Alteração no comportamento alimentar de trabalhadores de turnos de um frigorífico do sul do Brasil

Elisângela da Silva de Freitas Raquel Canuto Ruth Liane Henn Beatriz Anselmo Olinto Jamile Block Araldi Macagnan Marcos Pascoal Pattussi Fernanda Michelin Busnello Maria Teresa Anselmo Olinto Sobre os autores

Resumo

Investigou-se a relação entre trabalho em turnos e o comportamento alimentar dos trabalhadores de um frigorífico do sul do Brasil. Estudo transversal com 1.206 trabalhadores, entre 18 e 50 anos, de ambos os sexos. Um questionário padronizado foi utilizado para as informações demográficas, socioeconômicas, turno de trabalho e hábitos alimentares. O turno de trabalho foi categorizado em diurno e noturno, com base nos horários de início e fim do turno. O comportamento alimentar dos trabalhadores foi avaliado da seguinte forma: número e tipo de refeições realizadas nas 24 horas de um dia habitual, inadequação dos horários dessas refeições e escore alimentar de risco. Este foi construído com base na classificação de risco do consumo semanal de 13 itens alimentares. Após o ajuste para possíveis fatores de confusão, os trabalhadores do sexo masculino, de cor de pele não branca e mais jovens tiveram maior probabilidade de apresentar comportamento alimentar de risco. Trabalhadores noturnos realizavam maior número de refeições/dia e apresentaram maior inadequação nos horários das refeições do que os diurnos. O turno de trabalho noturno pode influenciar negativamente no comportamento alimentar de trabalhadores desse período.

Palavras-chave
Trabalho em turnos; Trabalho noturno; Comportamento alimentar; Saúde do trabalhador

Introdução

Um novo paradigma organizacional da produção vem se constituindo desde o início dos anos 70 do século XX no Ocidente. A produção industrial, até então organizada para a produção em massa, dentro do modelo taylorista, foi suplantada por um modelo mais flexível de produção, conhecido como modelo toyotista11. Revel D. Da cidadiania à civilidade. O sofrimento do trabalho. Rev Brasileira de Sociologia da Emoção 2002; 1(2):201-220.. Tal flexibilização do processo produtivo abrangeu tanto noções de polivalência no trabalho, descentralização e terceirização de serviços, quanto os horários, os turnos e a distribuição da duração do trabalho ao longo da vida22. Oliveira L, Carvalho H. A precarização do emprego na Europa. DADOS - Revista de Ciências Sociais 2008; 51(3):541-567..

Nesse sentido, no início do século XXI, o trabalho conheceu um processo de precarização, entendida tanto como instabilidade e condições de emprego quanto suas consequências objetivas e subjetivas sobre a vida dos indivíduos e grupos22. Oliveira L, Carvalho H. A precarização do emprego na Europa. DADOS - Revista de Ciências Sociais 2008; 51(3):541-567.. Dentro desse quadro estabelecido ao longo das últimas décadas, o ritmo desses novos processos econômicos tem exigido que as indústrias funcionem além dos horários diurnos e dos chamados dias úteis. Seus funcionários são distribuídos em turnos de trabalho, que se estendem durante as 24 horas do dia33. Fisher FM. As demandas da sociedade atual. In: Fisher FM, Moreno C, Rotenberg L, organizadores. Trabalho em turnos e noturno na sociedade 24 horas. São Paulo: Atheneu; 2004. p. 3-17.. Embora cada empresa tenha sua forma de organizar os horários e as rotinas de trabalho, atualmente, define-se trabalho em turnos (shift work) como aquele realizado fora dos horários habituais (entrada 8 ou 9 horas; saída 17 ou 18 horas) ou, ainda, o trabalho de forma contínua durante 24 horas através do revezamento de equipes44. Morshead DM. Stress and shiftwork. Occup Health Saf 2002; 71(4):36-38..

A literatura científica sugere que o trabalho em turnos possa influenciar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis incluindo: obesidade, doenças cardiovasculares, síndrome metabólica e câncer55. Thomas C, Power C. Shift work and risk factors for cardiovascular disease: a study at age 45 years in the 1958 British birth cohort. Eur J Epidemiol 2010; 25(5):305314.1010. Tenkanen L, Sjoblom T, Kalimo R, Alikoski T, Harma M. Shift work, occupation and coronary heart disease over 6 years of follow-up in the Helsinki Heart Study. Scand J Work Environ Health 1997; 23(4):257-265.. Entre os fatores comportamentais envolvidos no desenvolvimento desses agravos estão a falta da rotina de sono, o tabagismo, o consumo de bebidas estimulantes e as alterações no consumo alimentar desses trabalhadores1111. Costa G, Haus E, Stevens R. Shift work and cancer considerations on rationale, mechanisms, and epidemiology. Scand J Work Environ Health 2010; 36(2):163179.. Alguns estudos internacionais evidenciam que o trabalho em turnos pode afetar a qualidade nutricional da dieta e a frequência de consumo de determinados alimentos (lanches, doces, café)1212. Esquirol Y, Bongard V, Mabile L, Jonnier B, Soulat JM, Perret B. Shift work and metabolic syndrome: respective impacts of job strain, physical activity, and dietary rhythms. Chronobiol Int 2009; 26(3):544-559.1818. Sudo N, Ohtsuka R. Nutrient intake among female shift workers in a computer factory in Japan. Int J Food Sci Nutr 2001; 52(4):367-378.. Concomitantemente, o aumento do número de refeições, principalmente os lanches, ou mesmo a omissão de alguma das principais refeições têm sido apontado como fator de risco para diabetes melitus1919. Mekary RA, Giovannucci E, Willett WC, van Dam RM, Hu FB. Eating patterns and type 2 diabetes risk in men: breakfast omission, eating frequency, and snacking. Am J Clin Nutr 2012; 95(5):1182-1189..

Entretanto, no Brasil, estudos sobre o comportamento alimentar em trabalhadores de turnos são escassos2020. Assis MA, Nahas MV, Bellisle F, Kupek E. Meals, snacks and food choices in Brazilian shift workers with high energy expenditure. J Hum Nutr Diet 2003; 16(4):283289.,2121. Balieiro LC, Rossato LT, Waterhouse J, Paim SL, Mota MC, Crispim CA. Nutritional status and eating habits of bus drivers during the day and night. Chronobiol Int 2014; 31(10):1123-1129.. Além disso, o comportamento alimentar dos trabalhadores pode variar de acordo com o ramo de atividade em que ele está inserido, sendo necessários estudos em diferentes cenários para que se possa melhor compreender essa relação. Assim, o objetivo deste estudo foi investigar a influência do trabalho em turnos no comportamento alimentar dos trabalhadores de um frigorífico no sul do país.

Métodos

Foi realizado um estudo transversal com uma amostra de 1.206 trabalhadores de uma empresa frigorífica no sul do Brasil, com idade entre 18 e 50 anos, de ambos os sexos. A empresa foi escolhida por conveniência, e as entrevistas foram realizadas no domicílio dos trabalhadores, entre janeiro e maio de 2010. Este trabalho faz parte do estudo “Associação de turnos de trabalhos com excesso de peso e síndrome metabólica em trabalhadores de um frigorífico de frango no sul do Brasil”.

O tamanho da amostra foi calculado para o estudo maior (desfecho obesidade e exposição trabalho em turnos) com base nos seguintes pressupostos: nível de confiança de 95%; poder estatístico de 80%, razão de não expostos: expostos de 1:2 e razão de risco de 1,30. O tamanho foi acrescido em 10% para possíveis perdas ou recusas, sendo necessários 1.125 funcionários. Foram considerados expostos os trabalhadores dos turnos da noite; e não expostos, os trabalhadores do turno diurno. Gestantes e funcionários afastados da empresa por mais de 10 dias, durante o período da pesquisa, foram excluídos do estudo.

A empresa emprega 2.645 trabalhadores, homens e mulheres, que vivem no município onde fica a sede da empresa ou em outros seis municípios vizinhos. Por razões logísticas, como a distância e a área urbana, todos os funcionários que vivem no município sede e nos dois municípios mais próximos e que trabalham nos setores de evisceração, sala de cortes e termoprocessados foram incluídos no estudo (n = 1.270). Ao final, houve um total de 64 perdas e recusas, permanecendo 1.206 trabalhadores para as análises. Para este estudo foi realizado cálculo de poder amostral a posteriori para o desfecho hábito alimentar de risco, sendo o presente tamanho de amostra capaz de detectar diferenças de 30% entre expostos e não expostos, com poder de 80.

Na investigação das características demográficas, socioeconômicas, turno de trabalho e hábitos alimentares foi aplicado um questionário padronizado, pré-codificado e pré-testado.

As variáveis demográficas e socioeconômicas investigadas foram: idade, coletada em anos completos e categorizada em quintil; cor da pele, referida pelo entrevistado e categorizada em branco e não branco; estado civil, informado pelo entrevistado e categorizado em com companheiro e sem companheiro; escolaridade, coletada em anos completos de estudo e categorizada em: 1ª a 4ª séries, 5ª a 8ª séries, 2° grau incompleto, 2° grau completo ou mais; renda familiar per capita, pela informação da renda de cada componente da família no último mês e categorizada em quartis.

Os turnos de trabalho foram categorizados em diurno e noturno, sendo considerados expostos os trabalhadores que realizavam mais de 90% da jornada no turno da noite/madrugada (trabalhadores do turno noturno), ou seja, que iniciavam a jornada de trabalho às 17 horas, e não expostos os trabalhadores do turno diurno que iniciavam sua jornada às 6 horas da manhã. O horário de trabalho dessa indústria era de caracter fixo, totalizando uma carga horária de 44h/ semana, com um dia de folga no sábado ou no domingo.

O comportamento alimentar foi caracterizado da seguinte forma: número e tipo de refeições realizadas durante um dia habitual; inadequação dos horários das refeições feitas durante um dia habitual; construção de um escore de risco alimentar baseado no consumo habitual semanal.

Foram coletadas informações sobre as refeições e os lanches realizados pelos trabalhadores em um dia habitual (café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e lanche da noite) e o horário em que os mesmas eram realizados. A partir dessas informações, foi caracterizado o número de refeições/dia e a inadequação dos horários. Para determinar a inadequação dos horários, levou-se em consideração aspectos culturais e fisiológicos. Dessa forma, foi usada a seguinte classificação: café da manhã inadequado aquele fora do horário das 6h às 8h30; lanche da manhã inadequado, aquele fora do horário das 9h às 11h; almoço inadequado, aquele fora do horário das 11h às 14h; lanche da tarde inadequado, aquele fora do horário das 15h às 18h; jantar inadequado, aquele fora do horário das 18h às 21h; lanche da noite inadequado, aquele fora do horário das 20h às 24h.

O escore alimentar de risco foi construído com base na classificação de risco do consumo semanal habitual de 13 itens alimentares. A classificação do consumo alimentar como sendo de risco foi baseada nas recomendações do Guia Alimentar para População Brasileira2222. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição. Departamento de Atenção Básica. Secretaria de Assistência à Saúde. Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília: MS; 2006. (REF). A pontuação foi dada de acordo com a natureza de cada item alimentar, considerando-se a forma como foi coletada a informação sobre o seu consumo. Para os itens alimentares medidos em escala quantitativa foi considerado o tercil da sua distribuição e para os demais foi considerado o cumprimento da recomendação.

O consumo de feijão, arroz e mandioca, doces, refrigerantes, bolachas/biscoitos e açúcar foi coletado em “dias por semana” (variando de 0 a 7) e “vezes por dia” (variando de 1 a 4). Assim, cada item alimentar foi transformado em “número de vezes consumido por semana,” multiplicando-se o número de dias pelo número de vezes. Após, o número de vezes/semana foi divido em tercis.

Já o consumo de frutas e verduras/legumes foi coletado como frequência semanal de consumo (todos os dias; 5 a 6 dias/semanas; 3 a 4 dias/semana; 1 a 2 dias/semana; nunca/quase nunca) e número de porções ingeridas em um dia comum (1 porção; 2 porções; 3 porções e 4 porções ou mais). Assim, essas duas informações foram transformadas em número de porções de frutas e verduras/legumes consumidos por semana, da seguinte forma: primeiro, as categorias de frequência foram transformadas em variável contínua (todos os dias = 7; 5 a 6 dias = 5,5; 3 a 4 dias = 3,5; 1 a 2 dias = 1,5; nunca/quase nunca = 0) e em seguida multiplicadas pelo número de porções. Após, o número de porções/semana foi divido em tercis.

Para os itens alimentares considerados como marcadores de hábito alimentar saudável foi dada menor pontuação (1) para maior ingestão (T3), pontuação média (2) à ingestão moderada (T2) e maior pontuação (3) para a menor ingestão (T1). Para os itens alimentares considerados como marcadores de risco, foi atribuída maior pontuação (3) para maior ingestão (T3), pontuação média (2) à ingestão moderada (T2) e menor pontuação (1) para a menor ingestão (T1).

Para os demais itens alimentares – descritos a seguir, as categorias de resposta foram pontuadas conforme o grau de cumprimento da recomendação de consumo, isto é: maior pontuação (3) foi atribuída ao não cumprimento; pontuação média (2) para o cumprimento parcial; e menor pontuação (1) para o cumprimento da recomendação. Os itens com as opções de resposta e respectivas pontuações foram: consumo de carne vermelha – tira a gordura (1), come com a gordura (3), não come carne vermelha (1); consumo de frango – tira a pele (1), come com a pele (3), não come frango (1); tipo de gordura utilizada para o preparo de alimentos – banha animal (3), óleo de soja (1), óleo de girassol (1), milho (1), algodão (1), canola (1), margarina (3), azeite de oliva (1), não sei (3); consumo de frituras/embutidos – todos os dias (3), 5 a 6 dias/semana (3), 3 a 4 dias/semana (3), 1 a 2 dias/semana (2), quase nunca/nunca (1).

Dessa forma, o escore total foi obtido somando-se o número de pontos atribuídos a cada um dos 13 itens alimentares. A pontuação mínima foi de 13 pontos, determinando escore alimentar de menor risco; e a pontuação máxima foi de 39 pontos, indicando escore alimentar de maior risco. O somatório da pontuação foi dividido em tercis, sendo considerados como escore em “risco alimentar” os trabalhadores pertencentes ao tercil 3 (>=29 pontos) e como categoria de referência os indivíduos pertencentes aos tercis 1 e 2.

A entrada dos dados foi realizada no Programa Epi Info 6.0 em duplicata, e a análise estatística dos dados no programa Stata versão 11. As variáveis foram descritas por meio das frequencias absolutas e relativas, no teste de associação entre as variáveiss sociodemográficas e o turno de trabalho foi empregado o teste qui-quadrado de heterogeniedade.

As estimativas das razões de prevalência brutas e ajustadas e respectivos intervalos de confiança de 95% foram calculados pela regressão de Poisson com variância robusta – teste Wald para tendência linear foi empregado para testar tendências lineares de associação, nos demais casos, foi empregado teste Wald para heterogeneidade. As variáveis com nível de significância de p ≤ 0,20 na análise bruta foram consideradas um fator de confusão em potencial e levadas para o modelo multivariável. A análise multivariável foi realizada seguindo modelo conceitual hierárquico, no qual as variáveis foram agrupadas desde os fatores mais distais até os mais proximais associados com o escore alimentar. Foram mantidas no nível subsequente de análise apenas as variáveis com nível de significância de p ≤ 0,20. Assim, as variáveis demográficas (sexo, idade, cor de pele e estado civil) foram ajustadas entre si (1° nível); as variáveis socioeconômicas (escolaridade e renda) e turno de trabalho foram ajustadas para as demográficas e entre si (2° nível). Foram considerados como fatores associados aqueles que tiveram nível de significância menor ou igual a 5%.

Este projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisada Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, Brasil, conforme recomendado pela Resolução n° 196/962323. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. Diário Oficial da União 1996; 16 out..

Resultados

A amostra final constituiu-se de trabalhadores com idade média de 30,5 anos (DP: ± 8,7). A Tabela 1 apresenta as características demográficas, socioeconômicas e o turno de trabalho da amostra incluída no estudo. A maioria da amostra foi constituída por mulheres (65%), com companheiro (67%) e que apresentavam 2° grau completo de escolaridade (48%). Em relação ao turno de trabalho, 66% dos trabalhadores exerciam suas atividades à noite (dado não apresentado na Tabela). Ainda na Tabela 1, pode-se observar que as associações entre variáveis sociodemográficas e trabalho noturno não foram significativas.

Tabela 1
Distribuição da amostra e prevalência (IC 95%) do trabalho noturno de acordo com as características demográficas, socioeconômicas entre os trabalhadores de um frigorífico no sul do Brasil (n = 1.206)

A Tabela 2 mostra a análise bruta e ajustada das características demográficas, socioeconômicas e de turnos com o escore de risco alimentar. Observa-se que, após o ajuste no modelo multivariável, as mulheres tiveram uma probabilidade 18% menor de apresentar consumo alimentar de risco. Os trabalhadores não brancos tiveram uma probabilidade 33% menor de apresentar o desfecho. A idade apresentou relação inversa com o risco alimentar, sendo que indivíduos aos 40 anos ou mais tiveram uma probabilidade cerca de 50% menor quando comparados com os mais jovens (18 - 22 anos). A escolaridade perdeu a significância estatística após o ajuste no modelo multivariável.

Tabela 2
Análise bruta e ajustada para risco alimentar de acordo com as características demográficas, socioeconômicas e laborais dos trabalhadores em turnos de um frigorífico no sul do Brasil (n = 1.206)

O Gráfico 1 mostra o número e o tipo de refeições realizadas ao longo do dia de acordo com o turno de trabalho. Observa-se um maior percentual de trabalhadores noturnos fazendo três ou mais refeições ao dia, quando comparados aos diurnos. Ao avaliar quais refeições eram realizadas, verificou-se uma maior prevalência de consumo do lanche da tarde e almoço entre os trabalhadores noturnos. Por outro lado, os trabalhadores diurnos apresentaram uma maior prevalência de realização do café da manhã e do lanche da noite.

Gráfico 1
Prevalência do número e tipo de refeições realizadas ao longo do dia de acordo com o turno de trabalho, em trabalhadores de um frigorífico no sul do Brasil (n = 1.206)

O Gráfico 2 apresenta a prevalência de inadequação do horário das três principais refeições. Enquanto os trabalhadores de turno diurno apresentaram 74% de inadequação para o horário do jantar, a quase totalidade dos noturnos apresentaram inadequação no horário do café da manhã.

Gráfico 2
Prevalências de inadequação nos horários das refeições*** realizadas ao longo do dia de acordo com o turno de trabalho em trabalhadores de um frigorífico do Sul do Brasil (n = 1206)

Discussão

O presente estudo investigou a relação do trabalho em turnos com comportamentos alimentares de trabalhadores de um frigorífico no sul do país. O turno de trabalho mostrou-se associado à frequência, tipo e horários das refeições realizadas. Além disso, trabalhadores do sexo masculino, de cor de pele não branca e mais jovens mostraram maior probabilidade de apresentar consumo alimentar de risco.

Os trabalhadores noturnos realizam, habitualmente, um maior número de refeições por dia do que os trabalhadores diurnos. Esse resultado pode ter sido encontrado devido ao fato desses trabalhadores ficarem mais tempo acordados, do que aqueles de turnos diurnos, e realizarem um maior consumo de lanches entre as principais refeições. Os trabalhadores noturnos, também, apresentam menor prevalência do consumo diário do café da manhã, provavelmente por muitos deles estarem dormindo no horário da realização dessa refeição.

Além disso, quando investigados os horários nos quais as refeições eram realizadas, percebesse sua inadequação, sob o ponto de vista fisiológico e cultural: apenas metade dos trabalhadores noturnos relataram consumir habitualmente o café da manhã, e, entre aqueles que relataram o consumo, houve quase 100% de inadequação no horário.

Ainda, a empresa oferece pelo menos uma refeição completa diariamente aos trabalhadores e o horário em que essa refeição é oferecida também é inadequado. Para os trabalhadores que iniciam a jornada de trabalho no início da madrugada, a refeição é oferecida às 9 horas e 30 minutos, para aqueles que começam no final da manhã às 15 horas, e às 24 horas para aqueles que iniciam no período da tarde.

Tanto o aumento do número refeições realizadas durante o dia, quanto a omissão ou a inadequação do horário do café da manhã, podem ser importantes fatores de risco para a saúde desses trabalhadores. Um estudo de coorte, que incluiu 29.206 profissionais de saúde americanos do sexo masculino, demonstrou que a omissão do café da manhã foi associada com um risco aumentado de diabetes tipo 2 em homens, mesmo após o ajuste para o IMC. O mesmo estudo encontrou associação direta entre o consumo de lanches entre as refeições e o risco diabetes tipo 2, entretanto, mediado pelo IMC1919. Mekary RA, Giovannucci E, Willett WC, van Dam RM, Hu FB. Eating patterns and type 2 diabetes risk in men: breakfast omission, eating frequency, and snacking. Am J Clin Nutr 2012; 95(5):1182-1189..

Além disso, sabe-se que o ritmo circadiano nos seres humanos é regulado por marcadores centrais (sistema nervoso central) e periféricos (fígado, células musculares e adiposas e pâncreas), tais marcadores imprimem comportamento cíclico nas 24 horas do dia tanto em processos metabólicos (gliconeogênese, síntese de colesterol, secreção insulínica), como em comportamento (sono e alimentação)2424. Bass J, Takahashi JS. Circadian integration of metabolism and energetics. Science 2010; 330(6009):13491354.. Ou seja, o horário escolhido para realização das refeições não é apenas determinado socialmente, mas também, um processo regulado geneticamente para o melhor aproveitamento metabólico dos alimentos. Assim, entende-se que os trabalhadores de turnos vivenciam a disrupção do ritmo circadiano, com uma consequente impossibilidade da realização das refeições nos horários “fisiologicamente programados”. As possíveis consequências desta disrupção são distúrbios metabólicos e até alterações no apetite2525. Kaneko SY, Maeda T, Sasaki A, Sato A, Tanaka K, Kobayashi T, Tanaka M, Fukushima T. Changes in health habits of female shift workers. J Occup Health 2004; 46(3):192-198..

Os resultados sobre o padrão do consumo de refeições encontrados neste estudo corroboram outros achados da literatura. Estudos apontam que o turno de trabalho afeta mais o número das refeições realizadas e seus horários do que o conteúdo global da dieta1414. Lennernäs M, Hambraeus L, Akerstedt T. Shift related dietary intake in day and shift workers. Appetite 1995; 25(3):253-265.,2525. Kaneko SY, Maeda T, Sasaki A, Sato A, Tanaka K, Kobayashi T, Tanaka M, Fukushima T. Changes in health habits of female shift workers. J Occup Health 2004; 46(3):192-198.2727. Assis MA, Kupek E, Nahas MV, Bellisle F. Food intake and circadian rhythms in shift workers with a high workload. Appetite 2003; 40(2):175-183.. Um estudo francês investigou o número e o tipo de refeições realizadas entre trabalhadores, encontrando uma média de cinco ou mais refeições por dia entre os trabalhadores noturnos, sendo maior que a média dos trabalhadores do dia. No entanto, os trabalhadores noturnos realizavam menos café da manhã e almoço do que os trabalhadores diurnos, inversamente, realizavam mais lanches intermediários1212. Esquirol Y, Bongard V, Mabile L, Jonnier B, Soulat JM, Perret B. Shift work and metabolic syndrome: respective impacts of job strain, physical activity, and dietary rhythms. Chronobiol Int 2009; 26(3):544-559.. O estudo de Sudo e Ohtsuka1818. Sudo N, Ohtsuka R. Nutrient intake among female shift workers in a computer factory in Japan. Int J Food Sci Nutr 2001; 52(4):367-378. também encontrou uma baixa adesão dos trabalhadores em turnos à realização do café da manhã, no qual mais da metade deles relataram não realizar essa refeição.

Já as explicações para as alterações na frequência e nos horários da realização das refeições encontradas entre os trabalhadores em turnos são controversas. Enquanto, Waterhouse et al.2828. Waterhouse J, Buckley P, Edwards B, Reilly T. Measurement of, and some reasons for, differences in eating habits between night and day workers. Chronobiol Int 2003; 20(6):1075-1092. demonstraram que tais modificações foram influenciadas mais pelo hábito e pela disponibilidade de tempo do que por alterações no apetite, Crispim et al.2929. Crispim CA, Waterhouse J, Damaso AR, Zimberg IZ, Padilha HG, Oyama LM, Tufik S, de Mello MT. Hormonal appetite control is altered by shift work: a preliminary study. Metabolism 2001; 60(12):1726-1735., através de um estudo experimental, apontaram que o apetite dos trabalhadores do turno noturno era maior do que o dos trabalhadores do turno diurno.

Neste estudo, as mulheres tiveram uma menor probabilidade de apresentar risco alimentar do que os homens – observou-se ainda que o aumento da idade potencializava essa tendência. Um estudo realizado com trabalhadores noruegueses confirmou a tendência feminina a uma alimentação de melhor qualidade, que inclui frutas e verduras diariamente3030. Raberg Kjollesdal MK, Holmboe-Ottesen G, Wandel M. Associations between food patterns, socioeconomic position and working situation among adult, working women and men in Oslo. Eur J Clin Nutr 2010; 64(10):1150-1157.. No Japão, Kaneko et al.2525. Kaneko SY, Maeda T, Sasaki A, Sato A, Tanaka K, Kobayashi T, Tanaka M, Fukushima T. Changes in health habits of female shift workers. J Occup Health 2004; 46(3):192-198., por meio de um escore, demonstraram uma maior adesão a hábitos saudáveis entre as mulheres. Outro estudo apontou uma baixa adesão de alimentos saudáveis, como frutas e verduras, entre os homens. Porém, após análise multivariável, a proporção de trabalhadores que consomem menos de uma porção desses alimentos ao dia foi maior entre os mais jovens, independentemente do sexo3131. Barros MV, Nahas MV. Health risk behaviors, health status self-assessment and stress perception among industrial workers. Rev Saude Publica 2001; 35(6):554563.. Assim como no presente estudo, cabe salientar que Olinto et al.3232. Olinto MT, Willett WC, Gigante DP, Victora CG. Sociodemographic and lifestyle characteristics in relation to dietary patterns among young Brazilian adults. Public Health Nutr 2011; 14(1):150-159. já haviam evidenciado a tendência de comportamentos alimentares mais saudáveis em mulheres e em pessoas de cor da pele não branca, em uma coorte com adultos jovens no sul do Brasil.

Quanto à idade, nossos achados mostraram uma relação inversa com risco alimentar. Essa tendência tem sido apontada em alguns estudos populacionais3333. Rombaldi AJ, Silva MC, Neutzling MB, Azevedo MR, Hallal PC. Fatores associados ao consumo de dietas ricas em gordura em adultos de uma cidade no sul do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1513-1521.3535. Estaquio C, Druesne-Pecollo N, Latino-Martel P, Dauchet L, Hercberg S, Bertrais S. Socioeconomic differences in fruit and vegetable consumption among middle-aged French adults: adherence to the 5 A Day recommendation. J Am Diet Assoc 2008; 108(12):2021-2030., embora alguns com grupos específicos, no caso de amostras apenas com mulheres3636. Alves AL, Olinto MT, Costa JS, Bairros FS, Balbinotti MA. Dietary patterns of adult women living in an urban area of Southern Brazil. Rev Saude Publica 2006; 40(5):865-873.. Na Europa, Estaquio et al.3535. Estaquio C, Druesne-Pecollo N, Latino-Martel P, Dauchet L, Hercberg S, Bertrais S. Socioeconomic differences in fruit and vegetable consumption among middle-aged French adults: adherence to the 5 A Day recommendation. J Am Diet Assoc 2008; 108(12):2021-2030. encontraram uma maior adesão a alimentos saudáveis em indivíduos mais velhos. No Brasil, foram encontrados resultados similares, os quais apontam que possuir mais idade mostrou-se diretamente associado com maior consumo de frutas, legumes e verduras3333. Rombaldi AJ, Silva MC, Neutzling MB, Azevedo MR, Hallal PC. Fatores associados ao consumo de dietas ricas em gordura em adultos de uma cidade no sul do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1513-1521.3535. Estaquio C, Druesne-Pecollo N, Latino-Martel P, Dauchet L, Hercberg S, Bertrais S. Socioeconomic differences in fruit and vegetable consumption among middle-aged French adults: adherence to the 5 A Day recommendation. J Am Diet Assoc 2008; 108(12):2021-2030.. Em contrapartida, Morikawa et al.1717. Morikawa Y, Miura K, Sasaki S, Yoshita K, Yoneyama S, Sakurai M, Ishizaki M, Kido T, Naruse Y, Suwazono Y, Higashiyama M, Nakagawa H. Evaluation of the effects of shift work on nutrient intake: a cross-sectional study. J Occup Health 2008; 50(3):270-278. demonstraram que os trabalhadores mais jovens, com idade entre 20 e 29 anos, tiveram um consumo energético total menor do que os trabalhadores mais velhos (≥ 30 anos).

Observamos também na literatura estudos sugerindo que indivíduos com maior nível de escolaridade tendem a ter hábitos alimentares mais saudáveis, como o maior consumo de frutas e legumes e um menor consumo de alimentos industrializados3030. Raberg Kjollesdal MK, Holmboe-Ottesen G, Wandel M. Associations between food patterns, socioeconomic position and working situation among adult, working women and men in Oslo. Eur J Clin Nutr 2010; 64(10):1150-1157.,3636. Alves AL, Olinto MT, Costa JS, Bairros FS, Balbinotti MA. Dietary patterns of adult women living in an urban area of Southern Brazil. Rev Saude Publica 2006; 40(5):865-873.3838. Martin AR, Nieto JM, Ruiz JP, Jimenez LE. Overweight and obesity: the role of education, employment and income in Spanish adults. Appetite 2008; 51(2):266-272.. Entretanto, em nosso estudo não foi possível observar uma relação entre a escolaridade e risco alimentar.

Por fim, o fato de que durante o horário de trabalho pelo menos uma das principais refeições são realizadas na empresa pode ter contribuído na dificuldade de se demonstrar diferenças no comportamento alimentar de risco entre os trabalhadores noturnos e diurnos. Dessa forma, pelo menos uma das refeições do dia é semelhante para todos os funcionários. Raulio et al.3939. Raulio S, Roos E, Mukala K, Prattala R. Can working conditions explain differences in eating patterns during working hours? Public Health Nutr 2008; 11(3):258270. concluíram, por meio de seu estudo, que locais para refeições no ambiente de trabalho podem contribuir no bem-estar e educação nutricional dos funcionários, acarretando importantes efeitos na saúde dos trabalhadores.

Ainda, cabe destacar que, além de serem escassos no Brasil estudos que investiguem as consequências do turno de trabalho no comportamento alimentar, este é o primeiro estudo com essa temática entre trabalhadores de frigoríficos. O Brasil está entre os quatro principais países do mundo na produção e exportação de carnes de suínos e frango. Dessa maneira, há também a geração de empregos no país, estimados em 500 mil para abate de frangos e suínos. Ao mesmo tempo, a mídia e o governo vêm denunciando o grande adoecimento fisíco e mental dos trabalhadores desse setor, causado, principalmente, pela combinação de movimentos repetitivos a exaustão com um ambiente de trabalho com baixas temperaturas4040. Heck FM. Uma geografia da degradação do trabalho: o adoecimento dos trabalhadores em frigoríficos. Rev Percurso – NEMO 2013; 5(1):3-31.. Essas duas características podem acarretar em uma maior demanda energética, justificando a importância de estudos sobre o consumo alimentar desses trabalhadores. Além disso, o trabalho em turnos é um fator de risco ocupacional negligênciado pelos estudos conduzidos com essas população4141. Vasconcellos MC, Pignatti MG, Pignati WA. Emprego e acidentes de trabalho na indústria frigorífica em áreas de expansão do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saude Soc. 2009; 18(4):662-672., sendo seus efeitos à saúde e à vida desses trabalhadores quase desconhecidos no Brasil.

Assim, nossos achados devem ser interpretados à luz de algumas limitações. Sabe-se que o erro recordatório pode estar presente em estudos que coletam informações restrospectivas, bem como a presença do viés de memória. Salienta-se, também, que não foi objetivo deste estudo a avaliação de consumo de nutrientes, e sim a construção de um escore a partir de alguns itens alimentares marcadores do comportamento desses trabalhadores. Nesse sentido, os escores têm sido utilizados para caracterizar hábitos alimentares, pois constituem uma medida-resumo das frequências de alguns alimentos. Por meio do escore é possível agrupar os indivíduos em segmentos semelhantes e classificá-los conforme critério de risco da dieta4242. Franken DL, Olinto MT, Paniz VM, Henn RL, Junqueira LD, da Silveira FG, Roman VR, Manenti ER, Dias da Costa JS. Behavioral changes after cardiovascular events: a cohort study. Int J Cardiol 2012; 161(2):115117.,4343. Azevedo ECC, Dias FMRS, Diniz AS, Cabral PC. Consumo alimentar de risco e proteção para as doenças crônicas não transmissíveis e sua associação com a gordura corporal: um estudo com funcionários da área de saúde de uma universidade pública de Recife (PE), Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1613-1622..

Este trabalho evidenciou a relação das características demográficas dos trabalhadores (sexo, idade e cor da pele) com o comportamento alimentar de risco, bem como demonstrou diferenças nos padrões de refeições conforme o turno de trabalho. Assim, nossos achados sugerem a necessidade de que sejam realizados estudos com trabalhadores de outros ramos, de forma que possibilitem o aprofundamento quanto aos comportamentos alimentares em trabalhadores, possibilitando assim uma maior reflexão sobre as relações entre as mudanças contemporâneas do trabalho, dentre elas a precarização dos hábitos de vida.

Agradecimentos

Ao CNPq e Capes pelo financiamento e pelas bolsas de produtividade em pesquisa de MTA Olinto e MP Pattusi.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2014
  • Revisado
    23 Dez 2014
  • Aceito
    25 Dez 2014
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