NOTA

 

Impacto da cárie e da fluorose dentária na satisfação com a aparência e com a mastigação de crianças de 12 anos de idade

 

Impact of dental caries and dental fluorosis on 12-year-old schoolchildren's self-perception of appearance and chewing

 

 

Karen Glazer PeresI 1,II 2; Maria do Rosário Dias de Oliveira LatorreII, 2; Marco Aurélio PeresIII, 3; Jefferson TraebertI, 1; Mirvaine PanizziIV, 4

IUniversidade do Sul de Santa Catarina. Av. José Acácio Moreira 787, Tubarão, SC 88704-900, Brasil
IIDepartamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 715, São Paulo, SP 01246-904, Brasil
IIIDepartamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. C. P. 476, Florianópolis, SC 88040-900, Brasil
IVSecretaria Municipal da Saúde de Chapecó. Rua Marechal Floriano Peixoto 3161, Chapecó, SC 89801-350, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Parâmetros psicossociais têm sido recomendados para avaliar o impacto dos problemas bucais na qualidade de vida das pessoas. O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da cárie e fluorose dentárias na satisfação com a aparência e com a mastigação em crianças. Foi realizado um estudo transversal com escolares (n = 695) de 12 anos de idade de Chapecó, Santa Catarina, em 1999. Foram examinadas cárie e fluorose dentária e investigados acesso à consulta odontológica e a hábitos de higiene bucal. Para a identificação dos fatores de risco, foi realizada análise de regressão logística múltipla não condicional. Nenhum dos fatores investigados foram associados à insatisfação com a aparência. Estudar em escola pública, apresentar-se com dentes anteriores e com pelo menos dois dentes posteriores comprometidos pela cárie e ser do sexo feminino foram fatores de risco independentes para a insatisfação com a mastigação. Pode-se concluir que a fluorose dentária não teve impacto sobre a satisfação com a aparência. Quanto maior a severidade da cárie, maior o impacto sobre a insatisfação com a mastigação, isso foi maior em crianças de escolas públicas.

Palavras-chave: Cárie Dentária; Fluorose Dentária; Auto-Imagem; Qualidade de Vida


ABSTRACT

It has been suggested that psychosocial dimensions be used to assess the impact of oral health on people's quality of life. The purpose of this study was to measure the impact of dental caries and dental fluorosis on children's self-perception of appearance and mastication. A dental caries and dental fluorosis cross-sectional study was conducted with twelve-year-old schoolchildren (n = 695) in Chapecó, Santa Catarina, Southern Brazil. A questionnaire to assess dental care and dental habits was applied. Risk factors were identified using unconditional multiple logistic regression analysis. None of the variables investigated was associated with dissatisfaction in relation to self-perceived appearance. Independent risk factors for dissatisfaction with self-perceived mastication included enrollment in a public school, caries in an anterior tooth and at least two posterior teeth, and female gender. By way of conclusion, dental fluorosis had no impact on children's self-perception of appearance. Increased severity of dental caries was associated with greater self-perception of impact on chewing. This impact was greater in public schoolchildren, suggesting that there are different values and perceptions between socially different groups.

Key words: Dental Caries; Dental Fluorosis; Self Concept; Quality of Life


 

 

Introdução

Historicamente as condições de saúde bucal têm sido avaliadas por parâmetros clínicos e epidemiológicos. Representam, portanto, a visão normativa dos profissionais, não se considerando de maneira efetiva as dimensões sociais da saúde bucal e o real impacto desses problemas na qualidade de vida dos indivíduos (Chen & Hunter, 1996).

Este estudo teve como objetivo avaliar o impacto do ataque de cárie dentária e da fluorose dentária na satisfação com a aparência e mastigação em crianças de 12 anos de idade.

 

Metodologia

A população de referência do estudo foi constituída por escolares de 12 anos de idade matriculados em escolas públicas e privadas da região urbana do Município de Chapecó, Santa Catarina, Brasil em 1999.

Foi realizado um estudo de prevalência para a cárie e fluorose dentária e aplicada uma entrevista estruturada. Calculou-se o tamanho da amostra para cada uma das condições investigadas, adotando-se, para todo o estudo, a amostra de maior tamanho. Para tal, considerou-se a prevalência de 40% de fluorose dentária (Peres et al., 1997), um erro amostral de 4%. Somaram-se 10% à amostra, a fim de compensar eventuais perdas e recusas e multiplicou-se por 1,2 devido ao desenho do estudo, totalizando assim 695 crianças. Foi utilizado o processo de amostragem por duplo estágio: as escolas como unidades de primeiro estágio; os alunos como unidades de segundo estágio. Vinte e quatro escolas (20 públicas e 4 privadas) foram sorteadas e participaram do estudo. Enviou-se uma carta aos pais ou responsáveis pelas crianças sorteadas, solicitando autorização para o exame odontológico e aplicação do questionário.

Foram usados o índice CPO-D para cárie dentária e o índice de Dean para fluorose, além de serem seguidas as recomendações propostas pela OMS (WHO, 1997). Por intermédio de entrevista, foram obtidas informações sobre o sexo da criança, o tipo de escola, acesso a serviço odontológico nos últimos 12 meses e hábitos de higiene bucal.

Foram realizados exercícios de calibração previamente que seguiram metodologia descrita em outra publicação (Peres et al., 2001). Cada um dos examinadores realizou 10% dos exames em duplicata para verificação da consistência diagnóstica durante trabalho de campo.

Os desfechos estudados foram: (1) o grau de satisfação com a aparência (muito satisfeito, satisfeito e indiferente/ insatisfeito e muito insatisfeito); e (2) o grau de satisfação com a mastigação (muito satisfeito, satisfeito e indiferente/ insatisfeito e muito insatisfeito), ambos referidos pelas crianças.

As variáveis independentes foram o ataque de cárie em dentes permanentes (índice CPO-D) e o índice de fluorose classificados de diferentes formas. Foram incluídas ainda as variáveis tipo de escola (privada ou pública), considerada como proxy de condições sócio-econômicas, consulta odontológica nos últimos 12 meses (sim ou não), número de vezes, em média, que a criança escova os dentes ao dia (³ 2 vezes, 1 vez e < 1 vez) e uso regular de dentifrício (sim ou não).

Realizou-se a estatística descritiva da prevalência e severidade da fluorose dentária comparando-as entre escolas públicas e privadas por meio do teste do qui-quadrado. Da mesma forma procedeu-se com relação ao índice CPO-D e seus componentes, utilizando-se o Mann-Whitney Test. Foram realizadas análises univariadas entre cada variável independente e cada um dos desfechos (satisfação com a mastigação e com a aparência) e, posteriormente, a análise de regressão logística múltipla não condicional. Para análise da reprodutibilidade diagnóstica dos examinadores foi usada a estatística Kappa.

 

Resultados

A taxa de resposta foi de 98,4%, enquanto a reprodutibilidade diagnóstica dos examinadores atingiu valores de kappa de 0,92 para a fluorose e de 0,66 (menor valor) para a condição dentária.

A estatística descritiva da prevalência e severidade da cárie e fluorose dentária está apresentada na Tabela 1 e 2. Nenhum dos fatores analisados associou-se estatisticamente à insatisfação com a aparência, sendo alto o grau de satisfação, independente do aluno ser de escola pública ou privada (Tabela 3).

 

 

 

 

A proporção de crianças satisfeitas com a mastigação foi alta, a saber, 92,1% dos escolares de escolas públicas e 98,3% dos de escolas privadas, diferença estatisticamente significativa (p < 0,01). Crianças de escolas públicas apresentaram 4,8 vezes a chance de estarem insatisfeitas com a mastigação quando comparadas com aquelas matriculadas em escolas particulares. A chance de se sentir insatisfeita com a mastigação, nas crianças, com presença de dentes comprometidos pela cárie foi 3,3 vezes, quando comparadas com as que não apresentaram dentes atacados pela cárie (p < 0,01). Crianças com dentes anteriores comprometidos pela cárie apresentaram um odds ratio (OR) igual a 6,0 em relação às crianças sem esta condição (p < 0,001). Quanto maior o número de dentes atacados pela cárie (índice CPO-D), maior a chance de insatisfação com a mastigação (p < 0,001); e quanto maior o número de dentes cariados (componente C do índice CPO-D) maior a chance de a criança estar insatisfeita com a mastigação (p < 0,001). As demais variáveis não foram associadas significativamente com a insatisfação com a mastigação (Tabela 4).

Foram fatores associados independentes para a insatisfação com a mastigação: estudar em escola pública (OR = 3,4; IC 95%: 1,0-11,6), apresentar-se com dentes anteriores comprometidos pela cárie (OR = 7,4; IC 95%: 2,5-21,5) e crianças com 2 ou mais dentes posteriores comprometidos pela cárie (OR = 3,7; IC 95%: 1,6-8,3) comparadas com aquelas sem nenhum dente nesta condição. As meninas apresentaram maior risco de estarem insatisfeitas com a mastigação do que os meninos (OR = 2,0; IC 95%: 1,0-3,9), no limite da significância estatística, após o ajuste do modelo. O modelo final foi controlado pela variável consulta odontológica. (Tabela 5).

 

 

Discussão

Um dos mais importantes achados do estudo foi um alto grau de satisfação encontrado, tanto para a aparência quanto para a mastigação, quer nas escolas públicas, quer nas privadas. Embora 27,8% das crianças examinadas apresentarem algum grau de fluorose dentária, isso não foi um fator significativo para a insatisfação com a aparência nos escolares. Este achado contraria resultados de uma revisão sistemática da literatura e metanálise sobre a fluoretação de águas e seus efeitos benéficos e adversos (McDonagh et al., 2000) que apontou a fluorose dentária como um fator que interfere na estética dos indivíduos afetados. Como a maioria dos estudos incluídos na metanálise foram realizados na Europa e Estados Unidos, diferentes padrões culturais existentes entre as populações estudadas e a do nosso estudo talvez expliquem a diferença na percepção quanto à estética. Outros motivos, não investigados neste estudo, podem também ter levado uma pequena proporção de indivíduos à insatisfação com a aparência como, por exemplo, problemas relacionados à oclusão dentária (Peres et al., 2002).

Os resultados deste estudo mostraram que quanto maior o número de dentes atacados pela cárie (CPO-D), maior a chance de insatisfação com a mastigação e quanto maior o número de dentes atacados pela cárie e sem tratamento (componente C do índice CPO-D), maior a chance de a criança estar insatisfeita com a mastigação. Cushing et al.(1986) também relataram, entretanto em adultos, que pessoas que tinham problemas para se alimentar apresentavam um CPO-D mais alto e menos dentes funcionais do que as pessoas que não tinham problemas com alimentação. Estes achados indicam que este índice pode ser um bom indicador da satisfação com a mastigação.

A análise de regressão múltipla permitiu verificar que as crianças de escolas públicas estão mais insatisfeitas com a mastigação do que as de escolas privadas, independentemente do ataque de cárie. Este fato sugere a existência de valores e/ou percepções diferentes entre estas populações socialmente distintas. Tais achados são coerentes com os resultados encontrados por Chen & Hunter (1996) na Nova Zelândia, que demonstraram que variáveis sócio-econômicas estavam associadas com a autopercepção de bem-estar relacionado à saúde bucal.

Os resultados deste estudo permitem concluir que a fluorose dentária, nos graus de severidade encontrados, não teve impacto na satisfação com a aparência entre crianças de 12 anos de idade. Uma vez que a fluorose dentária, no grau de severidade encontrado, não tem qualquer efeito adverso à saúde, pode-se afirmar que este não é um problema de saúde pública nesta população. O mesmo não se pode dizer, entretanto, no tocante à cárie dentária, pois quanto maior sua severidade, maior impacto sobre a mastigação. Os resultados deste estudo demonstram que alunos de escolas públicas e alunos acometidos por cárie mostraram-se mais insatisfeitos com a mastigação do que os alunos de escolas privadas e do que os com ausência ou com baixo ataque de cárie.

Já que a percepção com a aparência e com a mastigação são dois dos principais motivos para a consulta odontológica, recomenda-se incluir medidas subjetivas de impacto das condições de saúde bucal no cotidiano das pessoas, pois apenas a percepção normativa pode estar superestimando as reais necessidades de tratamento.

 

Referências

CHEN, M. S. & HUNTER, P., 1996. Oral health and quality of life in New Zealand: A social perspective. Social Science and Medicine, 43:1213-1222.        

CUSHING, A.; SHEIHAM, A. & MAIZELS, J., 1986. Developing socio dental indicators – The social impact of dental disease. Community Dental Health, 3:3-17.        

McDONAGH, M. S.; WHITING, P. F.; WILSON, P. M.; SUTTON, A. J.; CHESTNUTT, I.; COOPE, J.; MISSO, K.; BRADLEY, M.; TREASURE, E. & KLEINJNEN, J., 2000. Systematic review of water fluoridation. BMJ, 321:855-859.        

PERES, K. G. A; TRAEBERT, E. S. A & MARCENES, W., 2002. Diferenças entre autopercepção e critérios normativos na identificação das oclusopatias. Revista de Saúde Pública, 36:230-236.        

PERES, M. A.; PERES, K. G. A.; MARIO, G. J.; PENIZZI, A. & PANIZZI, M., 1997. Prevalência de doenças bucais e necessidades de tratamento odontológico em crianças de 6 a 12 anos de idade do Município de Chapecó, SC, Brasil, 1996. In: V Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, Resumos, p. 29, Águas de Lindóia: ABRASCO.        

PERES, M. A.; TRAEBERT, J. & MARCENES, W., 2001. Calibração de examinadores para estudos epidemiológicos de cárie dentária. Cadernos de Saúde Pública, 17:153-159.        

WHO (World Health Organization.), 1997. Oral Health Surveys. Basic Methods. 4th Ed. Geneva: WHO.        

 

 

Endereço para correspondência
Karen Glazer Peres
karengp@ig.com.br

Recebido em 27 de fevereiro de 2002
Versão final reapresentada em 25 de abril de 2002
Aprovado em 1 de julho de 2002

 

 

1 Universidade do Sul de Santa Catarina. Av. José Acácio Moreira 787, Tubarão, SC 88704-900, Brasil
2 Departamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 715, São Paulo, SP 01246-904, Brasil
3 Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. C. P. 476, Florianópolis, SC 88040-900, Brasil
4 Secretaria Municipal da Saúde de Chapecó. Rua Marechal Floriano Peixoto 3161, Chapecó, SC 89801-350, Brasil

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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