Construindo a rede de cuidados em saúde mental infantojuvenil: intervenções no território

Luíse de Cássia Tszesnioski Keise Bastos Gomes da Nóbrega Maria Luiza Lopes Timóteo de Lima Vera Lúcia Dutra Facundes Sobre os autores

Resumos

Crianças com transtornos mentais podem ter sérios prejuízos em seu desempenho funcional. Uma rede de cuidados estruturada favorece componentes psicossoais, como a autoconfiança e a resolubilidade de problemas. Este trabalho objetiva identificar a rede de cuidados de crianças em sofrimento psíquico e desenvolver intervenções no território, apontando mudanças ocorridas a partir dessas ações. Trata-se de um estudo descritivo baseado no desenho da pesquisa-ação, que utilizou o ecomapa para a apresentação dos dados. Os resultados indicam que a maioria das crianças possui vínculos estressantes com o núcleo familiar, e relações de maior intensidade e qualidade com os Agentes Comunitários de Saúde, na Atenção Básica e na Educação, com a creche, quando comparadas com os serviços especializados em saúde. As intervenções basearam-se nas diretrizes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, e tiveram como destaque o fortalecimento de vínculos familiares, e a articulação com serviços de saúde, escolas/creche.

Atenção Primária à Saúde; Cuidado da criança; Saúde mental; Terapia ocupacional


Introdução

Estima-se que 10 % a 20% da população infanto-juvenil sofram com transtornos mentais no Brasil e, desses, 3% a 4% precisem de tratamento intensivo. Entre 1980 e 2006 nove publicações registraram taxas de prevalência de 12,6 a 35,2% quando os informantes foram os pais ou a criança. Ao ser utilizada uma entrevista diagnóstica, a taxa variou entre 7 e 12,7%11 Tanaka OY, Ribeiro EL. Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Cien Saude Colet 2009;14(2):477-486.,22 Couto MCV, Duarte CS, Delgado PGG. A saúde mental infantil na saúde pública brasileira: situação atual e desafios. Rev. Brasileira de Psiquiatria 2008;30(1):384-389..

Crianças e adolescentes com transtornos mentais podem ter sérios prejuízos em seu desempenho funcional, que corresponde à capacidade do indivíduo em realizar atividades do seu cotidiano de maneira satisfatória e apropriada para cada etapa de desenvolvimento. Na população infantil, a dificuldade em realizar essas atividades, geralmente, é demonstrada pelo mau funcionamento social, afetando, principalmente, os papéis de brincar e de estudante33 Florey L. Disfunção psicossocial na infância e adolescência. In: Neistadt ME, Crepeau EB, organizadores. Terapia Ocupacional Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2002. p. 580-591.,44 Lambertucci MCF, Magalhães LC. Terapia Ocupacional e Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. In: Camargos Júnior W, organizador. Transtornos Invasivos do Desenvolvimento: 3° milênio. Brasília: COORDE; 2002. p. 227-235..

A Política Nacional de Saúde Mental, apoiada na lei 10.216/01, busca consolidar um modelo de atenção à Saúde Mental aberto e de base comunitária, cujas ações são organizadas em redes de cuidados territoriais e com atuação transversal com outras políticas específicas que busquem o estabelecimento do vínculo e acolhimento55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília: MS; 2005..

Uma rede de cuidados representa os atores que realizam ações nesse sentido, o que inclui os locais no território, como a escola, o domicílio, a igreja, o clube, o cinema, etc., podendo ou não estar incluídas as instituições de saúde. As ligações efetivas dos usuários com essa rede favorece a resolução de problemas e contribui com o processo de tratamento66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: OPAS; novembro de 2005..

Segundo Couto et al.22 Couto MCV, Duarte CS, Delgado PGG. A saúde mental infantil na saúde pública brasileira: situação atual e desafios. Rev. Brasileira de Psiquiatria 2008;30(1):384-389., os setores da educação e da atenção básica, como integrantes de uma rede pública ampliada de atenção à saúde mental infanto-juvenil, podem ter função de destaque no desenvolvimento de ações preventivas, de promoção de saúde e na identificação precoce de casos.

Na saúde mental infantil, a rede de cuidados pode contribuir para o desenvolvimento da criança, além do bem-estar e da qualidade de vida da família77 Solymos GMB, Maricondi MA, Soares MLPV. A criança e a família: as potencialidades da abordagem em rede para o contexto da promoção da saúde. In: Chiesa AM, Fracolli EA, Zaboli E, organizadores. Promoção da saúde da criança: a experiência do projeto Nossas Crianças. São Paulo: MS Prado; 2009. p. 43-60.. é preciso considerar a multiplicidade de fatores relacionados ao processo de saúde/doença, pois as estratégias puramente clínicas são insuficientes no tratamento, devendo ser somadas a ferramentas sociais, para que as crianças em sofrimento psíquico possam estar incluídas na sua comunidade88 Vicentin MCG. A Questão da Responsabilidade Penal Juvenil: Notas para uma Perspectiva Ético-Política. In: ABMP, Secretaria Especial de Direitos Humanos, organizadores. Justiça, Adolescente e Ato Infracional: Socio-educação e Responsabilização. São Paulo: Ilanud; 2006. p. 151-174..

Conforme disposto no Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 201199 Decreto n.° 7.508, de 28 de junho de 2011, regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun., na rede de Atenção à Saúde, onde os serviços são articulados em níveis de complexidade crescente de forma a garantir a integralidade da assistência, os serviços de saúde mental específicos para a população infantil são compostos pelos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) e ambulatórios. Entretanto, são as escolas e as Unidades de Saúde da Família que apresentam os maiores números de crianças que necessitam de cuidados em saúde mental1010 Goodman R, Neves dos Santos D, Nunes A, Miranda D, Fleitlich- Bilyk B, Almeida-Filho N. The Ilha da Maré study: a survey of child mental health problems in a predominantly African-Brazilian rural community Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2005;40(1):11-17..

Na Atenção Básica, há o potencial de detectar as queixas relativas ao sofrimento psíquico e prover uma escuta qualificada para a problemática, oferecendo tratamento no território ou encaminhando para serviços especializados11 Tanaka OY, Ribeiro EL. Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Cien Saude Colet 2009;14(2):477-486.. Neste sentido, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), equipamentos mais próximos à comunidade, podem auxiliar na articulação com os diversos dispositivos da rede, a fim de prevenir doenças e promover saúde1111 Ribeiro KSQS. Redes sociais e educação popular: aproximação teórica e mudanças na prática de educação popular em saúde. In: V Colóquio Internacional Paulo Freire. Recife; 2005.. O terapeuta ocupacional vem se inserindo nesse contexto através do NASF e deve considerar as possíveis variáveis ao processo de construção dessas redes, para que o direcionamento das ações possa promover impacto real nas situações que se apresentam.

Nesse sentido, este artigo objetivou descrever a rede de cuidados de crianças em sofrimento psíquico e desenvolver intervenções no território, apontando mudanças ocorridas a partir dessas ações.

Metodologia

Este trabalho foi desenvolvido a partir de um recorte do projeto de pesquisa-ação “Terapia Ocupacional na Atenção Básica” e foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da UFPE. Trata-se de um estudo descritivo baseado no desenho da pesquisa-ação. Este tipo de pesquisa se constitui na lógica entre a teoria e a prática, que vislumbra intervenção numa situação real, produzindo conhecimento útil e relevante, em que os participantes estão envolvidos de modo cooperativo e participativo1212 Thiollent M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez; 2009.. Foi realizado no período de agosto de 2011 a março de 2012, com crianças com história de sofrimento psíquico e seus familiares cadastrados numa Unidade de Saúde da Família (USF) do Distrito Sanitário IV da cidade do Recife/PE.

Os participantes foram recrutados, após prévia discussão junto aos profissionais da USF, sobre algumas peculiaridades indicativas de sofrimento psíquico infantil. Com isso, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) identificaram na sua área adscrita crianças com essas características, fornecendo uma lista com nomes e endereços para a equipe de pesquisadores.

Os dados foram coletados através de registros em diários de campo, de imagens obtidas da máquina fotográfica e de um questionário semiestruturado aplicado apenas ao familiar responsável, devido à dificuldade de comunicação e de compreensão das crianças participantes. Este último foi utilizado para caracterização dos participantes, com informações sociodemográficas, incluindo dados de identificação da criança e do familiar responsável; dados clínicos, espaços frequentados como componentes da rede de cuidado, além de informações sobre o desempenho funcional e a vida social das crianças.

As informações do questionário e as observações durante as visitas domiciliares subsidiaram as intervenções no território. Essas ações foram realizadas por duas estudantes de terapia ocupacional do 7º e 8º período de graduação, monitoras do projeto, e uma terapeuta ocupacional docente da UFPE. As intervenções foram fundamentadas nas diretrizes do NASF em consonância com as propostas da Coordenação Geral de Saúde Mental e da Coordenação de Gestão da Atenção Básica1313 Alves CCF, Silveira RP. Família e redes sociais no cuidado de pessoas com transtorno mental no acre: o contexto do território na desinstitucionalização. Rev. APS. 2011;14(4):454-463., que propõe que as ações de saúde mental na atenção básica devem obedecer ao modelo de redes de cuidado, ter base territorial e atuação transversal com outras políticas específicas, buscando o estabelecimento de vínculos e o acolhimento. Nessa perspectiva, realizaram-se visitas domiciliares semanais para o acolhimento das demandas de cuidado e, quando necessário, às escolas, que também fizeram parte das ações, a fim de minimizar os impactos dos sinais e sintomas do sofrimento psíquico sobre o desempenho escolar das crianças.

Os ACS da USF facilitaram o acesso aos domicílios por conhecerem o território e seus moradores. Essas intervenções foram registradas no diário de campo e através da máquina fotográfica. Os achados foram submetidos à análise temática e discutidos com base no levantamento da bibliografia científica.

As relações da criança e sua família com a rede de cuidados foram analisadas, antes e após as intervenções, e apresentadas através do ecomapa, instrumento útil para avaliação da relação entre atores e seu meio social1414 Najman JM, Aird R, Bor W, O'Callaghan M, Williams GM, Shuttlewood GJ. The generational transmission of socioeconomic inequalities in child cognitive development and emotional health. Soc Sci Med 2004;58(6):1147-1158.. O ecomapa tem ao centro o número de indivíduos - as crianças - interligados com os componentes da rede de cuidado, evidenciando-se os diversos tipos de ligação, sendo estes: forte, estressante, moderado, fraco, já existiu ou não observado. Para classificação da intensidade do vínculo foram utilizados os relatos dos familiares responsáveis pelas crianças registrados em diário de campo e no questionário. As opiniões dos familiares relacionavam-se a quatro equipamentos da rede de cuidados: serviços de saúde, serviços de educação e núcleo familiar, que foram utilizados para a construção do ecomapa no qual os indivíduos pesquisados foram identificados por meio de letras escolhidas aleatoriamente - A, B, C, D, E, F e G.

Resultados e discussão

Sete crianças participaram do estudo, a maioria do sexo masculino, pertencentes a faixa etária de 1 a 5 ou de 6 a 9 anos, com renda familiar de 1 salário mínimo, nível de escolaridade dos pais no ensino fundamental, vivendo em estrutura monoparental e morando em casas com 2 a 4 pessoas. Essas características se assemelham a de outros estudos e indicam que viver em condições sociais e econômicas desfavoráveis, ter pais com baixa escolaridade e viver em famílias monoparentais ou constituídas pela presença de padrasto/madrasta (ou com a presença de outras pessoas) são fatores que podem induzir ao aparecimento de problemas de comportamento em crianças1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas/Departamento de Atenção Básica. Coordenação Geral de Saúde Mental/Coordenação de Gestão da Atenção. Brasília: MS; 2003..

Além disso, a Organização Mundial da Saúde1616 Organização Mundial da Saúde (OMS). Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Genebra: OMS; 2001. reconhece que o tipo de configuração socioeconômica influencia o contexto social, podendo colocar o indivíduo em desvantagem na utilização de equipamentos disponíveis no meio.

Ribeiro1111 Ribeiro KSQS. Redes sociais e educação popular: aproximação teórica e mudanças na prática de educação popular em saúde. In: V Colóquio Internacional Paulo Freire. Recife; 2005. e Serapioni1717 Serapioni M. O papel da família e das redes primárias na reestruturação das políticas sociais. Cien Saude Colet 2005;10(Supl.):243-253. alertam que embora a família seja reconhecida pelos profissionais de saúde como um elemento importante, assumindo o papel central de provedor de cuidado à criança com problema mental, reconhece-se que ela não é capaz de suprir todas as demandas que se apresentam.

Nesse sentido, o levantamento da rede de cuidados das crianças estudadas (Figura 1) evidenciou que a maioria das relações com os familiares foi considerada estressante. Já o relacionamento com os vizinhos aparece como um componente de apoio forte nesses casos. F e E, que estão entre os que possuem vínculo com o Núcleo Familiar considerado estressante, tinham vizinhos que participavam ativamente de sua educação, oferecendo cuidados na ausência materna, como nos momentos de trabalho. Identificou-se, também, que a quantidade e a intensidade dos vínculos com a creche e com a USF, ou com o ACS, foram maiores quando comparados com os serviços especializados, entre eles os CAPSi e ambulatórios.

Figura 1
Ecomapa das relações entre crianças com história de sofrimento psíquico e sua rede de cuidado antes das intervenções, Recife, 2012.

Observou-se ainda que algumas crianças possuíam demanda de assistência especializada, mas estavam sem acompanhamento, conforme esses trechos do diário de campo:

[...] a mãe de A se aproxima e refere que ‘agora’ está com mais tempo para dar continuidade ao tratamento psicológico da criança, colocando na construção de sua casa o motivo para tê-lo interrompido. (Diário de campo de 24/08/2011).

A mãe de G informa que foi na AACD e foi encaminhada para a fonoaudióloga, mas que ainda não pôde ir, aparentemente evitando esmiuçar os motivos de não ter dado andamento a isto. (Diário de campo de 13/09/2011).

As crianças com algum diagnóstico, como no caso de D e G, utilizavam a USF, especialmente para o acesso aos medicamentos e encaminhamentos aos serviços especializados. Entre os demais, apenas C e A citaram a USF como equipamento da sua rede de cuidado durante os atendimentos da equipe. Já os ACS estavam presentes na maioria das visitas e mostravam-se próximos das famílias, dando opiniões e levantando questões que pareciam conhecer bem:

A ACS mostra-se à vontade na residência para falar suas impressões sobre os cuidados oferecidos a C . Refere que a mãe poderia ser mais presente, que ‘sai’ muito e deixa os filhos sob os cuidados da avó. No momento a mãe de C ouve atentamente, parecendo aceitar os conselhos (Diário de campo de 03/08/2011).

Esses aspectos apontaram que a ligação das crianças/famílias com os ACS era maior, havendo destaque deste profissional no equipamento USF (Figura 1).

Ressalta-se que a presença constante dos ACS durante as intervenções pode ter influenciado a percepção do vínculo mais forte por parte das famílias, o que poderia caracterizar-se como viés de informação. Porém, o fato do ACS obrigatoriamente residir no seu local de atuação permite que o profissional conheça e conviva com os usuários, facilitando as ações de promoção e cuidado da saúde. Além disso, esta proximidade com a comunidade facilita o acesso do ACS às casas dos munícipes, estreitando o vínculo com o usuário, de maneira que a sensibilização quanto às suas necessidades de cuidado podem ser exploradas mais intimamente, proporcionando maior resolutividade1818 Silva PR, Ribeiro GTF. ACS: Elo de ligação entre comunidade carente e a ESF. Vita et Sanitas 2009; n.03..

Entretanto, entendendo o papel do ACS como elo entre a comunidade, a USF e os equipamentos de cuidado da rede, os vínculos fracos ou não observados no ecomapa podem apontar uma fragilidade do sistema, visto que as necessidades de cuidado das crianças não estão sendo supridas, segundo as famílias.

Autores indicam que a capacitação do ACS ainda é insuficiente em relação ao que lhes compete1919 Bachilli RG, Scavassa AJ, Spiri WC. A identidade do agente comunitário de saúde: uma abordagem fenomenológica. Cien Saude Colet 2008;13(1):51-60.. Além disso, os agentes têm citado a dificuldade na intersetorialidade e no agendamento de exames e consultas como barreiras no processo de trabalho2020 Espínola FDS, Costa ICC. Agentes comunitários de saúde do PACS e PSF: uma análise de sua vivência profissional. Revista de Odontologia da Universidade Cidade de São Paulo 2006;18(1):43-51., o que pode estar relacionado a possíveis motivos para o vínculo ser mais fraco com a USF e com os serviços especializados.

Ainda sobre os serviços especializados, as ESF devem estar qualificadas para fazer a avaliação de risco e identificar a necessidade de um atendimento especializado, mas alguns autores apontam que ainda existe dificuldade desses profissionais em perceber o que seriam as demandas passíveis de serem solucionadas na Atenção Básica a Saúde e aquelas que requerem intervenções especializadas2121 Figueiredo MD. Saúde Mental na Atenção Básica: Um Estudo Hermenêutico-Narrativo Sobre o Apoio Matricial na Rede SUS-Campinas (SP) [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2006.. Isso poderia explicar a inexistência de vínculos de algumas crianças do estudo com os serviços especializados, mas interroga a quantidade de elos que iniciaram e foram desfeitos, como no caso de A, F e G.

Embora estudos sobre o abandono de tratamento em saúde mental infantil sejam escassos, Gastaud e Nunes2222 Gastaud MB, Nunes MLT. Preditores de abandono de tratamento na psicoterapia psicanalítica de crianças. Rev Psiquiatr 2009;31(1):13-23. concordam que alguns fatores podem predizer esta situação, entre eles: status socioeconômico, fonte de encaminhamento, atraso na espera para atendimento, distância geográfica dos serviços, idade da criança, escolaridade da mãe, configuração parental, renda e tamanho da família. Ainda que não seja objetivo deste estudo analisá-los especificamente, a quantidade de abandono observado na Figura 1 sugere que pesquisas sejam feitas nesse sentido, de maneira que a Política de Saúde Mental tenha subsídios a fim de estabelecer estratégias e articulações que facilitem a adesão das famílias aos tratamentos em quaisquer níveis de atenção. Para isto, os profissionais da Atenção Básica a Saúde devem estar articulados aos serviços especializados, mapeando e solucionando possíveis entraves relacionados.

O setor da educação foi subdivido entre escolas e creches (Figura 1) porque este último funciona como um apoio forte às mães de B e F. Destacamos a importância dos profissionais desses setores na identificação de alterações do comportamento das crianças, podendo requisitar aos pais avaliação/tratamento adequado2323 Tiradentes CP, Souza GCXS, Neto HB, Santos HG, Santos KF, Sobral OJ. O Conhecimento do Educador com Relação à Saúde Mental Infantil no Âmbito Educacional. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas 2009;1(1)., sendo parceiros dos profissionais da saúde nesse processo. Como no caso de F, em que a diretora da creche solicitou avaliação ao perceber dificuldade da criança no relacionamento com as demais.

A equipe do projeto avaliou a rede disponível, as queixas e as demandas trazidas por familiares, professores, além dos percebidos pela própria equipe.

A partir das necessidades de cuidado, da complexidade de demandas e do reconhecimento da relação com as redes de apoio, foram identificados os problemas e algumas metas foram traçadas em conjunto com a família, equipe de profissionais de saúde (USF, NASF, serviços especializados) e equipamentos de ensino, para haver a divisão de responsabilidades e a cogestão no cuidado durante todo o processo.

Essa estratégia favoreceu a continuidade do cuidado, como se observa no relato abaixo, durante visita a residência de E:

Despedimos-nos falando sobre o encaminhamento da criança à equipe do NASF e à UNEDIN (Unidade de Educação Integrada) (Diário de campo de 22/12/2011).

A inclusão de outros setores como a educação, foi essencial na condução dos casos, visando à capacidade de resolução e considerando a criança no seu contexto e na sua integralidade.

[…] D faz uso de medicação anticonvulsivante pela manhã e à noite, que o deixa sonolento no horário da aula, de maneira que foi orientado a mudança de horário escolar. (Diário de campo de 13/09/2011 - Intervenção domicilar com D).

[...] A professora diz que está tentando articular a possibilidade da criança permanecer na sala de reforço à tarde, para que ele não ‘perca o ano’ totalmente, até ser possível trocá-lo do turno da manhã para a tarde. (Diário de campo de 07/10/2011 - Conversa com a professora itinerante de D).

Considerando a atenção básica como a porta de entrada preferencial dos indivíduos na rede de saúde e o dispositivo ordenador da rede de cuidado, as ações tiveram como característica principal a continuidade do cuidado, mesmo em casos de encaminhamento, de maneira a proporcionar o cuidado integral à família. Obedeceram ao principio da territorialização, com atuação pactuada com as diversas políticas de saúde para promoção de vínculo e acolhimento das famílias em suas necessidades2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília: MS; 2007..

As intervenções contribuíram na ampliação e fortalecimento da rede de cuidados, de modo que ocorreram incrementos, como a inclusão das equipes do NASF no apoio às crianças E e F, e com o serviço especializado de saúde para a criança B; reestabelecimentos, como a retomada da criança G com a escola e com o serviço especializado de saúde, e de A com este último. Além disso, foram identificadas mudanças positivas na intensidade dos vínculos, como na relação das crianças C, D, E, F e G com seu núcleo familiar, e ainda da criança D com a escola (Figura 2). Seguem trechos do diário de campo representando algumas dessas modificações:

Figura 2
Ecomapa das relações entre crianças com história de sofrimento psíquico e sua rede de cuidado após intervenções, Recife, 2012

Chegamos à casa de A , e sua mãe e avó se aproximaram, contando que A foi a sua primeira consulta com a psicóloga a qual tínhamos encaminhado anteriormente. A mãe de A diz que embora os ‘medos’ ainda existam, a criança está bem melhor. (Diário de campo de 09/11/2011).

A mãe de B refere já foi dado início às intervenções com a psicopedagoga e que a criança apresenta melhoras na leitura. (Diário de campo em 10/01/2012).

Durante a visita a G , a criança demonstra-se entusiasmada, elabora frases corretamente e responde aos comandos de maneira positiva. A criança está na escola e fazendo atendimento fonoaudiológico, segundo a vizinha. A mãe demonstra-se contente em ver a equipe, permaneceu durante toda a visita na sala, diferentemente das primeiras intervenções, nas quais ficava poucos minutos. (Diário de campo em 28/03/2012).

Entre os papeis do terapeuta ocupacional na Atenção Básica está a identificação de habilidades e a estimulação de potencialidades do sujeito, promovendo maior independência e autonomia às crianças em suas singularidades2525 Ferreira ME. Contribuições da abordagem canadense "prática de terapia ocupacional centrada no cliente" e dos autores da desinstitucionalização italiana para a terapia ocupacional em saúde mental. Rev. Ter. Ocup. 2002;13(3):127-134.. Percebeu-se que partir da estimulação das habilidades de cada criança, através de intervenções apoiadas na importância do brincar, incluindo treino de habilidades psicossociais e cognitivas, a expectativa das mães foi modificada por perceberem evoluções significativas nos filhos2626 Mann J. Nurturance or negligence: maternal psychology and behavioral preference among preterm twins. In: Barkow JH, organizador. The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture. London: Oxford University Press; 1992. p. 367-390., como a descoberta de novas habilidades. Isso pode ter feito com que a qualidade dos vínculos fosse melhorada e, por consequência, ocorressem modificações no relacionamento com outros componentes da rede, como a retomada ou o início de tratamentos especializados. O trecho do diário de campo durante atividade com E sugere mudança na percepção de sua família e vizinhos:

Na medida em que ele seguia de uma etapa para outra da atividade proposta, alguns vizinhos, a mãe e os irmãos se aproximavam e mostravam-se surpresos com a evolução de E [...] (Diário de campo de 22/12/2011).

Destaca-se, também, a melhora dos vínculos com os equipamentos da educação, por ser o meio nos quais as crianças experimentam o convívio social e o exercício de suas habilidades e cidadania por muitas horas no seu dia. A articulação entre os setores da educação e da saúde, representados pelos professores e pela equipe do projeto, respectivamente, possibilitou a escuta das percepções de cada ator, proporcionando a discussão dos casos e de como potencializar as habilidades de cada criança no processo de aprendizagem2323 Tiradentes CP, Souza GCXS, Neto HB, Santos HG, Santos KF, Sobral OJ. O Conhecimento do Educador com Relação à Saúde Mental Infantil no Âmbito Educacional. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas 2009;1(1).. Assim, foi possível facilitar a execução da função de estudante, como no caso de D, após a alteração do turno escolar. Com isso, reitera-se a importância da intersetorialidade na promoção da independência e autonomia dos sujeitos.

Considerações finais

A Atenção Básica a Saúde tem papel fundamental na promoção da qualidade de vida de crianças em sofrimento psíquico, podendo ordenar a rede de cuidados necessária, acolhendo e orientando os familiares quanto às condutas a serem tomadas.

A maioria das crianças com história de sofrimento psíquico participantes deste estudo apresentou vínculos estressantes com o núcleo familiar, e relações de maior intensidade e qualidade com os ACS e na Educação, com a creche, quando comparadas com os serviços especializados em saúde.

O terapeuta ocupacional que está habilitado a proporcionar independência e autonomia dos indivíduos, quando incluído no NASF, tem como uma de suas ações facilitar a relação entre a criança e os dispositivos de apoio. As intervenções realizadas tiveram como destaque o fortalecimento de vínculos familiares, e a articulação com serviços de saúde, escolas/creche, o que pode ter favorecido no processo de inclusão social dessas crianças. Espera-se que os resultados possam contribuir com a melhoria dos atendimentos prestados na área na saúde mental infantil na Atenção Básica à Saúde e, por consequência, com a construção de uma Política de Saúde Mental Infantojuvenil coerente a realidade de cada local.

Agradecimentos

A todos os pesquisadores participantes do projeto Terapia Ocupacional na Atenção Básica em Saúde Mental Infantojuvenil da UFPE, entre os anos de 2011 e 2012, do qual esta pesquisa foi fruto. Aos profissionais da Unidade de Saúde da Família Sítio Wanderley, em especial aos Agentes Comunitários de Saúde que apoiaram as ações. Às famílias participantes que abriram suas casas voluntariamente e apostaram na iniciativa da equipe.

Referências

  • 1
    Tanaka OY, Ribeiro EL. Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Cien Saude Colet 2009;14(2):477-486.
  • 2
    Couto MCV, Duarte CS, Delgado PGG. A saúde mental infantil na saúde pública brasileira: situação atual e desafios. Rev. Brasileira de Psiquiatria 2008;30(1):384-389.
  • 3
    Florey L. Disfunção psicossocial na infância e adolescência. In: Neistadt ME, Crepeau EB, organizadores. Terapia Ocupacional Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2002. p. 580-591.
  • 4
    Lambertucci MCF, Magalhães LC. Terapia Ocupacional e Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. In: Camargos Júnior W, organizador. Transtornos Invasivos do Desenvolvimento: 3° milênio Brasília: COORDE; 2002. p. 227-235.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília: MS; 2005.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas Brasília: OPAS; novembro de 2005.
  • 7
    Solymos GMB, Maricondi MA, Soares MLPV. A criança e a família: as potencialidades da abordagem em rede para o contexto da promoção da saúde. In: Chiesa AM, Fracolli EA, Zaboli E, organizadores. Promoção da saúde da criança: a experiência do projeto Nossas Crianças. São Paulo: MS Prado; 2009. p. 43-60.
  • 8
    Vicentin MCG. A Questão da Responsabilidade Penal Juvenil: Notas para uma Perspectiva Ético-Política. In: ABMP, Secretaria Especial de Direitos Humanos, organizadores. Justiça, Adolescente e Ato Infracional: Socio-educação e Responsabilização. São Paulo: Ilanud; 2006. p. 151-174.
  • 9
    Decreto n.° 7.508, de 28 de junho de 2011, regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun.
  • 10
    Goodman R, Neves dos Santos D, Nunes A, Miranda D, Fleitlich- Bilyk B, Almeida-Filho N. The Ilha da Maré study: a survey of child mental health problems in a predominantly African-Brazilian rural community Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2005;40(1):11-17.
  • 11
    Ribeiro KSQS. Redes sociais e educação popular: aproximação teórica e mudanças na prática de educação popular em saúde. In: V Colóquio Internacional Paulo Freire. Recife; 2005.
  • 12
    Thiollent M. Metodologia da Pesquisa-Ação São Paulo: Cortez; 2009.
  • 13
    Alves CCF, Silveira RP. Família e redes sociais no cuidado de pessoas com transtorno mental no acre: o contexto do território na desinstitucionalização. Rev. APS. 2011;14(4):454-463.
  • 14
    Najman JM, Aird R, Bor W, O'Callaghan M, Williams GM, Shuttlewood GJ. The generational transmission of socioeconomic inequalities in child cognitive development and emotional health. Soc Sci Med 2004;58(6):1147-1158.
  • 15
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas/Departamento de Atenção Básica. Coordenação Geral de Saúde Mental/Coordenação de Gestão da Atenção. Brasília: MS; 2003.
  • 16
    Organização Mundial da Saúde (OMS). Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Genebra: OMS; 2001.
  • 17
    Serapioni M. O papel da família e das redes primárias na reestruturação das políticas sociais. Cien Saude Colet 2005;10(Supl.):243-253.
  • 18
    Silva PR, Ribeiro GTF. ACS: Elo de ligação entre comunidade carente e a ESF. Vita et Sanitas 2009; n.03.
  • 19
    Bachilli RG, Scavassa AJ, Spiri WC. A identidade do agente comunitário de saúde: uma abordagem fenomenológica. Cien Saude Colet 2008;13(1):51-60.
  • 20
    Espínola FDS, Costa ICC. Agentes comunitários de saúde do PACS e PSF: uma análise de sua vivência profissional. Revista de Odontologia da Universidade Cidade de São Paulo 2006;18(1):43-51.
  • 21
    Figueiredo MD. Saúde Mental na Atenção Básica: Um Estudo Hermenêutico-Narrativo Sobre o Apoio Matricial na Rede SUS-Campinas (SP) [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2006.
  • 22
    Gastaud MB, Nunes MLT. Preditores de abandono de tratamento na psicoterapia psicanalítica de crianças. Rev Psiquiatr 2009;31(1):13-23.
  • 23
    Tiradentes CP, Souza GCXS, Neto HB, Santos HG, Santos KF, Sobral OJ. O Conhecimento do Educador com Relação à Saúde Mental Infantil no Âmbito Educacional. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas 2009;1(1).
  • 24
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários Brasília: MS; 2007.
  • 25
    Ferreira ME. Contribuições da abordagem canadense "prática de terapia ocupacional centrada no cliente" e dos autores da desinstitucionalização italiana para a terapia ocupacional em saúde mental. Rev. Ter. Ocup. 2002;13(3):127-134.
  • 26
    Mann J. Nurturance or negligence: maternal psychology and behavioral preference among preterm twins. In: Barkow JH, organizador. The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture. London: Oxford University Press; 1992. p. 367-390.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2014
  • Aceito
    28 Jun 2014
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br