Desigualdade e discriminação no acesso à água e ao esgotamento sanitário na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Inequality and discrimination in access to water and sanitation in the Belo Horizonte Metropolitan Region, Minas Gerais State, Brazil

Desigualdad y discriminación en el acceso al agua y al saneamiento en la región metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Maria Inês Pedrosa Nahas Arlete Soares Alves de Moura Rodrigo Coelho de Carvalho Léo Heller Sobre os autores

Resumos

O acesso aos serviços de saneamento básico por parte da população da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, vem sendo marcado por processos de segregação socioespacial e exclusão social. Tendo em vista o reconhecimento, em 2010, dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário pela Organização das Nações Unidas, busca-se analisar o acesso adequado a estes serviços na Região Metropolitana de Belo Horizonte por meio do princípio da igualdade e não discriminação. Foram utilizados microdados provenientes dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, anos de 2000 e 2010. Esses foram submetidos à análise estatística descritiva e comparativa, análise espacial e análise multivariada, buscando-se: dimensionar a universalização do acesso adequado aos serviços; analisar a dependência espacial entre os municípios no que se refere a tal acesso; identificar e caracterizar possível discriminação no acesso, por parte de determinados grupos populacionais. Os resultados permitiram observar: aumento na proporção de domicílios com o acesso adequado aos serviços de água e esgoto no período intercensitário; quase inexistência de associação espacial, demonstrando haver desigualdades entre os 34 municípios que compõem a Região Metropolitana de Belo Horizonte; desigualdades no acesso entre diferentes grupos populacionais - segundo situação do domicílio, renda, cor ou raça, sexo e escolaridade - em possível desacordo com o princípio da não discriminação.

Palavras-chave:
Abastecimento de Água; Saneamento; Iniquidade Social; Direitos Humanos


Access to water and sanitation services by the population of the Belo Horizonte Metropolitan Region, Minas Gerais State, Brazil, has been marked by processes of socio-spatial segregation and social exclusion. Considering the recognition, in 2010, of the human rights to water and sanitation by the United Nations, we seek to assess the adequate access to these services in the Belo Horizonte Metropolitan Region through the principle of equality and non-discrimination. We used microdata from the demographic censuses, years 2000 and 2010, from the Brazilian Institute of Geography and Statistics. We analyzed these data through descriptive and comparative statistical analysis, spatial analysis and multivariate analysis, so as to: determine the extent of the universalization of the adequate access to those services; assess the spatial dependence between municipalities regarding this access; identify and characterize possible access discrimination, by specific population groups. Results show an increase in the proportion of households with adequate access to water and sanitation services in the intercensus period; near lack spatial association, showing inequalities among the 34 municipalities of the Belo Horizonte Metropolitan Region; access inequalities among different population groups - according to household situation, income, race or color, sex and educational level - in a possible non compliance with the principle of non-discrimination.

Keywords:
Water Supply; Sanitation; Social Inequity; Human Rights


El acceso a los servicios de agua y saneamiento por parte de la población de la Región Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, ha estado marcado por procesos de segregación socioespacial y exclusión social. Teniendo en vista el reconocimiento, en 2010, de los derechos humanos al agua y al saneamiento por las Naciones Unidas, se busca analizar el acceso adecuado a esos servicios en la Región Metropolitana de Belo Horizonte, a través del principio de la igualdad y no discriminación. Se utilizaron microdatos provenientes de los censos demográficos del Instituto Brasileño de Geografía y Estadística, en los años 2000 y 2010. Estos se sometieron a un análisis estadístico descriptivo y comparativo, análisis espacial y análisis multivariado, buscando: dimensionar la universalización del acceso adecuado a los servicios; analizar la dependencia espacial entre los municipios en lo que se refiere a tal acceso; identificar y caracterizar una posible discriminación en el acceso, por parte de determinados grupos poblacionales. Los resultados permitieron observar: un aumento en la proporción de domicilios con acceso adecuado a los servicios de agua y saneamiento durante el período intercensitario; casi inexistencia de asociación espacial, demostrando que existen desigualdades entre los 34 municipios que componen la Región Metropolitana de Belo Horizonte; desigualdades en el acceso entre diferentes grupos poblacionales -según la situación del domicilio, renta, color o raza, sexo y escolaridad-, en posible desacuerdo con el principio de la no discriminación.

Palabras-clave:
Abastecimiento de Agua; Saneamiento; Inequidad Social; Derechos Humanos


Introdução

O acesso aos serviços públicos de saneamento é indispensável para a saúde humana 11. Heller L. Saneamento e saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 1997.. A falta desses serviços pode acarretar uma série de doenças infectoparasitárias 22. Costa AM, Pontes CAA, Melo CH, Lucena RCB, Gonçalves FR, Galindo EF. Classificação de Doenças Relacionadas a um Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI) e os sistemas de informações em saúde no Brasil: possibilidades e limitações de análise epidemiológica em saúde ambiental. In: XXVIII Congresso Interamericano de Ingeniería Sanitaria y Ambiental. Cancún: Asociación Interamericana de Ingeniería Sanitaria y Ambiental; 2002. p. 1-5.,33. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RA, Barata RB, Rodrigues LC. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet 2011; 377:1877-89., além de tornar insalubres os agrupamentos humanos nos ambientes urbano e rural. Não obstante, no Brasil, historicamente os grupos marginalizados, como comunidades rurais, pobres e a população residente em assentamentos informais, sofrem mais do que outros grupos com a falta de tais serviços 44. Moraes LRS, coordenador. Panorama do saneamento básico no Brasil. Volume 2: análise situacional do déficit em saneamento básico. http://www.urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/MCIDADESAnalisedeficitemsaneamentobasico.pdf (acessado em 15/Mai/2018).
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. Como afirmam Rezende & Heller 55. Rezende SC, Heller L. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. 2ª Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2008. (p. 41), “a trajetória histórica do saneamento no país é inseparável dos outros aspectos do desenvolvimento, sobretudo os econômicos, sociais, políticos e culturais”.

O diagnóstico da situação do saneamento básico no Brasil realizado pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) demonstra o déficit que a população rural do país tem em relação ao acesso aos serviços, além de outras iniquidades relacionadas ao rendimento domiciliar, escolaridade e outras características populacionais 66. Ministério das Cidades. Plano Nacional de Saneamento Básico - PLANSAB. http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNSA/Arquivos_PDF/plansab_06-12-2013.pdf (acessado em 20/Jul/2016).
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Esse quadro está relacionado ao crescimento desordenado das cidades brasileiras que vem trazendo como consequência, dentre outras, a segregação dos mais pobres 77. Torres HG, Marques E, Ferreira MP, Bitar S. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. Estud Av 2003; 17:97-128.,88. Brito F, Souza J. Expansão urbana nas grandes metrópoles: o significado das migrações intrametropolitanas e da mobilidade pendular na reprodução da pobreza. São Paulo Perspect 2005; 19:48-63.,99. Maricato E. Metrópoles desgovernadas. Estud Av 2011; 25:7-22.,1010. Lago LC. Desigualdades e segregação na metrópole: o Rio de Janeiro em tempo de crise. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2015..

Segundo Mendonça et al. 1111. Mendonça JG, Andrade LT, Diniz AMA. Introdução: mudanças e permanências na estrutura socioeconômica e territorial na Região Metropolitana de Belo Horizonte. In: Andrade LT , Mendonça JG , Diniz AMA , organizadores. Belo Horizonte: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles/Belo Horizonte: Editora PUC-Minas; 2015. p. 15-32., a trajetória da formação de Belo Horizonte, Minas Gerais, e de sua região metropolitana foi marcada por processos de segmentação e segregação socioespacial. Assim, a exclusão social também se manifesta no acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 e toda sua história é perpassada pela defasagem entre o crescimento da população e a capacidade dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário 1212. Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais. Saneamento básico em Belo Horizonte: trajetória de 100 anos - os serviços de água e esgoto. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; 1997..

Nesse cenário, o reconhecimento do acesso à água e ao esgotamento sanitário como direitos humanos pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (UNGA) 1313. United Nations General Assembly. Human right to water and sanitation. Geneva: United Nations General Assembly; 2010. (UN Document A/RES/64/292). e pelo Conselho de Direitos Humanos 1414. United Nations Human Rights Council. Resolution on the human right to safe drinking water and sanitation. Geneva: United Nations Human Rights Council; 2010. (Resolution A/HRC/RES/15/9)., abriu novas possibilidades políticas, conceituais e analíticas para se pensar esse quadro. A partir dali os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES) passaram a ser direitos independentes e não implícitos no direito humano a um nível de vida que assegure saúde e bem-estar 1515. Meier BM, Kayser GL, Amjad UQ, Bartram J. Implementing an evolving human right through water sanitation policy. Water Policy 2013; 15:116-33. - tal como prescreve o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos1616. United Nations. Universal Declaration of Human Rights. G. A. Res. 217A (III), at 71, U.N. GAOR, 3rd Session, 1st plenary meeting. New York: United Nations; 1948. (UN Document, A/810)..

O direito humano à água confere a todos o direito ao acesso à água suficiente, segura, aceitável, física e economicamente acessível, e o direito humano ao esgotamento sanitário a serviços que assegurem privacidade e dignidade, física e economicamente acessíveis, higiênicos, seguros e culturalmente aceitáveis 1414. United Nations Human Rights Council. Resolution on the human right to safe drinking water and sanitation. Geneva: United Nations Human Rights Council; 2010. (Resolution A/HRC/RES/15/9).,1717. Albuquerque C. Manual prático para a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento. Lisboa: Organização das Nações Unidas; 2014..

Embora não exista no Brasil norma jurídica expressa sobre o direito fundamental à água e ao esgotamento sanitário, ele é consequência de princípios constitucionais e preâmbulo para a garantia da dignidade humana e acesso a um ambiente saudável, conforme o art. 225 da Constituição Federal de 1988. O Brasil vincula-se também às resoluções de 2010 do Conselho de Direitos Humanos e da UNGA, que consagraram os DHAES.

O processo de urbanização que ocorreu de forma desordenada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, coloca reflexões à luz dos direitos humanos. Em assentamentos informais, “o regime de titularidade jamais deve ser invocado como justificativa para negar o acesso à água e ao saneamento1717. Albuquerque C. Manual prático para a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento. Lisboa: Organização das Nações Unidas; 2014. (Caderno 2, p. 16). Outro desafio consiste em fornecê-los a preços acessíveis às pessoas 1818. Brown C, Neves-Silva P, Heller L. The human right to water and sanitation: a new perspective for public policies. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:661-70..

Nesse contexto, o objetivo do trabalho é analisar o acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da população residente na Região Metropolitana de Belo Horizonte, na perspectiva dos direitos humanos - em seu princípio de igualdade e não discriminação - oferecendo referências para a atuação do poder público na universalização do acesso aos DHAES.

A análise dos DHAES valendo-se desse princípio é importante por ser transversal a todos os direitos humanos, estando presentes nos artigos 1º e 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais1919. United Nations. International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. New York: United Nations; 1966.. Os principais tratados de direitos humanos que entraram em vigor desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos contêm obrigações legais para assegurar a igualdade 1717. Albuquerque C. Manual prático para a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento. Lisboa: Organização das Nações Unidas; 2014.. Além disso, é um princípio destacado no Comentário Geral nº 15 da Organização das Nações Unidas (ONU) 2020. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights; 2010., que estabeleceu os atributos normativos dos DHAES, nos quais se explicita a não discriminação de grupos populacionais por questões relacionadas à raça, sexo, idade, estado de saúde e outras características.

Assim, o trabalho visou, especificamente, a: (i) analisar o princípio da igualdade dimensionando-se a universalização do acesso adequado aos serviços e identificando possíveis associações espaciais entre os municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, no que se refere a tal acesso; e (ii) analisar a não discriminação por meio da identificação de possíveis desigualdades no acesso por parte de grupos populacionais e explorar suas características.

Métodos

O trabalho foi realizado visando a analisar a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo. Para as análises foram selecionadas as “categorias de adequação do atendimento aos serviços” e, em seguida, identificaram-se dados apropriados às análises com base em tais categorias.

Categorias de adequação do atendimento dos serviços de água e esgoto

Foram adotadas as categorias estabelecidas no PLANSAB 66. Ministério das Cidades. Plano Nacional de Saneamento Básico - PLANSAB. http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNSA/Arquivos_PDF/plansab_06-12-2013.pdf (acessado em 20/Jul/2016).
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  • Abastecimento de água “adequado”: domicílios com acesso à rede geral de distribuição de água ou poço, ou nascente dentro ou fora da propriedade, ambas as formas com canalização em pelo menos um cômodo;

  • Abastecimento de água “inadequado”: domicílios com rede geral de distribuição ou poço, ou nascente dentro ou fora da propriedade, mas com canalização apenas na propriedade ou sem canalização. As demais formas de abastecimento - carro-pipa, água da chuva armazenada em cisterna ou de outra forma e rios, açudes, lagos e igarapés - também foram consideradas inadequadas;

  • Esgotamento sanitário “adequado”: domicílios que dispõem de rede geral de esgoto ou pluvial, ou que utilizam fossa séptica;

  • Esgotamento sanitário “inadequado”: demais tipos de esgotamento, ou seja: fossa rudimentar, vala, rio, lago ou mar e outros.

Seleção dos dados

Tal seleção foi orientada pela busca de dados para construir as categorias de serviços “adequados” e “inadequados”, cobrindo toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Assim, utilizaram-se microdados provenientes do questionário amostral dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos anos de 2000 e 2010 (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/default_microdados.shtm, acessado em 11/Set/2016), uma vez que o questionário do universo não abrangia informações de interesse do estudo.

A construção das categorias de adequação do acesso aos serviços foi feita usando-se as variáveis censitárias: “forma de abastecimento de água”; “existência de canalização para água na propriedade”; e “tipo de esgotamento sanitário”.

Análises do princípio da igualdade

Universalização dos serviços

Os microdados censitários de 2000 e 2010 foram submetidos a análises descritivas, visando a dimensionar a proporção da população total com acesso adequado aos serviços, e a análises comparativas para explorar possíveis avanços temporais.

Associação espacial

Como este é um estudo de uma região metropolitana, realizou-se análise espacial buscando identificar possíveis associações entre municípios, que refletem desigualdades no nível de acesso adequado aos serviços. Para tanto, foram gerados, para os anos de 2000 e 2010, os Índices de Moran Global e Local 2121. Câmara G, Monteiro AM, Drucks SD, Carvalho MS. Análise espacial e geoprocessamento. In: Druck S, Carvalho MS , Câmara G , Monteiro AM, editores. Análise espacial de dados geográficos. Brasília: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária; 2004. http://www.dpi.inpe.br/gilberto/livro/analise/index.html.
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O Índice de Moran Global mede a autocorrelação espacial com base nos produtos dos desvios em relação à média, indicando o grau de associação presente no conjunto total de dados. Varia de -1 a 1, sendo que valores próximos a -1 denotam um padrão bastante disperso; valores próximos a 0 indicam aleatoriedade espacial; e próximos a 1 denotam um padrão espacial concentrado.

O Índice de Moran Local quantifica o grau de associação espacial a que cada localização do conjunto amostral está submetido em função de um modelo de vizinhança preestabelecido 2222. Cardoso CEP. Dependência espacial: setores censitários, zonas OD, distritos, sub prefeituras e etc. http://www.sinaldetransito.com.br/artigos/espacial.pdf (acessado em 22/Ago/2018).
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. Esse índice tem uma proporcionalidade direta com os valores da autocorrelação global e permite inferir padrões locais de autocorrelação espacial, identificando clusters ou outliers estatisticamente significantes.

Análise da não discriminação

Desigualdades no acesso

Esta análise visou a identificar possíveis desigualdades no acesso adequado aos serviços, por parte de certos grupos populacionais, que podem sugerir um padrão de discriminação. Entende-se por “discriminação” toda distinção, exclusão ou restrição que objetive ou resulte no prejuízo ou supressão “do reconhecimento, gozo ou exercício, em pé de igualdade com outros direitos humanos e liberdades fundamentais, nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou qualquer outra esfera1717. Albuquerque C. Manual prático para a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento. Lisboa: Organização das Nações Unidas; 2014. (Caderno 7, p. 10).

Para tanto, utilizaram-se os dados do Censo Demográfico de 2010, que foram submetidos à análise de regressão logística, uma vez que o objetivo aqui foi investigar a “existência” ou “inexistência” de acesso adequado aos serviços 2323. Hair JF. Análise multivariada de dados. 5ª Ed. Porto Alegre: Bookman; 2005.,2424. Mingoti SA. Análise de dados através de métodos de estatística multivariada: uma abordagem aplicada. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2005.. Dessa forma, pode-se determinar a relação entre a variável que se busca explicar (variável dependente) e as variáveis explicativas (variáveis independentes), e medir a razão de chances (OR) 2525. Hosmer DW, Lemeshow S. Applied logistic regression. New York: Wiley-Interscience; 1998..

Considerando-se que o artigo visa aos princípios da igualdade e não discriminação, na construção do modelo foram incluídas todas as variáveis estatisticamente significantes capazes de explicar as variáveis resposta (o acesso adequado aos serviços de água e esgoto). Dessa forma, foi possível gerar ORs para analisar as diferenças no acesso a serviços adequados considerando-se diferentes fatores (variáveis independentes), listados no Quadro 1.

Quadro 1
Variáveis independentes utilizadas no estudo das desigualdades no acesso adequado a serviços de água e esgoto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em 2010.

Resultados

Universalização dos serviços

Como se pode observar na Tabela 1, os resultados demonstram que a população da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em seu conjunto, conta com uma cobertura dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário elevada, se comparada com a média nacional: o PLANSAB aponta, em 2010, um déficit em abastecimento de água de cerca de 40% da população total, e de 60% em esgotamento sanitário 66. Ministério das Cidades. Plano Nacional de Saneamento Básico - PLANSAB. http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNSA/Arquivos_PDF/plansab_06-12-2013.pdf (acessado em 20/Jul/2016).
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Tabela 1
Proporção (%) de domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, com acesso adequado aos serviços de água e esgotamento sanitário, em 2000 e 2010.

No período analisado, observou-se aumento da proporção de domicílios com acesso adequado a ambos os serviços.

Tais resultados expressam a situação de toda a população da Região Metropolitana de Belo Horizonte, mas escamoteiam as disparidades entre os municípios. A análise dos dados por município mostra que, em 2000, a adequação no acesso ao serviço de abastecimento de água variou de 77% (Jaboticatubas) a 98% (Florestal, Contagem e Belo Horizonte) e, em 2010, de 75% (Taquaraçu de Minas) a 99% (Rio Acima e Florestal). No serviço de esgotamento sanitário, a situação variou, em 2000, de 0% (Rio Manso) a 92% (Belo Horizonte) e, em 2010, de 1% (Confins) a 96% (Belo Horizonte).

No entanto, em todos os municípios ocorreu um aumento dos domicílios com acesso adequado a ambos os serviços, tal como se observou para a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo.

Associação espacial

Quanto aos serviços de água

No que se refere à água, não se observou padrão claro de distribuição espacial dos municípios relativamente à proporção de domicílios com acesso adequado aos serviços. No período mais recente (2010), nenhum padrão espacial estatisticamente significativo foi encontrado. No período mais antigo (2000), observou-se um padrão estatisticamente significativo, mas o valor do Índice de Moran Global foi muito baixo (0,21).

O Índice de Moran Local mostrou alguns clusters locais e outliers estatisticamente significantes. Em 2000, destaca-se um cluster “baixo-baixo” na porção norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, composta por Baldim, Jaboticatubas e Taquaraçu de Minas, municípios com baixas taxas de acesso adequado a serviços de abastecimento de água, rodeados por municípios vizinhos em situação similar. Observou-se também um cluster “alto-alto” formado por Belo Horizonte e Contagem, municípios com elevada proporção de domicílios com acesso adequado, localizados próximos a municípios na mesma situação. Naquele ano, observou-se também um outlier (Esmeraldas), município com baixa proporção de domicílios com acesso adequado, localizado próximo a municípios com altas proporções. Em 2010, observou-se, novamente, um cluster do tipo “baixo-baixo” na porção norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte - representada pelo Município de Jaboticatubas - sugerindo a permanência de uma situação de precariedade no local, e também dois outliers do tipo “baixo-alto”: São Joaquim de Bicas e Raposos, municípios com uma baixa proporção de domicílios com acesso adequado, próximos a municípios com altas proporções.

Os resultados observados em 2000 e 2010 são apresentados nas Figuras 1 e 2 , respectivamente.

Figura 1
Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de água na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2000.

Figura 2
Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de água na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010.

Quanto aos serviços de esgotamento sanitário

Também no acesso adequado a serviços de esgotamento sanitário não se identificou um padrão claro dos municípios na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Embora um padrão espacial estatisticamente significante tenha sido identificado com o Índice de Moran Local em 2000 e 2010, os valores do Índice de Moran Global foram muito baixos nos dois anos (respectivamente, 0,21 e 0,13), indicando um padrão espacial praticamente aleatório em nível global.

Entretanto, destaca-se, em 2000, um cluster do tipo “alto-alto” nas porções central e leste da Região Metropolitana de Belo Horizonte, formadas por Belo Horizonte, Nova Lima, Sabará, Raposos e Caeté, municípios com altas taxas de acesso adequado, próximos a municípios na mesma situação. Em 2010, um cluster do mesmo tipo foi formado pelos municípios de Belo Horizonte, Nova Lima e Contagem. Ainda nesse ano, identificou-se um outlier do tipo “baixo-baixo” (Capim Branco), município com baixa proporção de domicílios com acesso adequado, próximo a municípios vizinhos em situação similar.

Os resultados observados em 2000 e 2010 são apresentados nas Figuras 3 e 4, respectivamente.

Figura 3
Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de esgoto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2000.

Figura 4
Índice de Moran Local para o acesso adequado aos serviços de esgoto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010.

Desigualdades no acesso

Conforme é possível observar na Tabela 2, a variável “instrução do responsável pelo domicílio” não foi estatisticamente significante no que se refere ao serviço de abastecimento de água. Entretanto, na Tabela 3, observa-se que todas as variáveis estudadas apresentaram-se associadas à condição de ter acesso adequado ao esgotamento sanitário.

Observou-se que as variáveis “renda domiciliar” e “situação do domicílio” demonstraram maiores desigualdades entre os grupos populacionais para o abastecimento de água e para o esgotamento sanitário, pois em ambas as razões de chance alcançaram os maiores valores, demonstrando sua importante influência no acesso adequado aos serviços.

Tabela 2
Modelo de regressão logística utilizado para análise da variável “Abastecimento de Água Adequado” nos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010 (N = 1.505.011).
Tabela 3
Modelo de regressão logística utilizado para análise da variável “Esgotamento Sanitário Adequado” nos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010 (N = 1.505.011).

Discussão

Universalização dos serviços

Os resultados demonstram que, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o acesso a serviços de esgotamento sanitário é inferior ao de abastecimento de água, o que possivelmente decorre da histórica priorização de investimentos em abastecimento de água como padrão das políticas adotadas no Brasil 55. Rezende SC, Heller L. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. 2ª Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2008.. No entanto, entre 2000 e 2010 houve maior elevação no acesso a esses serviços do que nos serviços de água. Os valores da cobertura para o abastecimento de água, já próximos a 100% em 2000, possivelmente explicam a menor elevação da cobertura por esses serviços.

Outro aspecto a ser observado é a diferença na amplitude no acesso adequado aos serviços de água nos municípios, nos dois períodos: em 2000, variou de 77% a 98% e, em 2010, 75% a 99%. Portanto, houve um aumento da distância entre os porcentuais máximo e mínimo nos dois períodos. O mesmo observou-se com relação ao acesso adequado ao esgotamento sanitário: em 2000 variou de 0% a 92% e, em 2010, de 1% a 96%, revelando um aumento da distância entre os percentuais máximo e mínimo no período. Tal aumento na amplitude entre os percentuais máximo e mínimo indica que, no período estudado, houve um aprofundamento da desigualdade no acesso a ambos os serviços.

Finalmente, é importante salientar, como já mencionado, que em todos os municípios ocorreu um aumento dos domicílios com acesso adequado a ambos os serviços, tal como foi observado para a Região Metropolitana de Belo Horizonte como um todo. Esse é um aspecto que demonstra aumento progressivo do cumprimento dos DHAES, em acordo com o artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Culturais Econômicos e Sociais de 1966, que preconiza a adoção, pelos Estados, de medidas progressivas para a realização dos direitos utilizando o máximo de recursos disponíveis 1919. United Nations. International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. New York: United Nations; 1966.. Esta análise não oferece elementos suficientes para captar se o máximo de recursos disponíveis foi efetivamente mobilizado para a ampliação do acesso na década. Contudo, é possível presumir que maiores avanços seriam factíveis, pois a Região Metropolitana de Belo Horizonte conta com elevada capacidade de geração de receitas em serviços de água e esgotos e, por outro lado, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) - principal prestadora de serviços na região - vem sistematicamente transferindo seus superávits financeiros para seus acionistas, reduzindo sua capacidade de investimento 2626. Oliveira TG, Lima SCRB. Privatização das companhias estaduais de saneamento: uma análise a partir da experiência de Minas Gerais. Ambiente & Sociedade 2015; 18:253-72..

Associação espacial

Os baixos valores observados no Índice de Moran Global, para ambos os serviços, nos dois períodos, indicam que na Região Metropolitana de Belo Horizonte não se observou dependência espacial entre os municípios na prestação desses serviços.

Os resultados sugerem não existir uma relação entre os municípios no que se refere à proporção de domicílios com serviços adequados de água e esgoto. Tais variáveis se manifestam em cada município de forma independente, não havendo um padrão espacial global na distribuição dessas proporções na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Mesmo não se identificando um perfil geral da distribuição espacial dos municípios, em ambos os períodos foram observados clusters e outliers, sugerindo instabilidade em certas porções da Região Metropolitana de Belo Horizonte e demonstrando as desigualdades espaciais no acesso a ambos os serviços.

Desigualdades no acesso

“Renda domiciliar”

Os resultados demonstram que, em 2010, domicílios com rendimentos acima de dez salários mínimos tinham cerca de três vezes mais chances de acesso adequado ao serviço de abastecimento de água e 4,5 mais chances ao serviço de esgotamento sanitário, quando comparados com domicílios de até 1,5 salário mínimo de rendimentos. Tal distância de oportunidade de acesso se torna mais grave porque, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, observou-se um número maior de domicílios com baixa renda.

Esses resultados corroboram o fato de que nas áreas de privação socioeconômica mais elevada se concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento 2727. Bullard R. Environmental justice: it's more than waste facility siting. Soc Sci Q 1996; 77:493-9.,2828. Acselrad H, Mello CCA, Bezerra GN. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond; 2009.,2929. Acselrad H. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estud Av 2010; 24:103-19.. Dessa forma, os pobres têm o usufruto dos direitos humanos restringido, vivendo muitas vezes em assentamentos informais, sem prestação adequada de serviços.

A promoção da igualdade implica tratar o que é desigual de forma desigual, requerendo a adoção de políticas públicas voltadas para populações de menor renda, dado o caráter multidimensional da pobreza 3030. UN Water. Eliminating discrimination and inequalities in access to water and sanitation. http://www.unwater.org/publications/publications-detail/en/c/340177/ (acessado em 20/Ago/2016).
http://www.unwater.org/publications/publ...
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“Situação do domicílio”

Quanto à situação do domicílio, observou-se que a Região Metropolitana de Belo Horizonte abriga reduzida proporção de residências localizadas em área rural (cerca de 2%). No entanto, domicílios localizados na área urbana tinham 6,5 vezes mais chances de contar com abastecimento de água adequado e quase 12 vezes mais chances de ter acesso a esgotamento sanitário adequado, se comparados aos de áreas rurais.

As desigualdades de acesso especialmente ao esgotamento sanitário seguem a tendência brasileira e de diversos outros países, em que há déficit mais elevado nas áreas rurais. O primeiro relatório global sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 20303131. WHO/UNICEF Joint Monitoring Programme for Water Supply and Sanitation. Progress on drinking water, sanitation and hygiene: 2017 update and SDG baselines. Geneva: WHO/UNICEF Joint Monitoring Programme for Water Supply and Sanitation; 2017., de 2015, revela que 2% da população mundial em área urbana não tinham acesso a uma fonte melhorada de água, contra 10% da população rural. Nas áreas urbanas, 5% da população não tinham acesso melhorado ao esgotamento, contra 19% em áreas rurais.

“Sexo do responsável pelo domicílio”

Quase 60% dos responsáveis pelos domicílios registrados na Região Metropolitana de Belo Horizonte eram do sexo masculino. No entanto, observou-se que a chance de um domicílio com responsável do sexo feminino ter acesso à água de forma adequada, em 2010, era 19% mais elevada do que em domicílios com responsável do sexo masculino. No caso do serviço de esgotamento sanitário, essa chance estava acima de 31%.

Tais resultados foram também observados por Rezende et al. 3232. Rezende S, Wajnman S, Carvalho JAM, Heller L. Integrando oferta e demanda de serviços de saneamento: análise hierárquica do panorama urbano brasileiro no ano 2000. Eng Sanit Ambient 2007; 12:90-101. (p. 98), sugerindo que, no Brasil, “entre os homens, a chance de chefiar um domicílio atendido com redes de água e esgotos é menor que a das mulheres...”.

Esse é um resultado positivo para a Região Metropolitana de Belo Horizonte no que se refere aos grupos vulneráveis, pois mulheres e meninas sofrem maior discriminação no que diz respeito ao usufruto de tais direitos 3030. UN Water. Eliminating discrimination and inequalities in access to water and sanitation. http://www.unwater.org/publications/publications-detail/en/c/340177/ (acessado em 20/Ago/2016).
http://www.unwater.org/publications/publ...
.

“Cor da pele (ou raça) do chefe do domicílio”

Observou-se que domicílios com responsáveis com “pele branca” apresentavam uma chance mais elevada em 32% de ter acesso adequado ao abastecimento de água e em 39% de ter acesso ao esgotamento sanitário, quando comparados com domicílios com chefes de pele “não branca”. Tal diferença se agrava porque, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, 60% dos chefes de domicílio são da categoria “pele não branca” (cor da pele preta, parda, indígena ou amarela).

Embora os números registrados na Região Metropolitana de Belo Horizonte não sejam suficientes para evidenciar um “racismo ambiental” nos moldes estadunidenses 3333. Bullard R. Confronting environmental racism: voices from the grassroots. Boston: South End Press; 1993.,3434. Herculano S. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS 2008; 3:113-20., são importantes para melhor analisar e compreender as desigualdades presentes nas cidades brasileiras 3535. Santos SB. Famílias negras, desigualdades, saúde e saneamento básico no Brasil. Tempus (Brasília) 2013; 7:41-53..

“Nível de instrução”

Conforme já assinalado, esta variável mostrou-se estatisticamente significante somente para o acesso ao esgotamento sanitário, observando-se que residências cujos responsáveis tinham curso “superior completo” apresentavam quatro vezes mais chances de ter acesso adequado ao serviço do que aquelas com responsáveis sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Tal discriminação é agravada porque 44% dos responsáveis pelos domicílios da Região Metropolitana de Belo Horizonte apresentam tal escolaridade, refletindo a realidade brasileira, em que 51% dos responsáveis pelo domicílio, no ano de 2010, possuíam este nível de instrução (IBGE. Sistema de Recuperação Automática. https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3517#resultado, acessado em 20/Set/2016).

Considerações finais

Os resultados aqui apresentados estão de acordo com estudo anterior, que indica melhorias na Região Metropolitana de Belo Horizonte no decorrer da última década, evidenciadas pelos indicadores econômicos, de escolaridade, ocupação e longevidade da população, inclusive no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal 3636. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Arranjos institucionais de gestão metropolitana da RM de Belo Horizonte. Governança metropolitana: relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2015.. Contudo, não foram observadas transformações nas profundas desigualdades dos municípios periféricos em relação aos municípios mais centrais da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Aqueles municípios são marcados pela falta de planejamento 3737. Andrade LT. O espaço metropolitano no Brasil: nova ordem espacial? Caderno CRH 2016; 29:101-18., indicando a necessidade de maior atenção governamental a essas localidades, priorizando políticas públicas que promovam a equidade e a não discriminação no acesso aos serviços.

A legislação existente aponta nessa direção. No âmbito estadual, leis complementares estabelecem que na gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte devem ser observados os princípios de redução das desigualdades sociais e territoriais 3838. Minas Gerais. Lei Complementar nº 88, de 12 de janeiro de 2006. Dispõe sobre a Instituição e a Gestão de Região Metropolitana e sobre o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano. Diário do Executivo 2006; 13 jan. e preconizam a integração dos sistemas de abastecimento e esgoto sanitário do aglomerado metropolitano 3939. Minas Gerais. Lei Complementar nº 89, de 12 de janeiro de 2006. Dispõe sobre a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Diário do Executivo 2006; 13 jan.. Mais recentemente, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte propõe uma Política Metropolitana Integrada de Saneamento Básico 4040. Minas Gerais. Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Definição das propostas de políticas setoriais, projetos e investimentos prioritários. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2011., o que poderá alterar o quadro de dispersão e baixa dependência espacial evidenciado pelos resultados apresentados. Além disso, a Lei Federal do Saneamento Básico preconiza a universalização e equidade dos serviços de saneamento no Brasil 4141. Brasil. Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Diário Oficial da União 2007; 8 jan..

Dessa forma, o reconhecimento dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário corrobora a ideia do acesso universal, sem discriminação a estes serviços, que são de suma importância para a dignidade do cidadão. Nesse campo, o Brasil e seus entes subnacionais têm claras obrigações legais de cumprir progressivamente com esses direitos e, sobretudo, de não os violar, o que é respaldado pelos tratados internacionais e pela legislação nacional.

É evidente que todos ou alguns desses atributos frequentemente são aplicados aos mesmos moradores, mas a visibilização desses padrões de discriminação pode ter papel relevante no enquadramento das políticas públicas. Além disso, uma política de saneamento voltada a não discriminação deve levar em conta outros padrões de exclusão, não abordados neste trabalho, como de pessoas que vivem em situação de rua, migrantes e refugiados, habitantes de ocupação urbana, estudantes de escolas rurais e da periferia urbana, pessoas privadas de liberdade.

É importante destacar que, no Brasil, existem poucos estudos que analisam o acesso à água e ao esgotamento sanitário na perspectiva dos direitos humanos 4242. Neves-Silva P, Heller L. O direito humano à água e ao esgotamento sanitário como instrumento para promoção da saúde de populações vulneráveis. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1861-70.,4343. Aleixo B, Rezende S, Pena JL, Zapata G, Heller L. Direito humano em perspectiva: desigualdades no acesso à água em uma comunidade rural do Nordeste brasileiro. Ambiente & Sociedade 2016; 19:63-84.,4444. Oliveira CM. Sustainable access to safe drinking water: fundamental human right in the international and national scene. Revista Ambiente & Água 2017; 12:985-1000.,4545. Neves-Silva P, Heller L. "A gente tem acesso de favores, né?". A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00024017.. Dessa forma, o presente trabalho representa uma contribuição original e a metodologia empregada tem potencial de replicação em outras regiões metropolitanas e territórios do país.

Por fim, cabe assinalar a importância de se desenvolver estudos que focalizem o alcance dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário para além dos princípios de igualdade e não discriminação, evocando a base normativa dos direitos, ou seja: disponibilidade, acessibilidade física, aceitabilidade, acessibilidade econômica, qualidade e segurança, além de privacidade e dignidade para o esgotamento sanitário.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes; Código de Financiamento 001).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2018
  • Revisado
    26 Nov 2018
  • Aceito
    11 Jan 2019
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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