Desde a década de 1960, o Brasil vem mudando seu perfil de morbimortalidade, saindo de uma situação de prevalência e relevância das doenças infecciosas e entrando numa curva de ascensão tanto de mortes como de morbidades por patologias não infecciosas de longo curso clínico e marcadas, em muitos casos, pela irreversibilidade. Tal quadro também vem caracterizado pelo aumento das mortes por violências e acidentes e por lesões e agravos provocados pelas chamadas "causas externas".
Esse novo panorama da população brasileira tem dois lados. O mais positivo é que o país, através das grandes campanhas de vacinação, da universalização da atenção básica, das melhorias das condições de vida e do lento, mas importante, processo de saneamento básico, eliminou algumas doenças infecciosas como a poliomellite, a varíola e o sarampo, ainda que outras persistam e continuem a merecer forte investimento no seu controle, como é o caso da AIDS (que para muitos está se tornando uma doença crônica), da dengue, da tuberculose, da malária e da hansienise. O lado mais negativo do panorama sanitário brasileiro é a presença, a persistência e, em alguns casos, o recrudescimento das doenças não transmissíveis, como, por exemplo, a diabetes, a obesidade e a hipertensão, foco principal desta edição de Ciência & Saúde Coletiva.
Há uma característica de espelhamento entre o quadro de morbimortalidade e as situações e condições de existência atuais. A maioria das enfermidades está associada ao estilo de vida: à qualidade da alimentação, ao sedentarismo, ao estresse, às condições de trabalho, à poluição ambiental e à violência social. E, não menos importante, o novo perfil leva em conta o envelhecimento da população - o fenômeno mais importante da demografia brasileira contemporânea -, o que é, ao mesmo tempo, um bônus para o país e um motivo de preocupação para o setor saúde. É claro que o envelhecimento não é e nem pode ser considerado uma doença. Porém é na velhice que o número e a gravidade das processos crônicos e degenerativos tendem a aumentar. É preciso ressaltar que tais males não são peculiares às pessoas idosas, embora elas sejam suas principais vítimas: hipertensão; diabetes; obesidade; doenças cardiovasculares; neoplasias; enfermidades respiratórias; doenças renais; doenças músculo-esqueléticas; problemas de saúde mental; doenças dos órgãos sensoriais, dentários e periodentários.
Existem três características comuns nos problemas de saúde não transmissíveis, aí incluidos os agravos por violências e acidentes: em primeiro lugar, sua causalidade múltipla não permite uma atuação "unicausal" para a qual os profissionais de saúde estão mais preparados. O que, na verdade, acende uma luz vermelha sobre a adequação de sua formação ao novo perfil de morbimortalidade do país. Em segundo lugar, qualquer atuação exige a implicação do sujeito e sua responsabilização sobre seu estado de saúde. Ou seja, ele pode e deve fazer mais tanto pessoal como socialmente - sem esperar o conselho do médico - prevenindo os agravos e os fatores que provocam os novos males já assinalados. Em terceiro lugar, o envelhecimento saudável depende, em parte, da história e do estilo de vida dos sujeitos, do seu ambiente e da sua inserção na vida social enquanto são jovens.
Concluíndo, na atual da situação de saúde dos brasileiros, a medicina e a saúde pública estão, mais que nunca, sendo chamadas a cumprir seu papel de ciência híbrida que envolve o conhecimento biológico, psíquico e social. Pois, tanto a saúde como a enfermidade, como diria Marcel Mauss, constituem um "fato social total": quando dói o corpo, a mente sente e a vida social se prejudica. Ao contrário, quando existe saúde, o silêncio do corpo e a alegria da alma prevalecem.
Maria Cecília de Souza Minayo
Editora Chefe
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2014