O livro Processos de Alcoolização Indígena no Brasil: perspectivas plurais apresenta múltiplos olhares acerca da complexa problemática implicada na questão dos processos de alcoolização em diferentes povos indígenas brasileiros. De forma inovadora, amplia a análise de múltiplos aspectos, a partir de refelxão e de pesquisa interdisciplinar em contextos étnicos específicos, nos quais as condições culturais e as instituições sociais distintas que os caracterizam implicam em variadas formas de uso de álcool. Fornece um panorama com foco nos grupos sociais indígenas e não em indivíduos, não adotando a categoria de ‘dependência do álcool’, mas sim, a de ‘processos de alcoolização’. Há um questionamento sobre determinados conceitos que são muitas vezes naturalizados pelos enfoques: biomédico, centrado de forma reducionista nos danos associados ao álcool; epidemiológico, que possui limitações devido ao sub-registro da utilização de álcool em populações; e, socioantropológico, que, em sua maioria, não foca na questão patológica. A necessidade de uma maior compreensão, através de novas abordagens complementares, é apontada no prefácio do livro uma vez que, “o álcool é, em determinados contextos, basicamente um instrumento, um meio, aparentemente imprescindível, para a concretização de relações e rituais sociais (…) [podendo cumprir] funções psicotrópicas, terapêuticas, alimentares, de sociabilidade, de coesão e integração cultural, de identificação e pertencimento social, de transgressão ou de ‘válvula de escape’, tomando parte em rituais religiosos, profissionais e/ou familiares”. A refelxão sobre os aspectos de positividade e de negatividade relacionadas aos processos de alcoolização indígena é fundamental, inclusive pelo o fato de que o álcool pode, em muitas situações, “funcionar como instrumento de controle social, de exploração econômica, de justificativas racistas, ou de legitimador de violências intrafamiliares”. Os treze capítulos do livro evidenciam o quanto significativa é a temática. O capítulo 1 – “O Abuso de Álcool entre os Povos Indígenas no Brasil: uma avaliação comparativa”, revisão acerca de como a literatura aborda o uso de álcool, principalmente no enfoque antropológico. No capítulo 2, “Cauinagens e Bebedeira: os índios e o álcool na história do Brasil”, é evidenciado o papel da introdução de bebidas alcoólicas destiladas junto aos povos indígenas brasileiros no processo de colonização, “instância desagregadora das sociedades nativas”, assim como “a intemperança etílica, entendida não como uma doença, mas como ‘imoralidade’, é parte central dos discursos e imagens construídos pelos europeus a respeito dos índios”. “Mansidão de Fogo: aspectos etnopsicológicos do comportamento alcoólico entre os Bororo”, capítulo 3, apresenta aspectos históricos do processo de pacificação dos Bororo. Aponta a possibilidade de correlação entre o uso de álcool e o processo de ‘amansamento’ da personalidade, descrita no passado como agressiva, ligado ao fornecimento de bebidas alcoólicas e de outros suprimentos, implicando uma dependência do branco. (…) “outra função do álcool para a personalidade bororo atual: por meio dele, recupera-se a força perdida, a agressividade para a defesa (ou a vingança)”. O capítulo 4, “Quando, como e o que Bebe: o processo de alcoolização entre os povos indígenas do Alto Rio Negro, Brasil”, a partir de pesquisa em três aldeias, discute o início precoce na atualidade do consumo de cachaça e o fato da mesma ser “uma das moedas de troca de trabalho indígena por produtos manufaturados”. Há um certo prestígio daqueles que são assalariados e estes, “são pressionados a partilhá-la com os demais, demonstrando generosidade e inserindo o consumo de bebida alcoólica no grande conjunto de relações de reciprocidade que fundamentam o modo de viver indígena”. Aponta o aspecto de violência ligado ao uso de álcool, igualmente implicada com as mudanças progressivas ocorridas na região com ênfase nas novas formas de prestígio, de socialização e da estrutura familiar. Em “Modos de Vida e Modos de Beber de Jovens Indígenas em um Contexto de Transformação”, capítulo 5, fruto de pesquisa etnográfica na região do Alto Rio Negro, na cidade de Iauaretê, analisa as mudanças nas formas de organização social e nas condições de vida. No que se refere ao estilo de vida, foi alocado o “consumo de bebidas alcoólicas, tanto nos aspectos que se referem ao processo de alcoolização, quanto aos problemas juvenis relacionados”. O capítulo 6, “Consumo de Bebidas Alcoólicas entre os Povos Indígenas do Uaçá”, descreve de forma densa os múltiplos significados e a ambivalência da “noção de excesso para o consumo de bebidas alcoólicas entre os povos indígenas de Uaçá (…) [permitindo] um diálogo com as noções biomédicas acerca do que vem a ser um consumo normal, abusivo e patológico de bebidas alcoólicas”. “Tornar uma Fuga: metáforas sobre o contexto social e econômico da alcoolização pankararu”, o capítulo 7, mostra a aproximação identitária entre “os povos indígenas contemporâneos do Nordeste brasileiro e a condição camponesa (…) foi tecida uma trama de longa duração envolvendo extermínio, escravidão, aldeamentos, casamentos interétnicos e caldeamento cultural”. A expressão “tomar um fuga” é analisada em três sentidos metafóricos: a relação entre o modo tradicional de consumo de bebidas alcoólicas como repouso, ou “momento de não produção econômica (…) nos fins de semana ou em ocasiões especiais; os processo migratórios para o sul do Brasil, visando fugir da pobreza, “do sofrimento propiciado pelas doenças,entre elas o alcoolismo-doença e a própria morte”; e, a fixação de pontos de venda clandestina de bebidas alcoólicas como uma estratégia ilegal de atividade econômica, o que representa ‘fugir’ da ordem legal”. O capítulo 8, “Os Índios Maxacali: a propósito do consumo de bebidas de alto teor alcoólico”, é revisão de literatura que discute tanto as hipóteses: da utilização de bebidas no processo colonizatório como estratégia para expropriação das terras indígenas e da possibilidade de apropriação ativa de bebidas alcoólicas pelos povos indígenas, podendo exercer “algum tipo de controle simbólico sobre elas”. No caso do povo Maxacali “tais bebidas possibilitam a produção de inimizades, crimes. (…) [Simultaneamente criam a possibilidade] de um encontro com o mundo idealizado por eles (…)”. No capítulo 9, “Controle Social como Autoatenção: estratégias kaingang diante do abuso de bebidas alcoólicas”, estudo etnográfico realizado em duas aldeias da Terra Indígena Xapecó reflete sobre as estratégias de práticas de autoautenção e de como a população se posiciona e exerce o controle social quanto ao uso e às atitudes considerados inadequadas no que se refere à ingesta de bebidas alcoólicas, sendo que “o controle mais efetivo sobre as substâncias associa-se a aspectos da política local e a existência de grupos ideológicos internos”. O capítulo 10, “Da Prevenção de Doenças à Promoção da Saúde: reflexões a partir da questão do uso de bebidas alcoólicas por indígenas”, analisa os limites das estratégias de prevenção pelos profissionais de saúde junto aos povos indígenas quanto ao uso do álcool e se debruça sobre “as possibilidades de adequação das estratégias de promoção da saúde ao contexto ameríndio”. Alguns aspectos elencados essenciais seriam: o do reconhecimento da influência do uso problemático do álcool, com intervenções nos aspectos de contato interétnico, envolvendo a “comunidade na qual se pretende intervir em todas as etapas das ações, (…) o estabelecimento de imprescindíveis relações dialógicas com os indígenas [Sendo que] (…) as estratégias de enfrentamento do problema devem ser construídas juntamente com estas populações”. O capítulo 11, “As Boas Palavras Mbyá-Guarani como Caminho para a Redução do Uso de Bebidas Alcoólicas”, descreve o processo de discussão efetivado pelos líderes espirituais Mbyá-Guarani, entre os anos 2000 e 2006 no Rio Grande do Sul, sendo através das ‘boas palavras’ ensejadas por estas lideranças. “O caminho da intervenção sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas mobilizou as práticas de autoatenção à saúde”. “Problemas Relacionados ao Uso de Álcool entre os Indígenas Guarani no Estado do Rio de Janeiro: uma experiência de abordagem terapêutica integrada”, no capítulo 12, relata o processo de construção de estratégias de enfrentamento do problema de uso de álcool junto à população desde o ano de 1991, sendo que o trabalho que vinha sendo conduzido não teve continuidade. Contava com profissionais dos serviços de saúde, além de forte protagonismo indígena. Dentre os motivo que levaram à descontinuidade do trabalho é apontada a dificuldade de transformar “iniciativas piloto em políticas públicas permanentes”. O último capítulo, “Educação Escolar Indígena e a Bebida Alcoólica: reflexões sobre o contexto do Triângulo Tukano, Alto Rio Negro”, discute a compatibilidade entre as práticas educativas escolares na região, concluindo que nas “escolas indígenas do Alto Rio Negro, consumo excessivo de bebidas alcoólicas deverá ser enfrentado por meio de políticas públicas”. O livro organizado por Maximiliano Loiola Ponte de Souza vem suprir uma lacuna ao trazer aos leitores uma ampliação epistemológica acerca da complexidade implicada e a necessária articulação de saberes e perspectivas teóricas e metodológicas para a apreensão da multiplicidade de expressões e significados dos processos de alcoolização indígena, positivos e negativos. A categoria “processos de alcoolização” pode ser vista, inclusive, como possibilitadora de que esta multiplicidade seja passível de análises integradoras que possam, quiçá, subsidiar intervenções nas área da saúde e dos direitos humanos, dentre outras.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan 2016