Eimportante, de início, frisar que as reflexões que serão feitas a seguir partem da concordância com as teses presentes no texto da Autora. Nesse sentido, os comentários que aqui serão apresentados visam tão somente destacar algumas dimensões apontadas pela autora, ressaltando alguns pontos.
O primeiro deles é a importância de se deslocar o debate agendado pelo ideário neoliberal da equação "mais Estado/menos Mercado", ou vice-versa, no que diz respeito à qualidade e à natureza do Estado. Mais que isso, ressalto o papel central e imprescindível do Estado — de um Estado forte e democrático, como chama a atenção Peter Evans — sobretudo em sociedade marcadas por profundas desigualdades sociais, como é o caso brasileiro.
O segundo ponto a ser destacado é a importância do papel regulador do Estado nas três esferas de poder. E aqui faz-se necessário destacar duas dimensões: a primeira delas diz respeito ao papel redistributivo da União e dos Estados, não só na alocação de recursos, mas no próprio apoio técnico à implementação do SUS através de uma real descentralização do sistema. Tarefa sem dúvida complexa, à medida em que implica a necessária descentralização de poder a favor do nível municipal, o que está em conflito com a lógica prevalecente de implantação do SUS, em que, sobretudo, o predomínio do mecanismo "convenial" de repasse de recursos, associado ao "desfinanciamento" que vem ocorrendo no setor e à instabilidade de suas fontes de financiamento, imprime um perfil de reconcentração de poder ao processo de descentralização nas esferas federal e, em menor grau, estadual.
Em decorrência, um terceiro ponto a ser destacado, e também abordado no texto, embora talvez sem a devida ênfase, é a necessidade de se deslocar o debate da equação "focalização/universalização" das políticas sociais — e de saúde, em particular — para a articulação entre ambas. Essa articulação, no entanto, deve ser regida pelas diretrizes orientadas pela necessidade de superação da pobreza, que imprimirão a lógica sobre as políticas e programas hoje voltados para o alívio da pobreza.
Há, no entanto, que se ter consciência da complexidade desse desafio. Isso porque, de um lado, ele colide com a opção atual por um modelo de ajuste estrutural da economia e de estabilização monetária absolutamente incompatível com investimentos de porte na área social. Caso exemplar desse fenômeno é o próprio CPMF, que significa busca de recursos alternativos, não fiscais, para o financiamento da saúde.
De outro lado, porque colide também com a agenda do debate atual ditada uma vez mais pelos preceitos neoliberais, de enfatizar a pobreza e não as desigualdades sociais. Enquanto estas estratégias vêm sendo adotadas com resultados limitados pelos constrangimentos da opção econômica dos governos recentes, políticas de superação da pobreza demandam iniciativas redistributivas, a começar pela renda.
Um quarto ponto a ser destacado diz respeito ao fato de que apesar dos avanços que a implementação do SUS vem alcançando (como demonstra empiricamente a Autora), em que pese o contexto adverso em que o sistema vem operando, as conquistas até agora obtidas estão sob severa ameaça — haja vista a proposta do MARE/MS, analisada no contexto. Apesar dessas ameaças, há que se reconhecer que embora a descentralização efetiva da saúde favoreça a sua democratização e em tese a intersetorialidade das políticas sociais no nível local dirigidas para a promoção da qualidade de vida, ela por si só não garante ambos os fatores.
E se do ponto de vista da dimensão administrativa da gestão local a intersetorialidade pode ser equacionada, inverter a lógica das políticas sociais — de reprodutoras das desigualdades sociais para compensatórias dessas desigualdades, e portanto redistributivistas — implica necessariamente a construção de um novo projeto para a sociedade e a reconstrução de um Estado condizente com esse projeto. O que está em jogo aqui é a formulação de um novo projeto que articule democracia política e democracia social. No caso específico da saúde, lembremos que a implementação do SUS contempla um sistema de saúde descentralizado vertical e horizontalmente, que distingue o estatal do privado, mas articula ambos esses setores sob a égide do interesse público e da cidadania.
Talvez hoje o maior risco que o direito à saúde e os princípios do SUS correm não resida na privatização da saúde, tal como esta é classicamente entendida, mas sim no transplante — em nome da eficiência e da eficácia dos serviços estatais de saúde — da racionalidade da iniciativa privada lucrativa para o setor estatal. Exemplos desse fenômeno não faltam, haja vista a experiência do PAS no município de São Paulo. Não se trata aqui de negar a necessidade e a urgência de se imprimir maior eficiência e eficácia ao Estado, mas sim de prevenir que para tanto há que se pensar na reconstrução desse Estado a partir da formulação de um novo projeto de sociedade, e sobretudo compreender que a racionalidade da garantia dos direitos da cidadania é incompatível com a lógica do mercado. Aí está o nó górdio da questão, que reside na incompatibilidade entre as fontes de financiamento para o setor, que não estão assentadas sobre bases universais e progressivas, frente às propostas de universalização do acesso à atenção à saúde.
Retoma-se assim, a urgência da formulação de um projeto efetivamente democrático para a sociedade — a saúde aí contemplada na sua especificidade, comungando com a necessária intersetorialidade — e de reforma de um Estado que seja, de fato, redistributivo e voltado para a superação das abismais desigualdades sociais prevalecentes, incompatíveis com qualquer aprofundamento da ordem democrática no País.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
1996