ARTIGO ARTICLE

 

A tuberculose nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil: uma urgência de saúde pública

 

Tuberculosis in Rio de Janeiro prisons, Brazil: an urgent public health problem

 

 

Alexandra Roma SánchezI; Véronique MassariII, III; Germano GerhardtIV; Angela W. BarretoV; Vanderci CesconiI; Janete PiresI; Ana Beatriz EspínolaI; Edison BiondiI; Bernard LarouzéII, III; Luiz Antônio Bastos CamachoVI

ISuperintendência de Saúde, Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIINSERM UMR-S 707, Paris, France
IIIUniversité Pierre et Marie Curie, Paris, France
IVFundação Athaulfo de Paiva, Rio de Janeiro, Brasil
VCentro de Referência Professor Hélio Fraga, Rio de Janeiro, Brasil
VIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Em 2004, a taxa de incidência da tuberculose nas prisões do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, foi trinta vezes superior à da população geral do Estado. Essa taxa provavelmente é subestimada, especialmente pela dificuldade de acesso ao serviço de saúde nesse ambiente. Com o objetivo de melhor avaliar a situação, um primeiro inquérito radiológico sistemático foi realizado e mostrou taxa de prevalência de 4,6% (prisão A, n = 1.052). Dois inquéritos adicionais revelaram, nas unidades B (n = 590) e C (n = 1.372), taxas maiores (6,3% e 8,6%, respectivamente). A comparação das características sócio-demográficas das prisões A, B e C mostrou que a população encarcerada não é homogênea. Em comparação com prisão A, os indivíduos encarcerados nas prisões B e C são oriundos de comunidades mais desfavorecidas e têm mais freqüentemente história de encarceramento anterior e de tuberculose. Essas diferenças, coerentes com os dados de prevalência, implicam a adaptação das medidas de controle da tuberculose ao perfil epidemiológico e sócio-demográfico de cada unidade prisional.

Tuberculose; Prisões; Controle de Doenças Transmissíveis


ABSTRACT

The tuberculosis incidence rate in prisons in Rio de Janeiro State, Brazil, was 30 times higher in 2004 than in the general population and is probably underestimated, particularly given the difficult access to care in the prison setting. To obtain a better estimate, a survey used systematic X-ray screening and showed a prevalence rate of 4.6% in one such detention facility, A (n = 1,052). Two additional surveys, in facilities B (n = 590) and C (n = 1,372), showed even higher prevalence rates (6.3% and 8.6% respectively). A comparison of socio-demographic characteristics between A, B, and C showed a heterogeneous prison population. As compared to facility A, inmates in B and C come from poorer urban communities and have more frequent histories of incarceration and tuberculosis. These differences, consistent with the prevalence data, imply the necessary adaptation of tuberculosis control programs to each detention facility's epidemiological and socio-demographic profile.

Tuberculosis; Prisons; Communicable Disease Control


 

 

Introdução

A tuberculose (TB) constitui, em várias partes do mundo, um importante problema de saúde nas prisões, inclusive nos países onde é baixa a endemicidade na população livre, não só em termos de incidência e de prevalência, como também pela freqüência de formas resistentes 1,2,3,4,5,6,7.

No Brasil, embora os profissionais de saúde ligados ao sistema carcerário considerem, por sua experiência, que a TB é um grande problema entre os detentos, a magnitude do problema é pouco conhecida pela ausência, na maioria dos Estados brasileiros, de programas específicos de vigilância epidemiológica e de luta contra a TB na população carcerária.

Embora escassos, os dados disponíveis confirmam a gravidade da situação. Duas teses mostram incidências de TB pulmonar expressivas. Niero 8, no período de 1976-1980, encontrou taxa de incidência anual média de 1.073 por 100 mil na extinta Casa de Detenção de São Paulo. Posteriormente, Rozman 9, na mesma prisão, observou uma taxa de incidência de 2.650 por 100 mil. Em Campinas foi observada taxa de incidência de 1.397 por 100 mil em 1994 e 559 por 100 mil em 1999 10, taxas que, segundo os autores são subestimadas.

Nas prisões do Rio de Janeiro, a taxa média de incidência da TB obtida com base em atividades de rotina em 2004 (3.137/100 mil) 11 foi 30 vezes superior à taxa global do Estado 12, com diferenças importantes entre as diversas unidades prisionais (de 1.432 a 8.765 por 100 mil). Mas, como nos estudos de São Paulo 8,9 e Campinas 10, a situação é provavelmente mais grave quando consideramos que essas taxas podem estar subestimadas já que dependem do acesso ao serviço de saúde, geralmente limitado pelas questões de segurança e organização interna da cadeia, da oferta e da qualidade do serviço, da motivação dos profissionais e da percepção que os doentes têm de seus sintomas.

Para avaliar de maneira mais precisa a dimensão da tuberculose nas prisões do Rio de Janeiro, um primeiro estudo baseado no rastreamento radiológico em uma das unidades (prisão A) foi realizado em 2002 e mostrou uma taxa de prevalência de TB ativa de 4,6% 13.

Considerando esses resultados, realizamos inquéritos de prevalência de TB em duas outras unidades prisionais onde os dados do programa de controle indicavam que as taxas de incidência eram mais elevadas. Estes estudos tiveram por objetivo: (a) comparar a prevalência de TB, as características dos casos e as características sócio-demográficas e epidemiológicas dos internos das diferentes unidades prisionais; e (b) contribuir para a definição de estratégias de controle melhor adaptadas às especificidades do sistema prisional.

 

População e métodos

O Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro abriga atualmente cerca de 21 mil presos distribuídos em 34 unidades prisionais (média de 558 indivíduos por unidade; variação de 50-1.400), em celas superpopulosas e mal ventiladas, condições essas muito favoráveis à transmissão de TB. O tempo médio de encarceramento é de quatro anos.

O Sistema de Saúde Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro é composto de unidades ambulatoriais alocadas em cada uma das prisões para atendimento de nível básico, além de sete hospitais penais, dos quais um hospital para tuberculose (98 leitos) e outro para HIV/AIDS (23 leitos). As ações de prevenção e tratamento adotadas são as recomendadas pelo Ministério da Saúde, inclusive os programas de controle da tuberculose e DST/AIDS.

Seguindo metodologia adotada por Sánchez et al. 13, em inquérito realizado no ano de 2002 na prisão A (1.081 presos; taxa de incidência de TB em 2001: 1.574 por 100 mil), unidade de nível de segurança médio para presos com pena máxima de 14 anos de condenação, foram realizados estudos transversais de toda a população de outras duas prisões masculinas de regime fechado para maiores de 18 anos (prisões B e C). Na prisão B (739 presos; taxa de incidência em 2002: 1.693 por 100 mil), de nível de segurança alto para indivíduos condenados a penas superiores a 14 anos, o inquérito de prevalência de TB foi realizado em novembro e dezembro de 2003. Na prisão C (1.377 presos; taxa incidência em 2004: 8.135 por 100 mil), prisão de nível médio de segurança para presos com pena máxima de 14 anos de condenação, o inquérito foi realizado em julho de 2005.

A prisão A foi selecionada por apresentar boas condições de segurança e taxa de incidência situada na média das taxas observadas nas outras unidades no ano precedente ao estudo. As prisões B e C foram selecionadas por solicitação das autoridades penitenciárias que, alertadas pelas elevadas taxas de incidência obtidas a partir de dados de rotina e pela demanda dos detentos, desejavam uma ação de detecção ativa e tratamento dos casos com o objetivo de controle da TB.

Os métodos de detecção de casos utilizados no estudo foram descritos em publicação anterior 13. Em resumo, após obtenção de consentimento escrito e coleta padronizada de dados penais, sócio-demográficos, epidemiológicos e clínicos, todos os indivíduos foram submetidos a tele-radiografia de tórax em incidência antero-posterior, independentemente da existência de sintomas ou sinais clínicos. As radiografias foram lidas de forma independente por dois pneumologistas e um radiologista que não conheciam os dados clínicos e antecedentes dos indivíduos estudados. Em caso de discordância, esta foi resolvida por consenso.

De todos os indivíduos que apresentaram alteração radiológica pulmonar, pleural ou mediastinal foram colhidas duas amostras de escarro em dias diferentes 14 para realização de baciloscopia de escarro, cultura em meio de Löwenstein-Jensen e avaliação da sensibilidade à rifampicina, isoniazida, etambutol, etionamida e estreptomicina pelo método de Canetti 15.

Os seguintes critérios foram utilizados para definição de caso de tuberculose 13:

• Confirmado bacteriologicamente: indivíduos com duas baciloscopias de escarro positivas e/ou cultura positiva para Mycobacterium tuberculosis, ou uma amostra positiva para BAAR e presença de alteração radiológica sugestiva de TB.

• Casos bacteriologicamente negativos: indivíduos com baciloscopia e cultura negativas, mas que apresentavam à radiografia de tórax infiltrado(s) em lobo(s) superior(es) com ou sem cavitação. Para aqueles que além das alterações radiológicas apresentaram sintomas sistêmicos ou respiratórios, foi também considerada a ausência de melhora clínica e radiológica após dez dias de amoxacilina. O diagnóstico de TB foi baseado na melhora radiológica após seis meses de quimioterapia para TB.

Em indivíduos com história de tratamento anterior para TB que apresentaram deterioração das alterações radiológicas quando comparadas com radiografias anteriores, o diagnóstico de novo episódio de TB foi baseado na melhora clínica e radiológica após seis meses de quimioterapia para TB.

O teste sorológico para HIV, oferecido a toda população da prisão A e aos portadores de TB da prisão C, somente foi realizado após aconselhamento pré e pós-teste por psicólogo 16. Esse exame não foi oferecido na prisão B por questões operacionais e de custo.

Os dados coletados foram consolidados em banco de dados informatizado utilizando-se os programas Excel e Access (Microsoft Corporation, Estados Unidos). Para os procedimentos estatísticos foi utilizado o Epi Info 2002 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) e SAS (SAS Institute, Cary, Estados Unidos). As variáveis coletadas nas três unidades prisionais foram comparadas utilizando-se o teste qui-quadrado (c2) para variáveis discretas e o teste ANOVA não paramétrico de Kruskal-Wallis para avaliar se pelo menos um dos pares tinha medianas diferentes. As diferenças foram consideradas como significativas para o valor de p < 0,05. O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.

 

Resultados

Foram incluídos 3.014 dos 3.197 indivíduos encarcerados nas três unidades selecionadas, que correspondem a 97,3% (1.052/1.081) dos indivíduos encarcerados na prisão A, 99,6% (1.372/1.377) da prisão C e 79,8% (590/739) dos indivíduos da prisão B, onde a ocorrência de uma rebelião levou à interrupção da coleta de dados. Da prisão A foram excluídos 29 indivíduos (3 recusas e 26 por dados incompletos ou problemas técnicos relacionados à radiografia de tórax) e 5 da prisão C por preenchimento inadequado do questionário.

O número de presos por cela varia em função do grau de segurança da unidade prisional e do tamanho das celas, sendo a mediana 29 (2-49) para prisão A, 3 (1-6) para prisão B e 61 (56-67) para a C. A proporção de indivíduos com história de encarceramento anterior é mais elevada na prisão B em comparação com as prisões A e C (Tabela 1).

Trata-se de população jovem, em geral com baixo nível de educação (Tabela 1). Embora o nível de escolaridade tenha mostrado diferença estatisticamente significativa entre as prisões, a média do número de anos de estudo variou pouco (de 4,8-5,5). A porcentagem dos detentos que viviam em comunidades faveladas foi muito mais alta nas prisões B e C.

No que se refere aos indicadores epidemiológicos de TB, história de tratamento anterior foi particularmente freqüente nas prisões B e C, cerca de duas vezes superiores ao da prisão A. As taxas de prevalência global de TB ativa são mais elevadas na prisão C (8,6%) em relação à prisão A (4,6%). A prisão B apresentou taxa intermediária (6,3%). Mesmo perfil se observa em relação à prevalência de casos sem história de tratamento anterior para TB (prevalência de casos novos), sendo a taxa da prisão C duas vezes maior do que a da prisão A. O inquérito realizado contribuiu para a detecção de 89,6, 89,2 e 71,2% do total de casos prevalentes nas unidades A, B e C, respectivamente.

Nas três prisões, quando inquiridos, apenas um terço (51/160) dos doentes com tuberculose referiram tosse por mais de três semanas (definição operacional de sintomático respiratório do Ministério da Saúde) (Tabela 2). Essa proporção foi semelhante entre os casos bacteriologicamente confirmados (36/111, 32,4%) e os não confirmados (15/49, 30,6%). A porcentagem de confirmação bacteriológica foi semelhante entre os tuberculosos que referiram tosse por mais de três semanas (36/51, 70,6%) e aqueles que negaram (75/112, 67,0%, c21 = 0,22, p = 0,645).

Em comparação com a prisão A, a porcentagem de casos com comprometimento radiológico extenso (lesão bilateral e/ou presença de cavidade) foi mais elevado nas prisões B e C ( c21 = 9,52, p = 0,0020). A porcentagem de casos bacteriologicamente confirmados foi mais elevada na prisão B.

A avaliação da sensibilidade do M. tuberculosis às drogas antituberculose realizada em 81 dos 157 (51,6%) pacientes identificou resistência em 9 (11,1%), dos quais 2 (2,5%) portadores de TB resistente simultaneamente à rifampicina e isoniazida, sendo 1 na prisão B e 1 na C. Foram detectados 4 casos de resistência inicial às drogas, 3 na prisão B e 1 na prisão C. Nenhum caso de resistência inicial foi detectado na prisão A.

O teste sorológico para HIV, proposto aos portadores de tuberculose das prisões A e C, foi aceito por respectivamente 95,3% (41/43) e 96,3% (78/81) dos pacientes. Esse exame não foi realizado na prisão B. A soroprevalência de HIV entre os tuberculosos foi mais elevada na prisão A em comparação com a C. Na prisão A a soroprevalência global foi de 2,1% e entre os não tuberculosos de 1,6%.

 

Discussão

Os inquéritos realizados foram bem aceitos pelos detentos em geral, não somente no que se refere ao exame radiológico, que foi aceito pela quase totalidade dos internos, como também a sorologia para HIV, realizada nos casos de TB da prisão C e no conjunto dos detentos da prisão A 13, com taxa de aceitação superior a 95%. Alguns dos fatores que nos parecem ter determinado a boa participação foram o respeito às regras éticas, especialmente o consentimento livre e esclarecido, o aconselhamento pré e pós-teste para HIV, o compromisso com a confidencialidade dos dados, a autonomia do interno para decidir sobre sua participação no estudo sem constrangimentos de qualquer ordem, e a garantia de assistência aos doentes conforme recomendação do Ministério da Saúde, tanto para TB 17 como para HIV/AIDS 18, independente de sua participação. A utilização de letras neste artigo para designar as prisões estudadas visa a evitar eventual discriminação dessas unidades. De modo geral, consideramos que as particularidades do ambiente em que foi realizado o trabalho de campo não implicaram limitações adicionais ao estudo. Entretanto, os riscos relacionados à segurança não devem ser subestimados, como demonstrado pelas dificuldades encontradas por ocasião da ocorrência de rebelião na prisão B que impediu a abordagem de todos os internos. Como não há associação plausível entre a rebelião e a ocorrência de TB, consideramos que a representatividade na prisão B não foi afetada pela interrupção do inquérito.

Os resultados obtidos reforçaram os achados de nosso primeiro estudo realizado na prisão A 13. As taxas de prevalência de TB foram altas nas três unidades estudadas, porém nas prisões B e C as taxas foram mais elevadas, e as formas clínicas extensas eram mais freqüentes, possivelmente por retardo no diagnóstico. Os estudos publicados de prevalência de TB em prisões, embora apresentem resultados (Malauí 5%, Botsuana 3,8%, Geórgia 6%) 5,6,7 aparentemente semelhantes aos nossos, utilizam método de detecção baseado em sintomas, menos sensível que a radiografia de tórax sistemática 19. Dessa forma, a comparabilidade dos resultados fica limitada.

Os estudos publicados sobre TB em prisões no mundo 1,2,3,4,5,6,7 não consideram as especificidades das diversas unidades carcerárias numa mesma cidade ou região. Em contraste, nosso estudo compara características da população de diferentes unidades prisionais do Estado de Rio de Janeiro com o objetivo de melhor adaptar as estratégias de controle. Mostrou diferenças importantes referentes aos indicadores penais, sócio-demográficos, epidemiológicos e às características dos casos de TB entre as populações dessas unidades.

De forma mais marcante que os presos da prisão A, os das prisões B e C acumulavam fatores de risco sinérgicos que sabemos, por meio de inúmeros estudos anteriores, estar associados à TB 20: origem de comunidades desfavorecidas (favelas), antecedentes de encarceramento e de TB. Coerentemente, os indicadores epidemiológicos (taxa de incidência e de prevalência) mostram que a situação da TB é particularmente mais grave nas prisões B e C.

No Rio de Janeiro a distribuição dos presos entre as unidades não se dá ao acaso. Eles são alocados nas prisões de acordo com seu pertencimento declarado a grupos (facções criminosas) que atuam nas comunidades onde vivem 21 ou, caso não pertençam a nenhum grupo, em função da facção dominante naquela comunidade. Os que habitam em áreas não dominadas por nenhum dos grupos são alocados em unidades do tipo da prisão A, que além de abrigar os integrantes de uma determinada facção, também abrigam os chamados "neutros". Dessa forma, a distribuição dos indivíduos acaba por obedecer a padrões geográficos e sociais, reproduzindo intramuros a sociologia das comunidades extramuros. Sob a ótica da organização social, as prisões B e C são particularmente homogêneas, sendo esses indivíduos, em grande parte, oriundos da cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana (90% na prisão C), onde vivem em sua maioria em comunidades faveladas. Já na prisão A, além de ser significativamente menor a proporção de indivíduos que referiram habitar em favelas, é relativamente maior a proporção de indivíduos oriundos do interior do Estado, onde a freqüência de TB na população livre é substancialmente mais baixa 12. Essas características poderiam contribuir para explicar as taxas de prevalência mais elevadas observadas nessas duas unidades. Essa dualidade é também sugerida pela análise das taxas de incidência de 2004 por unidade prisional: unidades correspondentes ao grupo da prisão A, taxas de 688 a 2.972 por 100 mil presos; unidades correspondentes ao grupo das prisões B e C, taxas de 3.174 a 8.185 por 100 mil presos 11.

Nosso protocolo de estudo não foi concebido para o estudo dos fatores de risco para HIV. Não temos, portanto, elementos para explicar a prevalência de HIV mais baixa entre os tuberculosos da prisão C em comparação com os da prisão A.

Como mostrado anteriormente no estudo da prisão A e confirmado nas prisões B e C, a tosse > 3 semanas foi referida por apenas cerca de 1/3 dos doentes e mais de 60% dos casos bacteriologicamente confirmados não apresentavam este sintoma. Esses resultados demonstram a limitação, para essa população, de método de detecção baseado na existência de tosse > 3 semanas, método preconizado pelo Ministério de Saúde 17.

Nesse ambiente complexo, a instituição e a manutenção de um programa de luta contra a TB constitui um grande desafio 22, considerando as limitações de recursos humanos e financeiros do serviço de saúde nas prisões, assim como a dificuldade de acesso dos presos a este serviço. Tomando como referência a prevalência mais baixa encontrada na prisão A (4,6%), podemos estimar que entre os 20 mil indivíduos encarcerados nas prisões do Estado do Rio de Janeiro, pelo menos 915 tinham tuberculose. Como recentemente assinalado 23,24, mais do que uma ameaça de TB, o encarceramento se constitui numa oportunidade de diagnosticar e tratar, em benefício não só do indivíduo doente, mas também do pessoal penitenciário, da família dos detentos e da comunidade de origem na qual ele vai se inserir após o livramento. Essa exigência ética implica minimamente no reforço considerável nas prisões da detecção passiva, do tratamento dos casos e de maior articulação com o programa de controle da TB nas comunidades de origem 25.

Além disso, considerando a elevada freqüência de TB entre os indivíduos que ingressam nas prisões (cerca de 3%, 30/998 segundo dados preliminares de nosso outro estudo), a TB deve ser sistematicamente rastreada no momento do ingresso do indivíduo na prisão 26. Essa detecção ativa no momento do ingresso deve ser preferencialmente baseada no exame radiológico sistemático de tórax, considerando as limitações já citadas dos métodos baseados na existência de sintomas.

Por outro lado, o rastreamento radiológico sistemático para presos já encarcerados, abordagem utilizada em nossa pesquisa, não nos parece que deva ser utilizada de forma generalizada considerando o efetivo de presos em escala estadual (21 mil indivíduos), mas priorizadas as unidades onde a situação é mais grave, tais como as prisões B e C.

Essas estratégias, para serem bem sucedidas, devem necessariamente incorporar ativamente, segundo abordagem comunitária, além dos próprios detentos e de profissionais de saúde, os diversos atores envolvidos, como agentes de segurança penitenciária, familiares de presos, professores e religiosos que exercem suas atividades nas prisões.

A gravidade da situação da TB nas prisões do Rio de Janeiro e provavelmente de outras prisões brasileiras implica a melhoria das condições de encarceramento e a definição de estratégias coerentes e eficazes que devem ser adaptadas para a população carcerária em função das especificidades de cada unidade prisional.

 

Colaboradores

A. R. Sánchez participou da concepção do estudo, da coleta e análise dos dados, da redação e da revisão do manuscrito. V. Massari participou da análise dos dados, discussão dos resultados e da revisão do manuscrito. G. Gerhardt contribuiu na concepção do protocolo de estudo, interpretação radiológica e revisão do manuscrito. V. Cesconi e A. W. Barreto participaram do processamento e supervisão dos exames bacteriológicos. A. B. Espinola e J. Pires contribuíram na coleta de dados e assistência clínica dos casos de tuberculose. E. Bioneli contribuiu para discussão dos resultados e revisão do manuscrito. B. Larouzé participou da concepção do estudo, análise dos dados, discussão dos resultados, redação e revisão do manuscrito. L. A. B. Camacho contribuiu na análise dos dados, discussão dos resultados e redação e revisão do manuscrito.

 

Agradecimentos

À equipe do Sanatório Penal da Superintendência de Saúde da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro, à direção e aos profissionais de saúde e de segurança das unidades prisionais estudadas.

Este estudo foi realizado no âmbito do programa de cooperação FIOCRUZ-INSERM e financiado pela Superintendência de Saúde da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.

 

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Correspondência
A. R. Sánchez
Sanatório Penal, Superintendência de Saúde
Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro
Estrada Guandu do Sena 1902
Rio de Janeiro, RJ 21540-000, Brasil
alexandrarsanchez@gmail.com

Recebido em 21/Dez/2005
Versão final reapresentada em 05/Jun/2006
Aprovado em 26/Jul/2006

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br