O tema da saúde no sistema prisional começa a despontar como preocupação dos pesquisadores no campo da Saúde Coletiva, mostrando o reconhecimento da diversidade, contrastando nestes tempos de fragilidade democrática, com retrocessos nas conquistas sociais, inclusive sanitárias, no Brasil. Assim é que a obra organizada por Maria Cecília de Souza Minayo e Patrícia Constantino é bem-vinda, suprindo lacuna de publicações e proporcionando visibilidade às condições de vida e saúde da população privada de liberdade.
Trata-se de leitura que proporciona substancial introdução ao tema, fruto de pesquisa desenvolvida pelo Departamento de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli (Claves) em parceria com o Departamento de Direito em Saúde (DIS), ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e o Ministério Público do Rio de Janeiro, cujo trabalho conjunto se mostra a partir da organização da coletânea composta de cinco capítulos e as conclusões, mas sem distinção da autoria.
Os capítulos têm certa autonomia e, no seu conjunto, visam compreender as condições de vida do preso em regime fechado no estado do Rio de Janeiro, sendo a preocupação com a proposta ressocializadora da prisão, comprometida diante da precariedade evidenciada e reforçada pela realidade encontrada, um ponto que transversaliza a obra.
São contradições nos discursos e práticas da instituição prisão ter a proposta de reeducar, ressocializar, regenerar, cuidar, enquanto que, ao mesmo tempo, servir para punir, vigiar, castigar, controlar e disciplinar outros seres humanos11. Barcinski MMA, Altenbernd B, Campani CC. Entre cuidar e vigiar: ambiguidades e contradições no discurso de uma agente penitenciária. Cien Saude Colet 2014; 19(7):2245-2254.. Em consequência, a proposta de ressocialização permeia-se de tensões históricas, inclusive, entre a Justiça e a Medicina22. Carrara S. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. Uerj; 1998. na arbitragem da aplicação de punição, correção (moral), cura, recuperação, tratamento, reforma, controle do criminoso; haja vista que tais fronteiras são tênues e se confundem33. Vay GS, Silva TM. A escola correcionalista e o direito protetor dos criminosos. Revista Liberdades 2012; 11:69-89., mas influenciam as diferentes escolas penais e, consequentemente, o destino dos presos44. Barsaglini RA, Kehrig RT, Arruda MB. Análise da percepção de gestores sobre a gestão da política de saúde penitenciária em Mato Grosso. Saúde e Sociedade. São Paulo; 2015; 24(4): 1119-1136..
O primeiro capítulo é amplo e variado iniciando pela literatura clássica que situa a prisão por meio de três autores, como Émile Durkheim, o qual, pela perspectiva funcionalista, entende o crime e o castigo/punição como fatos sociais necessários à coesão social e ao equilíbrio das relações e à ordem social. Segue com a perspectiva histórica de Michel Foucault que analisou a transformação do suplício em encarceramento como um dispositivo de poder que compõe as tecnologias de disciplinamento do ser humano, da vigilância, do comportamento e da individualização dos elementos do corpo social. A prisão, com o castigo, administra a criminalidade e a ilegalidade fazendo a gestão das transgressões evocando controles em defesa da sociedade.
Erving Goffman contribui com a visão da prisão como “instituição total” que visa a mortificação do eu, destinada a proteger a sociedade, aliada à recuperação do infrator contra os perigos de ruptura do tecido social pelo crime. Tal mortificação, no entanto, não se dá de forma absoluta e sem resistências, empreendendo-se táticas variadas para fugir do controle.
O mesmo capítulo traz dados estatísticos e a organização do Sistema Prisional Brasileiro e Fluminense, as taxas de aprisionamento entre os países e entre os estados brasileiros (em que Mato Grosso do Sul ocupa o primeiro lugar e não Mato Grosso, como informado na pagina 37), o perfil dos presos e os tipos de delitos.
Apresenta-se levantamento da produção técnica (oficial) e cientifica brasileira sobre a saúde dos presos, que é escassa sobressaindo os estudos epidemiológicos, contrastando com a de outros países. Dados nacionais nestes estudos mostram “carências de natureza estrutural e processual que afetam a pretensa ressocialização dos reclusos” e a sua saúde, ao lado de avanços jurídicos representados por aparatos legais que a preconizam como a Lei de Execução Penal nº 7.210 de 1984, a Constituição Federal de 1988, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (vigente de 2002 a 2013) e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional de 2014.
Na sequencia é explicitada a proposta metodológica quanti e qualitativa que na produção dos dados envolveu observação (inspeção das condições ambientais de saúde) em 11 penitenciarias do Rio de Janeiro; um inquérito sobre saúde e qualidade de vida dos presos; entrevistas com uma parte deles.
Finaliza-se o capítulo com o perfil dos presos: 1.110 homens e 463 mulheres (do universo de 22.851 e 1.380 respectivamente) que cumpriam pena em regime fechado. São quantificados os dados sobre a idade, a cor da pele, a escolaridade e a inclusão no mundo do trabalho, este último com relatos dos entrevistados. Os autores são cautelosos na recusa ao determinismo diante dos dados que levaria pobres, negros, pardos e favelados às prisões, mas sem desconsiderar o peso do ambiente social e comunitário.
É oportuno lembrar, neste sentido, que o perfil dos encarcerados (e não de todos que cometem delitos) contribui para formar a ideia da falta de oportunidades inscritas por elementos estruturantes da sociedade, associada à entrada no mundo do crime, contudo eles não são em si decisivos, determinantes e absolutos.
Os capítulos seguintes se voltam à vida dos presos antes, durante (cotidiano) e expectativas após sair da prisão, sempre comparando diferenciais entre homens e mulheres. O segundo capítulo – “A vida antes da institucionalização” – mostra dados sobre o envolvimento com o tráfico de drogas, a vida familiar e as repercussões do aprisionamento na família e o incremento de políticas públicas na última década, mas ainda insuficientes para suprir as necessidades das famílias dos presos.
Quanto às drogas (ilícitas, licitas, prescritas) o inquérito mostra o uso de substâncias variadas com referencias ao contexto e uso anteriores à prisão, finalizando-se o capítulo abordando as violências pregressas diante das quais há um cuidado em não restringi-las à criminalidade, porém sem ignorar a sua presença nos casos concretos relatados.
O capítulo 3 enfoca o cotidiano na prisão onde o tempo monótono, vagaroso é contornado em atividades internas: escolares, laborais (não condizentes com a legislação), bem como as referentes à religião e à espiritualidade promotoras da sociabilidade, conforto moral, alívio de sintomas depressivos e psicossomáticos, não desconsiderando a conversão como possível estratégia de sobrevivência em ambientes violentos como os presídios.
São abordados, pela percepção dos presos, os relacionamentos interpessoais (família, amigos, outros presos, agentes prisionais, administração), a alimentação (má qualidade ao lado das estratégias para contorná-la) e o transporte para atendimentos externos de saúde e jurídico (precárias condições e tratamento recebido no percurso).
O longo capítulo 4 esmiúça os agravos e os problemas de saúde física, mental e ambiental. Retoma as violências cotidianas, as lesões sofridas e a percepção dos riscos geradores de incertezas, tensões e vigilâncias constantes. Levantam-se dados de sofrimentos psíquicos e doenças referidas, muitas delas desencadeadas ou agravadas pela situação e pelas condições de confinamento.
O subsistema de saúde é alvo de críticas pelos presos: falta de serviços e profissionais, problemas de acesso, má qualidade. Somam-se as condições ambientais observadas (estrutura, infraestrutura, equipamentos, mobiliário e convivência humana) que revelam insalubridade.
O capítulo 5 versa sobre as expectativas projetadas de “ressocialização”, destacando-se esperanças que incidem sobre o trabalho, a escolarização, a família como estímulo à retomada da vida após a prisão e outros requisitos para não reincidir.
A obra é encerrada sintetizando as discussões e lembrando que a problemática levantada pela pesquisa começa fora da prisão, refletindo contradições sociais, sendo necessário pensar a inclusão social. Fazendo jus ao título da obra, concluem afirmando que “(...) na forma como está constituído, o sistema prisional frequentemente contribui para o aprofundamento das múltiplas exclusões vivenciadas pelos reclusos antes do encarceramento”.
Deve-se atentar para o contexto mais amplo em que instituições que deveriam proteger e garantir direitos aos cidadãos constituem foco de ameaças a eles por meio de omissões, descasos, negligências, impunidades. Neste sentido, os dados apresentados mostram continuidades e descontinuidades de biografias marcadas por adversidades de diferentes tipos em que o aprisionamento figura como apenas mais uma delas. Soma-se, ainda, o principio do retributivismo que remete à tentativa de sempre agravar, por diferentes formas, a pena para além da privação da liberdade, como a negação de direitos ao preso55. Silva M. Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política. Brasília: Verbena; 2015., sendo necessário acautelar-se para que o não cuidado não venha a compor a punição44. Barsaglini RA, Kehrig RT, Arruda MB. Análise da percepção de gestores sobre a gestão da política de saúde penitenciária em Mato Grosso. Saúde e Sociedade. São Paulo; 2015; 24(4): 1119-1136..
Enfim, se os muros das prisões não servem apenas para isolar os presos, é necessário extrapolá-los para compreender os processos que afetam a vida deste segmento como, de certo modo, nos convidam os autores.
Referências
- 1Barcinski MMA, Altenbernd B, Campani CC. Entre cuidar e vigiar: ambiguidades e contradições no discurso de uma agente penitenciária. Cien Saude Colet 2014; 19(7):2245-2254.
- 2Carrara S. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século Rio de Janeiro: Ed. Uerj; 1998.
- 3Vay GS, Silva TM. A escola correcionalista e o direito protetor dos criminosos. Revista Liberdades 2012; 11:69-89.
- 4Barsaglini RA, Kehrig RT, Arruda MB. Análise da percepção de gestores sobre a gestão da política de saúde penitenciária em Mato Grosso. Saúde e Sociedade São Paulo; 2015; 24(4): 1119-1136.
- 5Silva M. Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política. Brasília: Verbena; 2015.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2016