Enfrentamento da sífilis em Pessoas Vivendo em Situação de Rua: relato de experiência

Coping with syphilis in homeless people: experience report

Vinícius Rodrigues Fernandes da Fonte Carina D’Onofrio Prince Pinheiro Daniele do Nascimento Machado de Sousa Emanuel Lucas de Lima Ramos Fabiana Ferreira Koopmans Eliane Oliveira de Andrade Paquiela Sobre os autores

RESUMO

Este estudo teve como objetivo descrever a experiência de uma equipe de Consultório na Rua (eCnaR) em implantar ferramentas de cuidado para o enfrentamento da sífilis adquirida e gestacional na população vivendo em situação de rua. Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato de experiência, realizado em uma eCnaR do município do Rio de Janeiro, Brasil, entre os meses de maio de 2022 e novembro de 2023. A experiência foi discutida à luz da teoria de autoeficácia de médio alcance, de Bárbara Resnick. Dentre as 371 Pessoas Vivendo em Situação de Rua cadastradas na equipe, 86 foram diagnosticadas com sífilis adquirida ou gestacional. A taxa de tratamento completo foi de 51,16%. Outros 12,79% tiveram o tratamento interrompido por ser considerado cicatriz ou sífilis primária. Dentre as gestantes, 90,91% concluíram o tratamento. Mudanças na linguagem profissional e no ambiente, que incluem a cultura organizacional, normas e rotina, tendem a contribuir para a melhora da autoeficácia do tratamento da sífilis entre as Pessoas Vivendo em Situação de Rua.

PALAVRAS-CHAVES
Atenção Primária à Saúde; Autoeficácia; Pessoas mal alojadas; Sífilis

ABSTRACT

This study aimed to describe the experience of a Consultório na Rua (eCnaR) team in implementing care strategies to combat acquired and gestational syphilis in the population living on the streets. This is a described study, an experience report type, carried out in an eCnaR in the city of Rio de Janeiro, Brazil, between the months of May 2022 and November 2023. The experience was discussed in the light of the medium reach self-efficacy theory, by Bárbara Resnick. Among the 371 people living on the streets registered with the team, 86 were diagnosed with acquired or gestational syphilis. The complete treatment rate was 51.16%, others 12.79% had treatment interrupted, as it was considered scarring or primary syphilis. Among pregnant women, 90.91% completed the treatment. Changes in professional language and the environment, which include organizational culture, norms and routine, tend to contribute to improving self-efficacy for treating syphilis among people living on the streets.

KEYWORDS
Primary health care; Self efficacy; Ill-housed persons; Syphilis

Introdução

As Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) possuem mais de 30 patógenos, entre vírus, bactérias, fungos e protozoários, que podem ser transmitidos através do contato sexual vaginal, oral e anal. Alguns podem, inclusive, ser transmitidos de mãe para filho durante a gravidez, parto ou amamentação. Estima-se que mais de um milhão de IST sejam adquiridas todos os dias no mundo11 Organização das Nações Unidas [Internet]. Washington, DC: ONU; Ó2024. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. [acesso em 2024 jan 5]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
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,22 Fonte VRF, Spindola T, Lemos A, et al. Knowledge and perception of risks related to sexually transmissible infections among young university students. Cogitare Enferm. 2018;23(3):e55903. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v23i3.55903
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No que tange a sífilis, estima-se 7,1 milhões de infecções ao ano no mundo. Trata-se de uma IST sistêmica, crônica, curável e exclusiva do ser humano. É causada pela bactéria Treponema Pallidum (t. pallidum) que, quando não tratada, evolui para estágios de gravidade variada. Suas consequências incluem lesões cutâneas, ósseas, cardiovasculares e neurológicas, podendo levar à morte. Na gestação, pode ocasionar abortamento espontâneo, natimortalidade, parto prematuro, malformação do feto, surdez, cegueira, alterações ósseas, deficiência intelectual ou morte ao nascer. Sua transmissão ocorre, principalmente, por contato sexual, mas pode ser transmitida verticalmente para o feto, durante a gestação de uma pessoa com sífilis não tratada ou inadequadamente tratada11 Organização das Nações Unidas [Internet]. Washington, DC: ONU; Ó2024. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. [acesso em 2024 jan 5]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
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Como a maioria das pessoas com sífilis é assintomática, reduz-se a chance de procura pelo serviço de saúde. Pode ser classificada em diferentes estágios, sendo os iniciais de sífilis primária e secundária os de maiores chances de transmissibilidade. A sífilis primária possui tempo de incubação de dez a 90 dias, com média de três semanas. A principal manifestação é uma úlcera rica em treponemas, geralmente única e indolor, com borda bem definida e regular, base endurecida e fundo limpo. Surge no local de entrada da bactéria, i.e., pênis, vulva, vagina, colo do útero, ânus, boca ou outro local tegumentar. É acompanhada de linfodenopatia regional. O desaparecimento da sintomatologia independe do tratamento, podendo não ser notado ou valorizado pelo paciente33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Na sífilis secundária, que ocorre em média entre seis semanas e seis meses após a cicatrização da lesão primária, ou cancro duro, as manifestações são muito variáveis. Em geral, apresenta-se uma erupção macular eritematosa pouco visível, principalmente no tronco e raiz dos membros. As lesões progridem e se tornam mais evidentes, papulosas e eritematosas acastanhadas, que podem atingir todo tegumento, sendo frequente nos genitais e habitualmente na palma da mão e planta dos pés. A sífilis secundária pode ocasionar ainda placas acinzentadas em mucosas, lesões úmidas e vegetantes, alopecia em clareira e madarose. Sintomas inespecíficos tais como febre baixa, mal-estar, cefaleia e adinamia também podem aparecer. A sintomatologia desaparece em algumas semanas, independente de tratamento, provocando falsa impressão de cura33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Sífilis latente é o período em que não se observa nenhum sinal ou sintoma. O diagnóstico faz-se exclusivamente pela reatividade dos testes treponêmicos e não treponêmicos, e a maioria dos diagnósticos ocorre nessa fase. A sífilis latente é dividida em latente recente – até um ano de infecção – e latente tardia – de mais de um ano de infecção33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

A sífilis terciária pode surgir entre um e 40 anos depois do início da infecção. Nesse estágio, provoca destruição tecidual, sendo comum o acometimento do sistema nervoso, cardiovascular e ósseo. Esse estágio pode levar a morte33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Os testes diagnósticos de sífilis são divididos nas categorias exames diretos e testes imunológicos. Na prática clínica, os testes imunobiológicos são os mais utilizados. Caracterizam-se pela realização de pesquisa de anticorpos em amostras de sangue, soro ou plasma. São subdivididos em treponêmicos e não treponêmicos33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Os testes treponêmicos detectam anticorpos específicos produzidos contra o antígeno t. pallidum. São os primeiros a se tornarem reagentes, podendo ser utilizados como primeiro teste. Em geral, permanecem reagentes por toda a vida da pessoa, mesmo após o tratamento, e, por isso, não são indicados para o monitoramento após o tratamento. Existem vários tipos de testes treponêmicos, sendo o mais comum o Teste Rápido (TR) de imunocromatografia de fluxo lateral ou de plataforma de duplo percurso. São distribuídos para os municípios pelo Ministério da Saúde (MS) do Brasil, sendo de fácil execução, pois utilizam amostras de sangue por punção digital ou venosa, tendo resultados em no máximo 30 minutos, sem necessidade de rede de laboratório33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Os testes não treponêmicos, detectam anticorpos anticardiolipina não específicos para os antígenos do t. pallidum. Permitem uma análise qualitativa e quantitativa. Geralmente, são utilizados para controle e monitoramento da resposta ao tratamento e controle da cura, mas também podem ser utilizados para diagnóstico, especialmente nos casos de reinfecção ou suspeita. No entanto, necessitam de rede de laboratório33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

A queda adequada dos títulos de diluição são um indicativo de sucesso do tratamento. Um dos testes não treponêmicos mais comumente utilizados no Brasil é o Venereal Disease Research Laboratory (VDRL). Resultados falso-reagentes, ainda que raros, podem ocorrer, de modo que é importante realizar testes treponêmicos e não treponêmicos33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Se a infecção for detectada nas fases tardias da doença, são esperados títulos baixos (≤ 1:4) que podem persistir por meses ou anos. Por isso, pessoas com títulos baixos e sem registro de tratamento ou sem data de infecção conhecida precisam ser tratadas como sífilis latente tardia. No entanto, pessoas adequadamente tratadas podem apresentar cicatriz ou memória sorológica, mesmo nos testes não treponêmicos de baixa titulação, afastada a possibilidade de reinfecção33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

O tratamento da sífilis tem como medicamento de escolha a benzilpenicilina benzatina, sendo, inclusive, a única droga com eficácia documentada para tratamento durante a gestação. Outras drogas, para não gestantes, como doxiciclina e a ceftriaxona, devem ser utilizadas como segunda opção. Para os casos de sífilis primária, secundária, latente recente, de menos de um ano de evolução, o tratamento é com a benzilpenicilina benzatina 2,4 milhões de UI, por via intramuscular (IM), em dose única. Para os casos de sífilis latente tardia, de mais de um ano de evolução, latente com duração desconhecida e terciária, o tratamento é com benzilpenicilina benzatina 2,4 milhões de UI, por via IM, uma vez por semana, durante três semanas, totalizando 7,2 milhões de UI. Em não gestantes, o intervalo entres as doses pode ser de até 14 dias. Em gestantes, o intervalo deve ser de sete dias, impreterivelmente. É imprescindível adotar meios para o tratamento das parcerias sexuais, de forma a interromper a cadeia de transmissão e evitar reinfecção33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Para considerar a pessoa como adequadamente tratada, utiliza-se o teste não treponêmico com resultado não reagente ou com uma queda na titulação em duas diluições em até seis meses para sífilis recente. Para sífilis tardia, queda em duas diluições em até doze meses33 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis – IST. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022..

Apesar de a sífilis ser retratada desde a antiguidade, no Brasil, é uma reemergência sanitária. As notificações de sífilis em gestante e de sífilis adquirida foram consideradas como agravos de notificação em 2005 e 2010, respectivamente. No período de 2012 a 2022, foram notificados 1.237.027 casos de sífilis adquirida e 537.401 de sífilis em gestante44 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Boletim Epidemiológico – Sífilis 2023. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2023..

Desde 2012, se observa um aumento dos casos de sífilis adquirida no Brasil, com exceção do ano de 2020, período em que ocorreu a emergência global de saúde provocada pela covid-19 e afetou a capacidade dos sistemas de saúde em acolher e atender demais agravos. A maioria dos casos ocorre no sexo masculino (60,7%) e na faixa etária de 20 a 29 anos (36%). Não obstante, os casos de sífilis em gestante também têm mantido crescimento constante. Em 2023, a taxa foi de 32,4 casos por 1.000 nascidos vivos44 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Boletim Epidemiológico – Sífilis 2023. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2023..

Em 2022 foram notificados no país 213.129 casos de sífilis adquirida, sendo a taxa de detecção de 99,2 casos por 100.000 habitantes. O estado do Rio de Janeiro, possui dados superiores à média nacional, apresentando taxa de 127,5 casos por 100.000 habitantes; e, em gestantes, de 69,7 por 1000 nascidos vivos, a maior do Brasil. No que tange a cor da pele, acomete, principalmente, pessoas pretas e pardas44 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Boletim Epidemiológico – Sífilis 2023. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2023..

As Pessoas Vivendo em Situação de Rua (PVSR) são consideradas uma população prioritária para o enfrentamento das IST no Brasil, por ser considerado um segmento populacional vulnerabilizado, tanto no que tange a questões comportamentais como nos fatores estruturantes da sociedade e no contexto histórico. Apesar de ser invisibilizada no boletim epidemiológico sobre sífilis divulgado pelo MS, estudos estimam prevalência que variam de 17,5% a 25%55 Resende AVS, Teixeira KS, Rocha SHDN. Prevalência de Sífilis, HIV e Hepatites B e C em pacientes atendidos por uma equipe do consultório na rua do Distrito Federal. Braz J Hea Ver [Internet]. 2021 [acesso em 2024 jan 5];4(6):25634-45. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/39790
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,66 Felipetto LG, Teider-Junior PI, Silva FFV, et al. Se-rosurvey of anti-treponema pallidum (syphilis), antihepatitis C virus and anti-HIV antibodies in homeless persons of São Paulo city, southeastern Brazil. Braz J Infect Dis. 2021;25(4): 101602. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjid.2021.101602
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,77 Pinheiro RS, Carvalho PMRS, Matos MA, et al. Human immunodeficiency virus infection and syphilis among homeless people in a large city of Central-Western Brazil: prevalence, risk factors, human immunodeficiency virus-1 genetic diversity, and drug resistance mutations. Braz J Infect Dis. 2021;25(1):101036. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjid.2020.11.001
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Dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada estimaram 281.400 PVSR no Brasil no ano de 2022. Entre os anos de 2019 e 2022, houve um aumento de 38%, provavelmente em razão das consequências sociais e econômicas da pandemia da covid-19. Nos últimos dez anos, o crescimento da PVSR foi de 211%, enquanto o da população brasileira foi de 11%88 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Internet]. Brasília, DF: IPEA; [sem data]. População em situação de rua supera 281,4 mil pessoas no Brasil. [acesso em 2024 jan 4]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13457-populacao-em-situacao-de-rua-supera-281-4-mil-pessoas-no-brasil
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. As PVSR são definidas como um grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular. Utilizam os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória99 Casa Civil (BR). Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2009 dez 24; Seção 1:16..

Este estudo tem como objetivo descrever a experiência de uma equipe de Consultório na Rua (eCnaR) em implantar ferramentas de cuidado para o enfrentamento da sífilis adquirida e gestacional na população vivendo em situação de rua.

Material e métodos

Trata-se de um estudo descritivo, do tipo relato de experiência, sobre a atuação de uma eCnaR no município do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Esse serviço está vinculado à secretaria municipal de saúde, sendo administrado por uma Organização Social de Saúde (OSS), por meio de um contrato de gestão com o governo municipal.

As eCnaR foram instituídas pela portaria 122 do MS em 2011 como um equipamento que visa a combater as desigualdades e garantir a equidade no Sistema Único de Saúde. Têm a função de lidar com os diferentes problemas e necessidades de saúde da PVSR por meio de uma equipe multiprofissional. As eCnaR integram o componente da atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e desenvolvem ações seguindo os fundamentos e diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica1010 Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 122 de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Seção 1..

A equipe desempenha suas atividades in loco, de forma itinerante, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas às Unidades Básicas de Saúde (UBS), a outros pontos da Raps, a unidades de urgência e emergência e a demais serviços, de acordo com a necessidade do usuário. Inclui também a busca ativa e o cuidado a usuários de álcool, crack e outras drogas. A composição das equipes prevê três modalidades, que diferem pelo número de profissionais. Dependendo da modalidade das equipes, há um repasse diferenciado de financiamento aos municípios pelo MS. Cada equipe deve atender de 80 a 1000 PVSR, e, para atuarem de forma itinerante, recebem recursos para o financiamento do transporte1010 Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 122 de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Seção 1..

Apesar de já existirem outras eCnaR no município do Rio de Janeiro, a equipe cenário deste estudo foi instituída em maio de 2022, quando nenhuma das demais atuava no seu território de abrangência. Trata-se de uma equipe modalidade três, composta por médicas, enfermeiro, assistente social, psicóloga, técnica de enfermagem, três agentes sociais e um motorista. Ela foi vinculada a um Centro Municipal de Saúde, de modo a prover as condições necessárias para a realização do trabalho in loco e itinerante. Esse local fornece insumos tais como curativos, imunização, testes rápidos de imunocromatografia, material para coleta de exames laboratoriais, dentre outros.

Sendo um serviço novo para o atual território, foi necessária a criação de fluxos que pudessem garantir a eficiência e resolutividade dos problemas de saúde das PVSR, consideradas suas vulnerabilidades. Nesse sentido, apresentam-se as ferramentas utilizadas para o enfrentamento da sífilis, discutidas à luz da teoria de autoeficácia de médio alcance de Bárbara Resnick.

Bárbara Resnick1111 Pimenta CJL. Adaptação transcultural e evidências de validade da versão brasileira do cancer behavior inventory – brief version [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022. desenvolveu seu modelo teórico com base nos estudos do psicólogo canadense Albert Bandura, que fundamentou teoricamente o conceito de autoeficácia. Ela utiliza-se do conceito para embasar a prática clínica do enfermeiro na compreensão do comportamento de saúde do indivíduo em diferentes ambientes e na orientação do desenvolvimento de intervenções que pudessem modificá-lo1111 Pimenta CJL. Adaptação transcultural e evidências de validade da versão brasileira do cancer behavior inventory – brief version [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022..

Essa teoria compreende o funcionamento humano como uma interação dinâmica de influências pessoais, comportamentais e ambientais, as quais podem variar em nível de intensidade e ao longo do tempo. A teoria também aborda que as expectativas de autoeficácia e os objetivos de resultados não são influenciados apenas por padrões, mas também por incentivos verbais, sensações fisiológicas e pela exposição a modelos funcionais ou auto-modelagem1111 Pimenta CJL. Adaptação transcultural e evidências de validade da versão brasileira do cancer behavior inventory – brief version [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022..

Resultados

Até novembro de 2023, haviam sido cadastradas na equipe 371 PVSR, das quais 86 (23,18%) tiveram diagnóstico de sífilis. Apesar de a realização de TR para IST ter sido estimulada, ainda assim, nem todas as pessoas aceitaram fazer. Alguns alegam medo de agulha, outros não se consideram em risco, mas há também situações em que o cadastro é realizado em território e por profissional não habilitado à realização do teste ou em locais onde não é possível garantir a privacidade e o sigilo necessário para a realização. De toda a forma, há o empenho da equipe para estimular e localizar as pessoas para a testagem, sendo uma cultura organizacional.

Apesar de desafiador, 44 (51,16%) pessoas concluíram o tratamento de sífilis. Por estarem vivendo em situação de rua, nem sempre é fácil localizá-las no território, especialmente quando o tratamento não é iniciado na unidade de saúde, mas na rua ou no seu local de vida. O tratamento é doloroso, em virtude da densidade e viscosidade da benzilpeniclina benzatina, e muitos tendem a interromper o tratamento, por não se sentirem doentes. Dentre os 44 tratamentos completos, sete receberam dose única, seja por apresentarem sintomas de sífilis primária ou secundária, ou por serem latente recente, i.e., por terem apresentado um TR não reagente há menos de um ano com nossa equipe. Por isso, a realização regular de TR é tão importante, pois contribui para a redução da cadeia de transmissão e evita a detecção da infecção como latente tardia e, por consequência, necessitar de um tratamento mais longo.

Em onze (12,79%) casos, foi realizada a interrupção do tratamento por se tratar de uma cicatriz ou uma infecção recente, tendo em vista que o VDRL apresentou resultado não reagente. Conforme figura 1, caso a pessoa desconheça ter tido a infecção ou relata ter feito o tratamento de sífilis, mas sem comprovação, é realizada a coleta do VDRL, e aplicada a primeira dose de 2,4 milhões de UI de benzilpeniclina benzatina. Por isso a importância da coleta do VDRL no início do tratamento.

Figura 1
Fluxograma estratégico para vigilância da sífilis em serviço

Houve um caso que se recusou de todas as formas a aceitar o tratamento com a benzilpeniclina benzatina devido ao medo de agulha, apesar de ter sido prescrito o tratamento de segunda opção (doxiciclina). Não se considerou como concluído, pois não houve informação que tenha tomado a medicação de forma correta.

Tivemos dois casos que foram diagnosticados, mas não puderam ser tratados, pois se tratava de atendimento em território e, no momento, não tínhamos disponível a medicação. Tal situação foi resolvida por meio de um acordo com a farmácia da unidade; a equipe teria frascos sob sua tutela e a reposição desses frascos se daria por meio da entrega da receita com a notificação. Apesar de os referidos pacientes não terem sido mais localizados em nosso território, pelo menos, receberam a informação sobre a infecção e a necessidade de tratá-la.

Dentre as onze gestantes com sífilis gestacional, apenas uma (9,09%) não foi adequadamente tratada. De toda forma, os resultados são desafiadores, pois todas as gestantes tiveram o diagnóstico no segundo ou terceiro trimestre.

Dentre as ferramentas adotadas em nosso serviço para o enfretamento da sífilis adquirida e gestacional, listamos as seguintes:

  • Acordo com o laboratório da unidade. O horário para coleta de exames de sangue é de 7h00 às 9h00, pois o serviço é terceirizado e as amostras são recolhidas para serem analisadas em outro local. No entanto, o serviço possui centrífuga e geladeira para armazenamento de amostras. Acordou-se, que a coleta do material poderia ocorrer em qualquer horário durante o funcionamento da unidade, 7h00 às 20h, desde que o material seja centrifugado e enviado para o laboratório em até 72h, geralmente no dia seguinte.

  • Acordo com a farmácia. Ter sempre a reserva de frascos de benzilpeniclina benzatina e lidocaína 2% sem vasoconstrictor, tanto no consultório da equipe, na unidade de saúde, e nas atividades de território. As medicações seriam repostas com a entrega da receita e da notificação de utilização em pacientes. Assim, oportunizaríamos ao máximo o início do tratamento, evitando, novamente, o deslocamento pela unidade e o risco de desistência ou evasão.

  • Utilização de lidocaína 2% sem vasoconstrictor 0,5 ml por frasco de benzilpeniclina benzatina. Tal ferramenta reduz a dor na realização do procedimento e aumenta as chances de continuidade do tratamento.

  • Ter sempre TR para IST e material para coleta de exame laboratorial, seja no consultório, na unidade de saúde, ou nas ações em território. Ter o material em consultório otimiza a importância que damos para esse agravo e evita que o paciente fique se deslocando pela unidade e aguardando atendimentos por outros profissionais, onde o risco de desistência ou evasão aumenta.

  • Nas atividades no território, preferencialmente se deslocar com o veículo da equipe, pois possibilita espaço mais privativo para realização de TR e administração da medicação. Dessa forma, permite garantir o máximo de sigilo e privacidade para PVSR.

  • Criação de agenda on-line pelo Google®, compartilhada com todos os profissionais da equipe. Nessa agenda, as doses seguintes são programadas para a realização de busca ativa.

  • Manter periodicidade na realização de TR para IST, especialmente sífilis. Dessa forma, é possível a captação dos casos nas fases iniciais, redução da cadeia de transmissão e tratamento em dose única. Também promove a cultura entre as pessoas de cuidar da saúde sexual.

  • Localizar as parcerias sexuais. Conversar com a pessoa sobre a importância do tratamento do(a) parceiro(a) para evitar a reinfecção; se for possível, realizar a conversa com o casal. Dessa forma, é possível mitigar dúvidas e evitar violências, seja por ciúmes ou desconfianças. Se TR para sífilis do parceiro for não reagente, realizar dose profilática, especialmente, quando gestantes.

  • Sempre respeitar a decisão da pessoa sobre se tratar ou não ou quando será o melhor momento. É imperativo garantir o fortalecimento do vínculo para que essa pessoa escute e absorva as orientações de educação em saúde para que, quem sabe, aceite realizar o tratamento no futuro.

Discussão

Resnick desenvolveu sua teoria a partir de estudos realizados com pessoas idosas, embora sua aplicação possa ser realizada a outras faixas etárias e segmentos populacionais, especialmente entre aqueles que não têm muita crença na sua recuperação. A PVSR, apesar de fazer parte de um segmento populacional majoritariamente jovem, possui baixa autoestima e baixa percepção de risco, vivendo do imediatismo, do aqui e agora. Tais características estão associadas às violações de direitos que sofrem no cotidiano por meio da marginalização, discriminação e preconceitos. Os determinantes sociais implicam alto risco de desenvolvimento de tuberculose, violências, traumas, doenças cardiovasculares e infecciosas. Estima-se que a PVSR apresente expectativa de vida média de 42 a 52 anos, número inegavelmente inferior aos 76,6 anos para a população geral brasileira1111 Pimenta CJL. Adaptação transcultural e evidências de validade da versão brasileira do cancer behavior inventory – brief version [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022.,1212 Gomes RS, Passoni LCL, Sirigatti RP, et al. Saúde dos indivíduos em situação de rua: entre queixas, sintomas e determinantes das doenças crônicas. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2022;17(44):3233. DOI: https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)3233
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O modelo teórico de Resnick possibilita o estímulo para o alcance das metas de cuidado, especialmente para um problema de saúde, que, na maioria das vezes, se mostra inofensivo e sem sintomatologia, como no caso da sífilis latente. Além disso, o tratamento, considerado doloroso, muitas vezes, é motivo para sua não adesão, como evidenciado em outros estudos1313 Navega DA, Bortolozzi AC. Relatos de pessoas curadas da sífilis sobre as experiências na adesão ao tratamento. Rev Cont Saúde. 2022;22(46):e13481. DOI: https://doi.org/10.21527/2176-7114.2022.46.13481
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,1414 Estrada V, Santiago E, Cabezas I, et al. Tolerability of IM penicillin G benzathine diluted or not with local anesthetics, or different gauge needles for syphilis treatment: a randomized clinical trial. BMC Infect Dis [online]. 2019;19(883):1-5. DOI: https://doi.org/10.1186/s12879-019-4490-5
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Resnick, assim como Bandura, propõe que o julgamento sobre a autoeficácia é resultado de quatro fontes de informação: realização enativa; experiência vicária; persuasão verbal; e feedback fisiológico. A avaliação cognitiva desses fatores pelo indivíduo provoca uma percepção de confiança na sua capacidade de adotar um determinado comportamento1515 Resnick B. Theory of self-efficacy. In: Smith MJ, Liehr PR. Middle range theory for nursing. 3. ed. New York: Springer; 2014. p. 197-224..

A realização enativa é considerada como a fonte mais importante de informação da eficácia e está relacionada com a consolidação favorável de uma conduta em experiências anteriores. Por isso, depende de fatores como a habilidade, dificuldade percebida, quantidade de esforço atribuído a tal tarefa, a ajuda externa recebida, as circunstâncias e as experiências de sucesso, fracasso e erros anteriores1515 Resnick B. Theory of self-efficacy. In: Smith MJ, Liehr PR. Middle range theory for nursing. 3. ed. New York: Springer; 2014. p. 197-224.. Nesse sentido, nos deparamos com alguns desafios no que tange ao tratamento da sífilis: as pessoas que já iniciaram, mas não concluíram ou se reinfectaram e as pessoas que nunca iniciaram. As pessoas com experiências prévias do tratamento, especialmente as que possuem experiências ruins, podem ter mais dificuldade em aceitar o tratamento. Por isso, adotamos a utilização do respeito pela decisão, educação em saúde, uso de anestésico e a tentativa da coleta de sangue, pois, dessa forma, podemos trazer algo mais ‘concreto’ de que a infecção está em atividade para essa pessoa. Para os que nunca iniciaram o tratamento, o desafio é fazer com que essa experiência seja menos traumática, por meio do uso do anestésico. Também adotamos a oportunização imediata, sem o deslocamento constante da pessoa pela unidade, de modo que ela não tenha a ideia de que, para se cuidar, precisa enfrentar outras filas e demora no atendimento.

Cabe salientar que a utilização de anestésico tem sido amplamente divulgada na literatura científica como uma medida para reduzir a dor durante o tratamento e garantir a continuidade do mesmo. Estudo reforça que o calibre da agulha não interfere sobre a dor, mas que a utilização ou não do anestésico tem forte relação com a dor atribuída ao procedimento1414 Estrada V, Santiago E, Cabezas I, et al. Tolerability of IM penicillin G benzathine diluted or not with local anesthetics, or different gauge needles for syphilis treatment: a randomized clinical trial. BMC Infect Dis [online]. 2019;19(883):1-5. DOI: https://doi.org/10.1186/s12879-019-4490-5
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. A própria Biblioteca Virtual em Saúde apresenta parecer baseado em evidência científica, informando que o uso de 0,5 ml de lidocaína 2% sem vasoconstrictor reduz a dor durante a aplicação e nas primeiras 24 horas após o procedimento1616 Biblioteca Virtual em Saúde Atenção Primária em Saúde [Internet]. São Paulo: BIREME/OPAS/ OMS; [sem data]. Núcleo de Telessaúde Sergipe. A Penicilina benzatina pode ser administrada associada à Lidocaína para facilitar a adesão de tratamento medicamentoso? [acesso em 2024 jan 4]. Disponível em: https://aps-repo.bvs.br/aps/a-penicilina-benzatina-pode-ser-administrada-associada-a-lidocaina-para-facilitar-a-adesao-de-tratamento-medicamentoso/#:~:text=O%20uso%20de%200%2C5,e%20nas%20primeiras%2024%20horas.&text=J%C3%A1%20existe%20Nota%20t%C3%A9cnica%20da,com%20s%C3%ADfilis%20e%20seus%20parceiros
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A segunda fonte, chamada de experiência vicária, está relacionada à visualização de pessoas semelhantes realizando um determinado comportamento1515 Resnick B. Theory of self-efficacy. In: Smith MJ, Liehr PR. Middle range theory for nursing. 3. ed. New York: Springer; 2014. p. 197-224.. Assim, seguimos nossa orientação de oferta constante de TR para IST para que se forme uma cultura local da importância desse exame, de modo que as pessoas comecem a procurar pelo exame sem que seja uma demanda do profissional. Também precisamos garantir o sigilo, a privacidade e a minimização da dor na realização do procedimento, de modo que as pessoas tenham confiança em iniciar o tratamento.

A persuasão verbal consiste no estímulo verbalizado acerca da capacidade que um indivíduo apresenta para executar um comportamento1515 Resnick B. Theory of self-efficacy. In: Smith MJ, Liehr PR. Middle range theory for nursing. 3. ed. New York: Springer; 2014. p. 197-224.. Por meio do fortalecimento do vínculo, conseguimos estimular as PVSR na realização dos cuidados em saúde sexual, incentivando a realização da testagem para IST, as práticas sexuais seguras e a adesão ao tratamento para IST. Quando o tratamento é necessário, na maioria das vezes, se realiza busca ativa, de modo a demostrar para essa pessoa que ela é especial e que esse cuidado é importante, de tal forma que vamos ao encontro dela. Caso seja possível, e sempre respeitando o sigilo e o desejo da pessoa, incluímos outros atores com maior vinculação para auxiliar na adesão ao tratamento.

O vínculo é um componente indispensável da atenção primária, sendo necessário para possibilitar a longitudinalidade do cuidar. Ele possibilita a relação pessoal estreita e duradoura entre o profissional de saúde e o paciente, permitindo, com o passar do tempo, que os laços criados se estreitem e que se conheçam cada vez mais, facilitando a continuidade do tratamento e, consequentemente, evitando consultas e internações desnecessárias. O usuário deposita confiança na relação com o profissional, esperando que atue para amenizar o seu sofrimento e que o auxilie na resolução dos seus problemas. Entretanto, essa relação não deve gerar uma dependência, pois é necessário conferir autonomia e incentivar o indivíduo ao autocuidado1717 Brunello MEF, Ponce MAZ, Assis EG, et al. O vínculo na atenção à saúde: revisão sistematizada na literatura, Brasil (1998-2007). Acta paul enferm. 2010;23(1):131-5. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-21002010000100021
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,1818 Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saúde debate. 2015;39(esp):246-56. DOI: https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S005270
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Por fim, o feedback fisiológico representa uma importante fonte de informação para a autoe-ficácia, haja vista que as pessoas normalmente julgam as suas habilidades com base no seu estado fisiológico antes, durante e depois de realizar uma determinada ação1515 Resnick B. Theory of self-efficacy. In: Smith MJ, Liehr PR. Middle range theory for nursing. 3. ed. New York: Springer; 2014. p. 197-224.. Trata-se da função mais difícil de ser alcançada, pois, na maioria das vezes, a pessoa não apresenta sintomatologia, e a realização da testagem é a construção de uma demanda, mas não é, necessariamente, a demanda espontânea que traz a pessoa até o serviço. Nesse sentido, as estratégias são constantes ofertas de testagem, seja o teste treponêmico, para os que nunca tiveram sífilis, ou o não-treponêmico, para quem possui história anterior da doença. Para as pessoas que estão em tratamento, o uso de anestésico para alívio da dor, visa a promover um feedback positivo para a continuidade das próximas doses.

Ter um fluxo estabelecido auxilia a cultura organizacional do serviço para o enfrentamento da sífilis, pois os profissionais de saúde têm a capacidade de trabalhar diretamente com o indivíduo, incentivando e fornecendo motivação. Incentivar a motivação pode ser tanto pelo incentivo falado como pela adequação de fluxos dentro da instituição, pela busca ativa de pessoas ou pelo respeito por sua decisão. A relação entre as fontes de alcance para a autoeficácia é considerada como uma interação mútua, que apresenta um potencial de influenciar, positiva ou negativamente, as crenças de cada indivíduo1111 Pimenta CJL. Adaptação transcultural e evidências de validade da versão brasileira do cancer behavior inventory – brief version [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022..

Este estudo apresenta algumas limitações por ser um relato de experiência discutido à luz de um referencial teórico nunca utilizado para estudar a autoeficácia para o tratamento da sífilis em PVSR. No entanto, a descrição da experiência demonstra que essa teoria apresenta potencial para ser aplicada na população vivendo em situação de rua, e que outros estudos se fazem pertinentes. Compreender os fatores cognitivos desenvolvidos pelos indivíduos na relação com o mundo ao seu redor possibilita a percepção de confiança na capacidade de executar um determinado comportamento, o que reforça suas expectativas de autoeficácia caso essa ação obtenha um desempenho positivo.

Considerações finais

Este estudo descreveu a experiência de uma eCnaR para o enfrentamento da sífilis em PVSR. Demonstrou que as modificações no fluxo institucional e na linguagem dos profissionais que compõem a equipe têm impacto positivo no cuidado dessa população. Este trabalho coaduna com o modelo teórico de Bárbara Resnick, que concebe o funcionamento humano como uma interação dinâmica e constante.

O aumento dos casos de sífilis representa um problema de saúde pública e um desafio significativo para os serviços de saúde. No entanto, pequenas mudanças institucionais, como as aplicadas nesta investigação, mostram que é possível reverter essa tendência e garantir que todas as pessoas tenham acesso ao diagnóstico e tratamento adequado da doença.

  • Suporte financeiro:

    não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2025

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2024
  • Aceito
    05 Ago 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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