NOTA RESEARCH NOTE

 

Mulheres que fazem sexo com mulheres: algumas estimativas para o Brasil

 

Women who have sex with women: estimates for Brazil

 

 

Regina Maria BarbosaI, II; Mitti Ayako Hara KoyamaIII

INúcleo de Estudos da População, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
IIInstituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde, São Paulo, Brasil
IIIFundação Sistema Estadual de Análise de Dados, São Paulo, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é descrever a proporção de mulheres que fazem sexo com mulheres, com base em três recortes temporais a partir de dados produzidos por um inquérito populacional de abrangência nacional realizado em 1998. A proporção de mulheres que relatam relações sexuais com mulheres na vida diminui de 3% para 1,7% nos cinco anos anteriores à pesquisa, mantendo-se praticamente no mesmo patamar, 1,7%, no último ano. Ao comparar esses dados com os disponíveis para os homens, os resultados sugerem que homens e mulheres transitam entre experiências homo e heterossexuais de maneiras distintas ao longo da vida.

Homossexualidade Feminina; Relação Sexual; Comportamento Sexual; Sexualidade


ABSTRACT

This paper analyzes the proportion of Brazilian women who have sex with women, considering three time periods. The data are from a national population-based survey from 1998. The proportion of the female population who reported having any same-sex relations during their lifetime decreased from 3% to 1.7% in the previous five years and remained at 1.7% in the last year. Comparing the data by gender, the results suggest that women and men have different patterns of homosexual and heterosexual experiences over the course of their lives.

Female Homosexuality; Sexual Intercourse; Sexual Behavior; Sexuality


 

 

Introdução

No Brasil, o tema da sexualidade está presente, ainda que de forma periférica, no campo da saúde coletiva e dos estudos de população há pelo menos três décadas nos debates em torno das políticas e dos programas de controle da fecundidade. É nos anos 1980 que se criam as condições históricas, políticas e culturais para a sua constituição como campo temático ligado às questões de saúde reprodutiva das mulheres 1. Com a emergência da epidemia de AIDS, observa-se uma crescente preocupação com a sexualidade, particularmente questões referentes à homossexualidade masculina. O tema da homossexualidade feminina e sua relação com a saúde mantiveram-se marginais a todo esse processo.

Os estudos existentes a esse respeito concentram-se majoritariamente nos Estados Unidos e apontam para a existência de vários fatores associados a diferentes problemas de saúde, tais como câncer de mama e de colo de útero, menor utilização de serviços de saúde, uso abusivo de álcool, uso de drogas ilícitas, tabagismo e níveis elevados de sofrimento psíquico, com estabelecimento de consenso apenas para um número exíguo de questões 2,3.

Remanescem incertezas no campo constituído por uma diversidade de estudos que, algumas vezes, apresentam fragilidades metodológicas, problemas nas definições conceituais utilizadas para identificação da população dos estudos e no acesso a ela. Embora exista um certo consenso de que "orientação sexual" pode ser descrita como constituída por três dimensões ­ comportamento, desejo e identidade, que não necessariamente caminham da mesma maneira e na mesma direção ­ essas dimensões vêm sendo utilizadas nos estudos de forma intercambiável e nem sempre explicitadas, o que torna imensamente difícil a comparação dos resultados obtidos, como apontado por Sell & Petrulio 4.

Se internacionalmente os estudos sobre saúde e homossexualidade feminina ainda não conseguiram um adensamento capaz de esclarecer a existência de demandas e riscos específicos com relação à saúde nesse grupo populacional, os dados disponíveis para o Brasil são ainda mais escassos. Foram localizados apenas cinco estudos de natureza quantitativa que investigam, com base em amostras de conveniência, a relação entre saúde e homossexualidade feminina 5,6,7,8,9. O perfil da população desses estudos é semelhante ao dos estudos internacionais, composto majoritariamente por mulheres brancas, pertencentes aos extratos sócio-econômicos médios e com maior escolaridade.

Nesse sentido a análise da literatura aponta dois desafios a serem enfrentados nos estudos dos fatores associados às questões de saúde desse grupo populacional. O primeiro se refere às dificuldades de operacionalização e definição de conceitos com vistas à sua identificação, tal como assinalado acima e discutido por Michaels & Lhomond 10 em artigo que compõe este fascículo.

O segundo, relacionado ao anterior, diz respeito à variação das parcerias sexuais e do seu padrão de ocorrência ao longo da vida. Uma mulher pode ter relações com outras mulheres de forma eventual ou regular, variando esse padrão ao longo do tempo. Pode ainda ter relações com parceiras de comportamento exclusivamente homossexual ou parceiras que tenham relações com homens, de forma esporádica ou regular. Essa mesma mulher pode, ela própria, ter relações com homens de forma esporádica ou regular.

Com o objetivo de contribuir para a diminuição da lacuna de conhecimento relativo a esse grupo populacional, neste trabalho descrevemos a proporção de mulheres que fazem sexo com mulheres com base em três recortes temporais e analisamos o trânsito entre experiências homo e heterossexuais por sexo.

 

Metodologia

Os dados utilizados neste trabalho foram produzidos pela pesquisa Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/ AIDS, realizada em 24 estados brasileiros e no Distrito Federal, cujo objetivo geral era estudar comportamento, atitudes e práticas sexuais da população brasileira e avaliar o nível de conhecimento sobre HIV/AIDS e demais doenças sexualmente transmissíveis 11.

A coleta de informações, realizada entre dezembro de 1997 e dezembro de 1998, refere-se a um universo composto de indivíduos de ambos os sexos, com idade entre 16 e 65 anos, moradores das áreas urbanas de 183 microrregiões do Brasil. O estudo baseou-se em uma amostra probabilística em múltiplos estágios, com 3.600 domicílios, abrangendo aproximadamente 76% da população brasileira nessa faixa etária residente em áreas urbanas do país. A unidade de primeiro estágio foi a microrregião; a de segundo, o setor censitário; a de terceiro, o domicílio particular; e a de quarto estágio, o morador com idade entre 16 e 65 anos 11.

A categoria mulheres que fazem sexo com mulheres foi definida com base na dimensão comportamental, indagando-se sobre o sexo das pessoas com quem mantiveram relações sexuais. A forma como o questionário foi concebido remete-nos a resultados que dizem respeito apenas à população sexualmente ativa nos cinco anos anteriores à pesquisa. A pergunta "Com quantas pessoas você teve relações sexuais nos últimos cinco anos?", serviu de filtro para o restante das questões que se referiam a comportamento e práticas sexuais. Esse filtro excluiu 10,3% das mulheres com vida sexual ativa na vida, contra 2% dos homens, não sendo possível depreender qual a interferência desse recorte na presente análise. Sabemos, no entanto, que 80,6% das mulheres excluídas têm mais de 46 anos de idade, fazendo recair o impacto possível dessa exclusão nesse grupo de mulheres.

Relações sexuais neste estudo foram definidas como a ocorrência de "sexo com penetração vaginal, oral, anal", o que pode ter gerado exclusão de algumas mulheres com comportamento exclusivamente homossexual, subestimando os resultados encontrados. É necessário lembrar ainda a existência de um outro fator atuando na direção de uma possível subestimação das estimativas: o estigma e a discriminação que marcam a experiência homossexual em nossa sociedade, dificultando o seu relato.

 

Resultados

Tomando por referência as mulheres sexualmente ativas nos últimos cinco anos, 3% relataram ter tido na vida relações sexuais com pessoas do mesmo sexo ou de ambos os sexos.

Ao focalizar a análise em três períodos de tempo ­ na vida, nos últimos cinco anos e no último ano ­, observa-se que a proporção de mulheres que relatam relações sexuais com mulheres ou com homens e mulheres na vida diminui de 3% para 1,7% nos cinco anos anteriores à pesquisa, mantendo-se no mesmo patamar no último ano, 1,7%. No entanto, ao desagrupar a categoria das pessoas que relatam relações sexuais com mulheres ou com homens e mulheres para os períodos mencionados, tem-se uma visão mais clara da complexidade envolvida na identificação e mensuração dessas populações (Tabela 1).

A idéia da existência de uma homossexualidade feminina estanque e estável ao longo da vida desaparece, dando lugar a um cenário mais dinâmico no qual as mulheres transitam pelas diferentes experiências e a categoria "mulheres exclusivamente homossexuais" só é expressiva nos recortes de tempo mais recentes. Fato que evoca a idéia então polêmica, proposta por Adrianne Rich 12 nos anos 1980, da existência de um "continuum lésbico" em contraposição a uma "existência lésbica".

As diferenças observadas entre homens e mulheres sugerem que ambos transitam entre experiências homo e heterossexuais de maneiras distintas ao longo da vida. Entendemos que os resultados devam ser interpretados com cautela, dado o pequeno número de pessoas que compõem os grupos analisados; no entanto, os dados para homens fazem supor que homens que tiveram parceiros exclusivamente do mesmo sexo nos últimos cinco anos assim permaneceram ao longo da vida. Os dados para as mulheres assumem um padrão diferente, no qual a relação exclusivamente com pessoas do mesmo sexo aparece apenas no recorte de um ano, e com a ampliação do recorte de tempo inclui progressivamente parceiros sexuais do sexo oposto.

 

Conclusão

A significância desses dados para a saúde pública e para a dinâmica populacional baseia-se em grande parte na sua capacidade de estimar o tamanho e o perfil dessas populações. No Brasil, apenas o referido estudo 11, realizado em âmbito nacional, incorporou questões sobre homossexualidade. A segunda versão desse estudo, realizada em 2005, incorpora questões que exploram a dimensão de atração, permitem discriminação do início da experiência homo e heterossexual, revelam padrões da dinâmica de parcerias, incluindo duração e simultaneidade das relações, e indagam sobre práticas sexuais específicas para esses grupos. Essas incorporações contribuirão, sem dúvida, para uma aproximação mais sensível e ao mesmo tempo mais precisa da magnitude desse grupo e de suas particularidades.

A questão do tamanho amostral permanece um desafio para os estudos sobre a homossexualidade. A incorporação de questões bem definidas e claras sobre comportamento homo e bissexual em inquéritos populacionais de abrangência nacional com amostras maiores, como é o caso da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, constituiria uma maneira de viabilizar a obtenção das informações necessárias.

 

Colaboradores

R. M. Barbosa participou da elaboração do artigo, análise e discussão dos resultados. M. A. H. Koyama contribuiu na análise estatística dos dados.

 

Referências

1. Aquino EML, Barbosa RM, Heilborn ML, Berquó E. Gênero, sexualidade e saúde reprodutiva: a constituição de um novo campo da Saúde Coletiva. Cad Saúde Pública 2003; 19:S198-9.        

2. Solarz A. Lesbian health. Current assessment and directions for the future. Washington DC: National Academies Press; 1999.        

3. Facchini R, Barbosa RM. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: promoção da eqüidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde; 2006.        

4. Sell RL, Petrulio C. Sampling homosexuals, bisexuals, gays, and lesbians for public health research: a review of the literature from 1990 to 1992. J Homosex 1996; 30:31-47.        

5. Coordenação Nacional de DST e Aids. Pesquisa de opinião pública ­ mulheres que fazem sexo com mulheres. http://www.aids.gov.br/final/novi dades/Mulheres.ppt (acessado em 20/Jan/2003).        

6. Coelho LM. A Representação Social da homossexualidade feminina nos ginecologistas do ponto de vista das mulheres lésbicas e bissexuais. Revista Tesseract 2001; 4. http://tesseract.sites.uol. com.br/textoleilacoelho.htm (acessado em 03/ Jan/2006).        

7. Granado L. Mitos sobre a relação entre mulheres e a transmissão de DST/HIV. Boletim Ousar Viver 1998; 4:4-6.        

8. Minas de Cor-Espaço de Cidadania e Cultura. Novos contornos: lésbicas da periferia. São Paulo: Minas de Cor-Espaço de Cidadania e Cultura; 2005.        

9. Pinto VM, Tancredi MV, Tancredi NA, Buchalla CM. Sexually transmitted disease/HIV risk behaviour among women who have sex with women. AIDS 2005; 19 Suppl 4:S64-9.        

10. Michaels S, Lhomond B. Conceptualization and measurement of homosexuality in sex surveys: a critical review. Cad Saúde Pública 2006; 22:1365-74.        

11. Coordenação Nacional de DST-AIDS. Comportamento sexual da população brasileira e percepções do HIV/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde; 2000.        

12. Rich A. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. J Womens Hist 2003; 15:11-43.        

 

 

Correspondência
R. M. Barbosa
Núcleo de Estudos da População,
Universidade Estadual de Campinas.
Av. Albert Einstein 1300,
Cidade Universitária, Campinas,
SP 13081-970, Brasil.
rbarbosa@nepo.unicamp.br

Recebido em 09/Dez/2005
Versão final reapresentada em 12/Abr/2006
Aprovado em 13/Abr/2006

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