ARTIGO ARTICLE

 

Defeitos congênitos no Município do Rio de Janeiro, Brasil: uma avaliação através do SINASC (2000-2004)

 

Birth defects in Rio de Janeiro, Brazil: an evaluation through birth certificates (2000-2004)

 

 

Fernando Antônio Ramos GuerraI; Juan Clinton Llerena Jr.I; Silvana Granado Nogueira da GamaII; Cynthia Braga da CunhaII; Mariza Miranda Theme FilhaIII

IInstituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIISuperintendência de Vigilância em Saúde, Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Avaliou-se a ocorrência de defeitos congênitos em nascidos vivos no Município do Rio de Janeiro, Brasil, com base no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), no período de 1º de janeiro de 2000 a 31 de dezembro de 2004. Através de um estudo seccional e descritivo, estudaram-se as variáveis relativas aos defeitos congênitos (presença e aparelho ou sistema acometido), aos serviços de saúde, às mães, às gestações, aos recém-natos e aos partos. Constatou-se uma prevalência de defeitos congênitos de 83/10 mil nascidos vivos. Os sistemas orgânicos mais afetados foram o osteomuscular, nervoso central, genital, as fendas lábio-palatinas e as anomalias cromossômicas. A maioria dos casos nasceu nas maternidades municipais e na rede privada, e maior prevalência de defeitos congênitos ocorreu no Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz. Os defeitos congênitos foram mais prevalentes entre os filhos de mulheres mais velhas e menos instruídas. O percentual de casos ignorados foi alto, chegando a 21% em algumas maternidades. Uma maior divulgação das informações do SINASC sobre defeitos congênitos deveria ser estimulada. Estudos de confiabilidade são recomendados para melhor aproveitamento das informações.

Prevalência; Defeitos Congênitos; Sistemas de Informação


ABSTRACT

To evaluate the occurrence of birth defects in the city of Rio de Janeiro, Brazil, using the Live Birth Information System (SINASC), we performed a cross-sectional study on all live newborns with birth defects from January 1, 2000, to December 31, 2004. The variables referred to birth defects (presence and system affected), type of health service, mothers, gestations, live births, and deliveries. Prevalence of birth defects was 83/10,000 live births. The most frequent birth defects involved the musculoskeletal system, central nervous system, cleft lip and palate, and chromosomal anomalies. The majority of cases were born in public (municipal) and private maternity hospitals, with the highest prevalence in the Fernandes Figueira Insitute, Oswaldo Cruz Foundation. Older women and those with less schooling had more live born infants with birth defects. The proportion of reports with missing information was high, reaching 21% in some institutions. Wider dissemination of SINASC data on birth defects should be encouraged. Reliability studies are recommended for better use of these reports.

Prevalence; Birth Defects; Information Systems


 

 

Introdução

Os defeitos congênitos são descritos como anomalias presentes no momento do nascimento, sejam elas morfológicas ou funcionais 1. Uma definição mais ampla seria a de que os defeitos congênitos correspondem a grupos heterogêneos de diagnósticos, cada qual com morfogêneses distintas como as malformações congênitas, que são defeitos morfológicos de um órgão ou parte do corpo resultantes de um processo de desenvolvimento anormal intrínseco. Além disso, os defeitos congênitos podem ser classificados segundo etiologias ou mecanismos patogenéticos, como é o caso das trissomias 2. Essa é a lógica utilizada, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na Classificação Internacional de Doenças (CID) para a codificação dos defeitos congênitos.

Os defeitos congênitos ocorrem em até 5% dos recém-nascidos 3, sendo hoje responsáveis por uma parcela significativa das taxas de mortalidade infantil em muitos países do mundo 4. Calcula-se que, nos Estados Unidos da América, a mortalidade infantil atribuída aos defeitos congênitos aumentou, entre 1968 e 1995, de 14% para 22% 5. Verifica-se, nos países em desenvolvimento, a diminuição substancial da taxa de mortalidade infantil em decorrência da melhoria do saneamento básico, do controle das doenças infecto-contagiosas, assim como do maior acesso da população geral e das gestantes aos serviços de saúde. Todavia, no tocante aos defeitos congênitos, tais taxas não têm variado muito e permanecem altas 4,6. Em alguns estados do Brasil, como o Rio Grande do Sul, esse grupo de patologias responde por quase 30% dos óbitos em menores de um ano, sendo a segunda causa de morte nessa faixa etária 7.

Considerando-se a ocorrência das malformações congênitas por aparelhos e sistemas orgânicos, observam-se, na maioria dos estudos, fre- qüências elevadas de acometimento dos aparelhos cardiovascular e urinário. No entanto, esses grupos de malformações não são facilmente detectáveis ao nascimento, e seu diagnóstico implica em atenção pós-natal adequada. Por outro lado, as alterações do aparelho músculo-esquelético e do sistema nervoso central figuram entre as mais usualmente diagnosticadas no período neonatal. Portanto, o tipo de defeito congênito influencia diretamente seu diagnóstico, notificação e, conseqüentemente, sua prevalência. Isso se reflete nos resultados encontrados pelos vários sistemas de vigilância de defeitos congênitos existentes no mundo 8.

Sabe-se que as causas dos defeitos congênitos são múltiplas na maioria das vezes, e que fatores maternos e fetais influenciam a prevalência de alguns tipos, entre eles, o sexo, a idade das mulheres, assim como as condições sócio-econômicas 9. Portanto, as informações sobre a prevalência de defeitos congênitos nas populações é fundamental para o reconhecimento do problema e, conseqüentemente, do planejamento de políticas de assistência e prevenção. Embora os países desenvolvidos já tenham avançado muito nesse contexto, ainda é escassa a produção dessas informações na maioria das nações latino-americanas.

Deve-se ressaltar que o fardo que tais condições impõem aos indivíduos, famílias e populações é maior nas regiões do mundo em desenvolvimento, devido aos recursos reduzidos. O nascimento dessas crianças, além de associar-se a elevadas taxas de cesarianas, envolve assistência de alta complexidade, geralmente em hospitais de referência para alto risco perinatal, devido à prematuridade e outras complicações relativas aos defeitos congênitos 10.

No Brasil, foi introduzido, em 1999, na declaração de nascido vivo, o campo 34, destinado especificamente para o relato de malformações congênitas e anomalias cromossômicas. Esse campo consta de três opções para preenchimento: sim (defeito congênito presente), não (defeito congênito ausente) e ignorado. Caso seja verificada a presença de um ou mais defeitos congênitos no exame neonatal, os mesmos devem ser descritos no campo referido de forma sucinta. Posteriormente, o defeito congênito deverá ser codificado pela CID, décima revisão (CID-10) 11, nas Secretarias Municipais de Saúde 12. Assim, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) é hoje uma fonte de informações sobre a prevalência dessas patologias em nosso meio.

Considerando-se a hipótese de que todas as declarações de nascidos vivos do município tivessem o campo 34 preenchido corretamente, ainda assim, não seríamos capazes de detectar todos os defeitos congênitos. Contudo, a inclusão de um campo de notificação sobre defeito congênito em um documento oficial e de preenchimento obrigatório foi fundamental para a obtenção de algumas informações agora expostas. Este artigo descreve a freqüência dos defeitos congênitos e as características desses recém-nascidos e de suas mães no Município do Rio de Janeiro, Brasil, no qüinqüênio 2000-2004, através do SINASC.

 

Metodologia

Estima-se que 99% dos nascimentos, no Município do Rio de Janeiro, sejam hospitalares 13. A declaração de nascido vivo, que é o formulário de coleta de dados do SINASC preenchido para todos os nascimentos ocorridos nas maternidades, foi a fonte de dados sobre a qual se baseou esta pesquisa. Através das informações armazenadas em banco de dados do SINASC, fornecidas pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, realizou-se um estudo seccional e descritivo sobre os nascidos vivos com defeitos congênitos nas maternidades públicas e privadas dessa cidade, no período de 1º de janeiro de 2000 a 31 de dezembro de 2004 (cinco anos).

As variáveis de interesse selecionadas para análise foram aquelas referentes aos defeitos congênitos (presença e aparelho ou sistema acometido), aos serviços de saúde (natureza jurídica do prestador da assistência), às mães (idade, escolaridade e município de residência), às gestações (tipo, duração e número de consultas pré-natais), aos recém-natos (sexo e peso ao nascimento) e aos partos (vaginal ou cesariana).

As variáveis, a seguir, foram agrupadas para fins de análise: defeitos congênitos de acordo com os sistemas orgânicos acometidos (códigos Q00 a Q 99 do capítulo XVII da CID-10) 11; peso ao nascimento do recém-nascido que foi dicotomizado em < 2.500g e > 2.500g de acordo com os limites de baixo peso ao nascimento; escolaridade da mãe, operacionalizada, no SINASC, em cinco faixas de acordo com os anos de estudo concluídos e aqui agregados em três faixas, < 7, 8-11 e 12 e mais anos; idade em anos que foi transformada em faixas etárias que diferenciam o risco para malformações congênitas, < 20, 20-34 e > 35 anos; municípios de residência das mães que foram divididos em Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e demais municípios do estado e, por fim, a duração da gestação em semanas, dicotomizada em prematuros e a termo entre < 37 e >37 semanas.

As maternidades foram identificadas por código próprio, assinalado na declaração de nascidos vivos e assumiram as seguintes categorias: municipal, estadual, federal, universitária, privadas conveniadas e não conveniadas com o Sistema Único de Saúde (SUS), filantrópica conveniada com o SUS e militares. O Instituto Fernandes Figueira (IFF) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), por ser uma instituição de referência para defeitos congênitos no município, mereceu uma análise em separado das demais.

Calculou-se a prevalência total de defeitos congênitos, a cada ano e para o período estudado, assim como as prevalências específicas segundo variáveis relativas à mãe, ao recém-nato e ao parto. Procedeu-se, também, o cálculo da prevalência dos aparelhos ou sistemas acometidos pelo sexo do recém-nascido, faixa etária e escolaridade maternas e adicionalmente do percentual de defeitos congênitos por tipo de prestador, tendo, como denominador, somente os nascidos vivos com defeitos congênitos. Verificou-se o percentual de informação ignorada no campo 34 (relativo à informação de presença ou ausência de defeitos congênitos), no universo de todos os nascidos vivos, para cada ano e para todo o período. Todavia, os casos com informação ignorada ou sem informações referentes ao campo 34 foram excluídos do estudo. O programa estatístico utilizado foi o SPSS para Windows versão 12 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). A pesquisa foi submetida à análise e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFF/FIOCRUZ.

 

Resultados

No período de janeiro de 2000 a dezembro de 2004, foram notificados 487.953 nascidos vivos no Município do Rio de Janeiro, dentre os quais, 4.054 tiveram algum tipo de defeito congênito, correspondendo a uma prevalência, no período, de 83,1 por 10 mil nascidos vivos. Observou-se, no município, uma queda de 10.004 nascidos vivos em contraposição ao aumento da freqüência de defeitos congênitos de 798 para 903 nascidos vivos, quando comparados os anos de 2000 e 2004 (Tabela 1).

Essa tabela apresenta também as prevalências de defeitos congênitos segundo o tipo de prestador de serviço de saúde e outras referentes a algumas variáveis maternas, da gestação, do recém-nascido e do parto. As maiores prevalências foram encontradas, respectivamente, no IFF/FIOCRUZ, nas unidades universitárias, militares, federais, estaduais, municipais, privadas não conveniadas com o SUS, filantrópicas e privadas conveniadas com o SUS. O IFF/FIOCRUZ apresentou proporções crescentes em quase todos os anos, exceto em 2003, finalizando o período com 2.040,6/10 mil nascidos vivos. Vale ressaltar que, embora os casos de defeitos congênitos tenham nascido predominantemente nas maternidades da rede municipal e nas instituições privadas não conveniadas com o SUS, as prevalências de defeitos congênitos nessas maternidades foram consideravelmente menores que nas demais, exceto nas filantrópicas e privadas conveniadas com o SUS, cujas prevalências foram as menores no grupo analisado.

Em relação às mulheres, nota-se a maior freqüência de defeitos congênitos nos filhos daquelas com 35 anos ou mais de idade. Todavia, em 2004, houve predomínio do grupo das adolescentes sobre as demais, com uma proporção de 116,2/10 mil nascidos vivos. Analisando a escolaridade, houve predomínio absoluto do grupo com menos anos de estudos. A diferença das prevalências entre as mulheres com menor escolaridade e aquelas com 12 anos e mais de estudo cresceu durante todo o período estudado, chegando ao máximo em 2004: 106,5/10 mil (0-7 anos) e 60,8/10 mil (12 e mais anos).

No que se refere ao local de residência, a prevalência de defeitos congênitos entre as mulheres provenientes de municípios mais distantes da capital foi sensivelmente maior que as residentes na Baixada Fluminense e no próprio Município do Rio de Janeiro, onde se evidenciou o aumento progressivo de casos. Contudo, quando analisada a distribuição do percentual absoluto de defeitos congênitos no período, verifica-se um maior número nas moradoras do Rio de Janeiro (76,8%), seguidas da Baixada Fluminense (15%) e dos outros municípios (8,2%). As gestantes que receberam menos consultas pré-natais (< 6) também apresentaram maior proporção de filhos com defeitos congênitos, sendo que a diferença entre as prevalências destas e das que receberam 7 ou mais consultas aumentou progressivamente no decorrer do período. Verificou-se, na amostra estudada, uma variação ano a ano das prevalências de defeitos congênitos no que tange ao número de fetos por gravidez, havendo um predomínio mais consistente de casos nas gestações múltiplas no ano de 2004 (125,3/10 mil nascidos vivos).

A prevalência de defeitos congênitos do período analisado é claramente maior entre recém-nascidos prematuros (209,6/10 mil nascidos vivos) que naqueles nascidos com 37 ou mais semanas gestacionais (67,3/10 mil nascidos vivos), sendo essa diferença mais evidente no ano de 2004. Por conseguinte, a proporção de recém-nascidos com peso abaixo de 2.500g também foi maior, com valores próximos aos da variável anterior. A prevalência total do período demonstra maior freqüência de defeitos congênitos entre recém-nascidos do sexo masculino (90,6/10 mil nascidos vivos) que no feminino (72,6/10 mil nascidos vivos). Houve predomínio da proporção de cesarianas sobre partos normais em todos os anos do período.

Do conjunto de nascidos vivos com defeitos congênitos no qüinqüênio 2000-2004, 31,8% dos casos nasceram na rede municipal de saúde, seguidos por 20,2% na rede privada não conveniada com o SUS, 19,4% no IFF/ FIOCRUZ, unidade especializada no atendimento aos portadores de defeitos congênitos, e 10,5% em unidades estaduais. Ao que se refere às prevalências encontras em cada grupo de maternidades, o IFF/FIOCRUZ e os hospitais universitários foram os que apresentaram as maiores taxas enquanto as menores corresponderam às instituições filantrópicas e conveniadas com o SUS (Tabela 2).

A análise das prevalências de defeitos congênitos segundo aparelhos e sistemas afetados demonstrou o predomínio do acometimento do aparelho osteomuscular seguido do sistema nervoso central, órgãos genitais, fendas labiais e/ou palatinas e anomalias cromossômicas. Verificou-se, no decorrer do período analisado, uma tendência de crescimento das prevalências na maioria dos subgrupos, com exceção do ano de 2001, ano em que se evidenciou maior proporção de malformações congênitas não especificadas (14,6/10 mil nascidos vivos). As prevalências dos defeitos congênitos segundo o sexo do recém-nascido apresentaram-se variadas, sendo, no total ano a ano, maior nos meninos. As malformações congênitas dos órgãos genitais e do aparelho osteomuscular também foram predominantes no sexo masculino durante todo o período estudado (Tabela 3).

Observou-se, segundo a idade das mães e a ocorrência de defeitos congênitos, uma variação expressiva conforme o tipo de sistema acometido, sendo marcante a maior prevalência das anomalias cromossômicas e síndrome de Down nos recém-nascidos das mulheres com 35 ou mais anos de idade (14,8/10 mil nascidos vivos). A prevalência da maioria dos tipos de defeitos congênitos foi menor em mulheres com escolaridade elevada (12 ou mais anos de estudo), exceto nos casos de anomalias cromossômicas, onfalocele e algumas malformações congênitas do aparelho digestivo (Tabela 4).

O percentual de ignorados no campo 34 foi alto na maioria das maternidades, sendo maior nas instituições com administração federal (21% no período) e menor no IFF/FIOCRUZ (1,8%). Ressalta-se que, no ano de 2003, a metade dos casos de defeitos congênitos das instituições filantrópicas conveniadas com o SUS teve o tipo de defeito congênito assinalado como ignorado e que, no ano seguinte, esse percentual caiu para 0,3%. Todas as instituições apresentaram declínio do número de ignorados no último ano analisado, exceto as maternidades estaduais e federais (Figura 1).

 

Discussão

A prevalência total de defeitos congênitos nos nascidos vivos, neste estudo, foi de 83,1 por 10 mil nascidos vivos, mais baixa que a observada, no mesmo período, em algumas cidades brasileiras como Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul (123,5/10 mil nascidos vivos), 14 ou Campinas, Estado de São Paulo (133,7/10 mil nascidos vivos) 15. Parece ter havido, durante o período analisado, melhora na notificação do campo 34 e não um real aumento do número de casos. Constata-se, no ano de 2004, uma queda significativa do número de casos ignorados (20,2%), em relação a 2003 (9,3%), à custa do aumento do número de nascidos vivos sem defeitos congênitos, ou seja, 79% em 2003 e 90% em 2004, sugerindo que os casos que constavam como ignorados eram, na verdade, recém-nascidos sem defeitos congênitos (Figura 1). Contudo, considerando-se uma estimativa de 2% de casos de defeitos congênitos a serem registrados anualmente entre os nascidos vivos 16, estaríamos bem abaixo do esperado, ou seja, além dos 4.044 casos registrados no período, poderiam ter sido contabilizados mais 6.066 casos com algum tipo de defeito congênito. Ressalta-se também que, por se tratar de um evento raro, pequenas variações no percentual de defeitos congênitos podem significar grandes diferenças na qualidade da notificação dos casos na população.

Houve, no período estudado, o predomínio dos recém-nascidos com malformações do aparelho osteomuscular, principalmente as polidactilias, seguidas pelas malformações do sistema nervoso central. Esses achados assemelham-se ao encontrado nos Estados Unidos e na Europa, onde, contudo, as anomalias do sistema cárdio-circulatório e urogenital são ainda mais comuns que as do sistema nervoso 17,18,19. Estima-se que, nesses países, o diagnóstico pré-natal de malformações é bem mais freqüente, além do fato de as informações sobre defeitos congênitos serem baseadas em outras fontes além dos certificados de nascimento. Sobre as anomalias do sistema nervoso, bastante comuns em todo o mundo, sabe-se que alguns países em desenvolvimento, como Chile e Brasil, iniciaram, recentemente, a prevenção das malformações do tubo neural com a adição de folato aos alimentos 20,21. Ao considerarmos que a interrupção da gestação é ilegal em nosso país e que essas malformações são geralmente identificáveis ao nascimento, os dados contidos na declaração de nascido vivo poderiam se tornar, a exemplo dos países desenvolvidos, um importante instrumento de avaliação da prevalência dessas malformações na população e da eficácia da suplementação alimentar com folato 22,23.

A relevância da rede pública na assistência ao nascimento de recém-nascido com defeito congênito torna-se evidente quando verificamos que 72% dos casos nasceram em unidades municipais, estaduais, federais ou universitárias. As maternidades administradas pelo Município do Rio de Janeiro têm um importante papel no registro desses casos, pois, embora não tenham apresentado as maiores prevalências, respondem, em conjunto, pelo maior percentual dos casos nascidos no período (31,8%). O IFF/FIOCRUZ parece estratégico na assistência e geração das informações sobre defeitos congênitos no município, visto ser uma instituição na qual a prevalência de recém-nascidos com defeitos congênitos é a mais alta e em que nascem muitas crianças com malformações complexas. Em contrapartida, a prevalência de defeitos congênitos nas instituições filantrópicas conveniadas com o SUS parece bem abaixo do esperado para o período (0,1%), indicando uma subnotificação dos casos.

Não se pode afirmar com o presente estudo que a escolaridade das mães influencia as taxas de nascimentos de crianças com defeitos congênitos. Entretanto, foi notável a maior prevalência desses casos entre mulheres menos instruídas. Considerando-se que o grau de instrução está relacionado ao padrão sócio-econômico, deve-se levar em conta o impacto desses casos sobre as famílias com menos recursos financeiros. Verificou-se, por exemplo, uma elevada prevalência de malformações do sistema nervoso entre as mulheres desse grupo. Essas malformações, além de uma elevada taxa de mortalidade, são muito incapacitantes, exigindo grande esforço dos familiares na reabilitação das crianças, o que leva muitas mulheres a interromperem a gestação em países onde o aborto é legalmente permitido 24.

Algumas anomalias, como as gastrósquises, foram mais prevalentes nas jovens (< 20 anos), semelhante ao encontrado em estudos internacionais 25,26. Por outro lado, ficou demonstrada, neste estudo, uma freqüência mais elevada de defeitos congênitos entre os recém-nascidos de mães com idade igual ou acima dos 35 anos, principalmente de anomalias cromossômicas. Esse grupo de anomalias é comprovadamente mais prevalente nessa faixa etária 27,28, que coincide com a fase da vida em que muitas mulheres das camadas médias da população têm seus filhos.

A iniqüidade do acesso aos métodos diagnósticos pré-natais em nosso meio é evidente frente à quase ausência de serviços públicos que ofereçam sistematicamente exames para a avaliação morfológica e análise citogenética do feto. Se há uma tendência em nosso meio de que mulheres com instrução mais elevada e conseqüentemente com nível sócio-econômico mais alto engravidem mais tardiamente, esperar-se-ia encontrar, nesse grupo, uma maior freqüência de recém-nascidos com anomalias cromossômicas. Todavia, como boa parcela dessas gestantes tem acesso à saúde privada e ao diagnóstico pré-natal de defeitos congênitos, não se sabe quantas gestações são interrompidas e como isso influenciaria o registro das anomalias genéticas nas declarações de nascidos vivos.

Ao verificarmos que, em 23% dos casos, as mães residiam em outros municípios do Estado, aponta-se para o fato dessas gestantes serem referidas para os hospitais do Município do Rio de Janeiro, principalmente quando há identificação de risco materno ou fetal durante o pré-natal. Prova disso são as prevalências de defeitos congênitos encontradas entre os recém-nascidos cujas mães residiam fora da capital (245,6/10 mil nascidos vivos) comparadas com 73,4/10 mil nascidos vivos entre as moradoras do Rio de Janeiro. Embora não haja um sistema formal de referência para defeitos congênitos no município, o IFF/FIOCRUZ, unidade que assiste às gestações de alto risco fetal e aos portadores de doenças genéticas, parece ser estratégico em qualquer discussão sobre o assunto, já que quase 20% dos casos do período nasceram naquela maternidade. Isso representou uma prevalência de 1.610,4/10 mil nascidos vivos, bem acima daquela encontrada nas maternidades das instituições universitárias (132/10 mil nascidos vivos), que vêm em segundo lugar na freqüência de casos.

A gemelaridade é sabidamente uma causa importante de defeito congênito, principalmente nas gestações monozigóticas 29, podendo-se ressaltar que a prevalência de defeitos congênitos entre as gestações múltiplas da nossa amostra foi maior que em gestações únicas nos três últimos anos do estudo. Também a prematuridade e o baixo peso ao nascimento tiveram prevalências elevadas entre os casos avaliados, assim como a taxa de cesarianas. Frente à inexistência, em nossa cidade, de um sistema de referência e contra-referência para gestantes com fetos portadores de malformações, parece-nos que o planejamento do nascimento, e portanto da via de parto, fica restrito a um menor contingente de casos assistidos em unidades com maior suporte técnico. Muitos nascimentos resultam em prematuros graves que exigem prolongado tempo de internação e implicando em elevadas taxas de morbi-mortalidade 1.

Por fim, cabe ressaltar que estudos de confiabilidade dos dados sobre defeitos congênitos contidos nas declarações de nascidos vivos seriam necessários para a melhor utilização dessas informações. Considera-se evidente a importância das secretarias de saúde municipais na geração desses dados, visto ser o local de controle da codificação e posterior divulgação das informações do SINASC.

 

Colaboradores

F. A. R. Guerra foi responsável pela análise e interpretação dos dados e redação do artigo. J. C. Llerena Jr., S. G. N. Gama e M. M. Theme Filha colaboraram na orientação e revisão. C. B. Cunha foi responsável pela análise de dados e colaborou na redação.

 

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Correspondência:
F. A. R. Guerra
Departamento de Obstetrícia
Instituto Fernandes Figueira
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Oswaldo Cruz 87, sala 101, Rio de Janeiro
RJ 22260-060, Brasil.
fguerra@iff.fiocruz.br

Recebido em 07/Fev/2006
Versão final reapresentada em 04/Abr/2007
Aprovado em 13/Jul/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br