RESENHA REVIEW

 

Fernando Freitas

Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais — ENSP/FIOCRUZ

 

 

CIDADANIA E LOUCURA — Origens das políticas de Saúde Mental no Brasil. Costa, Nilson do Rosário e Tundis, Silvério (org.), Petrópolis, Abrasco/Vozes, 1987.

A questão da Saúde Mental em nosso país está mais uma vez colocada em discussão. Desta vez a partir da recente publicação do livro Cidadania e Loucura — Políticas de Saúde Mental no Brasil, reunindo trabalhos de alguns dos nossos melhores pensadores no assunto. A idéia original da coletânea foi fazer um mapeamento do estado atual da discussão sobre a questão, as práticas terapêuticas voltadas para o campo da loucura e os processos sociais que determinam a emergência da chamada doença mental. No momento em que a sociedade brasileira se encontra mobilizada na construção de um novo contrato social, através da Constituinte, a leitura desse livro é obrigatória; o lugar destinado ao chamado doente mental expressa, de uma forma contundente, como a sociedade brasileira é excludente, rígida e hierarquizada, porque são grupos sociais marginalizados os alvos preferenciais dos aparatos de controle, rotulações e reclusão.

A loucura tem sido uma companheira inseparável do homem ao longo de todo o seu trajeto conhecido pela história. As referências a loucos são encontradas desde o Velho Testamento aos estudos etnográficos das sociedades chamadas primitivas. Não existe cultura que deixe de ser sensível àquilo que escapa a sua norma, definindo incessantemente as fronteiras entre a loucura e a normalidade, voltando seu olhar para a presença dos "loucos" no convívio com as pessoas "normais" e produzindo estratégias para enfrentar os produtos dessa divisão. Como já foi demonstrado no clássico História da Loucura, de Michel Foucault, a partir do século XIX a tarefa de vigiar a fronteira entre a razão e a loucura e montar guarda na sua cancela, foi destinada à Medicina.

Dois trabalhos da coletânea Cidadania e Loucura procuram, de uma forma original, tratar da constituição da Psiquiatria, dando continuidade aos estudos realizados no Brasil, na década de 70, por Jurandir Freire, Roberto Machado e Joel Birman.

O trabalho de João Ferreira da Silva nos apresenta os fundamentos teóricos justificadores de toda a expansão das ações psiquiátricas: as tarefas epistemológicas da constituição da loucura enquanto seu objeto de intervenção, a construção do asilo enquanto espaço terapêutico e, finalmente, a mudança da estratégia que se volta para o espaço extra-asilar. Já o texto de Heitor Resende procura traçar uma visão histórica das Políticas de Saúde Mental no Brasil, deixando evidente que a história das políticas de assistência ao doente mental, é, antes de tudo, "uma crônica de desencontros, propostas e práticas concretas nem sempre caminhando lado a lado, num constante divórcio entre discursos e ações". Numa constante contradição entre a sua vocação terapêutica e seu mandato social, que é o de ser continente para a desordem, para o que escapa a norma, e de justificar racionalmente os mecanismos sociais de exclusão e de reclusão, a psiquiatria historicamente tem concentrado a sua atenção nas categorias sociais cujo modo de vida e uso da cidade foram transformados em objetos da disciplinarização.

Os textos de Naomar de Almeida Filho e Edith Seligmann podem ser definidos na linha de estudos da Epidemiologia Social. Fenômenos sociais como a modernização, a aculturação rápida e difícil, a migração, a densidade demográfica, as condições específicas de trabalho, são analisados na sua articulação com o binômio saúde-doença mental.

Dois outros textos nos dão uma visão dos desafios enfrentados na produção de práticas alternativas. Pedro Gabriel Delgado, um dos principais artífices das transformações por que vem passando a Colônia Juliano Moreira — tradicional asilo psiquiátrico do Rio — compartilha com o leitor questões que ultrapassam o restrito círculo dos profissionais de saúde: como pensar no fim dps asilos, inserindo a discussão numa estratégia de atendimento não asilar? Como pensar a questão da desinsinstucionalização da psiquiatria? Quais os problemas suscitados pela chamada "ressocialização" dos chamados crônicos dos asilos? Esse artigo se complementa com o de Benilton Bezerra Jr. "Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental", onde o autor analisa as experiências de atendimento psicoterápico em ambulatórios de massa.

Finalmente, há o artigo de Sherrine Njaine Borges que, num texto conciso, fala da originalidade da psicanálise frente aos discursos da medicina, psiquiatria e psicologia. Sherrine lembra uma das principais lições da psicanálise, tão esquecida pelo homem contemporâneo: "a psicanálise não se interessa pelo sujeito da verdade, mas pela verdade do sujeito, perguntando exatamente por esse sujeito do desejo que o racionalismo, desde Descartes, recusou".

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br