DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Fry et al.

 

Debate on the paper by Fry et al.

 

 

Dora Chor

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. dorinha@ensp.fiocruz.br

 

 

No Brasil, ao longo de décadas, a discussão sobre as desigualdades sócio-econômicas entre diferentes grupos raciais constituiu tema pouco abordado fora da literatura sociológica. Nos últimos anos, tornou-se assunto da sociedade brasileira, embora no âmbito da saúde pública, esta discussão ainda seja incipiente.

O debate a respeito do artigo de Peter Fry et al. é portanto da maior importância, por apresentar novas perguntas a respeito de tema complexo e polêmico.

Em relação aos dados, duas afirmações são apresentadas pelos autores: (i) "Os dados epidemiológicos disponíveis não são suficientes para sustentar que existe associação específica entre população negra e AIDS no país"; (ii) "A análise dos dados oficiais da AIDS (...) contraria a tendência de crescimento de casos entre as populações mais vulneráveis socioeconomicamente ..." (pauperização da epidemia). Como detalharei a seguir, concordo apenas com a primeira afirmação.

A insuficiência de evidências empíricas da associação entre população negra e AIDS, no Brasil, deve-se às limitações dos dados. Na Tabela 1, onde se encontra o número de casos registrados entre 2000 e 2005 (PN-DST/AIDS), segundo categorias de cor/raça, é possível levar em consideração apenas os dados de 2003, 2004 e 2005. Isso porque para 2000, 2001 e 2002 a proporção de informação ignorada no campo cor/raça é muito elevada e corresponde a 96%, 88% e 59%, respectivamente. É importante ressaltar que, em 2005, encontram-se apenas 10.745 casos, que representam 50% do total dos anos anteriores (provavelmente, a outra metade ainda não havia sido incorporada ao banco de dados). Assim, caso fosse conhecida, a distribuição da cor/raça poderia evidenciar perfil de desigualdade racial diferente daquele que é possível observar a partir dos casos registrados apenas em 2003, 2004 e 2005.

Embora tenham apontado corretamente a insuficiência dos dados disponíveis, é preciso relativizar algumas das limitações apontadas por Fry et al. em relação ao estudo da distribuição de desfechos de saúde segundo cor/raça. Os erros de medida são preocupação constante na classificação de grupos em estudos epidemiológicos. Além de tentar reduzi-los ao mínimo na fase de planejamento, outro grande desafio é imaginar de que forma esses erros podem contribuir para explicar os resultados. Por exemplo, qual é o impacto de diferentes tipos de classificação (raça por autoclassificação ou por profissionais de saúde), problema real citado pelos autores, nas conclusões a respeito da tendência temporal da AIDS? Ainda que não seja desejável, a utilização desses dois tipos de classificação estaria contribuindo para superestimar ou para subestimar a incidência da doença em determinada(s) categoria(s) de cor/raça? Como os erros de medida ou como os diferentes sistemas de classificação de cor/raça explicam o inaceitável excesso de mortes maternas entre as mulheres pretas ou pardas comparadas às brancas, de mesmo nível de escolaridade 1,2? Nesse caso, o acesso, uso e qualidade diferenciados dos serviços de saúde segundo cor/raça, além da posição sócio-econômica, devem ser investigados, enfrentando-se as limitações conceituais e metodológicas, mas também aprofundando o conhecimento sobre um dos desfechos exemplares das iniqüidades em saúde no Brasil.

Quanto aos problemas de preenchimento do campo raça/cor no SIM e no SINASC, este vem melhorando continuamente, de forma mais ou menos acelerada a depender do desfecho de saúde considerado 3 (embora, como mostram Fry et al., menos aceleradamente no caso da AIDS). Considerando-se o ano de 2004, a proporção de raça ignorada foi de 9% e 10% no SIM (http:// tabnet.datasus.gov.br/cgi/sim/dados/cid10_indice.htm, acessado em 03/Set/2006) e no SINASC (http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/dados/nov_indice.htm, acessado em 03/Set/2006), respectivamente, compatíveis portanto com investigações que incluam esta característica.

Quanto à segunda afirmação, relativa às tendências dos casos de AIDS, o aumento entre as populações mais vulneráveis do ponto de vista sócio-econômico foi evidenciado, entre 1987 e 1998, por vários autores nacionais, citados por Fry et al. 4,5. Segundo Bastos & Szwarcwald 6 (p. 68), em um país como o Brasil, "estratos mais pobres e menos assistidos tornam-se mais vulneráveis à difusão dos agentes das doenças infecciosas por razões predominantemente biológicas (como pior imunidade), predominantemente sociais (menor capacidade de ter suas demandas atendidas, residência em locais com infra-estrutura precária), no mais das vezes por razões, simultaneamente, sociais e biológicas". Cabe mencionar, no caso específico da AIDS, que a seleção social no tratamento 4 pode também contribuir para a oferta de serviços de pior qualidade para os grupos sociais menos privilegiados, favorecendo a disseminação da epidemia nos mesmos.

Apesar da limitação representada pelos casos com escolaridade ignorada (cerca de 20%), o conteúdo das Tabelas 2 e 3 sugere aumento do número de casos no grupo que apresenta nível médio/superior e, com menor magnitude, diminuição de casos entre aqueles com escolaridade fundamental, como indicam Fry et al. No entanto, conclusões extraídas com base no número de casos, e sua distribuição proporcional, são insuficientes. Elas necessitam ser complementadas com investigação detalhada das taxas de incidência da doença em distintas regiões do país, estimadas segundo diferentes marcadores de nível sócio-econômico – por exemplo, a ocupação foi o marcador utilizado nas análises realizadas entre 1986 e 1997 4 – e também para os outros eixos de posição social que são o gênero e a raça. Esses procedimentos, necessários para analisar tendências temporais de qualquer desfecho, tornam-se ainda mais importantes nesse caso já que os mecanismos de explicação da possível reversão da tendência de crescimento de casos entre os grupos mais vulneráveis, do ponto de vista sócio-econômico, não são evidentes.

Em resumo, no caso da AIDS, ainda não é possível concluir que a incidência da doença vem aumentando entre pretos e pardos nem tampouco entre indivíduos com nível de escolaridade médio/superior, com base nos dados disponíveis e análises apresentadas para o período mais recente.

Ainda que conclusões prematuras a respeito da evolução da AIDS possam comprometer a efetividade da agenda de redução das desigualdades em saúde, já existem evidências suficientes de que a cor/raça é um dos determinantes de trajetórias sócio-econômicas desfavoráveis em nosso país 7,8,9, contribuindo para aumentar o risco de outros desfechos de saúde (e.g. mortalidade materna, ganho de peso, violência) 1,2,10,11. Essas trajetórias são apenas parcialmente mensuradas pelos indicadores sócio-econômicos disponíveis, que podem ainda não ser equivalentes nos diferentes grupos raciais (e.g. mesmo nível de escolaridade de brancos, pretos e pardos não representa igual acesso a ocupações, renda e bens) 12. Além disso, já há evidências no Brasil 13 de que discriminação racial nos serviços de saúde piora a qualidade do tratamento para pretos e pardos, a exemplo do que tem sido reportado na literatura estrangeira 14,15.

 

 

1. Centro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Relatório do Comitê Estadual de Prevenção e Controle da Morte Materna e Perinatal. Rio de Janeiro: Centro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro; 2005.

2. Costa JMBS, Lyra TM, Guimarães MJB, Santos SM, Oliveira CM, Mafra WS, et al. Desigualdades raciais na mortalidade materna em residentes no Recife, 2001-2004. In: Anais do 8º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2006.

3. Chor D, Lima CRA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1586-94.

4. Fonseca MG, Travassos C, Bastos FI, Silva NV, Szwarcwald CL. Distribuição social da AIDS no Brasil, segundo participação no mercado de trabalho, ocupação e status sócio-econômico dos casos de 1987 a 1998. Cad Saúde Pública 2003; 19:1351-63.

5. Fonseca MGP, Szwarcwald CL, Bastos FI. Análise sociodemográfica da epidemia de Aids no Brasil, 1989-1997. Rev Saúde Pública 2002; 36:678-85.

6. Bastos FI, Szwarcwald CL. AIDS e pauperização: principais conceitos e evidências empíricas. Cad Saúde Pública 2000; 16 Suppl 1:65-76.

7. Hasenbalg CA, Silva NV. Notes on racial and political inequality in Brazil. In: Hanchard M, editor. Racial politics in contemporary Brazil. Durham/London: Duke University Press; 1999. p. 154-78.

8. Telles E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará; 2003.

9. Barbosa MLO. As relações entre educação e raça no Brasil: um objeto em construção. In: Soares S, Beltrão KI, Barbosa MLO, Ferrão ME, organizadores. Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2005. p. 5-19.

10. Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weght change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol 2004; 33:100-6.

11. Batista LE, Escuder MML, Pereira JCR. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Rev Saúde Pública 2004; 38:630-6.

12. Kaufman JS, Cooper RS, McGee DL. Socioeconomic status and health in blacks and whites: the problem of residual confounding and resiliency of race. Epidemiology 1997; 8:621-8.

13. Cabral ED, Caldas JEF, Cabral HAM. Influence of the patient's race on the dentist's decision to extract or retain a decayed tooth. Community Dent Oral Epidemiol 2005; 33:461-6.

14. Paradies Y. A systematic review of empirical research on self-reported racism and health. Int J Epidemiol 2006; 35:888-901.

15. Epstein AM, Weissman JS, Schneider EC, Gatsonis C, Leape LL, Piana RN. Race and gender disparities in rates of cardiac revascularization: do they reflect appropriate use of procedures or problems in quality of care? Med Care 2003; 41:1240-55.

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