RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Claudio Bertolli Filho

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru, Brasil. cbertolli@uol.com.br

 

 

EL VALOR DE LA SALUD: HISTORIA DE LA ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Marcos Cueto. Washington DC: Organización Panamericana de la Salud, 2004. 211 pp.
ISBN: 92-75-31600-7

Resenhar uma obra engajada na linha da história institucional da saúde sempre leva a uma certa reticência porque ainda são comuns os tratamentos reducionistas que observam as instituições como entidades independentes de contextos histórico-sociais e que agem por meio de uma força própria, geralmente emanada de seus líderes. O livro assinado pelo historiador peruano Marcos Cueto foge totalmente deste "vício" histórico, oferecendo ao leitor um texto ágil e comprometido com o entendimento da trajetória da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) como uma entidade ao mesmo tempo produtora e produzida pelo cenário político-econômico e social do continente americano e também moldada pelos resultados das inovações geradas no campo médico-biológico.

Nesse encaminhamento, pensando numa história que busca o entendimento institucional e de suas propostas para o tempo futuro, o autor apresenta inicialmente o panorama mundial das doenças infecto-contagiosas na segunda metade do século XIX para anunciar o quanto a fiscalização dos portos em nome da saúde e a higiene das cidades mais populosas e importantes para o capitalismo compunham uma questão fundamental para o desenvolvimento do comércio internacional. Se, em um primeiro momento realizaram-se acordos entre países americanos próximos, visando a basicamente o controle dos imigrantes e das cargas dos navios, foi somente com as propostas criadas no bojo da nascente medicina pasteuriana é que foi possível, sob a égide dos interesses dos Estados Unidos, a organização de uma instituição sanitária continental denominada Oficina Sanitária Panamericana. Corria o ano de 1902 e foi somente em 1959 que a nova instituição sanitária receberia a designação de OPAS.

As tarefas iniciais da entidade, sob a direção do norte-americano Walter Wyman, foram múltiplas, sobretudo a de sepultar os princípios da "velha higiene" baseada na teoria miasmática e, em seu lugar, disseminar as novas propostas da bacteriologia. Mais ainda, a instituição sanitária teve de se defrontar com as diferenças culturais características das nações do continente e sobretudo com a desconfiança que cada país nutria sobre a veracidade dos informes epidemiológicos e a qualidade dos serviços de saúde de cada um dos outros países americanos. A proposta central da "polícia sanitária" adotada conjuntamente tinha como meta bloquear a disseminação de enfermidades que, nativas ou trazidas pelas embarcações oriundas da Europa, da África e do Oriente – tais como o cólera, a febre bubônica e a febre amarela – conturbavam o comércio internacional, estancavam o cotidiano das cidades e cobravam milhares de vida americanas. Sob a orientação das propostas sanitaristas emblematizadas pela escola médica Johns Hopkins e com o apoio financeiro da Fundação Rockefeller e das verbas oferecidas pelos países membros, em poucos anos as ações da oficina ganharam maior volume, voltando suas atenções também para as inúmeras endemias que minavam a capacidade produtiva das populações rurais, especialmente durante a gestão do segundo diretor da OPAS, o também norte-americano Rupert Blue.

Após as quase duas décadas iniciais de existência da instituição, em 1920 assumiu seu comando um outro norte-americano, Hugh Cumming, que iria permanecer no cargo até 1947. Durante este período, deu-se o que Cueto denominou de "consolidação da identidade" da OPAS. A ênfase dada por Cumming ao panamericanismo e a atuação desse diretor no plano político, tornou-o uma espécie de embaixador informal dos Estados Unidos e negociador das ações de saúde junto aos governos locais. Apesar de implicitamente defender os interesses do seu país, ele inovou ao defender uma pauta que colocava em segundo plano os projetos extensivos a todo o continente para enfatizar a necessidade da constituição de uma pauta de combate aos problemas sanitários locais. Para tanto, nomeou agentes representantes da OPAS para permanecerem em cidades estratégicas com o objetivo de orientarem as ações de saúde e contribuírem com a formação de novos especialistas em higiene pública, destacando-se entre eles Aristides Moll e Fred Soper, funcionários da Fundação Rockefeller, que inclusive atuaram durante anos no território brasileiro. Assim, a oficina deixou de desempenhar o papel exclusivo de assessoria das nações continentais para, in loco, organizar estratégias campanhistas contra as enfermidades e encaminhar jovens e promissores pesquisadores para aperfeiçoarem seus conhecimentos nas principais escolas médicas e de saúde pública dos Estados Unidos.

Nesse momento, os problemas continentais se multiplicavam, ganhando dimensões ainda mais graves com a depressão econômica que se abateu sobre o mundo a partir do final da década de 1920. A população dos países latino-americanos crescia aceleradamente e a aglomeração humana nas cidades de porte representavam novos desafios para a saúde pública, exigindo que os órgãos sanitários nacionais contassem com uma nova e ampla burocracia. Neste mesmo período buscou-se oferecer respostas mais eficientes para os desafios sanitários, tal como ocorreu com a febre amarela. No contexto brasileiro, Fred Soper foi encarregado de investigar a doença e oferecer novos dados sobre o dilema sanitário, concluindo que alguns primatas que viviam nas matas atuavam como reservatórios naturais, sendo que a doença poderia ser transmitidas por vários tipos de mosquitos existentes nesse meio ambiente. Cabe destacar que, em muitos casos, as medidas tomadas pelos sanitaristas resultavam em conflitos abertos com a população, como ocorreu quando decidiu-se diagnosticar os casos reais de febre amarela com base em dados laboratoriais, impondo a criação de um serviço de viscerotomia para o exame das vítimas fatais da enfermidade.

Um novo momento da administração Cumming se abriu com o advento da Segunda Guerra Mundial. Em nome da "defesa continental", o diretor da OPAS teve de recorrer a todo seu tato político para poder dar continuidade às ações da instituição que liderava, pois as elites nacionais mostravam-se reticentes em se submeterem às diretrizes de um órgão atrelado aos interesses dos Estados Unidos. Mesmo assim, a instituição de saúde pôde promover um importante desenvolvimento da engenharia sanitária, disseminar o emprego de cloro para a desinfecção da água potável e ainda instigar a participação da população nas campanhas que estavam sendo desenvolvidas naquele momento. Fala-se, portanto, de uma "americanização" mais acentuada dos valores ligados à saúde, das estratégias de combate às enfermidades e, por último, dos hábitos das populações de todo o continente.

O encerramento do conflito mundial trouxe novos desafios para a instituição. A criação da Organização das Nações Unidas favoreceu debates que resultaram, inclusive, na proposta do médico brasileiro Rafael Paula Souza de constituição de um órgão mundial encarregado da saúde, fato que originou a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Se o surgimento de um setor de saúde no âmbito da Liga das Nações, em 1919, alimentou contínuos conflitos em relação à autonomia de ação da Oficina Panamericana de Saúde, a criação da OMS no pós-Segunda Guerra colocou em questão a necessidade de existência da OPAS. Com isso, a comunidade dos profissionais de saúde e o estamento político mostraram-se cingidos; uma parcela dos especialistas e dos políticos defendia o encerramento das atividades da instituição americana, enquanto que outra parte, liderada por Cumming, advogava que a OPAS deveria continuar em funcionamento e, de forma coordenada com a OMS, continuar a promover ações de saúde no continente americano. Após longos e acirrados debates, em 1948, a OMS reconheceu a Oficina Sanitária Panamericana, a qual passou oficialmente a desempenhar a função de órgão regional da OMS.

O momento posterior a 1945 apresentou um novo jogo de forças políticas e econômicas, influenciando diretamente os destinos da OPAS. Por um lado, o afloramento da Guerra Fria colocou em julgamento os motivos de intervenção internacional no setor da saúde pública e, para a OPAS encerrava-se uma era, quer pela substituição de Cumming por Soper no comando da instituição, quer pelo retiro gradual do apoio prestado pela Fundação Rockefeller à área da saúde, sendo que seu lugar passou a ser ocupado pela Fundação Kellog.

Fred Sopper dirigiu a OPAS entre 1947 e 1959, em um momento em que vários países da América Latina experimentavam governos ditatoriais declaradamente favoráveis aos interesses dos Estados Unidos e que viam o processo de desenvolvimento econômico yankee como um modelo a ser imitado. No plano demográfico, o êxodo rural que caracterizou a América Latina favoreceu o crescimento das cidades, colocando em foco a necessidade de medidas que favorecessem a queda da mortalidade e a redução das taxas referentes à mortalidade infantil. Por isso, em 1949, foi aprovada a constituição da OPAS que, em sintonia com o proposto pela OMS, estabelecia em seu artigo primeiro a missão fundamental da instituição: "a promoção e coordenação dos esforços dos países do Hemisfério Ocidental para combater as enfermidades, prolongar a vida e estimular o melhoramento físico e mental de seus habitantes".

A ampliação das tarefas atribuídas à OPAS exigiu a ampliação de seu quadro de funcionários, a busca de instalações mais amplas para abrigar seu escritório central, localizado em Washington, e a ampliação dos recursos disponíveis, problema que foi parcialmente solucionado com o aumento das verbas oferecidas pelas nações membros da organização. Nesse processo, a OPAS passou a contar com três grandes divisões: a divisão de saúde pública, responsável pelos serviços de fomento à saúde; a divisão de administração, voltada para a gestão e para o setor financeiro; e a divisão de educação, que tinha ao seu encargo os programas educativos e de bolsas de estudo para os profissionais da área da saúde.

Na esfera de relacionamento com as nações associadas, a OPAS favoreceu uma maior norte-americanização do ensino na área da saúde, incorporando profissionais que até meados do século passado tinham recebido escasso suporte da instituição, tais como os especialistas nas áreas de enfermagem, veterinária, educação e engenharia. Ao mesmo tempo, Soper buscou incentivar que cada uma das nações contasse com quadros locais de especialistas para planejar e executar as tarefas na área da saúde pública, patrocinando a instalação de novos institutos especializados em várias nações do continente e aposentando o quadro de funcionários majoritariamente norte-americanos, instalados nos países latino-americanos para coordenar as ações locais. Com essas medidas, Soper propôs ainda uma missão há muito acalentada: controlar, se não erradicar algumas doenças existentes no continente, como a varíola, malária e febre amarela, e também erradicar alguns vetores, tais como o Aedes aegypti, inclusive com o uso de DDT.

Em 1959, Soper foi substituído na direção da OPAS pelo chileno Abraham Horwitz, o primeiro latino-americano a ocupar tal posição. O acirramento da Guerra Fria, a Revolução Cubana e a formação da Aliança para o Progresso compuseram uma nova problemática continental que refletiu-se na atuação do novo diretor. Além do aumento do número de bolsas de estudo oferecido aos especialistas das nações mais pobres, Horwitz empenhou-se em afastar-se dos programas verticais, promovendo uma maior integração das ações e reforçando o envolvimento das comunidades nas tarefas de saúde. Nesse sentido, a OPAS voltou-se para a promoção da saúde, privilegiando a atenção primária à saúde, patrocinando campanhas contra o consumo de tabaco, a fluoretação da água potável, a destinação do lixo urbano e buscando também a solução dos problemas de poluição dos espaços urbano-industriais. Mais ainda, colocou em discussão as relações entre saúde e desenvolvimento, asseverando que o desenvolvimento só seria possível com a existência de uma população saudável e não o inverso, como muitos defendiam. Ainda mais, para a OPAS durante a gestão Horwitz, uma esfera tornava-se vital para o sucesso de todas as propostas: o planejamento das ações e não mais o improviso ou as decisões pautadas exclusivamente em interesses políticos, definindo a OPAS como um órgão essencialmente técnico.

Horwitz estabeleceu as linhas diretivas da ação da OPAS que são mantidas até os dias de hoje. Seus sucessores, todos oriundos da América Latina, deixaram claro que a organização havia abandonado a tendência de ser uma representante dos interesses e valores norte-americanos para, em nome da saúde como um direito de todos e, mediante ao respeito à diversidade cultural, gerar renovadas esperanças para toda a população continental. Novos desafios em série têm se apresentado, tais como os representados pelas doenças emergentes, e a OPAS busca traçar novas estratégias de enfrentamento, sem contudo desviar-se da proposta de eficiência e eqüidade em tratar da doença e da saúde nesta parte do planeta.

Em linhas gerais, são estes os quadros retratados por Cueto em um livro que merece ser lido, inclusive pela riqueza de detalhes que apresenta. No livro resenhado, duas lições se tornam fundamentais: a primeira delas é a importância histórica da OPAS para a melhoria do padrão de saúde continental, e a segunda e talvez mais importante, é que a história institucional da saúde, elaborada como o fez Cueto, pode e deve se transformar em um importante instrumento para o planejamento das ações de saúde.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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