DEBATE DEBATE

 

 

Carlos Alberto Gomes dos Santos

Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro c.santos@mail.rdc.puc-rio.br


Debate sobre o artigo de Ana Maria C. Aleksandrowicz

Debate on the paper by Ana Maria C. Aleksandrowicz

 

 

O artigo de Ana Maria Aleksandrowicz levanta questões muito importantes para a Filosofia da Ciência contemporânea, indo além dos interesses meramente acadêmicos para inserir-se no âmbito prático, com implicações significativas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa e a implementação de programas voltados para o social, inclusive na área das políticas governamentais. Nesse sentido, atribuo um grande valor a este trabalho de cunho eminentemente filosófico, levado a cabo por uma convicção com a qual compartilho: a de que o debate das idéias não está necessariamente, por sua natureza especulativa, descompromissado com a prática. Os grandes filósofos procuraram não apenas compreender os problemas de sua época, mas também contribuir para a sua solução. Como disse Aristóteles (The Loeb Classical Library, 1992) na Ética a Eudemo, não devemos pensar que é supérfluo, para uma pessoa dedicada à política, engajar-se em uma reflexão que a faz perspicaz não somente a respeito do "quê", mas também do "porquê"; essa é, para ele, a contribuição do filósofo em qualquer área.

Segundo Karl Popper (1967), a Teoria do Conhecimento ou Epistemologia, considerada uma das disciplinas filosóficas mais afastadas dos problemas da vida cotidiana, tem conseqüências decisivas na ética e na política, fundamentando e justificando, conforme os pontos de vista assumidos, quer regimes totalitários ou, ao contrário, práticas democráticas.

Em seu trabalho, Ana Maria aborda temas fundamentais da Epistemologia: as diversas abordagens epistemológicas, como as fundacionistas (racionalistas ou positivistas), e as relativistas ou irracionalistas, que negam a existência de fundamentos seguros para a constituição da Ciência; o problema da demarcação entre Ciência e pseudo-ciência; a natureza do saber científico; a especificidade ou não das Ciências Humanas; a interdisciplinaridade; o poder de intervenção efetiva das Humanidades na realidade; a relação teoria e prática; a questão da transgressão de fronteiras e competências. Esses temas são tratados com a preocupação de resgatar a confiabilidade das Ciências Humanas e a importância da discussão sobre Fundamentos, ressaltando a necessidade de abordagem interdisciplinar das questões relativas a projetos de pesquisa e a programas de ação em saúde pública.

É no mínimo curioso que ainda tenhamos a necessidade de demonstrar a importância dos saberes constituídos através de procedimentos que não se adaptam aos cânones metodológicos do saber científico, o qual encontra, na Física de Galileu, Descartes e Newton, seus fundamentos e sua expressão maior. Esse saber se impôs pelos seus resultados, e seu êxito é justificado pelo método que lhe garante a objetividade, a racionalidade, sua força preditiva e, conseqüentemente, seu progressivo poder de intervenção sobre o real.

Filósofos neopositivistas do chamado Círculo de Viena propuseram a verificabilidade empírica como critério de demarcação entre as proposições dotadas de sentido (as legítimas, verificáveis empiricamente) e as pseudo-proposições (que, embora construídas de acordo com as regras da sintaxe e da gramática, são desprovidas de sentido), identificando as primeiras com as proposições científicas, e as segundas com as metafísicas.

A afirmação de John Brockman, citada no artigo de Ana Maria, reflete bem a crença sustentada desde o século XVIII, de que enfim chegara, com a superação das superstições e da metafísica, o tempo das verdades justificadas racional e experimentalmente que garantiriam a igualdade, a fraternidade, o progresso humano e social. Ora, esta visão otimista e até mesmo messiânica da Ciência Moderna, assentada no racionalismo cartesiano e no método analítico experimental hipotético-dedutivo da física newtoniana, é que vem sofrendo reparações críticas por parte de muitos filósofos. Passados quase quatrocentos anos da fundação da Ciência Moderna, vemos que mais de dois terços da população mundial não tem acesso nem a este conhecimento nem aos benefícios que ele pode trazer.

Não se trata aqui de negar o valor da ciência, mas sim determinada maneira de compreendê-la e avaliá-la. Considero da maior importância estarmos atentos para submeter à crítica os aspectos ideológicos que sustentam não só a hegemonia do saber científico como a desconsideração do valor das demais vias humanas de acesso para a compreensão e conseqüente intervenção no real. Não pretendo defender o relativismo epistemológico, mas reconhecer a sua contribuição para o debate contemporâneo em Filosofia da Ciência. A relevância dos pensadores desta corrente está manifestada na imensa bibliografia que, após a década de 50, vem enriquecendo a discussão filosófica sobre o conhecimento científico.

Reconhecer que parte da produção intelectual da área das Humanidades se perdeu em questões de minúcias tão afastadas da prática, em um preciosismo da linguagem acadêmica ininteligível aos não especialistas, não implica aceitar a tese de Brockman de que as únicas idéias dignas de serem postas em circulação são as da comunidade científica. As grandes narrativas não podem ser desprezadas: elas agem sobre os indivíduos e sobre as relações sociais; elas nos dirigem para os fundamentos das nossas experiências, conferem sentido e compreensão do mundo e dos sujeitos que nele habitam. E, se com nossos projetos buscamos mudanças de atitudes e de comportamentos, não podemos nos esquecer de que não há argumento racional, nem evidência qualquer que por si sós sejam capazes de fazê-lo.

Estas considerações nos levam à temática da interdisciplinaridade, ou seja, da colaboração entre ciências naturais e ciências humanas, tão bem expressa no texto de Ana Maria, como abordagem imprescindível aos "novos paradigmas de Saúde Pública". Como a motivação do artigo foram as idéias de Sokal & Bricmont, vale traçar alguns comentários a respeito.

Se, para uma interpretação benévola, a paródia de Sokal teve o propósito de chamar a atenção para a necessidade de recuperar o prestígio da Filosofia e das Ciências Humanas com uma crítica ao intelectualismo vazio que, segundo ele, delas teria se apossado, devo dizer que discordo inteiramente da estratégia que utilizou. A sua presença sensacionalista na mídia restringiu-se quase que exclusivamente aos seus dois primeiros artigos, nos quais lançava profundas desconfianças sobre o pensamento de autores de reconhecida notoriedade, sobretudo no campo da Filosofia. O fato da mídia não ter acompanhado com a mesma intensidade o debate que se seguiu, certamente acabou ampliando o descrédito para com a significação e o alcance social das Humanidades junto à opinião pública semi-erudita.

Sokal fala de "transgressão de fronteiras" por parte de estudiosos das Humanidades quando os acusa de cometerem a impostura de utilizar erroneamente conceitos da ciência com o fim de sustentar suas posições teóricas e conferir-lhes a credibilidade científica que, de outra forma, não teriam. Em realidade, Sokal se refere, em especial, aos críticos do cientificismo e, sem a menor parcimônia, reúne em etiquetas generalizadoras de "pós-modernos" e "relativistas" autores que tenho certeza que nelas não se reconheceriam, como Deleuze, Lyotard, Baudrillard, Jameson, Quine, Kuhn, Feyerabend, entre outros.

Não foi preciso que Sokal o dissesse para que reconhecêssemos que filósofos e cientistas sociais cometeram e cometem erros e impropriedades na compreensão e até mesmo na utilização de conceitos científicos; mas, a meu ver, estes equívocos só invalidariam o pensamento destes autores se a força de seus argumentos neles se baseasse. Avaliar o conteúdo das proposições científicas é tarefa do físico; ao filósofo cabe analisar os critérios de avaliação e de justificação através da explicitação e análise de seus pressupostos. Para submeter à crítica o raciocínio indutivo, o papel da experiência na validação das hipóteses, os limites e o alcance cognitivo das teorias e leis científicas, o papel da linguagem na construção do real, a existência ou não de puros dados de observação, não é preciso ser físico nem ter conhecimento técnico das teorias científicas.

É, no mínimo, ingênuo o pensamento de Sokal de que a credibilidade do conhecimento científico, o status privilegiado de que goza na nossa sociedade se devem apenas ao valor intrínseco de seu método. Reconhecer a influência do contexto histórico-social na construção, no desenvolvimento e na aceitação da ciência não significa necessariamente cair no relativismo epistêmico. Vale também notar que o capítulo III do livro de Sokal & Bricmont, dedicado à reflexão epistemológica, poderia muito bem servir de exemplo de transgressão de fronteiras no sentido de Sokal. Não é preciso ser especialista em Epistemologia para descobrir os equívocos e as ambigüidades que vão se sucedendo no texto. É espantosa a maneira com que Sokal aborda o problema da indução e a crítica que dirige a Karl Popper. Para ele, utilizar ou não a indução, afirmar se o raciocínio indutivo se justifica, vai depender do caso em questão: algumas induções são mais razoáveis e outras menos. Ora parece tender estranhamente para a defesa de um relativismo epistemológico que condena em Feyerabend, ora se inclina para uma espécie de pragmatismo que nos faz lembrar Larry Laudan, aliás citado quatro vezes no texto de Sokal & Bricmont. Mas o pragmatismo com suporte realista de Sokal em nada se aproxima das cuidadosas e sérias reflexões de Laudan na defesa de determinado pragmatismo expressas em suas obras.

De qualquer forma, não penso que o diálogo necessário entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais seja implementado por esta forma de polêmica provocada por Sokal & Bricmont. As fronteiras precisam ser transgredidas, superando as barreiras erguidas pelos olhares parciais, limitadores, autoritários. É fácil afirmar que queremos conhecer o todo para melhor agirmos sobre as partes; não é fácil, porém, admitir que só poderemos percebê-lo com o concurso de olhares diversos.

 

POPPER, K., 1967. Sobre las fuentes del conocimiento y de la ignorancia. In: El Desarrolo del Conocimiento Científico - Conjeturas y Refutaciones (N. Míguez, org.), pp. 9-16, Buenos Aires: Paidos.

THE LOEB CLASSICAL LIBRARY., 1992. Aristotele, v. XX. London: Harvard University Press.

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