RESUMO
Com foco no ensino em saúde, o objetivo do texto é apontar a aplicabilidade dos acúmulos teóricos dos marcadores sociais da diferença e da interseccionalidade para a compreensão de processos de cuidado, saúde, adoecimento e vulnerabilização. A partir da experiência docente em uma graduação em medicina, discute-se como a perspectiva de análise articulada dos marcadores sociais da diferença complexifica a compreensão da determinação social da saúde e se aplica à realidade da formação em saúde brasileira. O artigo está organizado em duas partes. Na primeira, discute-se a importância dos marcadores sociais raça e gênero, bem como da perspectiva interseccional, para pensar a constituição de corpos e sujeitos diversos. Já na segunda parte, focaliza-se o diálogo com o campo da saúde coletiva, destacando políticas do Sistema Único de Saúde que mobilizam marcadores sociais e retomando pesquisas brasileiras que elucidam a importância do tema para o ensino em saúde. Assim, por meio de perspectiva transdisciplinar na interface entre ciências sociais e saúde coletiva, o artigo busca contribuir para a organização desse amplo debate que, especialmente a partir de 2010, tomou corpo no Brasil e busca avançar para uma formação em saúde mais comprometida com a equidade, a diversidade e os direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE
Ensino; Educação; Saúde pública; Ciências sociais
ABSTRACT
Focusing on health teaching, the objective of the text is to point out the applicability of theoretical accumulations of social markers of differences and intersectionality for understanding processes of care, health, illness and vulnerability. Based on teaching experience in an undergraduate medical course, it discusses how the perspective of articulated analysis of social markers complicates the understanding of the social determination of health and applies to the reality of Brazilian health training. The article is organized into two parts. The first discusses the importance of race and gender, as well as the intersectional perspective, to think about the constitution of diverse bodies and subjects. The second part focuses on direct dialogue with the field of collective health, highlighting Unified Health System (SUS) policies mobilize social markers and resuming Brazilian research that elucidates the importance of such debate for health teaching. Thus, through an interdisciplinary perspective at the interface between social sciences and collective health, the article seeks to contribute to the organization of this debate that, especially since 2010, has taken shape in the Brazil and seeks to advance towards health training that is more committed to equity, diversity and human rights.
KEYWORDS
Teaching; Education; Public health; Social sciences
Introdução
Quando acessam os serviços de saúde, pessoas são recebidas e tratadas da mesma maneira, independentemente de sua identidade de gênero11 Lucena M, Ferreira GG, Floss M, et al. Serviços de atendimento integral à saúde de transexuais e travestis no Sistema Único de Saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2022;17(44):1-14. DOI: https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)2964
https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)2964... ? As doses de analgesia para o manejo do parto são dadas em iguais quantidades para mulheres negras e brancas22 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública, 2017;33(1):1-17. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00078816
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007881... ? Ao chegar em um hospital de referência para câncer de mama, mulheres brancas e negras apresentam diferenças prévias no estadiamento clínico33 Rodrigues GM, Carmo CN, Bergmann A, et al. Desigualdades raciais no estadiamento clínico avançado em mulheres com câncer de mama atendidas em um hospital de referência no Rio de Janeiro, Brasil. Saúde Soc. 2021;30(3):1-12. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200813
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ? Epidemias de dengue ou Zika vírus, difundidas pelo mosquito Aedes Aegypti, afetam igualmente as pessoas ou apresentam desigualdades interseccionais de classe social, gênero e raça44 Carvalho L. Vírus Zika e direitos reprodutivos: entre as políticas transnacionais, as nacionais e as ações locais. Cad de Gênero e Diversidade. 2017;3(2):134-157. DOI: https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030
https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030... ? Essas diferentes perguntas são respondidas por pesquisas contemporâneas na interface entre ciências sociais e saúde coletiva, que demonstram a importância de se compreender os processos de saúde-doença-cuidado a partir da perspectiva dos marcadores sociais da diferença, e sobre como eles são produzidos na realidade social e histórica brasileira.
Este artigo é escrito de uma perspectiva transdisciplinar, em que duas professoras da área de saúde coletiva de uma faculdade privada sem fins lucrativos, atuando na graduação em medicina, buscam sistematizar tais reflexões com vistas a contribuir para o ensino na área da saúde. Ao abordar a temática, percebe-se a aplicabilidade do debate às demais disciplinas que compõem o campo da saúde, no desempenho de saberes e práticas que têm por intervenção a vida humana e/ou de seus grupos: um locus de inevitável interação com marcadores sociais e suas intersecções. A partir de diferentes áreas de formação, pesquisa e de nossas marcações sociais (uma de nós, enfermeira sanitarista, e a outra, antropóloga - ambas mulheres brancas e cisgênero), temos percebido a importância formativa da análise articulada dos marcadores sociais da diferença na saúde. Assim, o objetivo deste texto é contribuir para a organização deste amplo debate, que, especialmente a partir dos anos 2010, tomou corpo no Brasil e busca avançar para uma formação em saúde mais diversa, comprometida com a equidade, com as demandas de saúde da população e com os direitos humanos em um país marcado por profundas desigualdades.
No campo da saúde coletiva, a perspectiva da determinação social da saúde, que ganhou força a partir dos anos 1970, cada vez mais, passou a focalizar e complexificar a causalidade social dos processos de saúde-doença, inserindo sua compreensão em estruturas mais amplas de produção e reprodução social55 Nunes ED. A doença como processo social. In: Canesqui AM, organizadora. Ciências Sociais e Saúde no Ensino Médico. São Paulo: Hucitec-Fapesp; 2000. p. 217-229.. Em vez da centralidade do modelo biomédico e hospitalocêntrico, a perspectiva da determinação social dos processos saúde-doença buscou
[...] reconhecer como as dinâmicas sociais que engendram os processos de produção e reprodução dos padrões estruturais de dominação, exploração e marginalização nas sociedades concretas, moldam os modos de vida e se expressam nos processos saúde-doença66 Borde E, Hernandez-Alvarez M, Porto MF. Uma análise crítica da abordagem dos Determinantes Sociais da Saúde a partir da medicina social e saúde coletiva latino-americana. Saúde debate. 2015;39(106):841-854. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104201510600030023
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Tal perspectiva, fundamental para avançar na compreensão multicausal dos processos de adoecimento, comumente se detinha nas desigualdades econômicas, priorizando classe social e trabalho como eixos centrais de análise e intervenção. Conforme se discutirá neste artigo, por meio da análise interseccional, pode-se compreender como as desigualdades econômicas e de classe social se produzem em articulação com marcadores sociais como raça/cor, gênero, sexualidade, geração e deficiência, que também se constituem como eixos fundamentais para a compreensão dos processos saúde-doença-cuidado. Assim, argumenta-se que uma formação em saúde comprometida com a equidade, a diversidade e os direitos humanos deverá abordar diferentes marcadores sociais da diferença, por meio de metodologias variadas a serem trabalhadas dentro e fora das salas de aula nos cursos de graduação.
O artigo está organizado em duas partes. Na primeira parte, discute-se a importância dos marcadores sociais raça e gênero, bem como da perspectiva da interseccionalidade, para pensar a constituição de corpos e sujeitos diversos na sociedade brasileira. Já na segunda parte, focaliza-se o diálogo entre as ciências sociais e a saúde coletiva, destacando políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS) promulgadas a partir da década de 2000 que mobilizam os marcadores sociais da diferença gênero, sexualidade, raça/cor e etnia. Também se retomam pesquisas brasileiras recentes que elucidam a importância desse debate para o ensino em saúde.
Marcadores sociais da diferença e interseccionalidade pensados a partir de raça e gênero no Brasil
De maneira inicial, podemos compreender os marcadores sociais da diferença como uma ferramenta teórico-conceitual que abarca categorias classificatórias tais como gênero, orientação sexual, classe social, geração, raça, etnia e deficiência, que, em relação, produzem diferenças e desigualdades nas trajetórias de indivíduos e grupos em diferentes contextos históricos e culturais77 Almeida H, Simões JA, Moutinho L, et al. Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In: Saggese G, Marini M, Lorenzo RA, et al., organizadores. Marcadores Sociais da Diferença: Gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome; Gamma; 2018. p. 9-30.
8 Hirano LF, Acuña M, Machado BF, organizadores. Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: IU; 2019.-99 Lopes P. Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica [tese]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2020.. Assim, marcadores sociais podem ser definidos como
uma maneira de designar como diferenças são socialmente instituídas e podem conter implicações em termos de hierarquia, assimetria, discriminação e desigualdade7(10).
É importante salientar que, nessa perspectiva, tais marcas não são compreendidas como atributos biológicos ou inatos dos sujeitos, mas, sim, em termos históricos, políticos e sociais.
Nesse debate, para além da temática fundamental da diversidade e da diferença, importa compreender a problemática central dessas marcas sociais: como produzem desigualdades. Para entender esse desdobramento de ‘diferença’ em ‘desigualdade’, torna-se necessário compreender como essas diferenças são produzidas, como estão imbricadas e como se constituem mutuamente, produzindo desigualdades interseccionadas1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.
11 Crenshaw K. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero [Internet]. Brasília, DF: Unifem; 2004 [acesso em 2024 out 1]. p. 7-16. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4253342/mod_resource/content/1/IntersecionalidadeNaDiscriminacaoDeRacaEGenero_KimberleCrenshaw.pdf
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12 Truth S. E não sou uma mulher? Tradução de Osmundo Pinho. Portal Geledés [Internet], 2014 ago 1 [acesso em 2024 out 1]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/
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13 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020.-1414 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. 1984;1:223-243.. Nas palavras de Collins e Bilge1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.(18), “as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes”. Ao contrário, trata-se de compreender como as relações de poder atribuídas às pessoas e suas experiências “são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente”1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.(18). Assim, focalizando os diferentes processos de saúde-doença-cuidado, torna-se necessário compreender como marcadores sociais da diferença como classe, raça, gênero, sexualidade, geração, deficiência, entre outros, interseccionam-se e reproduzem cotidianamente desigualdades estruturais de acesso, prevenção, atendimento, tratamento, diagnóstico e educação em saúde para diferentes grupos populacionais. Ou seja, como, no cotidiano, os marcadores sociais da diferença não estão separados, mas como se interseccionam na vida de diferentes pessoas e grupos populacionais.
Olhando para o caso brasileiro por essas lentes, observa-se como diferentes direitos sociais - educação, trabalho, moradia, alimentação, saúde e lazer - não são vivenciados da mesma maneira por grupos populacionais diversos, conforme categorias de gênero, sexualidade, raça/cor, classe social etc. Por exemplo, com relação ao mercado de trabalho, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no segundo trimestre de 2022, enquanto homens brancos receberam, em média, rendimentos de R$ 3.708, as mulheres brancas receberam R$ 2.774, os homens negros R$ 2.142, e as mulheres negras R$ 1.7151515 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. A persistente desigualdade entre negros e não negros no mercado de trabalho. Boletim Especial 20 de novembro Dia da Consciência Negra [Internet]. [local desconhecido]: Dieese; 2022 [acesso em 2024 out 1]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2022/boletimPopulacaoNegra2022.html
https://www.dieese.org.br/boletimespecia... . Apesar do rendimento médio ser baixo no Brasil, ainda assim as mulheres negras ocupavam o último lugar nesse sistema de estratificação social. Tais desigualdades foram produzidas historicamente por meio de um complexo sistema colonial, mas seguem sendo reproduzidas cotidianamente no País, o qual apresenta taxas altamente estáveis de concentração de renda entre o 1% mais rico da população, ao longo de décadas1616 Souza PF. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926 - 2013). São Paulo: Hucitec; 2018..
A construção da categoria ‘raça’ é fundamental para a compreensão das desigualdades estruturais brasileiras. A exploração econômica do Brasil desde sua colonização foi sustentada pela escravização de povos originários e de povos oriundos da África, que contou com o maior sistema organizado de tráfico humano de que se tem registro na história, resultando em uma barbárie de quase 400 anos1717 Nascimento A. O Quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes; 1980..
A escalada dessa exploração teve por base um processo de marcação social de diferenciação racial produzido pelo discurso colonizador, o qual buscou destituir a pessoa indígena e africana do estatuto de humanidade. O branco europeu, mesmo tendo sido o responsável pelas barbáries das colonizações, produzia, por sua parte, características raciais supervalorizadas. Aos primeiros, uma suposta ausência de estatuto político, intelectual, ético e estético; aos segundos, justamente, uma supervalorização desses atributos1818 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.,1919 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev Estud Fem. 2014;22(3):935-952. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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Conforme questiona Nascimento1717 Nascimento A. O Quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes; 1980.(266), caberia analisar por meio de qual fenômeno foi possível que europeus brancos escravizassem outros seres humanos “com uma brutalidade sádica sem precedentes na história”. A produção econômica no período colonial, nunca minimamente reparada, estruturou heranças para brancos, negros e indígenas no Brasil, no formato de riquezas para os primeiros e desvantagens estruturais para os segundos, como a ausência de terra, renda ou oportunidade de trabalho digno pós a abolição da escravatura1717 Nascimento A. O Quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes; 1980.,1818 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.,2020 Carneiro S. 2023. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. São Paulo: Cia das Letras; 2023.. Os marcadores de classe e raça se imbricam inevitavelmente nessa forma de estruturação produtiva no Brasil.
Com a ascensão do racismo científico, no final do século XIX e início do século XX, o discurso da diferenciação racial migrou para a ciência. Médicos e antropólogos procuraram validar, a partir de parâmetros antropométricos, a diferenciação racial para reforçar a suposta superioridade da raça branca2121 Oda AMGR, Dalgalarrondo P. Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico. Braz J Psychiatry. 2000;22(4):178-179. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-44462000000400007
https://doi.org/10.1590/S1516-4446200000... . A partir dos anos 1930, novas narrativas sobre as desigualdades raciais brasileiras passaram a anunciar ‘características positivas’ da miscigenação, na medida em que promoveria uma suposta ‘harmonia racial’ e, portanto, um país livre do racismo. O que veio a se chamar ‘mito da democracia racial’, difundido a partir da obra de Gilberto Freyre, entre outros autores, tem sido exitoso em mascarar a brutal desigualdade racial no Brasil expressa em dados sobre renda, escolaridade, acesso a serviços, e mesmo do direito à vida1414 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. 1984;1:223-243.,2222 Oliveira E, Couto MT, Separavich MAA, et al. Contribuição da interseccionalidade na compreensão da saúde-doença-cuidado de homens jovens em contextos de pobreza urbana. Interface (Botucatu). 2020;24:e180736. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180736
https://doi.org/10.1590/Interface.180736... ,2323 Medeiros TM, Silva MX, Silva RDFC. Colonialidade e a branquitude: apontamentos para quebra dos pactos de silêncio na saúde. Em construção. 2021;(9):105-125. DOI: https://doi.org/10.12957/emconstrucao.2021.55233
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O processo de apagamento das desigualdades raciais se sustenta, também, a partir da ideia de ‘mérito’. A justificativa sobre o acesso a bens materiais e simbólicos como resultado do esforço estritamente individual busca apagar a historicidade sobre como o marcador racial branco garante inevitavelmente mais acesso a esses bens, produzindo desigualdade racial. Dessa forma, a omissão ou
[...] a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil tem um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem acompanhado de um pesado investimento na colocação desse grupo como referência da condição humana18(30).
O olhar para esse processo histórico é revelador das desigualdades em saúde enfrentadas no presente. De acordo com artigo publicado na revista ‘The Lancet Global Health’ por equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2022, crianças indígenas apresentavam 14 vezes mais chances de morrer por diarreia do que as de outros segmentos raciais2424 Rebouças P, Goes E, Pescarini J, et al. Ethnoracial inequalities and child mortality in Brazil: a nationwide longitudinal study of 19 million newborn babies. Lancet Glob Health. 2022;10(10):e1453-e1462. DOI: https://doi.org/10.1016/s2214-109x(22)00333-3
https://doi.org/10.1016/s2214-109x(22)00... . Esse mesmo risco era 72% maior entre crianças nascidas de mães pretas, quando comparado com as chances em crianças de mães brancas. Quando pensado em causas acidentais para a mortalidade, as crianças filhas de mães pretas apresentaram 37% mais riscos de morrerem do que as de mães brancas2424 Rebouças P, Goes E, Pescarini J, et al. Ethnoracial inequalities and child mortality in Brazil: a nationwide longitudinal study of 19 million newborn babies. Lancet Glob Health. 2022;10(10):e1453-e1462. DOI: https://doi.org/10.1016/s2214-109x(22)00333-3
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Assim, se a categoria raça é estruturante da formação da sociedade brasileira, o campo da saúde não escapa a essa marcação. Os sujeitos de suas práticas e sua história se inserem na estruturação racial do Brasil. E, sendo assim, cabem os seguintes questionamentos: como o marcador racial determina, também, a formação em saúde no Brasil? Nossas instituições têm sido capazes de reconhecer as marcações raciais do campo da saúde?
O ensino da história das práticas de saúde, por exemplo, tem reproduzido uma narrativa hegemônica que enuncia uma medicina europeia que adentra o Brasil acentuadamente no início do século XIX, a partir de interações entre a medicina colonial ocidental e a moderna, suavizando aspectos dos epistemicídios e das marcas coloniais de diferenciação que permearam a construção desse campo no Brasil2525 Pimenta T, Gomes F, Kodama K. Das enfermidades cativas: para uma história da saúde e das doenças do Brasil escravista. In: Teixeira LA, Pimenta TS, Hochman G. História da saúde no Brasil. São Paulo, Hucitec; 2018. p. 67-100.. Conhecimentos indígenas e afro-brasileiros, frequentemente enquadrados como ‘conhecimentos outros’, fundamentais para produção do saber em saúde e para a sobrevivência e resistência desses grupos populacionais, sofreram tentativa de apagamento da história oficial da medicina. Ou seja, há uma marcação racial que permeia o ensino em saúde e que têm validado o racismo epistêmico a partir do entendimento de conhecimentos tidos como válidos, que são aqueles marcadamente de herança branca e europeia.
A formulação sobre a produção da categoria ‘raça’ e como ela se imbrica com a produção de desigualdades em saúde no Brasil é aqui apenas um dos aspectos, muito resumido, sobre como os processos de diferenciação são complexos e se engendram a padrões de exploração econômica e de produção do conhecimento. Conforme afirma Kabengele Munanga2626 Munanga K. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. Rev Usp. 2006;68:46-57. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i68p46-57
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.... (52),
[...] sabemos todos que o conteúdo da raça é social e político. Se para o biólogo molecular ou o geneticista humano a raça não existe, ela existe na cabeça dos racistas e de suas vítimas.
Paralelamente aos debates sobre raça enquanto marcador social da diferença, também as marcações de gênero devem ser olhadas por meio da análise histórica e social de produção de diferenças e desigualdades. A categoria gênero pode ser compreendida como um dispositivo, constituído historicamente, que posiciona vivências e experiências de feminilidades e masculinidades entre diferentes pessoas, cisgênero, trans ou não binárias, independentemente do sexo biológico designado no nascimento2727 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira; 2003.,2828 Nascimento L. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra; 2021..
No Brasil, as desigualdades de gênero foram constitutivas da noção de cidadania. Ao longo do século XIX, as mulheres no Brasil, brancas, indígenas, negras ou imigrantes, não possuíam qualquer direito à propriedade, à herança, ao voto ou ao divórcio. A tais desigualdades de direitos somavam-se outras: “a exploração da mulher negra pela mulher branca”, como nos lembra Gonzalez1414 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. 1984;1:223-243.(28), alertando para “o duplo fenômeno do racismo e do sexismo”, constitutivo da historicidade brasileira.
No campo da formação em saúde, as primeiras faculdades de medicina só permitiram a entrada de mulheres brancas e de elite com a Reforma Leôncio de Carvalho, em 1879. Ainda assim, foram chamadas de ‘machonas’ nos jornais da época2929 Rago E. A ruptura do mundo masculino da medicina: médicas brasileiras no século XIX. Cad Pagu. 2000;15:199-225.. A Enfermagem tornou-se uma profissão exclusivamente ‘de mulheres’ na virada do século XIX para o XX. Antes, enfermeiros homens e mulheres dividiam funções, muitas vezes, assumindo a enfermaria ‘correspondente ao seu sexo’3030 Mott ML. Revendo a história da enfermagem em São Paulo (1890-1920). Cad Pagu. 1999;13:327-355.,3131 Macedo RM. Resistência e resignação: narrativas de gênero na escolha por enfermagem e pedagogia. Cad Pesqui. 2019;49(172):54-76. DOI: https://doi.org/10.1590/198053145992
https://doi.org/10.1590/198053145992... . À medida que foram surgindo as primeiras escolas de Enfermagem, essas passaram a recrutar apenas mulheres, em sua maioria, religiosas - caso do Hospital Samaritano, fundado em 1894, em São Paulo, que não aceitava enfermeiras casadas, e as solteiras não podiam receber visitas de ‘moços solteiros’3030 Mott ML. Revendo a história da enfermagem em São Paulo (1890-1920). Cad Pagu. 1999;13:327-355.,3131 Macedo RM. Resistência e resignação: narrativas de gênero na escolha por enfermagem e pedagogia. Cad Pesqui. 2019;49(172):54-76. DOI: https://doi.org/10.1590/198053145992
https://doi.org/10.1590/198053145992... . Tais características históricas de gênero se fazem presentes até a atualidade, em que a formação em enfermagem ainda concentra 83% de mulheres, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Nesse contexto, ressalta-se que trabalhos tradicionalmente desenvolvidos por mulheres, como o de cuidados a pessoas doentes, idosos e crianças, costumam ser menos valorizados e mais mal remunerados em comparação com atividades laborais compreendidas como ‘de homens’, como a própria medicina3232 Lombardi MR, Campos V. A Enfermagem no Brasil e os Contornos de Gênero, Raça/Cor e Classe Social na Formação do Campo Profissional. Rev ABET. 2018;17(1):28-46. DOI: https://doi.org/10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162
https://doi.org/10.22478/ufpb.1676-4439.... , o que demanda a compreensão sobre como, na saúde, a divisão técnica e sexual do trabalho produz e gera consequências para o cuidado e para a configuração das desigualdades3333 Rivera MFA, Scarcelli IR. Contribuições feministas e questões de gênero nas práticas de saúde da atenção básica do SUS. Saúde debate. 2021;45(esp1):39-50. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042021E103
https://doi.org/10.1590/0103-11042021E10... .
Excluídas do direito ao voto na Constituição em 1891, foi apenas em 1932 que as mulheres brasileiras tiveram direitos políticos minimamente conquistados. Ainda hoje, entretanto, mulheres são minoria em todas as esferas políticas nacionais, estaduais e municipais. Com relação ao mercado de trabalho, enquanto mulheres negras e de classes populares, escravizadas ou libertas, sempre trabalharam no Brasil, foi apenas em 1962, com o chamado Estatuto Jurídico da Mulher Casada, que as mulheres conquistaram o direito de ter uma profissão sem ter que pedir autorização a seus maridos3434 Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2003..
Com relação à violência de gênero, mulheres só tiveram proteção jurídica mais efetiva no início do século XXI, com a aprovação da Lei Maria da Penha, promulgada em 20063535 Pasinato W. Lei Maria da Penha. Novas abordagens sobre velhas propostas. Onde avançamos? Civitas. 2010;10(2):216-232. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2010.2.6484
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2010.... . Trata-se de uma legislação cujo objetivo é coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliando a definição de violência para abarcar a violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Entretanto, foi apenas em 2022, por meio de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que a lei foi estendida para mulheres trans, fazendo a legislação valer para qualquer mulher, independentemente do sexo biológico designado ao nascer.
Para além das lutas históricas e conquistas de direitos desempenhadas por movimentos negros, feministas e LGBTQIAPN+, deseja-se destacar aqui a perspectiva da interseccionalidade, formulada especialmente a partir dos feminismos negros1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.
11 Crenshaw K. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero [Internet]. Brasília, DF: Unifem; 2004 [acesso em 2024 out 1]. p. 7-16. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4253342/mod_resource/content/1/IntersecionalidadeNaDiscriminacaoDeRacaEGenero_KimberleCrenshaw.pdf
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12 Truth S. E não sou uma mulher? Tradução de Osmundo Pinho. Portal Geledés [Internet], 2014 ago 1 [acesso em 2024 out 1]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/
https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma...
13 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020.-1414 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. 1984;1:223-243.. No Brasil e internacionalmente, a perspectiva interseccional ganhou destaque ao reivindicar a indissociabilidade da análise crítica de raça e gênero, entre outros marcadores sociais, por meio de análises delineadas por diferentes autoras. Conforme definição ampla proposta por Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.(18):
A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária - entre outras - são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas.
A intelectual brasileira Carla Akotirene1313 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020. aponta que a interseccionalidade se produz como ferramenta ancestral, pois mulheres negras vêm produzindo este tipo de análise pelo menos desde o século XIX, quando Truth1212 Truth S. E não sou uma mulher? Tradução de Osmundo Pinho. Portal Geledés [Internet], 2014 ago 1 [acesso em 2024 out 1]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/
https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma... pronunciou o discurso intitulado ‘E não sou uma mulher?’, em 1851, durante convenção dos direitos das mulheres em Ohio, nos Estados Unidos. Nessa ocasião, Truth questionava a universalidade da categoria mulher a partir de sua condição de ter sido uma pessoa negra escravizada:
Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem - desde que eu tivesse oportunidade para isso - e suportar o açoite também! E não sou uma mulher?12(1).
Nesse caso, entre outros exemplos mobilizados posteriormente, mulheres negras tensionaram a categoria universal ‘mulher’, expondo como esta deve ser compreendida em articulação com raça e classe, entre outros marcadores sociais da diferença, para dar conta das experiências concretas dos sujeitos. O direito ao trabalho fora do domicílio, lugar social requerido por mulheres brancas de classe média a partir de meados do século XX, havia sido historicamente imposto às mulheres negras, delineando profundas desigualdades que atravessam a categoria mulher enquanto sujeito histórico.
Nesse debate, Akotirene1313 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020. também sublinha a importância de não fazer da interseccionalidade uma soma de opressões ou identidades pré-fixadas. Ao contrário, segundo a autora:
A interseccionalidade impede aforismos matemáticos hierarquizantes ou comparativos. Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade13(43).
À medida que o conceito de interseccionalidade ganhou destaque nos debates acadêmicos e de movimentos sociais em diversos países a partir dos anos 2000, algumas autoras passaram a alertar para os possíveis esvaziamentos políticos de seu uso hegemônico. A antropóloga e ativista dominicana Curiel3636 Curiel O. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Hollanda HB. Pensamento feminista hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo; 2020. p. 138-161. analisa criticamente o conceito no sentido de evitar análises interseccionais que incorrem no erro de questionar pouco como as diferenças são produzidas, e, nesse sentido, oferecem uma análise empobrecida acerca da constituição de desigualdades. Curiel defende uma posição decolonial feminista, que significa entender que classificações como raça, gênero, classe e heterossexualidade são constitutivos da episteme moderna colonial; não se resumindo a simples eixos de diferenças, mas diferenciações produzidas pelas opressões, de maneira imbricada, que produzem o sistema colonial moderno3636 Curiel O. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Hollanda HB. Pensamento feminista hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo; 2020. p. 138-161..
Podemos entender, portanto, que a interseccionalidade seria insuficiente nos casos em que provoca o apagamento sobre os modos de produção das desigualdades nas conjunturas de colonialidade. Como afirma Akotirene1313 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020.(37):
[...] frequentemente e por engano, pensamos que a interseccionalidade é apenas sobre múltiplas identidades, no entanto, a interseccionalidade é, antes de tudo, uma lente analítica, sobre a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.
Assim, a autora baiana destaca que, sem a radicalidade feminista negra decolonial, a perspectiva interseccional apoiaria contradições históricas marcadas pelas diferenças e pelo silenciamento de pontos de vista.
Até aqui, abordou-se brevemente como as categorias raça e gênero se produzem e se desdobram em desigualdades estruturais. E, para fins de um artigo curto, não serão apontados outros processos de diferenciação social. A seguir, defendemos que, para que o ensino em saúde esteja comprometido com a equidade, a diversidade e os direitos humanos, torna-se fundamental aliar as discussões sobre determinação social da saúde com a articulação de marcadores sociais da diferença. Visando a contribuir para tal debate formativo, abaixo, visibilizam-se políticas públicas promovidas pelo SUS e pesquisas brasileiras recentes que explicitam a importância de trabalhar os marcadores sociais da diferença no ensino em saúde.
Diálogos necessários para o ensino em saúde: políticas e pesquisas sobre marcadores sociais da diferença em intersecção
Iniciamos este artigo com algumas perguntas sobre diferenças e desigualdades no acesso à saúde no Brasil. Todas são temas de pesquisas recentes que apontam para processos de produção de diferenças desdobradas em desigualdades, relacionadas aos marcadores sociais da diferença em intersecção. Nesta seção, por meio de perspectiva interdisciplinar na interface entre ciências sociais e saúde coletiva, destacam-se políticas públicas de saúde do SUS que mobilizam marcadores sociais da diferença, e, em seguida, retomam-se pesquisas brasileiras recentes que elucidam a importância da perspectiva interseccional para o ensino em saúde.
Vale lembrar que, no Brasil, por meio da Constituição Federal de 1988, pactuou-se que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, resultando na implementação do SUS, regido pelos princípios da universalidade, da integralidade e da evidente necessidade da equidade para sua efetivação. Desde então, foram criadas políticas públicas, nas áreas de educação e saúde, com foco na diversidade, contando com forte apoio de movimentos sociais, levando-se em conta marcadores sociais da diferença como gênero, orientação sexual, cor/raça, classes sociais, idade e geração3737 Miskolci R, Pereira PP. Educação e Saúde em disputa: movimentos anti-igualitários e políticas públicas. Interface (Botucatu). 2019;23:e180353. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180353
https://doi.org/10.1590/Interface.180353... ,3838 Macedo RGM. Educação, diversidade e políticas públicas: reflexões sobre 30 anos de debate no Brasil (1990-2020). Rev Int Leg. 2023;6(37):1-20. DOI: https://doi.org/10.21680/1982-1662.2023v6n37ID31946
https://doi.org/10.21680/1982-1662.2023v... . De maneira ampla, aqui, compreendemos políticas públicas como
[...] o processo pelo qual os diversos grupos que compõem a sociedade - cujos interesses, valores e objetivos são divergentes - tomam decisões coletivas, que condicionam o conjunto da sociedade3939 Rodrigues M. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha; 2015.(13).
Nessa perspectiva, interessa sublinhar como, apesar das controvérsias e apelos de setores conservadores, a partir dos anos 2000, foram diversas as políticas de saúde brasileiras com foco em marcadores sociais da diferença, ainda que pouco interseccionadas e, muitas vezes, negligenciadas no ensino em saúde.
Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, destaca-se a criação das seguintes políticas públicas: Política Nacional de Atenção à Saúde de Povos Indígenas (2002), Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004), Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (2006), Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (2009, atualizada em 2013 e em 2017), Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (2009), Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2011) e Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (2011).
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), criada por meio da portaria 992, em 2009, pelo Ministério da Saúde, tem como objetivo priorizar “a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e a discriminação nas instituições e serviços do SUS”4040 Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF: MS; 2013.(19). Ao reconhecer e enfrentar diretamente a temática das iniquidades raciais em saúde, a política representou um grande avanço. Conforme aponta Jurema Werneck4141 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-349. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-129020162610
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201626... , os dados epidemiológicos segundo raça/cor são consistentes o suficiente para
[...] indicar o profundo impacto que o racismo e as iniquidades raciais têm na condição de saúde, na carga de doenças e nas taxas de mortalidade de negras e negros de diferentes faixas etárias, níveis de renda e locais de residência41(541).
Apesar da relevância da PNSIPN e da produção de três de suas versões, essa política ainda não foi implementada de forma efetiva no País. Segundo levantamento do portal Gênero e Número, com dados do IBGE, de 2018, apenas 28% dos municípios brasileiros, aproximadamente, tinham incluído a Política em seus planos de governo, e apenas 3% possuíam instâncias específicas para coordenar e monitorar ações de saúde orientadas à população negra4242 Coelho R, Nobre V. Política Nacional de Saúde da População Negra deve ser prioridade no novo governo. Nexo Políticas Públicas [Internet]; 2023 fev 6 [acesso em 2024 out 1]. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2023/Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Sa%C3%BAde-da-Popula%C3%A7%C3%A3o-Negra-deve-ser-prioridade-no-novo-governo
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/202... . Também nas graduações em saúde, ainda pouco se discutem tais políticas. Ainda assim, conforme demonstrado em estudos recentes, trata-se de desafios persistentes frente ao racismo estrutural vivenciado no cotidiano dos serviços de saúde públicos e privados brasileiros4141 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-349. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-129020162610
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201626... .
Na perspectiva dos marcadores sociais da diferença nas políticas do SUS, também queremos destacar a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, promulgada em 20114343 Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. Brasília, DF: MS; 2011.. Segundo o documento, foi a partir dos anos 1980 que as questões de saúde da população LGBT ganharam visibilidade, quando se adotaram estratégias para o enfrentamento da epidemia de HIV/aids, em parceria com movimentos sociais. Conforme o texto da política, para uma compreensão efetiva da determinação social no processo saúde-doença no âmbito do SUS, é preciso reconhecer ‘todas as formas de discriminação’, incluindo a LGBTfobia e outras formas de violência ligadas a identidades de gênero e orientação sexual4343 Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. Brasília, DF: MS; 2011.. Assim, no campo da saúde, as pesquisas e intervenções sobre HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) tiveram papel fundamental ao demonstrar a relevância da intersecção de marcadores sociais da diferença como gênero, sexualidade, raça, geração e classe social na compreensão de tais processos de adoecimento e acesso aos serviços de saúde11 Lucena M, Ferreira GG, Floss M, et al. Serviços de atendimento integral à saúde de transexuais e travestis no Sistema Único de Saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2022;17(44):1-14. DOI: https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)2964
https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)2964... . Vale dizer que, especialmente a partir da década de 2010, com o avanço de setores conservadores na esfera pública brasileira, as ISTs voltaram a ser abordadas a partir de discursos centrados em pautas moralistas ou exclusivamente biomédicas, conforme registrado em pesquisas, revelando explícito retrocesso4444 Almeida AIS, Ribeiro JM, Bastos FI. Análise da política nacional de DST/Aids sob a perspectiva do modelo de coalizões de defesa. Ciênc saúde coletiva. 2022;27(3):837-848. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232022273.45862020
https://doi.org/10.1590/1413-81232022273... ,4545 Knauth DR, Pilecco FB. Aids e prevenção do HIV entre adolescentes e jovens em seis municípios brasileiros. Saude Soc. 2024;33(1):e230789pt. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902024230789pt]
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202423... .
Nesse âmbito, o conceito de estigma interseccional tem se revelado uma ferramenta potente para a compreensão dos desafios presentes nas intervenções da saúde pública4646 Sievwright KM, Stangl AL, Nyblade L, et al. An Expanded Definition of Intersectional Stigma for Public Health Research and Praxis. Am J Public Health. 2022;112(S4):S356-S361. DOI: https://doi.org/10.2105/ajph.2022.306718
https://doi.org/10.2105/ajph.2022.306718... . Conforme autores, para além da necessidade de reconhecer e nomear como os diferentes sistemas de poder se entrecruzam e produzem desigualdades em saúde, é preciso que estudantes e pesquisadores da saúde apoiem ações de lideranças comunitárias, grupos de resistência e de movimentos sociais no sentido de reconhecer as desigualdades interseccionais.
Vale destacar, ainda, que a produção de tais políticas de saúde promulgadas nas décadas de 2000 e 2010 seguiu o molde de produção de políticas sociais, que, apesar de lidar com problemas que na realidade se expressam interseccionados, oferece soluções para grupos específicos, setorizando as demandas. A relevância histórica dessas políticas é inegável e resultado concreto dos esforços dos movimentos sociais negro, indígenas, quilombola, de mulheres, de pessoas LGBTQIAPN+, e reflete as condições de possibilidade de cada período histórico, gerando avanços. Entretanto, o que se tem observado atualmente é a necessidade de diálogo por políticas que sejam capazes, também, de produzir respostas mais complexas e interseccionais, bem como mecanismos efetivos de implementação, acompanhamento, investimento e avaliação.
Para elucidar como as desigualdades raciais e de gênero, de maneira interseccional, afetam a saúde de diferentes grupos populacionais brasileiros, analisam-se a seguir algumas pesquisas recentes. Inicialmente, destaca-se a pesquisa intitulada ‘A cor da dor: iniquidades raciais na atenção ao pré-natal e ao parto no Brasil’, em que Maria do Carmo Leal e equipe de pesquisadores22 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública, 2017;33(1):1-17. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00078816
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007881... analisam dados oriundos da pesquisa ‘Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento’, estudo de abrangência nacional com entrevistas e avaliação de prontuários de 23.894 mulheres nos anos de 2011 e 2012. A pesquisa revelou que as mulheres pretas, em comparação com as mulheres brancas, possuíram maior risco de ter um pré-natal inadequado, ausência de acompanhante e menos anestesia local para episiotomia. Conforme autores,
[...] particularmente perversa, ao mesmo tempo que reveladora quanto aos impactos da desigualdade de raça/cor, é a constatação quanto à menor aplicação de analgesia para os grupos étnico-raciais mais discriminados2(10).
Tal diferencial na analgesia ainda poderia ser atribuído a percepções sociais de profissionais de saúde que, de maneira consciente ou inconsciente, reproduzem o racismo no sistema de saúde.
Outra pesquisa brasileira que demonstra a importância da análise de raça e gênero na saúde é a realizada por Rodrigues e pesquisadores33 Rodrigues GM, Carmo CN, Bergmann A, et al. Desigualdades raciais no estadiamento clínico avançado em mulheres com câncer de mama atendidas em um hospital de referência no Rio de Janeiro, Brasil. Saúde Soc. 2021;30(3):1-12. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200813
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... . A pesquisa analisou a associação entre raça/cor da pele e estadiamento clínico em mulheres com câncer de mama em um hospital de referência para tratamento oncológico do SUS no Rio de Janeiro. Segundo a pesquisa, mulheres autodeclaradas pretas apresentaram 63% mais chances de ter estadiamento II e III quando comparadas com as mulheres autodeclaradas brancas. A análise concluiu que mulheres pretas apresentaram mais chance de apresentar estadiamento clínico avançado quando comparadas com as brancas. Segundo pesquisadores, além de dificultar o diagnóstico precoce, “a desigualdade racial pode aumentar o risco de adoecimento por câncer”33 Rodrigues GM, Carmo CN, Bergmann A, et al. Desigualdades raciais no estadiamento clínico avançado em mulheres com câncer de mama atendidas em um hospital de referência no Rio de Janeiro, Brasil. Saúde Soc. 2021;30(3):1-12. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200813
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... (10) em função da combinação de diversos fatores decorrentes da desigualdade social.
Já a pesquisa de Carvalho44 Carvalho L. Vírus Zika e direitos reprodutivos: entre as políticas transnacionais, as nacionais e as ações locais. Cad de Gênero e Diversidade. 2017;3(2):134-157. DOI: https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030
https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030... , sobre as políticas relacionadas à epidemia de Zika vírus no Nordeste brasileiro, destacou a importância do olhar interseccional aliado ao debate sobre racismo ambiental. Segundo Carvalho,
[...] o tratamento de esgotos, o abastecimento de água e a coleta de lixo são serviços quase universais em lares urbanos, mas estão menos disponíveis para as famílias lideradas por negras/os4(158).
Assim, o racismo ambiental faz com que áreas marginalizadas das grandes cidades, com populações majoritariamente negras e pobres, tendam a ter pior acesso a serviços públicos (menos escolas, hospitais, farmácias, praças e parques, espaços de lazer e cultura, iluminação pública, saneamento básico, entre outros aspectos). No contexto da epidemia do Zika vírus, em 2015 e 2016, o racismo ambiental teve consequências relevantes no direito reprodutivo de mulheres negras. Mobilizando dados epidemiológicos de 2016, Carvalho destacou como, entre as mulheres com provável infecção pelo vírus Zika com registro de raça/cor, aproximadamente 64% eram mulheres negras em idade fértil. A pesquisadora conclui: “ao contrário do que se afirma, a epidemia do vírus Zika não é democrática e não afeta a todos os grupos sociais de forma igual”44 Carvalho L. Vírus Zika e direitos reprodutivos: entre as políticas transnacionais, as nacionais e as ações locais. Cad de Gênero e Diversidade. 2017;3(2):134-157. DOI: https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030
https://doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22030... (148). Conclusões essas muito próximas às de estudos que analisaram a morbimortalidade na epidemia de covid-19, que demonstraram maior incidência da doença entre a população negra brasileira4747 Araújo EM, Caldwell KL, Santos MPA, et al. Morbimortalidade pela Covid-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Saúde debate. 2020;44(esp4):191-205. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042020E412
https://doi.org/10.1590/0103-11042020E41... .
Diante disso, conforme previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina, de 2014, no ensino em saúde
[...] o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social4848 Ministério da Educação (BR), Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2014 jun 23 [acesso em 2024 out 1]; Seção I:8-15. Disponível em: https://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Med.pdf
https://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/p... (1).
Trata-se, assim, de um compromisso do ensino em saúde brasileiro com a diversidade, a equidade e os direitos humanos, estabelecido na medicina, assim como em todas as demais graduações em saúde.
Em consonância com outras pesquisadoras brasileiras, defende-se aqui que a utilização da abordagem interseccional na saúde congrega as perspectivas da equidade e da justiça social, fundamentais ao sistema de saúde implementado no Brasil desde a Constituição de 19882222 Oliveira E, Couto MT, Separavich MAA, et al. Contribuição da interseccionalidade na compreensão da saúde-doença-cuidado de homens jovens em contextos de pobreza urbana. Interface (Botucatu). 2020;24:e180736. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180736
https://doi.org/10.1590/Interface.180736... . Como diz Patricia Hill Collins1010 Collins P, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Ed. Boitempo; 2020.(13), ao defender a abrangência da análise interseccional a partir dos anos 2000,
[...] a interseccionalidade também tem contribuído significativamente para o campo da saúde pública, em que os determinantes sociais e disparidades de saúde são abordados cada vez mais a partir de perspectivas interseccionais.
Considerações finais
Longe de exaurir a temática, neste texto, discutiu-se a importância do debate sobre marcadores sociais da diferença interseccionados para o ensino em saúde. Enfatizamos não ser possível compreender os processos de saúde, adoecimento, cuidado e vulnerabilização sem levar em conta as condições de produção e expressões das diferentes experiências de vida, constituídas por meio de diferenças e desigualdades raciais, de gênero, sexualidade, classe social, idade e deficiência, por exemplo.
No caminho da construção de um sistema de ensino superior em saúde que não reforce a reprodução de desigualdades sociais, é preciso avançar para uma formação mais comprometida com a equidade, a diversidade e os direitos humanos, inserindo efetivamente a reflexão sobre marcadores sociais da diferença nos currículos dos cursos superiores de saúde. Nesse contexto, a abordagem de pesquisas e políticas públicas de saúde brasileiras que demonstrem a centralidade da temática torna-se fundamental. Da mesma forma, já se tem discutido a demanda por políticas de saúde interseccionais.
Nessa conjuntura, também se tem apontado no campo da saúde coletiva a demanda pela inclusão de recursos analíticos que ajudem a superar a fragmentação da experiência e das pautas políticas4949 Sevalho G. Contribuições das críticas pós-colonial e decolonial para a contextualização do conceito de cultura na Epidemiologia. Cad Saúde Pública. 2022;38(6):e00243421. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311XPT243421
https://doi.org/10.1590/0102-311XPT24342... ,5050 Gonçalves LAP, Oliveira RG, Gadelha AG, et al. Saúde coletiva, colonialidade e subalternidades - uma (não) agenda? Saúde debate. 2019;43(esp8):160-174. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S812
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S81... , bem como um exercício de leitura sobre como os marcadores sociais operam, também, no próprio campo, o que revela os privilégios de grupos que, historicamente, ocupam os mais altos postos institucionais na academia e na gestão das políticas51. Ou seja, está posta no nosso tempo histórico a inevitabilidade da utilização de lentes que nos possibilitem ler experiências de vida e de grupos sociais para além de uma
[...] massa homogênea e indiferenciada de indivíduos, sendo capazes de explicar como categorias de raça, classe, gênero, idade, estatuto de cidadania e outras posicionam as pessoas de maneira diferente no mundo10(33).
Isso sem deixar de lado as análises sobre como essas diferenças se produzem e se transformam no tecido histórico, social e político. Assim, está estabelecida a demanda para a formação em saúde: capacitação de sujeitos que possam identificar como diferenças se desdobram em desigualdades, sobre como elas operam a produção de vulnerabilidades, de adoecimento e de práticas em saúde potencialmente violentas, alcançando uma agenda de diminuição das iniquidades em saúde.
Ressalta-se, por fim, que esse exercício de leitura sobre como se produzem, transformam e operam os marcadores sociais da diferença, a partir de uma leitura interseccional, deve fazer parte de uma agenda contínua de formação, a partir de um letramento inicial, pois, conforme Akotirene1313 Akotirene C. Interseccionalidade - Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra; 2020.(113), “o conhecimento deve ir além das demarcações fixadas por linhas imaginárias do horizonte”. Ou seja, não se pode dar conta dessa temática apenas em uma ou outra disciplina (muito embora sejam fundamentais a um processo de letramento), mas com um exercício contínuo e com estratégias pedagógicas diversas que vão nos possibilitando ler a operação dos marcadores sociais nas diferentes experiências de vida, localizadas geopoliticamente, historicamente e culturalmente em território brasileiro.
Suporte financeiro:
não houve
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