Etnografias em serviços de saúde é o nome do livro compilado por duas autoras que são referência no campo da Antropologia da Saúde: Jaqueline Ferreira e Soraya Fleischer. Ambas, doutoras em Antropologia Social, por concentrarem os seus interesses nos significados e sentidos do processo saúde-doença em suas trajetórias acadêmicas, de forma sensível e convidativa, reuniram uma série de estudos etnográficos instigantes que fazem pensar na complexidade e nos modos plurais, subjetivos e simbólicos de conceber os processos de adoecimento, as relações entre profissionais e “doentes”, os usos das tecnologias, as dinâmicas das instituições e dos serviços de saúde, etc.
Assim, após o prefácio desenvolvido por Cynthia Sarti e a apresentação da obra realizada pelas autoras, o livro foi organizado criteriosamente a partir de doze textos que revelam a riqueza e a relevância do uso da etnografia para iluminar questões particulares de determinados grupos sociais face às questões de saúde-doença, como poderá ser visto a seguir.
O primeiro capítulo, “Cotidianos e trajetórias de sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira”, analisa criticamente as propostas de reforma psiquiátrica que circulam no nível nacional a partir daqueles que frequentam os serviços de saúde mental. A descrição do trabalho de campo e as reflexões proporcionadas pela etnografia evidenciam que as múltiplas experiências e trajetórias locais das pessoas fazem pensar como as políticas públicas podem ser moduladas em determinados grupos sociais durante o dia a dia.
O segundo capítulo, “A verdade que está aqui com a gente, quem é capaz de entender? Uma etnografia com participantes de uma Oficina de Criatividade em um Hospital Psiquiátrico”, aborda a importância da Antropologia no cenário de disputas em torno do processo de reforma psiquiátrica. A descrição etnográfica apresentada aprofunda questões de ordem ética, científica e política que atravessam o cotidiano dos ateliês estudados, uma vez que torna “sujeitos” aqueles vistos como “objetos” na perspectiva hospitalocêntrica.
O terceiro texto, intitulado “Dilemas na/da Reforma Psiquiátrica: notas etnográficas sobre o cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial”, também trata sobre a relevância da etnografia para compreender a intervenção no campo da saúde mental. Em especial, explora o cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial apontando a polissemia e a construção das lógicas dos posicionamentos da equipe profissional face às potencialidades e aos limites do processo reformista.
Posteriormente, o texto “Desintoxicação, medicamentos e reinserção social: o tratamento de usuários de crack em diferentes perspectivas”, título do quarto capítulo, traz a discussão de como o modelo de atenção com ênfase hospitalar e o psicossocial podem ser praticados no cotidiano dos serviços de saúde. A etnografia foca na perspectiva dos discursos e das práticas dos serviços e dos profissionais face aos usuários de crack, revelando uma diversidade de propostas terapêuticas que são atualizadas e ressignificadas.
No quinto texto, “Reparar o moral: etnografia dos cuidados médicos de um centro de saúde humanitário francês”, privilegia-se o espaço da consulta médica entre voluntários médicos e uma população de pacientes, marcada por exclusão social. Estrangeiros em situação de clandestinidade, imigrantes africanos e franceses moradores de rua ou desempregados que constituía o principal público de atendimento indicavam para os profissionais que aspectos físico-biológicos estavam imbricados com questões de ordem moral, fazendo questionar e repensar a própria prática técnica e clínica.
O sexto capítulo, “Integralidade, holismo e responsabilidade: etnografia da promoção de terapias alternativas/complementares no SUS”, adentra na seara das políticas de saúde como foco de pesquisa. A partir de um ambulatório associado ao SUS especializado em terapêuticas integrativas e complementares, a etnografia se remete especialmente na responsabilização dos sujeitos pelos cuidados de si e nas manipulações/usos dos medicamentos homeopáticos, fitoterápicos e florais. Além disso, o capítulo analisa alguns documentos referentes a essas terapias constituídas basicamente à luz do princípio da integralidade do SUS.
Depois, a etnografia descrita no sétimo capítulo, “Conversas de balcão: notas etnográficas em uma drogaria”, buscou conhecer as interações sociais cotidianas de balconistas, farmacêuticos e consumidores no contexto da compra e venda da contracepção de emergência/levonorgestrel. Lógicas de gênero e de sexualidade interferiam substancialmente na dinâmica da instituição farmacêutica, levando a questionar sua inserção no campo da Saúde, em especial, no que se refere aos papéis e às interações entre os profissionais e aos seus contatos face a face com os consumidores no contexto da contracepção de emergência.
Mais a frente, o oitavo capítulo intitulado “Isso aqui é a minha valência: notas etnográficas sobre um grupo de ginástica na Guariroba, Ceilândia, DF”, traz uma etnografia que descreve a estrutura ritualizada cotidiana do grupo de ginástica na sua vivência com os exercícios físicos em um Centro de Saúde, demonstrando as suas relações com outras vias terapêuticas, como a dieta alimentar e os usos de medicamentos. O fato do exercitar-se em um grupo fora do espaço tradicional de um Centro de Saúde parecia elaborar construções críticas e relativizadas sobre os serviços de saúde de modo geral.
O nono capítulo, “De perto e de longe do que seria natural, mais natural e/ou humanizado: uma etnografia de grupos de preparo para o parto”, se refere a uma etnografia que explora os meandros dos usos da tecnologia e dos saberes científicos no que diz respeito ao parto. A convivência com as mulheres adeptas do parto humanizado, mais precisamente aquelas que não privilegiam a cirurgia cesariana, demonstra a pluralidade de concepções do que seria “dar a luz naturalmente”.
Em seguida, no décimo capítulo, “Esse povo não está nem aí: as mulheres, os pobres e os sentidos da reprodução em serviços de atenção básica à saúde em Maceió, Alagoas”, é apresentada uma etnografia em unidades de saúde que objetivou investigar a forma como a atenção básica, a Estratégia Saúde da Família, lidava com as noções de gênero, família e pobreza. O texto foca especialmente no acesso das mulheres aos serviços, as noções de concepção e de contracepção das mesmas, além das suas relações com os profissionais, por vezes, com intervenções controlistas ou medicalizantes.
Regulamentação sanitária de medicamentos: a controvérsia dos emagrecedores, título do penúltimo texto, discute o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de reger a deliberação de substâncias e suas relações com outras instâncias do campo da Saúde. A partir de um debate sanitário sobre psicotrópicos anorexígenos responsáveis por terapias para a obesidade, o capítulo demonstra construções argumentativas e disputas responsáveis por controvérsias regulatórias e normativas de determinados fármacos e medicamentos.
Por fim, no último capítulo, “O sistema CEP-CONEP e a ética em pesquisa como política pública de proteção do usuário do SUS”, apresenta um trabalho etnográfico que investigou como um CEP, com toda a sua construção histórica, social, política e científica, pode se posicionar face à defesa do sujeito da pesquisa. Após deslindar sobre os percalços de conseguir uma autorização de um CEP para se pesquisar um CEP, o capítulo traz discussões e reflexões desenvolvidas pelos membros no sentido da alteridade de se colocar no lugar de pesquisado, problematizando o complexo processo de decisão sobre o desenvolvimento de uma pesquisa no campo da Saúde e suas implicações para o âmbito científico.
Em síntese, embora grande parte dos capítulos desta coletânea revele questões descritivas de ordem local, a contribuição inédita tratada com vigor neste livro se estabelece justamente pelas reflexões e discussões macroestruturais sobre o processo saúde-doença provocadas pelas pesquisas etnográficas de realidades microscópicas. Nesse sentido, portanto, de forma enriquecedora, Jaqueline Ferreira e Soraya Fleischer trazem uma diversidade de relatos da vida cotidiana que versam criticamente sobre o “experienciado” ou o “vivido”, tão importante para a integração dos diversos segmentos do campo da Saúde Coletiva como para o próprio ofício antropológico no que se refere ao “fazer etnográfico”.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Nov 2015