DEBATE DEBATE

 

Os autores respondem

 

The authors reply

 

 

Peter H. Fry; Simone Monteiro; Marcos Chor Maio; Francisco I. Bastos; Ricardo Ventura Santos

 

 

Cor/raça e HIV/AIDS no Brasil: uma tréplica

De início agradecemos aos debatedores por terem se debruçado sobre nosso artigo AIDS tem Cor ou Raça? Interpretação de Dados e Formulação de Políticas de Saúde no Brasil. A participação parece decorrer do sentimento de que, como bem colocado por Camargo Jr., trata-se de um debate "estrategicamente relevante no momento, tendo em vista a crescente pressão pela 'racialização' de políticas públicas em nosso país".

No artigo frisamos: (i) não dispomos de séries históricas suficientemente dilatadas no tempo, que permitam estabelecer tendências sobre as relações entre "cor/raça" e HIV/AIDS no Brasil; (ii) lidamos com uma elevada proporção de dados faltantes inaceitável, o que invalida inferências minimamente rigorosas; (iii) não existe consistência nos critérios de mensuração da variável "raça" nos diversos bancos de dados brasileiros (na área de saúde pública ou não). Concluímos que não é possível fundamentar políticas públicas nessa contundente ausência de evidências. Na segunda parte procuramos mostrar de que modo o contexto sociohistórico e político tem influenciado a definição de políticas públicas na área da saúde. Tal perspectiva é ilustrada pelas mudanças na pauta governamental no que tange à questão racial.

Em geral, os vários debatedores expressaram concordância com os argumentos da primeira parte do artigo. A análise da segunda parte também encontrou eco, ainda que tenha recebido um volume menor de comentários. Paixão & Lopes, embora com algumas convergências, foram o que levantaram as mais duras críticas (ver adiante).

Barata, Chor e Guimarães tecem considerações sobre questões metodológicas, em particular o uso de proporções e não de taxas em nossas análises. Assim como Camargo Jr. e Paixão & Lopes, também questionam a maneira como lidamos com os dados referentes à escolaridade e sua associação com a ocorrência de HIV/AIDS no Brasil. A crítica é a seguinte: no intuito de demonstrar que certas conclusões não se sustentam (relação entre HIV/AIDS e pauperização), teríamos lançado mão de análises que se alicerçam em dados que nós próprios criticamos como pouco consistentes.

Uma das vantagens de um debate como esse é buscar, na tréplica, esclarecer e aprofundar pontos não suficientemente claros no texto original. Não nos moveu qualquer pretensão analítica de caracterizar as tendências da epidemia no Brasil, mas sim avaliar os fundamentos (frágeis, em nosso ponto de vista) que orientam as políticas públicas em "cor/raça" versus HIV/AIDS no Brasil.

Para alguns debatedores, há dois domínios em nosso trabalho: um relativo à interpretação dos dados epidemiológicos e outro associado aos complexos processos sociais e históricos que influenciaram a formulação de políticas públicas nessa área. Não enxergamos planos analíticos distintos em nossa argumentação, o que ajuda a explicar a forma como nos aproximamos dos dados epidemiológicos. Buscamos compreender como, à luz da crescente visibilidade dos debates sobre raça e racismo no Brasil, dados epidemiológicos foram interpretados e divulgados, assim como estabelecidas políticas públicas. Perguntamos: as lógicas que pautaram esse processo foram internamente consistentes, considerando suas próprias premissas?

Estamos de acordo que as formas através das quais os dados vêm sendo analisados é, do ponto de vista epidemiológico, de extrema fragilidade (pela incompletude da base, uso de proporções e não de taxas, entre outros aspectos). Mas o fato é que são as interpretações dessas "simples e cruas" tabulações que têm atingido visibilidade nos meios de comunicação e na formulação de políticas públicas. São as derivações dessas análises que têm estado presentes nos discursos das mais altas autoridades públicas na área da saúde, como sinalizamos na introdução do artigo.

Buscamos, à luz das mesmas estratégias analíticas que têm pautado e influenciado as políticas públicas, analisar a consistência dos discursos a partir de suas próprias suposições. Interpelamos achados que se apresentam como naturalizados, discursos que almejam chegar à condição de relatos consagrados sem questionamentos. Esta visada crítica é relativista e situacional, tão cara à teoria e à prática antropológica, que "leva a sério" o discurso dos atores sociais, buscando melhor compreender como é modulado e como sofre mutações a depender das diferentes conjunturas sócio-políticas e históricas.

Exemplifiquemos. O discurso produzido (e reproduzido) é que os dados, analisados a partir do exame de proporções, sinalizam para um aumento dos casos de HIV/AIDS na "população negra" (tomados como a junção de pardos e pretos). Contudo, ao se dar um passo adicional, de desmembrar essa categoria, igualmente usando proporções, vê-se que o incremento dá-se entre os pardos, mas não entre os pretos. Se os dados de "cor/raça" tratados de maneira agregada, mesmo que na superfície, com todas as fragilidades já apontadas, ainda dão a ilusão de um crescimento na "população negra", o mesmo não acontece no caso da escolaridade. A simples tabulação dos dados (que não é a nossa lógica, mas aquela que parece estar pautando a lógica dos formuladores de influentes políticas públicas) evidencia uma tendência de reversão da pauperização. Como se pode erigir políticas públicas apesar desse conjunto internamente contraditório de sinalizações, ou seja, com os dados apontando simultaneamente para um aumento da AIDS nos negros (população definida como socialmente vulnerável do ponto de vista das políticas públicas que analisamos) e ao mesmo tempo em pessoas com maior escolaridade? Uma explicação é de que a corrente no sentido de uma "racialização" de agravos à saúde, justificada por um discurso de superação das desigualdades, é caudalosa a tal ponto que em seu curso desconsidera as contradições produzidas a partir de suas próprias análises.

Reconhecemos que poderíamos ter sido mais explícitos quanto à estratégia de análise que empregamos, distanciando, suficientemente, o "nosso" olhar do olhar "deles". A propósito, há um aspecto que não deve passar despercebido dos leitores. Para se contrapor à afirmação de que estaria ocorrendo uma reversão da tendência de pauperização, são citados por vários debatedores os trabalhos de Bastos & Szwarcwald 1 e Fonseca et al. 2,3. Ou seja, artigos dos quais um de nós (F.I.B.) tem participado são listados como contra-evidências. Para não deixar dúvidas: conforme detalhamos na seção intitulada As Transformações da Epidemia, estamos afinados com as análises epidemiológicas, teórica e metodologicamente mais densas 2,3 acerca do comportamento da epidemia no que diz respeito aos aspectos sócio-econômicos das pessoas atingidas.

Antes de avançarmos cabe comentar sobre a questão do uso das proporções e taxas, que foi abordada por Barata, Camargo Jr., Chor e Guimarães. De fato, é sempre desejável trabalhar com taxas, desde que isso contribua para aumentar a precisão, como um de nós tem feito recentemente em análises sobre a mortalidade por AIDS 4. Tal precisão, no entanto, não nos parece clara, como discutido acerca do atual "banco síntese" de casos de AIDS (SINAN-AIDS + SISCEL) com relação à variável raça, em separado ou em conjunção com denominadores populacionais.

Paixão & Lopes, de início, tal como nós, manifestam-se criticamente em relação à base de dados PN-DST/AIDS e apontam para a fragilidade dos indicadores. A seguir se referem a uma série de estudos, alguns dos quais não parecem levar em conta aspectos como a situação econômica e educacional dos sujeitos, que dariam suporte indireto à idéia da "população negra" como estando em uma situação de maior vulnerabilidade à HIV/AIDS. Argumentam que, mesmo que as interpretações a partir da base nacional possam ser questionadas, há outras linhas de evidência que apoiariam a associação entre "cor/raça" e AIDS no Brasil.

Não temos dúvidas que a população negra está em uma situação de maior vulnerabilidade, inclusive por razões ligadas à condição sócio-econômica. Além do que, por comporem o segmento mais pobre da população brasileira, há maiores dificuldades de acesso ao sistema de saúde, o que pode comprometer a qualidade do tratamento e sua sobrevida, conforme apontam Chor e Travassos, entre outros. Contudo, não são os resultados de estudos isolados, como os mencionados por Paixão & Lopes, que têm explicitamente embasado as políticas públicas sobre "cor/raça" e AIDS no Brasil, mas sim os dados das bases nacionais. Argumentar que a política estaria na direção "correta" pois, apesar da fragilidade dos dados nacionais, há evidências de que "alguns estudos podem nos ajudar a elucidar se essa base de dados guarda algum nível de correspondência com a realidade" é uma estratégia argumentativa que se distancia da real questão que nos interessou no trabalho.

Paixão & Lopes terminam seu comentário afirmando que nossa postura seria de que as relações entre "cor/raça" e AIDS "deveriam ser mantidos como termos proibidos, tabus (...) discutidos única e exclusivamente no interior das rotas acadêmicas e/ou grupos de pesquisa". Deixamos para os leitores a tentativa de localizar em nosso trabalho essa perspectiva, uma vez que nós próprios não sabemos onde encontrar. Os demais debatedores tampouco enxergaram em nosso texto quaisquer tentativas de "ocultamento", outra acusação de Paixão & Lopes. Muito pelo contrário. Além da já referida menção à "relevância estratégica" do debate do Camargo Jr., Ayres sinaliza que nosso trabalho "aborda de forma franca as complexas e polêmicas relações entre raça e saúde (...) [recolocando] a discussão, ainda longe de ser esgotada, acerca do uso de análises epidemiológicas como fundamento de políticas de saúde"; Guimarães escreve que "racializar a epidemia de AIDS (...) pode ser, além de pouco fundamentada com os dados disponíveis, uma reversão da forma com que o PN-DST/AIDS tem enfrentado o problema no Brasil, cujo reconhecimento é internacional"; finalmente, Barata pondera que "o reconhecimento da dívida que o país possui com a população negra (...) não deveria implicar o estabelecimento de associações espúrias entre cor de pele e problemas de saúde, ocultando toda sorte de determinantes que o processo saúde-doença tem".

O conceito de raça carece de qualquer base biológica, mas devemos lidar com ele pois é uma construção social que influencia o nosso dia-a-dia. Mas a categoria social "raça" não é mais nem menos essencial do que "classe social". A epidemia afeta desproporcionalmente a quem? Negros? Pobres? Proletários? Classe média? Nordestinos? Para comprovar que ela de fato afeta de forma desproporcional negros enquanto negros, e não por serem pobres, numa sociedade iníqua, que, inegavelmente, apresenta uma concentração maior de negros entre os mais pobres, seria necessário padronizar todas as taxas, segundo o que fosse possível obter do que está disponível (o que, no caso da AIDS, não nos parece factível devido à fragilidade das bases), e controlar os achados pelas características sociais que não a raça/etnia (como renda ou nível educacional). No caso da detecção de taxas maiores de incidência de AIDS entre os negros, aí sim, teríamos um fenômeno de natureza inequívoca passível de embasar as políticas públicas e de merecer explicações sócio-epidemiológicas.

Numa dimensão mais abrangente, a pandemia afeta, no seu conjunto, desproporcionalmente a quem? Aos negros? Certamente sim. Se o recorte fosse geográfico, constataríamos que pandemia vem afetando de maneira devastadora a região subsaárica da África, majoritariamente composta por negros. Mas o caráter devastador da epidemia naquela região prende-se ao fato de se tratar de uma população negra, ou de uma região arrasada pelo colonialismo, pelas guerras civis, pelos problemas estruturais nas áreas da educação e saúde pública etc.? O racismo é um dos componentes da miséria cotidiana de tantos países africanos, como mostrou de forma tão dramática a África do Sul dos anos do apartheid. Mas o que dizer da reversão da epidemia em Uganda 5, até o recentíssimo reagravamento da epidemia ugandense, país quase exclusivamente negro, ou das epidemias absolutamente contrastantes de quatro cidades de países de maioria negra (Kisumu, Quênia; Ndola, Zâmbia; Cotonu, Benin; e Iaundé, República dos Camarões), da África subsaárica 6?

Em suma, os efeitos do racismo devem ser levados em conta, mas há elementos no Brasil de hoje que nos permitam ancorar nossas políticas públicas em HIV/AIDS na estratificação racial, em vez de políticas dirigidas aos mais pobres?

Na caracterização da epidemiologia do HIV/AIDS é preciso quantificar. Mas antes é preciso qualificar: afinal, o que e como contamos? A definição de "haitiano" enquanto grupo de risco, com seus respectivos números e taxas, constitui uma lamentável lembrança da saúde pública no século XX 7! Olhando retrospectivamente, é uma construção inteiramente absurda do ponto de vista epidemiológico, além de racista. Que nos sirva de lembrança para o que acontece no Brasil na atualidade.

 

 

1. Bastos FI, Szwarcwald CL. AIDS e pauperização: principais conceitos e evidências empíricas. Cad Saúde Pública 2000; 16 Suppl 1:65-76.

2. Fonseca MGP, Szwarcwald CL, Bastos FI. Análise sociodemográfica da epidemia de Aids no Brasil, 1989-1997. Rev Saúde Pública 2002; 36:678-85.

3. Fonseca MGP, Travassos C, Bastos FI, Silva NV, Szwarcwald CL. Distribuição social da AIDS no Brasil, segundo participação no mercado de trabalho, ocupação e status sócio-econômico dos casos de 1987 a 1998. Cad Saúde Pública 2003; 19:1351-63.

4. Fonseca MGP, Lucena FFA, Sousa A, Bastos FI. Impacto da desigualdade social sobre a mortalidade por AIDS pós-introdução da terapia anti-retroviral de alta potência (HAART) no Brasil, 1996-2004. Cad Saúde Pública; submetido.

5. Slutkin G, Okware S, Naamara W, Sutherland D, Flanagan D, Carael M, et al. How Uganda reversed its HIV epidemic. AIDS Behavior 2006; 10:351-60.

6. The Study Group on the Heterogeneity of HIV Epidemics in African Cities. The multicenter study of factors determining the different prevalences of HIV in sub-Saharan Africa. AIDS 2001; 15 Suppl 4:S1-132.

7. Farmer P. AIDS and accusation: Haiti and the geography of blame. Berkeley: University of California Press; 1993.

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