas avaliativas voltadas à análise do impacto da APS na saúde da população brasileira66 Tomasi E, Nedel FB, Barbosa ACQ. Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade na APS. APS. 2021;3(2):131-43. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v3i2.208
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, posicionando o Brasil entre os países com maior produção científica qualificada em APS do mundo1414 Medina MG, Aquino R, Vilasbôas ALQ, et al. A pesquisa em atenção primária à saúde no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610..

Destacam-se as iniciativas federais de avaliação global e melhoria da qualidade da APS brasileira: os Estudos de Linha de Base do Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família (ELB/Proesf), iniciados em 2005; a Avaliação para Melhoria da Qualidade da ESF (AMQ), iniciada em 2005, e o PMAQ-AB, realizado em três ciclos entre 2011 e 2018. Em clara ruptura com o PMAQ-AB e seus ciclos, na conjuntura política recente de um governo de extrema-direita (2019-22) com o Programa Previne Brasil, iniciado em 2019, a avaliação ficou a restrita a um conjunto de sete indicadores nunca plenamente implementados. Rompe-se assim o processo de institucionalização de avaliação complexa da APS no SUS.

No período recente, destaca-se ainda a introdução do Primary Care Assessment Tool (PCATool), no âmbito nacional na formulação da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, para abordagem de acesso aos serviços a partir da percepção dos usuários66 Tomasi E, Nedel FB, Barbosa ACQ. Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade na APS. APS. 2021;3(2):131-43. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v3i2.208
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A história dessas experiências de avaliação não é uma linha reta de progresso. Há aprendizados, conflitos, conquistas e retrocessos que ainda carecem de um balanço sistemático. De maneira sintética, podem-se vislumbrar algumas questões impulsionadas com a implementação dessas políticas.

Com o Proesf, centrado em municípios com mais de 100 mil habitantes, intensificou-se a realização de avaliações normativas em dimensão nacional. Avaliações normativas, ainda que limitadas em seu potencial explicativo, permitem aos atores envolvidos identificar avanços e lacunas relevantes na estrutura e nos processos a serem considerados pela gestão. Essa forma de avaliar a ESF, em alguma medida, está presente nas experiências da AMQ e do PMAQ-AB, cujos instrumentos de avaliação também trazem algum grau de normatividade sobre o que está sendo feito localmente na APS.

Esses processos propunham metodologias de discussão dos quesitos avaliativos que colocavam em análise o agir dos profissionais e gestores, operando como uma modalidade de educação permanente, possibilitando mudanças imediatas e em curto e médio prazo que impactariam na melhoria do cuidado ofertado à população. Ao mesmo tempo, esse processo de educação permanente promovido pela AMQ e pelo PMAQ-AB, associado a estratégias cíclicas de avaliação por entes externos ao município, teria o potencial de gerar um movimento permanente e institucionalizado de melhoria da qualidade. A adesão do município ao PMAQ-AB era voluntária, inclusive na quantidade e na seleção de equipes que participariam da pesquisa de avaliação externa realizada pelas universidades. Se a amostragem de conveniência gerou justas críticas, parece ter contribuído para a colaboração dos respondentes, e as críticas se dissiparam ante a crescente adesão de municípios e equipes, além da consistência dos resultados entre os estudos ao longo dos ciclos do Programa22 Facchini LA, Tomasi E, Thumé E. Acesso e qualidade na atenção básica brasileira: análise comparativa dos três ciclos da avaliação externa do PMAQ-AB, 2012-2018. São Leopoldo: Oikos; 2021. p. 224.,44 Giovanella L, Mendonça MHM, Medina, et al. Contribuições dos estudos PMAQ-AB para a avaliação da APS no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610..

O PMAQ-AB agregou repasses de recursos fundo a fundo com base em métricas de desempenho dos municípios, serviços e equipes de saúde. Os municípios utilizaram esses recursos de maneira heterogênea, mas essa modalidade de transferências financeiras intergovernamentais, inspirada em modelos de pagamento por desempenho, trouxe um elemento à política de avaliação da APS não presente em experiências anteriores.

Um aspecto relevante do PMAQ-AB em seu desenho institucional foi o envolvimento de universidades no processo de avaliação externa, contribuindo para a constituição de um amplo grupo de atores debatendo e participando da avaliação da APS. Desse modo, resultados da avaliação externa foram amplamente analisados em múltiplos enfoques, propiciando informações consistentes para orientar as políticas nacionais.

A Rede APS se constituiu a partir desses processos avaliativos que incluíram outras pesquisas nacionais. Além disso, congregou grupos de pesquisa, associando gradualmente em seu comitê gestor entidades representativas dos profissionais que atuam na APS. Ademais, fomentou a participação de grupos de pesquisa das universidades públicas nos processos de avaliação externa, agregando legitimidade aos processos, e argumentou pela utilização dos instrumentos AMQ como etapa de autoavaliação do PMAQ-AB. Outrossim, promoveu análises e difusão de resultados com a organização de suplementos especiais de revistas e em seus boletins quinzenais.

Já o Previne Brasil centrou-se em uma avaliação normativa de sete indicadores de saúde relacionados com o processo de trabalho das equipes, atrelando essa avaliação a um pagamento por desempenho, não plenamente implementado. Além disso, o Previne Brasil propôs-se ao acompanhamento da população residente com ‘cadastro ativo’ nos últimos dois anos, o que fere o princípio da universalidade ao centrar transferências financeiras intergovernamentais, para financiamento do sistema, no número de usuários cadastrados sem garantir cobertura universal66 Tomasi E, Nedel FB, Barbosa ACQ. Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade na APS. APS. 2021;3(2):131-43. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v3i2.208
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Para que e por que avaliar a APS?

No caso das políticas públicas, a avaliação é uma ação de cidadania e controle social sobre o cumprimento das obrigações do Estado. Produz informações sobre alcance, fortalezas e debilidades das decisões tomadas e ações empreendidas. Assim, o monitoramento de indicadores e os estudos avaliativos da APS no SUS devem enfatizar o cumprimento dos princípios e diretrizes do SUS, além dos princípios e atributos da APS. Finalmente, a ação de avaliar não se resume na medida, ela deve provocar mudança, gerar “aprimoramento institucional e profissional”55 Felisberto E. Da teoria à formulação de uma Política Nacional de Avaliação em Saúde: reabrindo o debate. Ciênc saúde coletiva. 2006;11(3):553-63. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000300002
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A Rede APS, constituída formalmente em 2009, tem desde então impulsionado a produção do conhecimento em avaliação em saúde, especialmente na APS, mediante o aprofundamento de elementos teóricos, metodológicos e técnicos vinculados a análises políticas associadas a fatores contextuais, políticos, socioeconômicos, culturais e ideológicos. No âmbito das práticas de saúde, esforço adicional voltado à explicitação dos procedimentos técnicos de coleta, processamento, análise e interpretação dos dados derivados das pesquisas e das experiências avaliativas de políticas, programas, serviços e tecnologias, desenvolvidas por instituições de ensino e pesquisa vinculadas à Rede APS, tem permitido a revisão crítica e a articulação entre as dimensões teórica e empírica nas pesquisas realizadas. Tais iniciativas buscam descortinar as diversas características de uma mesma intervenção e de seus resultados alcançados, em diferentes locais e territórios, e recomendar, tecnicamente, a distribuição justa e razoável dos recursos de acordo com as necessidades de saúde da população1515 Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde, Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Bases para uma atenção primária à saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2022.,1616 Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde [Internet]. Brasília, DF: ABRASCO; [sem data]. Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial, comunitária e integrada à rede do SUS: Proposições da Rede de Pesquisa em APS da ABRASCO; 2022 ago 4 [acesso em 2024 jan 1]. p. 4. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/08/APS-integral-resolutiva-territorial-comunitaria-e-integrada-a-rede-do-SUS-4-agosto-Conferencia-livre-e-popular-Proposicoes-da-Rede-de-Pesquisa-em-APS-da-ABRASCO.pdf
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As reflexões originadas ampliaram as relações interinstitucionais e contribuíram para o avanço e a consolidação de algumas áreas, inclusive a política de monitoramento e avaliação na APS e a qualidade técnica no cuidado em saúde do paciente, buscando otimizar as práticas de atenção integral à saúde. O próprio PMAQ-AB teve apoio da Rede APS na formulação teórica e técnica, o que favoreceu a aproximação da academia, da gestão e do serviço, permitindo construir um modelo reprodutível de monitoramento e avaliação das ações22 Facchini LA, Tomasi E, Thumé E. Acesso e qualidade na atenção básica brasileira: análise comparativa dos três ciclos da avaliação externa do PMAQ-AB, 2012-2018. São Leopoldo: Oikos; 2021. p. 224.,44 Giovanella L, Mendonça MHM, Medina, et al. Contribuições dos estudos PMAQ-AB para a avaliação da APS no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 569-610.. Assim, por exemplo, foram produzidas informações sobre os efeitos da política e o desempenho do sistema de saúde; e monitoramento e avaliação de ações de formação de pessoal, no âmbito da APS, especialmente do Programa Mais Médicos.

O processo de avaliação de iniciativas ministeriais tem refletido uma dinâmica das relações entre pesquisadores e uma tendência crescente de interesse de grupos de pesquisa em linhas de pesquisa relacionadas com a avaliação em saúde, com desdobramentos importantes para o desenvolvimento de consultorias e para o processo de valorização, investimentos e avanços de pesquisas financiadas por agências de fomento.

A Rede APS, em colaboração e parcerias, fortaleceu o acompanhamento e a disseminação de resultados de pesquisas, contribuiu para o entendimento dos diversos cenários das políticas de APS, dando visibilidade à necessidade de elaboração de projetos mais amplos e relevantes, para o monitoramento de intervenções e programas prioritários com repercussão em diferentes âmbitos - nacional, estadual e municipal - no enfrentamento de dificuldades no desenvolvimento da política no território nacional e na identificação de potencialidades do modelo de APS e seu aprimoramento.

Em termos das mudanças conjunturais, diversas publicações científicas ou técnicas, por meio da formulação de posicionamentos críticos, agendas políticas estratégicas para a APS no SUS, boletins informativos periódicos e edições quadrimestrais da ‘APS em Revista’, organizados de maneira contínua e sistemática, qualificaram o debate político em torno da elaboração de propostas de intervenções. As iniciativas aportaram contribuições do ponto de vista conceitual e das práticas, e neste momento de reconstrução das políticas públicas de saúde no Brasil, ante a necessidade de retomada de editais de fomento à pesquisa, a consciência sanitária dos sujeitos e as reflexões podem subsidiar ações avaliativas, que suscitem proposições necessárias, com apoio operacional de universidades ou centros de pesquisa.

Reforça-se a premência da consciência sanitária construtiva para o direcionamento de práticas avaliativas e formas de repensar na avaliação em saúde no País, perante o engajamento de pesquisadores, usuários, profissionais de saúde e gestores de todas as regiões do Brasil e de diferentes segmentos do SUS. Nesse sentido, destaca-se a importância de considerar não apenas a racionalidade teórica exposta em textos sobre o tema, mas também a capacidade da Rede APS, enquanto sujeito coletivo, para a redefinição de parâmetros e a construção de novas propostas de avaliação de políticas na recomposição das práticas de saúde, com a participação dos diversos atores e a articulação com as instâncias gestoras do SUS - e, primordialmente, para o fortalecimento da APS integral, forte e resolutiva.

Agenda de pesquisa estratégica em APS: qual o papel da pesquisa no processo de reconstrução da Atenção Primária à Saúde no Brasil?

A Rede APS, ao longo dos últimos três anos, promoveu intenso debate sobre o fortalecimento do modelo de APS de base territorial e comunitária e ordenadora da RAS. Esse debate foi sistematizado em documentos produzidos, disponibilizados no site da Rede APS:

  • Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições15, em 2022;

  • 14 notas técnicas que versaram sobre os diversos aspectos da APS, com resultados de estudos e recomendações, em 2021/2022;

  • Manifesto da Rede APS na Conferência Livre, Democrática e Popular16, em 2022; e

  • Uma alternativa para superação do Programa Previne Brasil: Propostas para alocação de recursos federais para APS, documento elaborado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde1717 Pimenta A, Mendes Á, Lages C, et al. Uma alternativa para superação do Programa Previne Brasil: propostas para alocação de recursos federais para APS [Internet]. 2023 jun 30 [acesso em 2024 jan 1]. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2023/07/Proposta-Modelo-Aloc-AB-em-2023_Versao-09-2023-30-06-2023-VF.pdf
    https://redeaps.org.br/wp-content/upload...
    , com participação de pesquisadores da Rede APS e outras entidades de saúde, em 2023.

Esse lastro da análise da política da APS orientou a proposição de uma agenda de pesquisa implicada, sustentada pelo compromisso ético-político com a consolidação do SUS e o fortalecimento da ESF como modelo estruturante da APS, de importância fundamental para melhoria da saúde da população e redução das desigualdades sociais injustas, aprofundadas pelos avanços das políticas neoliberais nos últimos seis anos dos governos de extrema-direita no Brasil.

A agenda foi organizada em oito eixos, cada um composto por um conjunto de temas prioritários de investigação. Os eixos foram organizados em torno dos aspectos cruciais da implementação da APS abrangente, resolutiva, de base territorial e orientação comunitária, integrada à RAS, identificados a partir da reflexão crítica sobre estudos realizados no País, o que permitiu identificar desafios atuais e lacunas de conhecimento que se constituem como objetivos de pesquisa.

Para contextualização dos eixos da agenda e das propostas de investigação, serão apresentados de forma sucinta alguns dos principais desafios da APS, apontando o papel da pesquisa na produção de conhecimento capaz de subsidiar a tomada de decisão de gestores, profissionais, usuários e organizações comunitárias na implementação de políticas para reconstrução e fortalecimento da APS no Brasil. Para cada eixo, são apresentadas em quadros as propostas de investigação associadas.

Eixo I: População, território, participação social e equidade

A população é o centro das RAS. Dessa forma, na APS, é fundamental pensar na população na sua dimensão territorial e enquanto sujeito dos processos saúde-doença e cuidado. Três grandes desafios desse eixo são: universalização da cobertura da ESF; fortalecimento da dimensão comunitária e territorial da APS; e garantia da participação social e emancipação dos sujeitos.

O primeiro desafio refere-se à universalização da cobertura populacional da APS por meio da ESF e a superação das iniquidades na distribuição dos serviços primários no território nacional. Embora 85% dos municípios brasileiros, em 2019, apresentassem 70% ou mais da população coberta por eSF, ainda persistem grandes disparidades. Altas coberturas, em geral, só foram alcançadas pelos municípios menores. Apenas 30% dos municípios com 100 mil a 500 mil habitantes e 10% dos municípios com mais de 500 mil habitantes alcançaram tais níveis de cobertura da ESF1818 Aquino R, Medina MG, Vilasboas ALQ, et al. Estratégia saúde da família: Evolução do modelo de organização da atenção primária à saúde no Brasil. In: Paim JS, Almeida Filho N, editores. Saúde coletiva: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Medbook; 2023. p. 317-40.. Ademais, é fundamental considerar os parâmetros de cobertura populacional e a extensão territorial por equipe nas diferentes conformações territoriais, de forma a permitir o cumprimento dos atributos da APS.

Para além do porte dos municípios, profundas desigualdades na distribuição dos serviços de APS ainda são observadas, especialmente nos municípios rurais remotos, que apresentam grande dispersão e rarefação de domicílios, com persistência de barreiras de acessibilidade organizacional e geográficas, como grandes distâncias até as Unidades Básicas de Saúde (UBS), custos de deslocamento e precárias condições de vias e transportes (terrestres ou fluviais), o que restringe o acesso de grande parte da população1919 Fausto MCR, Almeida PF, Bousquat A, et al. Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos brasileiros: contexto, organização e acesso à atenção integral no Sistema Único de Saúde. Saúde e Soc. 2023;32(1):e220382pt. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902023220382pt
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. Considerando que o Brasil conta com cerca de 50 mil equipes da ESF e com 68% de cobertura populacional, estima-se a necessidade de, no mínimo, mais 20 mil equipes para universalizar a cobertura populacional1111 Guanais FC. The combined effects of the expansion of primary health care and conditional cash transfers on infant mortality in Brazil, 1998-2010. Am J Public Health. 2015;105(11):S585-99. DOI: https://doi.org/10.2105/ajph.2013.301452
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.

O segundo desafio é fortalecer a abordagem territorial e comunitária da ESF, o que envolve a qualificação das eSF para utilização de ferramentas para o reconhecimento dos territórios e construção de vínculos com as comunidades que vivem nas áreas de abrangência das equipes. Esses processos incluem a utilização, pelas equipes, de tecnologias digitais para o reconhecimento dos territórios. Uma ferramenta poderosa na relação entre equipes e comunidades é a educação popular, para a consolidação de processos democráticos em saúde, especialmente na conjuntura atual de crescimento das políticas neoliberais e de concepções negacionistas.

Dantas et al.2020 Dantas DSG, Silva MRF, Torres RAM, et al. A Formação dos agentes comunitários de saúde em educação popular: implicação na produção do cuidado na Estratégia Saúde da Família. Motricidade [Internet]. 2018 [acesso em 2024 jan 1];14(1):157-63. Disponível em: https://scielo.pt/pdf/mot/v14n1/v14n1a21.pdf
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referem que a agenda neoliberal tem sido um obstáculo para o desenvolvimento de práticas de educação popular solidárias e de vivências de saberes dos profissionais e dos movimentos sociais. O crescimento do negacionismo e do obscurantismo, por sua vez, dificultou o estabelecimento de diálogos e das experiências de educação popular que,

[...] mostram a potência do diálogo no questionamento do mundo e, também, na construção de outras formas de sociabilidade que passam por relações de solidariedade e empatia2121 Nespoli G. A educação popular é importante porque reconhece as condições de vida, atua a partir da realidade, promove e organiza redes de apoio social que, neste momento, são fundamentais [Internet]. [Entrevista concedida a Julia Neves]. EPSJV/Fiocruz. 2020 jun 1 [acesso em 2024 jan 25]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/a-educacao-popular-e-importante-porque-reconhece-condicoes-de-vida-atua-a-partir
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.

O terceiro desafio é a ampliação da participação social na APS. A abordagem da saúde enquanto construção social constitui um dos princípios norteadores e estruturantes do trabalho na APS, destacando o papel do diálogo permanente com todos os setores da sociedade. Ressalta-se a importância dos espaços de participação social enquanto exercício da cidadania, que articulam diversas dimensões do direito social com vistas à redução das desigualdades sociais2222 Mendonça MHM, Alves MGM, Spadacio C. Determinação social da saúde e participação social na aps. APS. 2022;4(1):54-60. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v4i1.227
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. Estudo de âmbito nacional com dados do ciclo 2 do PMAQ-AB revelou contradições entre as visões dos profissionais e dos usuários sobre a existência de Conselhos Locais de Saúde (CLS) nas UBS. Enquanto 56% das equipes referiram a existência de CLS, 31,3% dos usuários referiram que “Não tem CLS” e 48,7% não sabiam2323 Silveira Pinto R. Ensaios sobre assistência farmacêutica e participação da comunidade na saúde na atenção básica [tese na Internet]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Farmácia; 2021 [acesso em 2024 jan 1]. p. 290. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/248826
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. O desconhecimento dos usuários demonstra o enfraquecimento de tais dispositivos de participação social. Reconhecendo essa situação, em 2023, o CNS deflagrou uma campanha para criação de CLS nas UBS para ampliar esses espaços, garantir a participação social e radicalizar a democracia (Resolução CNS nº 714, de 2 de julho de 2023)2424 Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução CNS nº 714, de 2 de julho de 2023. Dispõe sobre Campanha pela Criação de Conselhos Locais de Saúde nas Unidades Básicas de Saúde do SUS [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2023 ago 23 [acesso em 30 jun 2024]; Edição 161; Seção 1:78. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/resolucoes-2023/3089-resolucao-n-714-de-02-de-julho-de-2024
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As propostas de desenvolvimento de pesquisas que objetivam a produção de conhecimento para subsidiar o processo decisório no enfrentamento dos desafios desse eixo são apresentadas no quadro 1.

Quadro 1
Temas de Investigação prioritários - Eixo I: População, território, participação social e equidade

Eixo II: Modelo de APS integrado na rede de atenção e às políticas intersetoriais

O primeiro grande desafio nesse eixo é coordenar o cuidado nas redes de atenção88 Macinko J, Harris M. Brazil’s Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Engl J Med. 2015;372(23):2177-81. DOI: https://doi.org/10.1056/nejmp1501140
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. Estudos revelaram o papel ainda incipiente da APS e a descoordenação do cuidado nas RAS, o que exige o fortalecimento da APS e dos mecanismos regulatórios, bem como a ampliação do acesso à atenção especializada e hospitalar2525 Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018;42(esp1):244-60. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S116
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. Destaca-se a necessária incorporação da vigilância ao processo de trabalho das eSF, integrando práticas individuais e coletivas de promoção da saúde, prevenção de doenças e atenção à saúde da população. Tal integração permanece inconclusa, dada a necessidade de articulação de saberes e diversos modelos de atuação sobre a saúde da população, advindos das condições sócio-históricas de conformação do sistema de saúde2626 Prado NMBL, Aquino R, Vilasbôas ALQ. Atenção primária à saúde e o modelo da vigilância à saúde [Internet]. Salvador: Rede APS; 2021 [acesso em 30 jun 2024]. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/01/NT_Vigilancia.pdf
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A vigilância da saúde na APS envolve o desenvolvimento de ações de promoção da saúde e de ações intersetoriais, destacando-se as experiências de três importantes programas: os Programas Academia da Saúde e Saúde na Escola, que constituem estratégias que privilegiam ações de promoção da saúde no âmbito da ESF e o fortalecimento do protagonismo dos cidadãos; e o Programa Bolsa Família com efeitos positivos sobre a saúde da população por mecanismos sinérgicos entre a redução da pobreza, a partir da transferência de renda, e a ampliação do acesso aos serviços de APS, devido às condicionalidades de saúde, conforme evidenciado em avaliações de impacto1111 Guanais FC. The combined effects of the expansion of primary health care and conditional cash transfers on infant mortality in Brazil, 1998-2010. Am J Public Health. 2015;105(11):S585-99. DOI: https://doi.org/10.2105/ajph.2013.301452
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,2727 Rasella D, Aquino R, Santos CAT, et al. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet. 2013;382(9886):57-64. DOI: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(13)60715-1
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,2828 Nery JS, Rodrigues LC, Rasella D, et al. Effect of Brazil’s conditional cash transfer programme on tuberculosis incidence. Int J Tuberc Lung Dis. 2017;21(7):790-6. DOI: https://doi.org/10.5588/ijtld.16.0599
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. Nesse eixo, as propostas de pesquisas objetivam avaliar os modelos de APS em sua relação com a rede de saúde e com demais setores sociais, sintetizadas no quadro 2.

Quadro 2
Temas de Investigação prioritários - Eixo II: Modelo de APS integrado na rede de atenção e às políticas intersetoriais e Eixo III: Modelo de gestão e financiamento da APS

Eixo III: Modelo de gestão e financiamento da APS

A pedra angular da reorganização da APS é o modelo de gestão. Como ressalta Santos2929 Santos L. Atenção primária e a privatização dos serviços de saúde. Rev direito sanit. 2022;22(2):e0014. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2022.181323
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, a APS como serviço estratégico do SUS apresenta vocação essencialmente pública não afeita a processos de privatização, concessão ou terceirização. Destaca-se, especialmente, o papel estratégico da APS na regulação do acesso assistencial a outros níveis de atenção do SUS que se caracteriza por sua natureza essencialmente pública. Entretanto, limites impostos ao gasto público em saúde, aliados ao ideário gerencialista que defende a falsa ideia da maior eficiência da gestão privada, tem favorecido o crescimento, desde a década de 1990, de novas formas de gestão na APS, como as Organizações Sociais, as Fundações Estatais de Direito Privado e as Organizações da Sociedade Civil33 Teixeira M, Matta GC, Silva Junior AG. Modelos de gestão na Atenção Primária à Saúde: uma análise crítica sobre gestão do trabalho e produção de saúde. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., editores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 117-41. - processo que carece de avaliação isenta.

O financiamento está intrinsecamente relacionado com o modelo de gestão. O Previne Brasil, em 2019, instituiu o fim da prioridade para a ESF e o crescimento das equipes de atenção primária; contribuiu para uma distribuição não equitativa de recursos entre os municípios, incluindo redução de recursos do cofinanciamento federal para APS. Adicionalmente, promoveu um modelo

[...] médico-centrado, focalizado, assistencialista, distante do vínculo com o território e a comunidade, sem prioridade para o cuidado multiprofissional, pautado pela lógica produtivista (metas de produção), em detrimento da abrangência ampliada do cuidado, com prevenção e promoção à saúde3030 Funcia FR, Moretti B, Ocké-Reis CO, et al. Nova política de financiamento do SUS [Internet]. Salvador: ABrES; 2022 [acesso em 2023 jun 30]. Disponível em: https://www.isc.ufba.br/wp-content/uploads/2022/07/Proposta-Nova-Politica-de-Financiamento-SUS-Abres.pdf
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Ao colaborar com esse círculo vicioso, as emendas parlamentares se transformaram em um orçamento paralelo às prioridades de gestão do SUS, colocando no centro dessa reflexão as relações de poder entre o Executivo e o Parlamento, assim como o papel da relação interfederativa e dos espaços de gestão colegiada e tripartite do SUS, no ordenamento dos recursos federais. Ademais, a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), atualmente denominada de Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS), requer investigações sobre os impactos desse tipo de dispositivo na gestão dos recursos do SUS. O marcante sentido privatizante dessas medidas foi notado por Morosini e cols.77 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saúde Pública. 2020;36(8):e00040220. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00040220
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ao analisar o Previne Brasil.

Assim, nesse eixo, as questões de pesquisa buscam caracterizar as relações público-privadas na gestão da APS; investigar a eficiência e os impactos dos modelos de gestão e financiamento na equidade da distribuição dos recursos, no aprimoramento do modelo de APS e na qualidade dos serviços de APS (quadro 2).

Eixo IV: Gestão do trabalho e reorganização e qualificação dos processos de trabalho na APS

Uma questão fundamental na reconstrução e na melhoria da qualidade da APS é a gestão do trabalho, cujo principal desafio é desprecarizar os vínculos de trabalho, atualmente definidos pela multiplicidade de modalidades de contratação e tipos, muitos sem garantia dos direitos trabalhistas e com impactos nefastos sobre a segurança e saúde do trabalhador da APS. A precarização do trabalho, caracterizada por profissionais de saúde com dedicação parcial, menor carga horária e múltiplos vínculos trabalhistas, tem contribuído para a redução da fixação e o aumento da rotatividade dos profissionais, resultando na fragmentação dos processos de trabalho, o que, por sua vez, determina a fragmentação do cuidado em saúde. A análise de apenas dois meses do ano (junho e outubro de 2023) demonstrou uma redução das eSF sem médicos, possivelmente pela retomada do Programa Mais Médicos, e a manutenção ou aumento da ausência dos demais profissionais, o que indica a necessidade de ampliação do alvo das políticas de provimento aos demais trabalhadores da saúde na APS3131 Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (BR). Brasília, DF: Conasems; [sem data]. Painel de equipes na Atenção Básica [Internet]. 2024 jan 17 [acesso em 2024 jan 25; atualizado em 2024 jun 17]. Disponível em: https://portal.conasems.org.br/paineis-de-apoio/paineis/19_equipes-na-atencao-basica
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As propostas de investigação desse eixo, apresentadas no quadro 3, enfatizam a centralidade da força de trabalho na qualidade da APS, o que exige a discussão sobre os modelos da gestão do trabalho da APS, em especial, das relações público-privado, destacando seus impactos sobre as modalidades de contratação e vínculo, fixação e rotatividade, e na qualidade de vida e saúde dos profissionais de saúde, com ênfase na saúde mental. Políticas iniciadas em 2023 também deverão ser avaliadas por seus possíveis impactos na gestão, destacando-se a retomada da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS; o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no SUS; a definição do Piso de enfermagem; o Programa Mais Médicos - Estratégia Nacional de Formação de Especialistas para a Saúde; os processos de educação permanente dos profissionais e gestores da APS e sobre a atuação e práticas das equipes multiprofissionais (eMulti) quanto ao apoio técnico-pedagógico, o apoio matricial e a atenção individual e coletiva nos territórios da APS (quadro 3).

Quadro 3
Temas de Investigação prioritários - Eixo IV: Gestão do trabalho e reorganização e qualificação dos processos de trabalho na APS

Eixo V: Saúde digital na APS

O primeiro desafio para utilização da saúde digital na APS, como estratégia de ampliação do acesso, é justamente a garantia do acesso à internet nas unidades de saúde e para a população. Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, competência de setembro de 2023, divulgados nos Painéis de Apoio do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), 30% das UBS no Brasil não têm conexão com a internet, percentual que é maior nas regiões Norte (45%) e Nordeste (40%)3232 Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (BR). Brasília, DF: Conasems; [sem data]. Conectividade Unidades de Saúde [Internet]. 2024 jan 17 [acesso em 2024 jan 25; atualizado em 2024 jun 17]. Disponível em: https://portal.conasems.org.br/paineis-de-apoio/paineis/27_conectividade-unidades-de-saude
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No caso dos municípios remotos e rurais, os desafios são maiores para a garantia de conectividade e fornecimento de energia estável com custos mais altos, sendo fundamental a realização de parcerias com o governo federal para conectar unidades de APS em localidades remotas3333 Organisation for Economic Cooperation and Development. Estudo da OCDE da Atenção Primária à Saúde no Brasil. Paris: OECD; 2021. DOI: https://doi.org/10.1787/9bf007f4-pt
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. Ademais, o País ainda enfrenta grandes desafios quanto à equidade de acesso à internet pela população. Segundo a Pesquisa TIC Domicílios3434 Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação-Cetic.br [Internet]. São Paulo: NIC.br; 2005. Pesquisa TIC Domicílios. 2022 jul [acesso em 2024 jan 17]. Disponível em: https://www.nic.br/media/docs/publicacoes/2/20230825143348/resumo_executivo_tic_domicilios_2022.pdf
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, a taxa de domicílios conectados no Brasil foi de 80% em 2022. Entre as pessoas com 10 anos e mais, 149 milhões tinham acesso, enquanto 27 milhões nunca utilizaram a internet. A adoção das tecnologias digitais na atenção e vigilância à saúde pode fortalecer a capacidade resolutiva da APS. Para tanto, além da garantia do acesso às Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), devem-se considerar, também, os dilemas éticos na utilização dessas ferramentas; a segurança de dados dos usuários; e a necessária capacitação em literacia digital para profissionais e usuários. A adoção das TIC impõe a implementação de políticas públicas que regulamentem e disponibilizem recursos necessários para equipamentos e conectividade em todo território nacional, incluindo acesso à internet pela população, propiciando as condições para o cuidado ético, equitativo, universal e integral em saúde, orientadas por estudos específicos (quadro 4).

Quadro 4
Temas de Investigação prioritários - Eixo V: Saúde digital na APS e Eixo VI: Infraestrutura das unidades de APS

Eixo VI: Infraestrutura das unidades de APS

O contexto da pandemia de covid-19 evidenciou a precariedade da estrutura física de grande parte das UBS no País. No processo de reconstrução da APS, serão necessários investimentos expressivos para assegurar as condições estruturais que garantam o atendimento às normas de biossegurança e acessibilidade das instalações, suficiência de equipamentos, insumos, medicamentos e vacinas; e conectividade de internet e sistemas de transporte sanitários para conectar pacientes aos demais níveis de atenção. Em 2024, estão previstos recursos federais da ordem de R$ 7,4 bilhões no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento para construção e reforma das UBS, sendo recomendável o conhecimento dessas necessidades para melhor alocação dos recursos. Nesse eixo, as propostas apresentadas no quadro 4 contemplam estudos que analisam as condições estruturais da rede de serviços básicos de saúde.

Eixo VII: Atenção integral e resolutiva de qualidade

Nesse eixo, são elencados alguns agravos e problemas de saúde cujo controle dependem da organização da APS de base territorial e orientação comunitária, destacando-se as condições crônicas, a saúde mental e as violências. A integração das práticas de APS e vigilância, conforme apresentado no eixo modelo de atenção, deve ser investigada quanto aos seus possíveis efeitos na qualidade de vida e saúde da população - da mesma forma, as questões pouco estudadas na literatura, como a efetividade de ações de APS para os cuidados paliativos e direcionadas à saúde indígena. Finalmente, as lições aprendidas durante a pandemia de covid-19 devem orientar a preparação da APS para futuras emergências sanitárias, incluindo os efeitos da crise climática. Investigações sobre o impacto da APS na ocorrência e na distribuição desses problemas propostas nesse eixo são apresentadas no quadro 5.

Quadro 5
Temas de Investigação prioritários - Eixo VII: Atenção integral e resolutiva de qualidade e Eixo VIII: Monitoramento e avaliação

Eixo VIII: Monitoramento e avaliação

Finalmente, o Monitoramento e Avaliação (M&A) da APS é ele próprio um eixo na agenda de pesquisa com componentes apresentados no quadro 5. Entre os gargalos, estão: a fragmentação e a desarticulação dos sistemas de informação; a atualização das informações e a possibilidade de tabulação no Tabnet/DataSUS; a disponibilização, em repositórios permanentes, de bases de dados para monitoramento e análise com ferramentas externas, como pacotes estatísticos; a educação permanente para gestores, profissionais de saúde e conselheiros; a comunicação social dos processos avaliativos e resultados. Além disso, dificuldades com o e-SUS APS favorecem a privatização dos sistemas de informação municipais. Nessa conjuntura, é fundamental que os dados gerados sejam posse, domínio e uso público, permitindo o acesso às bases de dados para pesquisadores, gestores e profissionais (quadro 5).

Considerações finais

A partir da ESF e fomentado por seus princípios e instrumentos, o Brasil experimentou um processo de crescente institucionalização da avaliação da APS, sobretudo de 2003 a 2018, com iniciativas robustas e abrangentes, como o Proesf, a AMQ e o PMAQ-AB. Esse processo virtuoso é notável em pelo menos três aspectos: a colaboração entre academia, gestão e serviços; sua natureza democrática, desde a definição de indicadores e instrumentos até a divulgação e análise dos dados coletados; e sua aceitação e capacidade de influenciar os processos de decisão política.

Precisamos retomar esses esforços, para a construção de uma Política Nacional de Monitoramento e Avaliação em APS que gere conhecimento atualizado e detalhado para orientar a gestão e o cuidado dos diferentes grupos populacionais na APS no SUS com equidade. Tal política deve orientar-se por uma perspectiva ampliada e propositiva de saúde, pelo entendimento da determinação social dos processos saúde-doença-cuidado, pela organização da atenção em um modelo vigilante da saúde segundo os princípios do SUS e da APS.

Nesse sentido, urge radicalizar o processo de reconstrução da APS e do monitoramento e avaliação em APS no Brasil, com vistas à universalização da cobertura pela ESF, com equipes qualificadas e satisfeitas com seu trabalho e executando suas atividades em UBS com adequada ambiência. O fomento de pesquisas avaliativas segundo os eixos e componentes aqui apresentados e a retomada da institucionalização da avaliação em APS são fundamentais para informar as necessárias políticas para o enfrentamento dos desafios discutidos.

Além de trabalhar com os usuários, é necessário melhorar nossas ferramentas, para encontrar as pessoas ainda excluídas da APS. A noção de ‘território’ e de ‘comunidade’ é essencial: todos nós moramos em algum ‘lugar’ e todos temos uma história, mais ou menos recente, com esse ‘lugar’. O ‘local’ é o campo de trabalho da APS, assim, a institucionalização de uma Política Nacional de Monitoramento e Avaliação da APS, que considere os elementos aqui discutidos, deve ser um vigoroso instrumento de promoção de equidade em saúde e direitos sociais para a população brasileira em todos os territórios.

  • (Em nome da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde - Rede APS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco)
  • Suporte financeiro:

    não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2024
  • Aceito
    15 Abr 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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